Language of document : ECLI:EU:C:2015:554

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

8 de setembro de 2015 (*)

«Recurso de anulação — Regulamento (UE) n.° 1052/2013 — Passagem das fronteiras externas — Sistema Eurosur — Desenvolvimento das disposições do acervo de Schengen — Participação — Cooperação com a Irlanda e o Reino Unido — Validade»

No processo C‑44/14,

que tem por objeto um recurso de anulação nos termos do artigo 263.° TFUE, apresentado em 27 de janeiro de 2014,

Reino de Espanha, representado por A. Rubio González, na qualidade de agente,

recorrente,

contra

Parlamento Europeu, representado por D. Moore, S. Alonso de Leon e A. Pospíšilová Padowska, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

Conselho da União Europeia, representado por M. Chavrier, F. Florindo Gijón, M.‑M. Joséphidès e P. Plaza García, na qualidade de agentes,

recorridos,

apoiados por:

Irlanda, representada por E. Creedon, G. Hodge e A. Joyce, na qualidade de agentes, assistidos por G. Gilmore, barrister,

Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, representado por L. Christie, na qualidade de agente, assistido por J. Holmes, barrister,

Comissão Europeia, representada por J. Baquero Cruz e G. Wils, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

intervenientes,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, K. Lenaerts, vice‑presidente, R. Silva de Lapuerta, M. Ilešič, L. Bay Larsen (relator), A. Ó Caoimh, C. Vajda, S. Rodin e K. Jürimäe, presidentes de secção, E. Juhász, A. Borg Barthet, J. Malenovský, E. Levits, J. L. da Cruz Vilaça e F. Biltgen, juízes,

advogado‑geral: N. Wahl,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 17 de março de 2015,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 13 de maio de 2015,

profere o presente

Acórdão

1        Na sua petição, o Reino de Espanha pede a anulação do artigo 19.° do Regulamento (UE) n.° 1052/2013 do Parlamento e do Conselho, de 22 de outubro de 2013, que cria o Sistema Europeu de Vigilância das Fronteiras (Eurosur) (JO L 295, p. 11, a seguir «regulamento Eurosur»).

 Quadro jurídico

 Decisão 2000/365/CE

2        Nos termos do artigo 4.° do Protocolo (n.° 19) relativo ao acervo de Schengen integrado no âmbito da União Europeia (a seguir «Protocolo de Schengen»), o Conselho da União Europeia aprovou, em 29 de maio de 2000, a Decisão 2000/365/CE sobre o pedido do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte para participar em algumas das disposições do acervo de Schengen (JO L 131, p. 43).

3        O artigo 1.° desta decisão enumera as disposições do acervo de Schengen em que o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte participa. As disposições deste acervo relativas à passagem das fronteiras externas não figuram entre as disposições assim enumeradas.

 Decisão 2002/192/CE

4        Nos termos do artigo 4.° do Protocolo de Schengen, o Conselho aprovou, em 28 de fevereiro de 2002, a Decisão 2002/192/CE sobre o pedido da Irlanda para participar em algumas das disposições do acervo de Schengen (JO L 64, p. 20).

5        O artigo 1.° desta decisão enumera as disposições do acervo de Schengen em que a Irlanda participa. As disposições relativas à passagem das fronteiras externas não figuram entre as disposições assim enumeradas.

 Regulamento Eurosur

6        Os considerandos 16, 20 e 21 do regulamento Eurosur têm a seguinte redação:

«(16)      O presente regulamento inclui disposições sobre a possibilidade de uma estreita cooperação com a Irlanda e o Reino Unido, que poderão contribuir para melhor alcançar os objetivos do EUROSUR.

[...]

(20)      O presente regulamento constitui um desenvolvimento das disposições do acervo de Schengen em que o Reino Unido não participa, nos termos da [Decisão 2000/365]. Por conseguinte, o Reino Unido não participa na sua adoção e não fica a ele vinculado nem sujeito à sua aplicação.

(21)      O presente regulamento constitui um desenvolvimento das disposições do acervo de Schengen em que a Irlanda não participa, nos termos da [Decisão 2002/192]. Por conseguinte, a Irlanda não participa na sua adoção e não fica a ele vinculada nem sujeita à sua aplicação.»

7        O artigo 1.° deste regulamento estabelece:

«O presente regulamento cria um quadro comum para o intercâmbio de informações e a cooperação entre os Estados‑Membros e a Agência [Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados‑Membros da União Europeia, a seguir ‘Agência’)] destinado a melhorar o conhecimento da situação e a aumentar a capacidade de reação nas fronteiras externas dos Estados‑Membros da União [...] a fim de detetar, [de] prevenir e [de] combater a imigração ilegal e a criminalidade transfronteiriça e de contribuir para garantir a proteção e a salvaguarda da vida dos migrantes (‘EUROSUR’).»

8        Sob a epígrafe «Quadro do EUROSUR», o artigo 4.° do referido regulamento dispõe nos n.os 1 a 3:

«1.      Para trocarem informações e cooperarem no domínio da vigilância das fronteiras, e tendo em conta os mecanismos de cooperação e intercâmbio de informações existentes, os Estados‑Membros e a Agência utilizam o quadro do EUROSUR, constituído pelas seguintes componentes:

a)      Centros nacionais de coordenação;

b)      Quadros de situação nacionais;

c)      Uma rede de comunicações;

d)      Um quadro de situação europeu;

e)      Um quadro comum de informações além‑fronteiras;

f)      Uma aplicação comum dos instrumentos de vigilância.

[...]

3.      A Agência faculta aos centros nacionais de coordenação, através da rede de comunicações, acesso ilimitado ao quadro de situação europeu e ao quadro comum de informações além‑fronteiras.»

9        O artigo 9.°, n.os 9 e 10, do mesmo regulamento estabelece:

«9.      Os centros nacionais de coordenação dos Estados‑Membros vizinhos partilham entre si, diretamente e em tempo quase real, os quadros de situação dos troços de fronteiras externas vizinhos, no que diz respeito:

a)      Aos incidentes e a outras ocorrências significativas incluídas no nível respeitante às ocorrências;

b)      Aos relatórios de análise tática de riscos incluídos no nível de análise.

10.      Os centros nacionais de coordenação dos Estados‑Membros vizinhos podem partilhar entre si, diretamente e em tempo quase real, os quadros de situação dos troços de fronteiras externas vizinhos no que diz respeito à posição, ao estatuto e ao tipo de recursos próprios que operem nos troços de fronteiras externas vizinhos incluídos no nível operacional.»

10      Os artigos 14.° a 16.° do regulamento Eurosur preveem as disposições que regem a capacidade de reação nas fronteiras externas dos Estados‑Membros.

11      O artigo 19.° deste regulamento, com a epígrafe «Cooperação com a Irlanda e com o Reino Unido», tem a seguinte redação:

«1.      Para efeitos do presente regulamento, o intercâmbio de informações e a cooperação com a Irlanda e o Reino Unido podem realizar‑se com base em acordos bilaterais ou multilaterais entre a Irlanda ou o Reino Unido, respetivamente, e um ou vários Estados‑Membros vizinhos, ou através de redes regionais baseadas nesses acordos. Os centros nacionais de coordenação dos Estados‑Membros servem de pontos de contacto para trocar informações com as autoridades correspondentes da Irlanda e do Reino Unido no âmbito do EUROSUR. Uma vez celebrados, tais acordos são notificados à Comissão.

2.      Os acordos a que se refere o n.° 1 devem limitar‑se ao intercâmbio das seguintes informações entre o centro nacional de coordenação de um Estado‑Membro e a autoridade correspondente da Irlanda ou do Reino Unido:

a)      Informações contidas nos quadros de situação nacionais dos Estados‑Membros transmitidas à Agência para efeitos do quadro de situação europeu e do quadro comum de informações além‑fronteiras;

b)      Informações recolhidas pela Irlanda e pelo Reino Unido que sejam relevantes para efeitos do quadro de situação europeu e do quadro comum de informações além‑fronteiras;

c)      Informações a que se refere o artigo 9.°, n.° 9.

3.      Se a Agência ou um Estado‑Membro que não seja parte num dos acordos a que se refere o n.° 1 tiverem prestado informações no contexto do EUROSUR, essas informações só podem ser partilhadas com a Irlanda ou o Reino Unido mediante autorização prévia da Agência ou do Estado‑Membro em causa. Os Estados‑Membros e a Agência devem respeitar qualquer recusa de partilha dessas informações com a Irlanda ou o Reino Unido.

4.      É proibida a posterior transmissão ou comunicação, seja por que meio for, das informações trocadas nos termos do presente artigo a países terceiros ou partes terceiras.

5.      Os acordos a que se refere o n.° 1 devem incluir disposições sobre os encargos financeiros decorrentes da participação da Irlanda e do Reino Unido na sua aplicação.»

 Pedidos das partes e tramitação no Tribunal de Justiça

12      O Reino de Espanha pede que o Tribunal de Justiça se digne:

–        anular o artigo 19.° do regulamento Eurosur, e

–        condenar o Parlamento e o Conselho nas despesas.

13      O Parlamento e o Conselho pedem que o Tribunal de Justiça se digne:

–        julgar o recurso improcedente, e

–        condenar o Reino de Espanha nas despesas.

14      Por decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 19 de maio de 2014, foram admitidas as intervenções da Irlanda, do Reino Unido e da Comissão em apoio dos pedidos do Parlamento e do Conselho.

 Quanto ao recurso

 Argumentos das partes

15      O Reino de Espanha invoca, em apoio do seu recurso, um fundamento único baseado na violação das disposições conjugadas dos artigos 4.° e 5.° do Protocolo de Schengen.

16      Este Estado‑Membro sustenta, a este respeito, que o artigo 19.° do regulamento Eurosur é contrário a essas disposições, na parte em que institui nesse regulamento, à margem do artigo 4.° desse protocolo, um processo ad hoc de participação da Irlanda e do Reino Unido, mediante acordos de cooperação.

17      Com efeito, segundo o Reino de Espanha, a associação da Irlanda e do Reino Unido ao sistema Eurosur, prevista no artigo 19.° do regulamento Eurosur, é uma forma de participação, na aceção do Protocolo de Schengen, uma vez que a cooperação desses Estados‑Membros neste sistema constitui uma participação na execução deste regulamento e que a integração desses Estados‑Membros numa troca de informações os coloca no quadro comum para o intercâmbio de informações e para a cooperação que o referido regulamento visa estabelecer em aplicação do seu artigo 1.° Qualquer distinção entre essa associação da Irlanda e do Reino Unido ao sistema Eurosur e uma participação na aceção do Protocolo de Schengen tem, por conseguinte, um caráter artificial.

18      Além disso, admitir a legalidade da criação de um processo ad hoc de participação privaria de efeito útil o artigo 4.° do Protocolo de Schengen, uma vez que um Estado‑Membro a quem fosse recusada a autorização de participar na adoção de uma medida que desenvolve o acervo de Schengen pode, não obstante essa recusa, participar nessa medida mediante este processo ad hoc. Por conseguinte, este regime seria incompatível com a solução adotada pelo Tribunal de Justiça nos acórdãos Reino Unido/Conselho (C‑77/05, EU:C:2007:803) e Reino Unido/Conselho (C‑137/05, EU:C:2007:805).

19      O Reino de Espanha lembra também que o Tribunal de Justiça declarou, no acórdão Reino Unido/Conselho (C‑482/08, EU:C:2010:631), que os Estados‑Membros que participam no acervo de Schengen não estão obrigados a prever medidas especiais de adaptação para os outros Estados‑Membros.

20      Por outro lado, segundo o Reino de Espanha, o artigo 19.° do regulamento Eurosur viola o artigo 4.° do Protocolo de Schengen de forma particularmente grave, dado que trata a Irlanda e o Reino Unido como países terceiros, que coloca estes dois Estados‑Membros numa situação mais favorável que a dos outros Estados‑Membros, que os acordos mencionados neste artigo 19.° comportam disposições relativas aos encargos financeiros decorrentes da sua aplicação e que o sistema resultante destes acordos conduz a uma fragmentação da gestão da passagem das fronteiras externas. Assim, o legislador da União criou, de forma ilícita, uma situação especial que o direito primário não prevê e que se opõe ao objetivo prosseguido pelo artigo 4.° do Protocolo de Schengen.

21      O Parlamento, o Conselho, a Irlanda e o Reino Unido salientam que a expressão «participação» é utilizada no Protocolo de Schengen para designar tanto a participação na tomada de medidas que desenvolvem o acervo de Schengen como a participação na aplicação de disposições já tomadas deste acervo. Ora, a Irlanda e o Reino Unido não participaram na aprovação do regulamento Eurosur e também não participam na sua aplicação, como lembram os considerandos 20 e 21 desse regulamento.

22      Segundo o Parlamento, o Conselho, a Irlanda, o Reino Unido e a Comissão, o artigo 19.° do referido regulamento prevê apenas, na realidade, uma forma de cooperação limitada, que permite atingir mais eficazmente os objetivos do Eurosur, sem que a Irlanda ou o Reino Unido sejam equiparados aos Estados que participam nas disposições do acervo de Schengen relativas à passagem das fronteiras externas. Com efeito, os diferentes limites relativos ao âmbito dos acordos mencionados nesse artigo 19.° implicam que estes não podem conduzir à colocação da Irlanda ou do Reino Unido no quadro comum estabelecido por esse mesmo regulamento.

23      Além disso, o Parlamento e a Comissão sustentam que os artigos 4.° e 5.° do Protocolo de Schengen visam unicamente reger as situações em que a Irlanda ou o Reino Unido pedem para participar num domínio do acervo de Schengen e não o estatuto reservado a esses Estados‑Membros quando estes não encetaram tal diligência.

24      Por outro lado, a solução proposta pelo Reino de Espanha levaria, no entender do Parlamento e do Reino Unido, a tratar a Irlanda e o Reino Unido com maior desconfiança do que os países terceiros.

25      Por fim, o Conselho, o Reino Unido e a Comissão contestam a argumentação apresentada pelo Reino de Espanha, segundo a qual o artigo 19.° do regulamento Eurosur leva a diversas consequências negativas, salientando, designadamente, que a complexidade que pode decorrer da celebração dos acordos de cooperação não põe em causa a finalidade do Protocolo de Schengen e é parte integrante da realidade da cooperação reforçada no espaço Schengen e da cooperação mais limitada pretendida com os países terceiros vizinhos e os Estados‑Membros não participantes.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

26      Há que recordar que o artigo 1.° do Protocolo de Schengen autorizar 25 Estados‑Membros, entre os quais não constam a Irlanda nem o Reino Unido, a instaurarem entre si uma cooperação reforçada nos domínios abrangidos no acervo de Schengen.

27      Não participando a Irlanda e o Reino Unido em todas as disposições do acervo de Schengen, estes dois Estados‑Membros encontram‑se numa situação particular que o Protocolo de Schengen teve duplamente em conta (v., neste sentido, acórdão Reino Unido/Conselho, C‑77/05, EU:C:2007:803, n.° 57).

28      Por um lado, o artigo 4.° desse protocolo reserva a estes dois Estados‑Membros a faculdade de requerer, a todo o tempo, a possibilidade de aplicar, no todo ou em parte, as disposições do acervo de Schengen em vigor na data do pedido de participação. Por outro, o artigo 5.° do referido protocolo, que rege a adoção das propostas e das iniciativas baseadas neste acervo, permite aos referidos Estados‑Membros escolher se participam ou não na adoção de uma medida deste tipo, sendo esta escolha permitida a esses mesmos Estados‑Membros apenas quando essa medida se insere num domínio do acervo de Schengen a que o Estado‑Membro em causa se vinculou em aplicação do artigo 4.° do mesmo protocolo, ou quando a referida medida constitui um desenvolvimento de tal domínio (v., nesse sentido, acórdãos Reino Unido/Conselho, C‑77/05, EU:C:2007:803, n.os 58, 62 e 65, e Reino Unido/Conselho, C‑482/08, EU:C:2010:631, n.° 61).

29      Neste contexto, há que salientar que é indiscutível que, ainda que, em aplicação do artigo 4.° do Protocolo de Schengen e das Decisões 2000/365 e 2002/192, a Irlanda e o Reino Unido participem em determinadas disposições do acervo de Schengen, essa participação não se estende às disposições deste acervo relativas à passagem das fronteiras externas.

30      A Irlanda ou o Reino Unido só podem, portanto, participar nas disposições em vigor do acervo de Schengen relativas a este domínio ou na adoção de propostas e iniciativas baseadas neste acervo e relativas ao referido domínio após um pedido apresentado para o efeito pelo Estado‑Membro em causa, e depois aceite pelo Conselho decidindo em conformidade com o processo previsto no artigo 4.° do Protocolo de Schengen.

31      Daí que o legislador da União não possa validamente instituir um processo diferente do previsto no artigo 4.° desse protocolo, quer no sentido de o reforçar quer no de o simplificar, para efeitos de autorização da participação da Irlanda ou do Reino Unido naquelas disposições ou na adoção de tais propostas e iniciativas (v., nesse sentido, acórdão Parlamento/Conselho, C‑133/06, EU:C:2008:257, n.° 56).

32      Do mesmo modo, o legislador da União não pode prever, para os Estados‑Membros, a faculdade de celebrarem entre si acordos com esse objetivo.

33      No caso presente, o artigo 19.° do regulamento Eurosur, que constitui um desenvolvimento do acervo de Schengen no domínio da passagem das fronteiras externas, prevê a faculdade de instaurar uma cooperação que visa o intercâmbio de informações, com base em acordos bilaterais ou multilaterais entre a Irlanda ou o Reino Unido e um ou vários Estados‑Membros vizinhos, sem que se exija, previamente, a adoção de uma decisão do Conselho, baseada no artigo 4.° do Protocolo de Schengen, para autorizar essa cooperação.

34      Tendo em conta o objeto desses acordos, o artigo 19.° do regulamento Eurosur não permite que Irlanda ou o Reino Unido participem na adoção de uma proposta ou de uma iniciativa baseada no acervo de Schengen, no domínio da passagem das fronteiras externas.

35      Ao invés, na medida em que os referidos acordos visam pôr em prática uma cooperação entre a Irlanda ou o Reino Unido e um ou vários Estados‑Membros vizinhos, é necessário, para apreciar o mérito do fundamento único alegado pelo Reino de Espanha em apoio do seu recurso, determinar se essa cooperação pode ser qualificada de «participação» nas disposições do regulamento Eurosur, na aceção do artigo 4.° do Protocolo de Schengen.

36      A este respeito, antes de mais, há que salientar, por um lado, que resulta dos considerandos 20 e 21 do regulamento Eurosur que a Irlanda e o Reino Unido não estão vinculados por este regulamento nem sujeitos à aplicação do mesmo e, por outro, que o artigo 19.° do referido regulamento não prevê que os acordos mencionados neste artigo tenham por objetivo modificar esta situação.

37      Em seguida, resulta dos artigos 1.° e 4.° do regulamento Eurosur que este cria um quadro comum para o intercâmbio de informações e para a cooperação entre os Estados‑Membros e a Agência, constituído pelas seis componentes enumeradas no seu artigo 4.°, n.° 1. Ora, os acordos mencionados no artigo 19.° do referido regulamento dizem respeito unicamente, por força do artigo 19.°, n.° 2, do mesmo, a duas das seis componentes, pois permitem um intercâmbio de informações com os centros nacionais de coordenação unicamente dos Estados‑Membros que celebraram tal acordo relativo às informações contidas nos quadros de situação nacionais desses Estados‑Membros.

38      Esta limitação do objeto dos acordos mencionados no artigo 19.° do regulamento Eurosur implica, em especial, como salientou o advogado‑geral nos n.os 27 e 31 das suas conclusões, que esses acordos não podem criar relações entre a Irlanda ou o Reino Unido e a Agência e que está também excluído o acesso direto à rede de comunicações, ao quadro de situação europeu ou ao quadro comum de informações, a que os outros Estados‑Membros têm acesso ilimitado, por força do artigo 4.°, n.° 3, do referido regulamento, e que constituem o centro do quadro comum criado por esse regulamento.

39      Por outro lado, os acordos mencionados no artigo 19.° do regulamento Eurosur não se podem aplicar ao segmento operacional deste regulamento, a saber, a capacidade de reação nas fronteiras externas dos Estados‑Membros, objeto dos artigos 14.° a 16.° do referido regulamento.

40      Por fim, há que salientar que as informações que podem ser transmitidas à Irlanda e ao Reino Unido com base nos acordos mencionados no artigo 19.° do regulamento Eurosur são identificadas precisamente no artigo 19, n.os 2 e 3, desse regulamento. Em especial, não podem ser partilhadas com a Irlanda ou o Reino Unido as informações visadas no artigo 9.°, n.° 10, do referido regulamento nem as informações prestadas, no contexto do Eurosur, pela Agência ou por um Estado‑Membro que não é parte nesse acordo, salvo autorização prévia da Agência ou deste último Estado‑Membro.

41      Por conseguinte, afigura‑se, por um lado, que a cooperação permitida pelo artigo 19.° do regulamento Eurosur só pode incidir sobre uma parte limitada dos domínios regidos por este regulamento e, por outro, que, nesses domínios, os acordos mencionados nesse artigo não permitem aceder, ainda que indiretamente, às informações trocadas no quadro comum criado pelo referido regulamento, sem acordo prévio dos Estados‑Membros que forneceram essas informações.

42      Resulta do que precede que os acordos mencionados no artigo 19.° do regulamento Eurosur permitem a aplicação de uma forma limitada de cooperação entre a Irlanda e o Reino Unido e um ou vários Estados‑Membros vizinhos, mas que não podem conduzir à colocação da Irlanda ou do Reino Unido numa situação equivalente à dos outros Estados‑Membros, na medida em que esses acordos não podem validamente prever, para esses dois Estados‑Membros, direitos ou obrigações comparáveis às dos outros Estados‑Membros no quadro do sistema Eurosur ou de uma parte substancial deste.

43      Porém, o Reino de Espanha sustenta, ao contrário do Parlamento e do Conselho, que mesmo uma forma limitada de cooperação deve ser considerada uma participação, no sentido do artigo 4.° do Protocolo de Schengen, o que implica que, apesar dos limites que enquadram a cooperação previstos no artigo 19.° do regulamento Eurosur, este último artigo é incompatível com esse protocolo.

44      A este respeito, há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, para a interpretação de uma disposição de direito da União, se devem tomar em consideração simultaneamente os seus termos, o seu contexto e os seus objetivos (v., neste sentido, acórdãos Reino Unido/Conselho, C‑77/05, EU:C:2007:803, n.° 55, e van der Helder e Farrington, C‑321/12, EU:C:2013:648, n.° 36).

45      Em primeiro lugar, no que se refere à redação do artigo 4.° do Protocolo de Schengen, há que salientar que deste decorre que a Irlanda e o Reino Unido têm a faculdade de requerer a possibilidade de aplicar, no todo ou em parte, as disposições do acervo de Schengen. Em contrapartida, a letra deste artigo não considera a possibilidade, para o Conselho, de alterar, utilizando o processo previsto neste artigo, a intensidade desta participação, ao prever uma aplicação limitada ou adaptada, em relação a esses dois Estados‑Membros, das disposições em que estes estão autorizados a participar, como a prevista no artigo 19.° do regulamento Eurosur.

46      Em segundo lugar, no que respeita ao contexto em que se insere o artigo 4.° do Protocolo de Schengen, há que salientar, antes de mais, que o preâmbulo deste protocolo precisa que o mesmo prevê a possibilidade, para a Irlanda e o Reino Unido, de «aceitarem» disposições do acervo de Schengen, indicando, assim, que o processo instituído no artigo 4.° do referido protocolo visa confirmar a adesão plena e integral desses Estados‑Membros às disposições em vigor deste acervo e não impor mecanismos de cooperação limitados em domínios do referido acervo, que os ditos Estados‑Membros não subscreveram. Esta análise é corroborada pelo facto de a expressão «aceitar» ser também usada, no artigo 7.° do mesmo protocolo, em relação aos novos Estados‑Membros da União.

47      Em seguida, importa recordar que decorre quer do preâmbulo do Protocolo de Schengen quer do seu artigo 1.° que a integração do acervo de Schengen no quadro da União Europeia se baseia nas disposições dos Tratados relativas à cooperação reforçada.

48      Ora, resulta do título III da parte VI do Tratado FUE e, em especial, do artigo 327.° TFUE, que a aplicação de uma cooperação reforçada está estruturada pela distinção operada entre os Estados participantes, vinculados pelos atos adotados nesse quadro, e os Estados não participantes, que não o estão. A passagem do estatuto de Estado‑Membro não participante para Estado‑Membro participante é, regra geral, regida pelo artigo 331.° TFUE e implica, como indica este artigo, que o Estado‑Membro em causa está obrigado a aplicar os atos já adotados no âmbito da cooperação reforçada.

49      O artigo 4.° do Protocolo de Schengen, que se aplica em vez do artigo 331.° TFUE no quadro da cooperação reforçada nos domínios do acervo de Schengen, deve, por conseguinte, ser interpretado como tendo por objetivo permitir à Irlanda e ao Reino Unido que sejam colocados, no que se refere a determinadas disposições em vigor do acervo de Schengen, numa situação equivalente à dos Estados‑Membros que participam neste acervo, e não regular os direitos e as obrigações desses dois Estados‑Membros quando optam por se manter, em determinados domínios, fora desta cooperação reforçada.

50      Em terceiro lugar, há que salientar que deve ser afastado o argumento do Reino de Espanha, segundo o qual o objetivo prosseguido pelo artigo 4.° do Protocolo de Schengen se opõe à aceitação da legalidade da instituição de formas limitadas de cooperação com a Irlanda ou o Reino Unido.

51      Com efeito, por um lado, resulta da economia geral do Protocolo de Schengen, da Declaração n.° 45 relativa ao artigo 4.° do Protocolo que integra o acervo de Schengen no âmbito da União, e do princípio da cooperação leal que não se pode considerar que o sistema instaurado nos artigos 4.° e 5.° do Protocolo de Schengen obrigue a Irlanda e o Reino Unido a participar em todo o acervo de Schengen, excluindo qualquer forma de cooperação limitada com esses Estados‑Membros (v., neste sentido, acórdão Reino Unido/Conselho, C‑77/05, EU:C:2007:803, n.° 66).

52      Por outro lado, importa salientar que interpretar o artigo 4.° do Protocolo de Schengen no sentido de que não se aplica às formas limitadas de cooperação não põe em causa o efeito útil deste artigo, na medida em que esta interpretação não permite à Irlanda e ao Reino Unido obter direitos comparáveis aos dos outros Estados‑Membros à luz das disposições em vigor do acervo de Schengen, nem participar na adoção de propostas e iniciativas baseadas em disposições deste acervo, sem ter previamente obtido a autorização de participar nas disposições em causa, com base numa decisão unânime do Conselho, adotada com base no referido artigo.

53      Do mesmo modo, o facto de os Estados‑Membros que participam no acervo de Schengen não estarem obrigados, quando fazem evoluir e aprofundar a cooperação reforçada que foram autorizados a instaurar por força do artigo 1.° do Protocolo de Schengen, a prever medidas especiais de adaptação para os outros Estados‑Membros (acórdão Reino Unido/Conselho, C‑482/08, EU:C:2010:631, n.° 49) não implica que o legislador da União esteja impedido de aprovar tais medidas, designadamente ao permitir determinadas formas limitadas de cooperação com esses últimos Estados‑Membros, quando o considere oportuno.

54      De resto, uma solução contrária seria suscetível de impedir a plena realização dos objetivos do acervo de Schengen, ao limitar, por exemplo, a eficácia da vigilância das fronteiras externas nas áreas geográficas vizinhas do território dos Estados que não participam no acervo de Schengen no domínio da passagem dessas fronteiras.

55      A circunstância de a instituição de formas limitadas de cooperação poder levar a uma fragmentação das regras aplicáveis neste domínio, a admitir‑se provada, não é suscetível de pôr em causa tal conclusão, uma vez que a execução de uma cooperação reforçada conduz inevitavelmente a uma certa fragmentação das regras aplicáveis aos Estados‑Membros no domínio em causa.

56      Neste contexto, o facto de a Irlanda ou o Reino Unido serem colocados, à luz do quadro comum instituído pelo regulamento Eurosur, numa situação diferente da dos outros Estados‑Membros que poderia ser comparada, em certa medida, à de um país terceiro, não pode, por conseguinte, ser considerada pertinente.

57      Por outro lado, há que salientar que o artigo 19.° do regulamento Eurosur é suscetível de contribuir para a redução desta fragmentação, ao enquadrar o conteúdo dos acordos que os Estados‑Membros podem concluir com a Irlanda e o Reino Unido no domínio do intercâmbio de informações relativas à passagem das fronteiras externas.

58      Resulta de todas as considerações anteriores que formas limitadas de cooperação não constituem uma forma de participação, na aceção do artigo 4.° do Protocolo de Schengen.

59      Daqui decorre que, atendendo às considerações que constam do n.° 42 do presente acórdão, não se pode considerar que o artigo 19.° do regulamento Eurosur prevê, para os Estados‑Membros, a faculdade de celebrarem acordos que permitam à Irlanda ou ao Reino Unido participar em disposições em vigor do acervo de Schengen, no domínio da passagem das fronteiras externas.

60      Por conseguinte, há que afastar na sua integralidade o fundamento único suscitado pelo Reino de Espanha em apoio do seu recurso e, por conseguinte, negar provimento ao recurso.

 Quanto às despesas

61      Nos termos do artigo 138.°, n.° 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo o Parlamento e o Conselho requerido a condenação do Reino de Espanha e tendo este sido vencido quanto ao seu fundamento único, há que condená‑lo nas despesas.

62      Por aplicação do artigo 140.°, n.° 1, deste regulamento, a Irlanda, o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte e a Comissão suportarão as respetivas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) decide:

1)      É negado provimento ao recurso.

2)      O Reino de Espanha é condenado nas despesas.

3)      A Irlanda, o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte e a Comissão Europeia suportam as suas próprias despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: espanhol.