Language of document : ECLI:EU:C:2002:651

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

12 de Novembro de 2002 (1)

«Aproximação das legislações - Marcas - Directiva 89/104/CEE - Artigo 5.°, n.° 1, alínea a) - Alcance do direito exclusivo do titular da marca»

No processo C-206/01,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 234.° CE, pela High Court of Justice (England & Wales), Chancery Division (Reino Unido), destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

Arsenal Football Club plc

e

Matthew Reed,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 5.°, n.° 1, alínea a), da Primeira Directiva 89/104/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, que harmoniza as legislações dos Estados-Membros em matéria de marcas (JO 1989, L 40, p. 1),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, J.-P. Puissochet, M. Wathelet e C. W. A. Timmermans (relator), presidentes de secção, C. Gulmann, D. A. O. Edward, P. Jann, V. Skouris, F. Macken, N. Colneric e S. von Bahr, juízes,

advogado-geral: D. Ruiz-Jarabo Colomer,


secretário: L. Hewlett, administradora principal,

vistas as observações escritas apresentadas:

-    em representação da Arsenal Football Club plc, por S. Thorley, QC, e T. Mitcheson, barrister, mandatados por Lawrence Jones, solicitors,

-    em representação de M. Reed, por A. Roughton, barrister, mandatado por Stunt & Son, solicitors,

-    em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por N. B. Rasmussen, na qualidade de agente,

-    em representação do Órgão de Fiscalização da EFTA, por P. Dyrberg, na qualidade de agente,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações da Arsenal Football Club plc, representada por S. Thorley e T. Mitcheson, de M. Reed, representado por A. Roughton e S. Malynicz, barrister, e da Comissão, representada por N. B. Rasmussen e M. Shotter, na qualidade de agente, na audiência de 14 de Maio de 2002,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 13 de Junho de 2002,

profere o presente

Acórdão

1.
    Por despacho de 4 de Maio de 2001, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 18 de Maio seguinte, a High Court of Justice (England & Wales), Chancery Division, submeteu, nos termos do artigo 234.° CE, duas questões prejudiciais relativas à interpretação do artigo 5.°, n.° 1, alínea a), da Primeira Directiva 89/104/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, que harmoniza as legislações dos Estados-Membros em matéria de marcas (JO 1989, L 40, p. 1, a seguir «directiva»).

2.
    Estas questões foram suscitadas num litígio que opõe a Arsenal Football Club plc (a seguir «Arsenal FC») a M. Reed a propósito da venda e da oferta por este último de cachecóis nos quais figurava em grandes caracteres a palavra «Arsenal», sinal registado como marca pelo Arsenal FC para esses produtos, entre outros.

Enquadramento jurídico

Regulamentação comunitária

3.
    A directiva reconhece, no seu primeiro considerando, que as legislações nacionais em matéria de marcas comportam disparidades susceptíveis de entravar a livre circulação dos produtos e a livre prestação de serviços e de distorcer as condições de concorrência no mercado comum. Segundo este considerando, daí resulta que importa aproximar as legislações dos Estados-Membros com vista ao estabelecimento e funcionamento do mercado interno. O terceiro considerando da directiva precisa que actualmente não se afigura necessário proceder a uma aproximação total das legislações dos Estados-Membros em matéria de marcas.

4.
    Nos termos do décimo considerando da directiva:

«[...] a protecção conferida pela marca registada, cujo objectivo consiste nomeadamente em garantir a função de origem da marca, é absoluta em caso de identidade entre a marca e o sinal e entre os produtos ou serviços [...].»

5.
    O artigo 5.°, n.° 1, da directiva dispõe:

«A marca registada confere ao seu titular um direito exclusivo. O titular fica habilitado a proibir que um terceiro, sem o seu consentimento, faça uso na vida comercial:

a)    De qualquer sinal idêntico à marca para produtos ou serviços idênticos àqueles para os quais a marca foi registada;

b)    De um sinal relativamente ao qual, devido à sua identidade ou semelhança com a marca e devido à identidade ou semelhança dos produtos ou serviços a que a marca e o sinal se destinam, exista, no espírito do público, um risco de confusão que compreenda o risco de associação entre o sinal e a marca.»

6.
    O artigo 5.°, n.° 3, alíneas a) e b), da directiva prevê:

«Pode nomeadamente ser proibido, caso se encontrem preenchidas as condições enumeradas nos n.os 1 e 2:

a)    Apor o sinal nos produtos ou na respectiva embalagem;

b)    Oferecer os produtos para venda ou colocá-los no mercado ou armazená-los para esse fim [...]»

7.
    Nos termos do artigo 5.°, n.° 5, da directiva:

«Os n.os 1 a 4 não afectam as disposições aplicáveis num Estado-Membro relativas à protecção contra o uso de um sinal feito para fins diversos dos que consistem em distinguir os produtos ou serviços, desde que a utilização desse sinal, sem justo motivo, tire partido indevido do carácter distintivo ou do prestígio da marca ou os prejudique.»

8.
    O artigo 6.°, n.° 1, da directiva tem a seguinte redacção:

«O direito conferido pela marca não permite ao seu titular proibir a terceiros o uso, na vida comercial:

a)    Do seu próprio nome e endereço;

b)    De indicações relativas à espécie, à qualidade, à quantidade, ao destino, ao valor, à proveniência geográfica, à época de produção do produto ou da prestação do serviço ou a outras características dos produtos ou serviços;

c)    Da marca, sempre que tal seja necessário para indicar o destino de um produto ou serviço, nomeadamente sob a forma de acessórios ou peças sobressalentes,

desde que esse uso seja feito em conformidade com práticas honestas em matéria industrial ou comercial.»

Regulamentação nacional

9.
    No Reino Unido, o direito das marcas rege-se pelo Trade Marks Act 1994 (Lei relativa às marcas de 1994) que, para aplicar a directiva, substituiu o Trade Marks Act 1938 (Lei relativa às marcas de 1938).

10.
    O artigo 10.°, n.° 1, do Trade Marks Act 1994 dispõe:

«Quem fizer uso, na vida comercial, de um sinal idêntico à marca registada para produtos ou serviços idênticos àqueles para os quais a marca foi registada é responsável de contrafacção de marca.»

11.
    Nos termos do artigo 10.°, n.° 2, alínea b), do Trade Marks Act 1994:

«É responsável de contrafacção de marca registada quem fizer uso, na vida comercial, de um sinal relativamente ao qual, devido

[...]

b)    à sua semelhança com a marca e ao seu uso relativamente a produtos ou serviços idênticos ou semelhantes àqueles para os quais a marca foi registada,

exista, no espírito do público, um risco de confusão que inclui o risco de associação com a marca.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

12.
    O Arsenal FC é um clube de futebol reconhecido que joga na primeira divisão inglesa. Também designado «the Gunners», foi durante muito tempo associado a dois emblemas, a saber, o do escudo («the crest device») e do canhão («the canon device»).

13.
    Em 1989, o Arsenal FC obteve o registo como marcas, designadamente, das palavras «Arsenal» e «Arsenal Gunners», bem como dos emblemas do canhão e do escudo, para uma categoria de produtos que inclui artigos de confecção, vestuário desportivo e calçado desportivo. O Arsenal FC concebe e fornece os seus próprios produtos ou manda-os fabricar e fornecer por intermédio da sua rede de revendedores autorizados.

14.
    Tendo as suas actividades comerciais e promocionais no domínio da venda, ao abrigo das referidas marcas, de lembranças e produtos derivados conhecido nos últimos anos um grande sucesso que lhe proporciona importantes réditos, o Arsenal FC procurou agir de forma a que os produtos «oficiais» - quer dizer, os produtos fabricados para o Arsenal FC ou com a sua autorização - pudessem ser identificados claramente e tentou convencer os seus adeptos a comprar exclusivamente esses produtos. Além disso, instaurou processos judiciais, tanto cíveis como penais, contra comerciantes que vendiam produtos não oficiais.

15.
    Desde 1970, M. Reed vende lembranças e outros produtos derivados do futebol, quase todos ostentando sinais que evocam o Arsenal FC, em várias tendas situadas no exterior do estádio do Arsenal FC. Só conseguiu obter da sociedade KT Sports, encarregada pelo clube de vender os seus produtos aos revendedores localizados à volta do referido estádio, pequenas quantidades destes produtos oficiais. Em 1991 e em 1995, o Arsenal FC mandou apreender artigos não oficiais detidos por M. Reed.

16.
    O órgão jurisdicional de reenvio informa que não é contestado no processo principal que, numa das suas tendas, M. Reed vendeu e ofereceu cachecóis ostentando sinais que evocavam o Arsenal FC em grandes caracteres e que se tratava então de produtos não oficiais.

17.
    Informa também que, na referida tenda, estava fixado um grande cartaz com o seguinte texto:

«A palavra ou o(s) logotipo(s) nos produtos expostos para venda são unicamente utilizados para decorar o produto e não significam nem indicam qualquer filiação ou relação com os produtores ou distribuidores de qualquer outro produto. Apenas os produtos com etiquetas que atestem tratar-se de artigos oficiais do Arsenal são produtos oficiais do Arsenal.»

18.
    Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio observa que, quando excepcionalmente pôde adquirir artigos oficiais, M. Reed, nos seus contactos com os seus clientes, distinguiu claramente os produtos oficiais dos produtos não oficiais, nomeadamente apondo uma etiqueta que continha a menção «oficial». Por outro lado, os produtos oficiais eram vendidos a preços superiores.

19.
    Considerando que, ao vender os cachecóis não oficiais em questão, M. Reed tinha, por um lado, incorrido em responsabilidade extracontratual em razão de um «passing off» - a saber, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o comportamento de um terceiro que induz em erro, de tal modo que um grande número de pessoas crê ou é levado a crer que os objectos vendidos por este terceiro são objectos do demandante ou vendidos com a sua autorização ou que apresentam uma relação de natureza comercial com ele - e, por outro, praticara uma contrafacção da marca, o Arsenal FC intentou uma acção judicial contra este comerciante na High Court of Justice (England & Wales), Chancery Division.

20.
    Face às circunstâncias do litígio no processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio julgou improcedente a acção de responsabilidade extracontratual intentada pelo Arsenal FC (por «passing off»), em virtude de, no essencial, este clube não ter podido provar a existência de uma real confusão no público interessado e, mais particularmente, não ter podido demonstrar que todos os produtos não oficiais vendidos por M. Reed eram considerados pelo público como provenientes do Arsenal FC ou autorizados por este. A este propósito, o órgão jurisdicional de reenvio observou, nomeadamente, que entendia que os símbolos que evocavam o Arsenal FC, apostos nos objectos vendidos por M. Reed, não continham qualquer indicação relativa à origem destes.

21.
    Quanto à acusação do Arsenal FC relativa à contrafacção das suas marcas, baseada no artigo 10.°, n.os 1 e 2, alínea b), do Trade Marks Act 1994, o órgão jurisdicional de reenvio julgou improcedente o argumento do Arsenal FC de que o uso feito por M. Reed dos sinais registados como marcas era entendido pelos seus destinatários como indicando a proveniência dos produtos («badge of origine») e constituía, portanto, um uso destes sinais «como marcas» («trademark use»).

22.
    Com efeito, na opinião deste órgão jurisdicional, os sinais apostos nos produtos de M. Reed eram entendidos pelo público como testemunho de apoio, de lealdade ou de filiação («badge of support, loyalty or affiliation»).

23.
    Face a estes elementos, o órgão jurisdicional de reenvio considerou que a acção intentada pelo Arsenal FC por contrafacção só poderia ter êxito se a protecção conferida ao titular da marca pelo artigo 10.° da Trade Marks Act 1994 e pela directiva que esta lei transpõe proibisse a um terceiro um uso diferente de um uso como marca, o que supõe uma interpretação ampla destes diplomas legais.

24.
    A este propósito, o órgão jurisdicional de reenvio entende que a tese de que um uso diferente de um uso como marca é proibido a um terceiro apresenta incoerências. Todavia, a tese contrária, a saber, a tese de que só o uso enquanto marca é regulamentado, depara com uma dificuldade ligada à redacção da directiva e do Trade Marks Act 1994, que definem a contrafacção como o uso de um «sinal» e não como o uso de uma «marca».

25.
    O órgão jurisdicional de reenvio observa que foi nomeadamente perante esta redacção que a Court of Appeal (England & Wales) (Civil Division) (Reino Unido) decidiu, no acórdão Philips Electronics Ltd/Remington Consumer Products ([1999] RPC 809), que o uso de um sinal, registado como marca, de forma diferente do uso como marca, podia constituir uma violação do direito de marca. A High Court observa que o estado do direito sobre esta questão continua todavia incerto.

26.
    Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio não acolheu o argumento de M. Reed quanto à alegada invalidade das marcas do Arsenal FC.

27.
    Nestas circunstâncias, a High Court of Justice (England & Wales), Chancery Division, decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)    Caso uma marca esteja validamente registada e um terceiro

    a)    utilize, no exercício do comércio, um sinal idêntico à referida marca em produtos idênticos àqueles para os quais foi registada a marca, e

    b)    não possa invocar em sua defesa o artigo 6.°, n.° 1, da Directiva 89/104/CEE [...],

    pode o mesmo terceiro contestar a acusação de infracção alegando que a utilização do sinal impugnada não indica a origem comercial dos produtos (ou seja, uma conexão de natureza comercial entre os produtos e o titular da marca)?

2)    No caso de resposta afirmativa, constitui uma conexão suficiente o facto de a utilização em questão ser entendida como testemunho de apoio, de lealdade ou de filiação no titular da marca?»

Quanto às questões prejudiciais

28.
    As duas questões prejudiciais devem ser apreciadas conjuntamente.

Observações apresentadas ao Tribunal de Justiça

29.
    O Arsenal FC alega que o artigo 5.°, n.° 1, alínea a), da directiva permite ao titular da marca proibir o uso de um sinal idêntico à marca e não submete de forma nenhuma o exercício deste direito de oposição à condição de que o sinal seja utilizado como marca. A protecção conferida por esta disposição estende-se, portanto, ao uso do sinal por um terceiro, mesmo quando este uso não faz crer na existência de uma relação entre o produto e o titular da marca. Esta interpretação é corroborada pelo artigo 6.°, n.° 1, da directiva, dado que as limitações particulares ao exercício dos direitos decorrentes da marca previstas por este artigo demonstram que tal uso cai, em princípio, no âmbito de aplicação do artigo 5.°, n.° 1, alínea a), da directiva e que só é permitido nos casos previstos de forma exaustiva no artigo 6.°, n.° 1, da directiva.

30.
    A título subsidiário, o Arsenal FC alega que, no caso concreto, o uso que M. Reed fez do sinal idêntico à marca Arsenal deve, em qualquer caso, ser qualificado de uso da marca como marca em virtude de este uso fornecer uma indicação quanto à proveniência dos produtos e que não importa que seja o titular da marca que é assim designado.

31.
    M. Reed sustenta que as actividades comerciais em causa no processo principal não são abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 5.°, n.° 1, da directiva, porque o Arsenal FC não provou que o sinal era utilizado como marca, ou seja, para indicar a proveniência dos produtos, como exige a directiva e, mais particularmente, o seu artigo 5.° Se o público não entendesse o sinal como uma indicação de origem, o uso não constituiria uso do sinal como marca. Quanto ao artigo 6.° da directiva, nada nesta disposição indica que contenha uma lista exaustiva das actividades que não constituem contrafacção.

32.
    A Comissão alega que o direito que o titular de uma marca adquire por força do artigo 5.°, n.° 1, da directiva é independente da circunstância de um terceiro não utilizar o sinal como marca e, em particular, da circunstância de o terceiro não utilizar a marca como indicação de origem, mas informar o público por outros meios de que os produtos não provêm do titular da marca ou de que o uso do sinal não foi autorizado por este. O objecto específico da marca é, com efeito, garantir que só o titular pode conferir ao produto a sua identidade de origem pela aposição da marca. A Comissão sustenta, além disso, que decorre do décimo considerando da directiva que a protecção prevista pelo seu artigo 5.°, n.° 1, alínea a), é absoluta.

33.
    Na audiência, a Comissão acrescentou que o conceito de uso da marca como marca, se for reconhecido pertinente, se refere ao seu uso que serve para distinguir os produtos mais do que para indicar a sua origem. Este conceito cobre também os usos por terceiros que afectem os interesses do titular da marca, como o da reputação dos produtos. Em qualquer caso, a percepção pelo público da palavra «Arsenal», idêntica a uma marca nominativa, como testemunho de apoio, de lealdade ou de filiação no titular da marca não exclui que os produtos em questão sejam também entendidos por esse facto como provenientes do titular da marca. Muito pelo contrário, tal percepção confirma o carácter distintivo da marca e aumenta o risco de que os produtos sejam entendidos como provenientes do titular da marca. Por conseguinte, mesmo que o uso da marca como marca fosse um critério pertinente, o referido titular devia ter o direito de proibir a actividade comercial em causa no processo principal.

34.
    O Órgão de Fiscalização da EFTA sustenta que, para que o artigo 5.°, n.° 1, da directiva possa ser invocado pelo titular da marca, o terceiro deve fazer uso do sinal a fim de distinguir, como é a função primeira e tradicional da marca, os produtos ou serviços, isto é, utilizar a marca como marca. Se esta condição não estiver preenchida, só poderão ser invocadas pelo titular as disposições do direito nacional referidas no artigo 5.°, n.° 5, da directiva.

35.
    Todavia, a condição do uso da marca como marca na acepção do artigo 5.°, n.° 1, da directiva, que deve ser entendida como uma condição de uso de um sinal idêntico à marca para efeitos de distinguir os produtos ou os serviços, é uma noção de direito comunitário que deve ser interpretada em sentido amplo, incluindo nomeadamente o uso como testemunho de apoio, de lealdade ou de filiação no titular da marca.

36.
    Segundo o Órgão de Fiscalização da EFTA, a circunstância de o terceiro que apõe a marca nos seus produtos indicar que estes não provêm do titular da marca não exclui o risco de confusão por um círculo mais amplo de consumidores. Se o titular não tivesse o direito de se opor a que terceiros actuassem desta forma, daí poderia resultar um uso generalizado do sinal que, no fim de contas, privaria a marca do seu carácter distintivo, pondo assim em risco a sua função primordial e tradicional.

Resposta do Tribunal de Justiça

37.
    Deve recordar-se liminarmente que o artigo 5.° da directiva define os «[d]ireitos conferidos pela marca» e que o seu artigo 6.° contém as regras relativas à «[l]imitação dos efeitos da marca».

38.
    Nos termos do artigo 5.°, n.° 1, primeira frase, da directiva, a marca registada confere ao seu titular um direito exclusivo. Nos termos da alínea a) do mesmo número, este direito exclusivo habilita o titular a proibir a qualquer terceiro, sem o seu consentimento, que faça uso, na vida comercial, de um sinal idêntico à marca para produtos ou serviços idênticos àqueles para os quais a marca foi registada. O artigo 5.°, n.° 3, da directiva enumera de forma não exaustiva os tipos de uso que o titular pode proibir nos termos do n.° 1 deste artigo. Outras disposições da directiva, como o artigo 6.°, definem certas limitações dos efeitos da marca.

39.
    No que respeita à situação em causa no processo principal, deve observar-se que, como resulta em particular do n.° 19 e do anexo V do despacho de reenvio, a palavra «Arsenal» figura em grandes caracteres nos cachecóis postos à venda por M. Reed e é acompanhada por outras menções significativamente menos visíveis, nomeadamente «the Gunners», que se referem todas ao titular da marca, a saber, o Arsenal FC. Estes cachecóis são destinados, entre outros, aos adeptos do Arsenal FC, que os usam nomeadamente nas competições em que o clube participa.

40.
    Nestas circunstâncias, como observou o órgão jurisdicional de reenvio, o uso do sinal idêntico à marca ocorre efectivamente na vida comercial, uma vez que se situa no contexto de uma actividade comercial que visa um proveito económico e não no domínio privado. Além disso, trata-se da hipótese referida no artigo 5.°, n.° 1, alínea a), da directiva, a saber, a de um sinal idêntico à marca para produtos idênticos àqueles para os quais a marca foi registada.

41.
    A este propósito, deve reconhecer-se em particular que o uso em questão no processo principal é feito «para produtos» na acepção do artigo 5.°, n.° 1, alínea a), da directiva, uma vez que consiste na aposição do sinal idêntico à marca nos produtos bem como na oferta, na comercialização ou na detenção para estes fins de produtos, na acepção do artigo 5.°, n.° 3, alíneas a) e b), da directiva.

42.
    Para responder às questões prejudiciais, é necessário determinar se o artigo 5.°, n.° 1, alínea a), da directiva habilita o titular da marca a proibir que um terceiro faça uso na vida comercial de um sinal idêntico à marca para produtos idênticos àqueles para os quais a marca foi registada ou se este direito de oposição pressupõe a presença de um interesse específico do titular enquanto titular da marca, na medida em que o uso do sinal em questão por um terceiro deve afectar ou ser susceptível de afectar uma das funções da marca.

43.
    A este propósito, importa, antes de mais, recordar que o artigo 5.°, n.° 1 da directiva procede a uma harmonização completa, definindo o direito exclusivo de que gozam os titulares de marcas na Comunidade (v., neste sentido, acórdão de 20 de Novembro de 2001, Zino Davidoff e Levi Strauss, C-414/99 a C-416/99, Colect., p. I-8691, n.° 39, e jurisprudência referida).

44.
    O nono considerando da directiva indica que esta visa assegurar ao titular da marca uma «mesma protecção de acordo com a legislação de todos os Estados-Membros» e qualifica este objectivo de «fundamental».

45.
    A fim de evitar que a protecção conferida ao titular da marca varie de um Estado-Membro para outro, compete, por isso, ao Tribunal de Justiça dar uma interpretação uniforme ao artigo 5.°, n.° 1, da directiva e em particular ao conceito de «uso» que nela figura, que é objecto das questões prejudiciais no presente processo (v., neste sentido, acórdão Zino Davidoff e Levi Strauss, já referido, n.os 42 e 43).

46.
    Em segundo lugar, há que observar que a directiva tem por objecto, como resulta do seu primeiro considerando, abolir as disparidades entre as legislações dos Estados-Membros relativas às marcas, susceptíveis de entravar a livre circulação dos produtos e a livre prestação de serviços e de distorcer as condições de concorrência no mercado comum.

47.
    O direito de marca constitui efectivamente um elemento essencial do sistema de concorrência leal que o Tratado pretende criar e manter. Neste sistema, as empresas devem estar em condições de conservar a clientela pela qualidade dos respectivos produtos ou serviços, o que só é possível graças à existência de sinais distintivos que permitem identificá-los (v., nomeadamente, acórdãos de 17 de Outubro de 1990, Hag GF, C-10/89, Colect., p. I-3711, n.° 13, e de 4 de Outubro de 2002, Merz & Krell, C-517/99, Colect., p. I-6959, n.° 21).

48.
    Nesta perspectiva, a função essencial da marca é garantir ao consumidor ou ao utilizador final a identidade de origem do produto ou do serviço designado pela marca, permitindo-lhe distinguir, sem confusão possível, este produto ou serviço de outros que tenham proveniência diversa. Com efeito, para que a marca possa desempenhar o seu papel de elemento essencial do sistema de concorrência leal que o Tratado pretende criar e manter, ela deve constituir a garantia de que todos os produtos ou serviços que a ostentam foram fabricados ou prestados sob o controlo de uma única empresa à qual pode ser atribuída a responsabilidade pela qualidade daqueles (v., nomeadamente, acórdãos de 23 de Maio de 1978, Hoffmann-La Roche, 102/77, Colect., p. 391, n.° 7, e de 18 de Junho de 2002, Philips, C-299/99, ainda não publicado na Colectânea, n.° 30).

49.
    O legislador comunitário consagrou esta função essencial da marca ao dispor, no artigo 2.° da directiva, que os sinais susceptíveis de representação gráfica apenas podem constituir uma marca na condição de que eles sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas (v., nomeadamente, acórdão Merz & Krell, já referido, n.° 23).

50.
    Para que esta garantia de proveniência, que constitui a função essencial da marca, possa ser assegurada, o titular da marca deve ser protegido contra os concorrentes que pretendam abusar da posição e da reputação da marca, vendendo produtos que a utilizem indevidamente (v., designadamente, acórdãos Hoffmann-La Roche, já referido, n.° 7, e de 11 de Novembro de 1997, Loendersloot, C-349/95, Colect., p. I-6227, n.° 22). A este respeito, o décimo considerando da directiva sublinha o carácter absoluto da protecção conferida pela marca em caso de identidade entre a marca e o sinal e entre os produtos ou serviços em causa e aqueles para que a marca foi registada. Indica que esta protecção tem, nomeadamente, por objectivo garantir a função de origem da marca.

51.
    Resulta destas considerações que o direito exclusivo previsto pelo artigo 5.°, n.° 1, alínea a), da directiva foi concedido para permitir ao titular da marca proteger os seus interesses específicos como titular da marca, ou seja, assegurar que a marca possa cumprir as suas funções próprias. O exercício deste direito deve, por conseguinte, ser reservado aos casos em que o uso do sinal por um terceiro afecta ou é susceptível de afectar as funções da marca, nomeadamente a sua função essencial, que é a de garantir aos consumidores a proveniência do produto.

52.
    Com efeito, a natureza exclusiva do direito conferido pela marca registada ao seu titular, nos termos do artigo 5.°, n.° 1, alínea a), da directiva, só pode justificar-se nos limites do âmbito de aplicação desta disposição.

53.
    Há que recordar, a este propósito, que o artigo 5.°, n.° 5, da directiva prevê que os seus n.os 1 a 4 não afectam as disposições aplicáveis num Estado-Membro relativas à protecção contra o uso de um sinal feito para fins diversos dos que consistem em distinguir os produtos ou serviços.

54.
    Com efeito, o titular não pode proibir o uso de um sinal idêntico à marca para produtos idênticos àqueles para os quais a marca foi registada se este uso não puder prejudicar os seus interesses próprios como titular da marca, tendo em conta as funções desta. Assim, determinados usos com fins puramente descritivos são excluídos do âmbito de aplicação do artigo 5.°, n.° 1, da directiva, uma vez que não ofendem nenhum dos interesses que essa disposição visa proteger e não são, portanto, abrangidos pelo conceito de uso na acepção dessa disposição (v., no que respeito ao uso com fins puramente descritivos quanto às características do produto oferecido, acórdão de 14 de Maio de 2002, Hölterhoff, C-2/00, Colect., p. I-4187, n.° 16).

55.
    A este propósito, há que reconhecer antes de mais que a situação do processo principal é fundamentalmente diferente da que deu origem ao acórdão Hölterhoff, já referido. Neste caso, o uso do sinal situa-se, com efeito, no contexto das vendas a consumidores e não está manifestamente destinado a fins puramente descritivos.

56.
    Considerando a apresentação da palavra «Arsenal» sobre os produtos em questão no processo principal, bem como as outras indicações secundárias que figuram nestes (v. n.° 39 do presente acórdão), o uso deste sinal é susceptível de fazer crer na existência de uma conexão material na vida comercial entre os produtos em questão e o titular da marca.

57.
    Esta conclusão não pode ser posta em causa pelo aviso que consta na tenda de M. Reed, segundo o qual os produtos em causa no processo principal não são produtos oficiais do Arsenal FC (v. n.° 17 do presente acórdão). Com efeito, mesmo supondo que tal aviso pudesse ser invocado por um terceiro para a sua defesa num processo por contrafacção de marca, há que reconhecer que, no caso do processo principal, não pode excluir-se que alguns consumidores, nomeadamente se os produtos lhes são apresentados depois de terem sido vendidos por M. Reed e de terem sido transportados para fora da tenda onde estava exposto o aviso, interpretem o sinal como designando o Arsenal FC como empresa de proveniência dos produtos.

58.
    Deve, aliás, reconhecer-se que, no caso do processo principal, também não se garante, como exige a jurisprudência do Tribunal de Justiça recordada no n.° 48 do presente acórdão, que todos os produtos que ostentam a marca foram fabricados ou prestados sob o controlo de uma única empresa à qual pode ser atribuída a responsabilidade pela qualidade dos mesmos.

59.
    Com efeito, os produtos em causa no processo principal são fornecidos fora do controlo do Arsenal FC como titular da marca, porque é incontroverso que os referidos produtos não provêm do Arsenal FC nem dos seus revendedores autorizados.

60.
    Nestas circunstâncias, o uso dum sinal idêntico à marca em questão no processo principal é susceptível de pôr em perigo a garantia de proveniência que constitui a função essencial da marca, como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça recordada no n.° 48 do presente acórdão. Por conseguinte, trata-se dum uso a que o titular da marca pode opor-se em conformidade com o artigo 5.°, n.° 1, da directiva.

61.
    Uma vez que está provado que, no caso do processo principal, o uso do sinal em questão por um terceiro é susceptível de afectar a garantia de proveniência do produto e que o titular da marca deve poder opor-se a tal uso, esta conclusão não pode ser posta em causa pelo facto de o referido sinal ser entendido, no contexto deste uso, como testemunho de apoio, de lealdade ou de filiação no titular da marca.

62.
    À luz das considerações precedentes, deve responder-se às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio que, numa situação que não é abrangida pelo artigo 6.°, n.° 1, da directiva em que um terceiro utiliza na sua vida comercial um sinal idêntico a uma marca validamente registada para produtos idênticos àqueles para os quais a marca foi registada, o titular da marca pode, num caso como o do processo principal, opor-se a este uso em conformidade com o artigo 5.°, n.° 1, alínea a), da directiva. Esta conclusão não pode ser posta em causa pelo facto de o referido sinal ser entendido, no contexto deste uso, como testemunho de apoio, de lealdade ou de filiação no titular da marca.

Quanto às despesas

63.
    As despesas efectuadas pela Comissão e pelo Órgão de Fiscalização da EFTA, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões submetidas pela High Court of Justice (England & Wales), Chancery Division, por despacho de 4 de Maio de 2001, declara:

Numa situação que não é abrangida pelo artigo 6.°, n.° 1, da Primeira Directiva 89/104/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, que harmoniza as legislações dos Estados-Membros em matéria de marcas, em que um terceiro utiliza na sua vida comercial um sinal idêntico a uma marca validamente registada para produtos idênticos àqueles para os quais a marca foi registada, o titular da marca pode, num caso como o do processo principal, opor-se a este uso em conformidade com o artigo 5.°, n.° 1, alínea a), da referida directiva. Esta conclusão não pode ser posta em causa pelo facto de o referido sinal ser entendido, no contexto deste uso, como testemunho de apoio, de lealdade ou de filiação no titular da marca.

Rodríguez Iglesias
Puissochet
Wathelet

Timmermans

Gulmann
Edward

Jann

Skouris
Macken

Colneric

von Bahr

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 12 de Novembro de 2002.

O secretário

O presidente

R. Grass

G. C. Rodríguez Iglesias


1: Língua do processo: inglês.