Language of document : ECLI:EU:C:2018:557

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

11 de julho de 2018 (*)

«Reenvio prejudicial — Convenção de Montego Bay — Artigo 220.o, n.o 6 — Competências de jurisdição do Estado costeiro — Competência do Tribunal de Justiça para interpretar disposições de direito internacional — Diretiva2005/35/CE — Poluição causada por navios — Artigo 7.o, n.o 2 — Convenção Marpol 73/78 — Descargas de hidrocarbonetos na zona económica exclusiva por um navio estrangeiro em trânsito — Circunstâncias em que um Estado costeiro pode iniciar procedimentos contra um navio estrangeiro — Liberdade de navegação — Proteção do meio marinho — Danos importantes ou ameaça de danos importantes para o litoral, para os interesses conexos ou para quaisquer recursos do mar territorial ou da zona económica exclusiva — Prova manifesta»

No processo C‑15/17,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Korkein oikeus (Supremo Tribunal, Finlândia), por decisão de 12 de dezembro de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 13 de janeiro de 2017, no processo

Bosphorus Queen Shipping Ltd Corp.

contra

Rajavartiolaitos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: L. Bay Larsen, presidente de secção, J. Malenovský (relator), M. Safjan, D. Šváby e M. Vilaras, juízes,

advogado‑geral: N. Wahl,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 6 de dezembro de 2017,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Bosphorus Queen Shipping Ltd Corp., por P. Karhu, asianajaja,

–        em representação do Governo finlandês, por J. Heliskoski, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo belga, por J. Van Holm, C. Van Lul e L. Van den Broeck, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo helénico, por G. Karipsiadis, K. Georgiadis, M. Stellakatos, E. Tsaousi e E. Skalieri, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo francês, por B. Fodda e D. Colas, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo neerlandês, por C. S. Schillemans e M. Bulterman, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por L. Nicolae, A. Bouquet, E. Paasivirta e P. Aalto, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 28 de fevereiro de 2018,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 220.o, n.o 6, da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, assinada em Montego Bay em 10 de dezembro de 1982 (Recueil des traités des Nations unies, vol. 1833, 1834 e 1835, p. 3, a seguir «Convenção de Montego Bay»), e do artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de setembro de 2005, relativa à poluição por navios e à introdução de sanções, incluindo sanções penais, por crimes de poluição (JO 2005, L 255, p. 11), conforme alterada pela Diretiva 2009/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de outubro de 2009 (JO 2009, L 280, p. 52) (a seguir «Diretiva 2005/35»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Bosphorus Queen Shipping Ltd Corp. (a seguir «Bosphorus»), sociedade proprietária do navio de carga seca Bosphorus Queen matriculado no Panamá, à Rajavartiolaitos (Autoridade de Proteção das Fronteiras, Finlândia), a propósito de uma coima aplicada por esta autoridade àquela sociedade devido à descarga de hidrocarbonetos efetuada por este navio na zona económica exclusiva (ZEE) finlandesa.

 Quadro jurídico

 Direito internacional

 Convenção sobre a Intervenção em Alto Mar de 1969

3        A Convenção Internacional sobre a Intervenção no Alto Mar em Caso de Acidente que Provoque ou Possa Vir a Provocar a Poluição por Hidrocarbonetos foi celebrada em Bruxelas em 29 de novembro de 1969 (Recueil des traités des Nations unies, vol. 970, p. 211, a seguir «Convenção sobre a Intervenção em Alto Mar de 1969»). A União, assim como vários dos seus Estados‑Membros, não são Partes nesta Convenção. Em contrapartida, a República da Finlândia e o Panamá são Partes nesta Convenção.

4        Em conformidade com o artigo I, n.o 1, da referida Convenção, as Partes da mesma «podem tomar no alto mar as medidas consideradas necessárias para impedir, atenuar ou eliminar os perigos graves e iminentes, que poderão representar para as suas costas, ou interesses relacionados, uma poluição ou uma ameaça de poluição das águas do mar por hidrocarbonetos como consequência de um acidente de mar, ou ações com ele relacionadas, suscetíveis de terem consequências perniciosas consideráveis».

5        O artigo II, n.o 4, da Convenção sobre a Intervenção em Alto Mar de 1969 prevê:

«Para os fins da presente Convenção:

[…]

4.      A expressão «interesses relacionados» designa os interesses de um Estado ribeirinho diretamente afetados ou ameaçados pelo acidente de mar e que dizem respeito especialmente:

a)      Às atividades marítimas costeiras, portuárias ou de estuário, incluindo a atividade pesqueira, constituindo um modo de vida essencial das populações envolvidas;

b)      À atração turística da região considerada;

c)      À saúde das populações ribeirinhas e ao bem‑estar da região considerada, incluindo a conservação dos recursos biológicos marinhos, a fauna e a flora».

 Convenção Marpol 73/78

6        A Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios, assinada em Londres em 2 de novembro de 1973, conforme completada pelo Protocolo de 17 de fevereiro de 1978 (a seguir «Convenção Marpol 73/78»), institui regras de prevenção e de combate à poluição do meio marinho.

7        A União não é Parte nesta Convenção. Em contrapartida, à semelhança de todos os outros Estados‑Membros da União, a República da Finlândia é Parte na mesma.

8        As regras relativas à prevenção da poluição por hidrocarbonetos estão enunciadas no anexo I da Convenção Marpol 73/78.

9        A regra 1, ponto 11, do anexo I, desta Convenção define área especial como uma «área do mar em que, por razões técnicas reconhecidas relativamente às suas condições oceanográficas e ecológicas e às características particulares do seu tráfego, é requerida a adoção de métodos especiais obrigatórios para a prevenção da poluição do mar por hidrocarbonetos». Para efeitos deste anexo, são áreas especiais a área do mar Báltico, que abrange o mar Báltico propriamente dito assim como o golfo de Bótnia, o golfo da Finlândia e a entrada do mar Báltico limitada pelo paralelo de Skaw no Skagerrak (57o 44,8’ N).

10      No anexo I da referida Convenção, a regra 15 da parte C, relativa ao «Controlo das descargas de hidrocarbonetos resultantes da exploração», prevê:

«1.      Sob reserva do disposto na regra 4 do presente anexo e dos parágrafos 2, 3 e 6 da presente regra, qualquer descarga para o mar de hidrocarbonetos ou misturas de hidrocarbonetos por navios é proibida.

[…]

B.      Descargas nas áreas especiais

3.      Qualquer descarga para o mar de hidrocarbonetos ou misturas de hidrocarbonetos provenientes de navios de arqueação bruta igual ou superior a 400 é proibida, a menos que sejam satisfeitas todas as seguintes condições:

1      O navio segue a sua rota;

2      A mistura de hidrocarbonetos é filtrada por um equipamento de filtragem de hidrocarbonetos que cumpre os requisitos da regra 14.7 do presente anexo;

3      O teor em hidrocarbonetos do efluente, sem diluição, não excede 15 ppm;

4      A mistura de hidrocarbonetos não provém dos porões das casas das bombas de carga a bordo dos petroleiros; e

5      A mistura de hidrocarbonetos, no caso dos petroleiros, não é misturada com resíduos da carga de hidrocarbonetos.»

 Convenção de Montego Bay

11      A Convenção de Montego Bay entrou em vigor em 16 de novembro de 1994. A sua celebração foi aprovada, em nome da União Europeia, pela Decisão 98/392/CE do Conselho, de 23 de março de 1998 (JO 1998, L 179, p. 1).

12      Nos termos do artigo 1.o desta Convenção:

«(1)      “Área” significa o leito do mar, os fundos marinhos e o seu subsolo além dos limites da jurisdição nacional;

[…]

(4)      “Poluição do meio marinho” significa a introdução pelo homem, direta ou indiretamente, de substâncias ou de energia no meio marinho, incluindo os estuários, sempre que a mesma provoque ou possa vir a provocar efeitos nocivos, tais como danos aos recursos vivos e à vida marinha, riscos à saúde do homem, entrave às atividades marítimas, incluindo a pesca e as outras utilizações legítimas do mar, alteração da qualidade da água do mar, no que se refere à sua utilização, e deterioração dos locais de recreio;

[…]»

13      O artigo 56.o da referida Convenção, sob a epígrafe «Direitos, jurisdição e deveres do Estado costeiro na [ZEE]», prevê:

«1.      Na [ZEE], o Estado costeiro tem:

a)      Direitos de soberania para fins de exploração e aproveitamento, conservação e gestão dos recursos naturais, vivos ou não vivos das águas sobrejacentes ao leito do mar, do leito do mar e seu subsolo, e no que se refere a outras atividades com vista à exploração e aproveitamento da zona para fins económicos, como a produção de energia a partir da água, das correntes e dos ventos;

b)      Jurisdição, em conformidade com as disposições pertinentes da presente Convenção, no que se refere a:

i)      colocação e utilização de ilhas artificiais, instalações e estruturas,

ii)      investigação científica marinha,

iii)      proteção e preservação do meio marinho;

c)      Outros direitos e deveres previstos na presente Convenção.»

14      O artigo 58.o da Convenção de Montego Bay, relativo aos «Direitos e deveres de outros Estados na [ZEE]», dispõe:

«1.      Na [ZEE], todos os Estados, quer costeiros quer sem litoral, gozam, nos termos das disposições da presente Convenção, das liberdades de navegação e sobrevoo e de colocação de cabos e ductos submarinos a que se refere o artigo 87.o, bem como de outros usos do mar internacionalmente lícitos, relacionados com as referidas liberdades, tais como os ligados à operação de navios, aeronaves, cabos e ductos submarinos e compatíveis com as demais disposições da presente Convenção.

2.      Os artigos 88.o a 115.o e demais normas pertinentes de direito internacional aplicam‑se à [ZEE] na medida em que não sejam incompatíveis com a presente parte.

3.      No exercício dos seus direitos e no cumprimento dos seus deveres na [ZEE], nos termos da presente Convenção, os Estados terão em devida conta os direitos e deveres do Estado costeiro e cumprirão as leis e regulamentos por ele adotados de conformidade com as disposições da presente Convenção e demais normas de direito internacional, na medida em que não sejam incompatíveis com a presente parte.»

15      O artigo 61.o, n.os 1 a 4, desta Convenção, relativo à «Conservação dos recursos vivos», prevê:

«1.      O Estado costeiro fixará as capturas permissíveis dos recursos vivos na sua [ZEE].

2.      O Estado costeiro, tendo em conta os melhores dados científicos de que disponha, assegurará, por meio de medidas apropriadas de conservação e gestão, que a preservação dos recursos vivos da sua [ZEE] não seja ameaçada por um excesso de captura. O Estado costeiro e as organizações competentes sub‑regionais, regionais ou mundiais cooperarão, conforme o caso, para tal fim.

3.      Tais medidas devem ter também a finalidade de preservar ou restabelecer as populações das espécies capturadas a níveis que possam produzir o máximo rendimento constante, determinado a partir de fatores ecológicos e económicos pertinentes, incluindo as necessidades económicas das comunidades costeiras que vivem da pesca e as necessidades especiais dos Estados em desenvolvimento, e tendo em conta os métodos de pesca, a interdependência das populações e quaisquer outras normas mínimas internacionais geralmente recomendadas, sejam elas sub‑regionais, regionais ou mundiais.

4.      Ao tomar tais medidas, o Estado costeiro deve ter em conta os seus efeitos sobre espécies associadas às espécies capturadas, ou delas dependentes, a fim de preservar ou restabelecer as populações de tais espécies associadas ou dependentes acima de níveis em que a sua reprodução possa ficar seriamente ameaçada.»

16      Nos termos do artigo 194.o, n.o 5 da referida Convenção:

«As medidas tomadas em conformidade com a presente parte devem incluir as necessárias para proteger e preservar os ecossistemas raros ou frágeis, bem como o habitat de espécies e outras formas de vida marinha em vias de extinção, ameaçadas ou em perigo.»

17      O artigo 211.o desta mesma Convenção, sob a epígrafe «Poluição proveniente de embarcações», dispõe, nos seus n.os 1 e 7:

«1.      Os Estados, atuando por intermédio da organização internacional competente ou de uma conferência diplomática geral, devem estabelecer regras e normas de caráter internacional para prevenir, reduzir e controlar a poluição do meio marinho proveniente de embarcações e devem do mesmo modo promover a adoção, quando apropriado, de sistemas de fixação de tráfego destinados a minimizar o risco de acidentes que possam causar a poluição do meio marinho, incluindo o litoral, e danos de poluição relacionados com os interesses dos Estados costeiros. Tais regras e normas devem, do mesmo modo, ser reexaminadas com a periodicidade necessária.

[…]

7.      As regras e normas internacionais referidas no presente artigo devem incluir, inter alia, as relativas à imediata notificação dos Estados costeiros, cujo litoral ou interesses conexos possam ser afetados por incidentes, incluindo acidentes marítimos que originem ou possam originar descargas.»

18      O artigo 220.o da Convenção de Montego, sob a epígrafe «Execução pelos Estados costeiros», enuncia, nos seus n.os 3 a 6, regras de competência nos termos das quais um Estado costeiro pode adotar medidas contra uma embarcação que cometeu uma infração às regras e normas internacionais relativas à poluição por navios na sua ZEE. Estes números têm a seguinte redação:

«3.      Quando um Estado tiver motivos sérios para acreditar que uma embarcação que navegue na sua [ZEE] ou no seu mar territorial cometeu, na [ZEE], uma violação das regras e normas internacionais aplicáveis para prevenir, reduzir e controlar a poluição proveniente de embarcações ou das leis e regulamentos desse Estado, adotadas em conformidade com tais regras e normas e que as apliquem, esse Estado pode exigir à embarcação que forneça informações sobre a sua identidade e o porto de registo, a sua última e próxima escala, e outras informações pertinentes que sejam necessárias para determinar se foi cometida uma infração.

4.      Os Estados devem adotar leis e regulamentos e tomar outras medidas para que as embarcações que arvorem a sua bandeira deem cumprimento aos pedidos de informação feitos nos termos do n.o 3.

5.      Quando um Estado tiver motivos sérios para acreditar que uma embarcação que navegue na sua [ZEE] ou no seu mar territorial cometeu, na [ZEE], uma das infrações referidas no n.o 3, que tenha tido como resultado uma descarga substancial que provoque ou ameace provocar uma poluição importante no meio marinho, esse Estado pode proceder à inspeção material da embarcação sobre questões relacionadas com a infração, se a embarcação se tiver negado a fornecer informações ou se as informações fornecidas pela mesma estiverem em manifesta contradição com a situação factual evidente e as circunstâncias do caso justificarem a referida inspeção.

6.      Quando existir prova manifesta e objetiva de que uma embarcação que navegue na [ZEE] ou no mar territorial de um Estado cometeu, na [ZEE], uma das infrações referidas no n.o 3, que tenha tido como resultado uma descarga que provoque ou ameace provocar danos importantes para o litoral ou para os interesses conexos do Estado costeiro ou para quaisquer recursos do seu mar territorial ou da sua [ZEE], esse Estado pode, tendo em conta o disposto na secção 7, e quando as provas o justificarem, iniciar procedimentos incluindo a detenção da embarcação, de conformidade com o seu direito interno.»

19      O artigo 221.o desta Convenção, sob a epígrafe «Medidas para evitar a poluição resultante de acidentes marítimos», dispõe:

«1.      Nenhuma das disposições da presente parte deve prejudicar o direito dos Estados de, nos termos do direito internacional tanto consuetudinário como convencional, tomar e executar medidas além do mar territorial proporcionalmente ao dano efetivo ou potencial a fim de proteger o seu litoral ou interesses conexos, incluindo a pesca, contra a poluição ou a ameaça de poluição resultante de um acidente marítimo ou de atos relacionados com tal acidente, dos quais se possa de forma razoável prever que resultem importantes consequências nocivas.

2.      Para efeitos do presente artigo, “acidente marítimo” significa um abalroamento, encalhe ou outro incidente de navegação ou acontecimento a bordo de uma embarcação ou no seu exterior, de que resultem danos materiais ou ameaça iminente de danos materiais à embarcação ou à sua carga.»

20      O artigo 237.o da referida Convenção, relativo às obrigações decorrentes de outras convenções sobre proteção e preservação do meio marinho, prevê:

«1.      As disposições da presente parte não afetam as obrigações específicas contraídas pelos Estados em virtude de convenções e acordos especiais concluídos anteriormente sobre a proteção e preservação do meio marinho, nem os acordos que possam ser concluídos em aplicação dos princípios gerais enunciados na presente Convenção.

2.      As obrigações específicas contraídas pelos Estados em virtude de convenções especiais, relativas à proteção e preservação do meio marinho, devem ser cumpridas de modo compatível com os princípios e objetivos gerais da presente Convenção.»

 Convenção de Viena

21      A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados foi celebrada em Viena em 23 de maio de 1969 (Recueil des traités des Nations unies, vol. 1155, p. 331, a seguir «Convenção de Viena»).

22      Nos termos do artigo 31.o desta Convenção, sob a epígrafe «Regra geral de interpretação»:

«1.      Um tratado deve ser interpretado de boa‑fé, de acordo com o sentido comum a atribuir aos termos do tratado no seu contexto e à luz dos respetivos objeto e fim.

[…]

3.      Ter‑se‑á em consideração, simultaneamente com o contexto:

[…]

c)      Toda a norma pertinente de direito internacional aplicável às relações entre as Partes.

[…]»

23      O artigo 32.o da referida Convenção, sob a epígrafe «Meios complementares de interpretação», tem a seguinte redação:

«Pode‑se recorrer a meios complementares de interpretação, designadamente aos trabalhos preparatórios e às circunstâncias em que foi concluído o tratado, com vista a confirmar o sentido resultante da aplicação do artigo 31.o, ou a determinar o sentido quando a interpretação dada em conformidade com o artigo 31.o:

a)      Deixe o sentido ambíguo ou obscuro; ou

b)      Conduza a um resultado manifestamente absurdo ou incoerente.»

 Direito da União

24      Os considerandos 1 a 4 e 12 da Diretiva 2005/35 têm a seguinte redação:

«1)      A política de segurança marítima da Comunidade destina‑se a assegurar um elevado nível de segurança e proteção do ambiente, baseando‑se no princípio de que todas as partes envolvidas no transporte marítimo de mercadorias são responsáveis por garantir que os navios utilizados nas águas comunitárias cumprem as regras e normas aplicáveis.

2)      As normas materiais relativas às descargas de substâncias poluentes provenientes de navios baseiam‑se, em todos os Estados‑Membros, na Convenção Marpol 73/78. No entanto, essas normas são diariamente ignoradas por um grande número de navios que navegam nas águas comunitárias, sem que sejam levadas a cabo ações corretivas.

3)      A aplicação da Convenção Marpol 73/78 revela discrepâncias entre os Estados‑Membros, sendo, por conseguinte, necessário harmonizar a sua aplicação a nível comunitário. Em especial, as práticas dos Estados‑Membros no que se refere à aplicação de sanções por descargas de substâncias poluentes provenientes de navios são significativamente divergentes.

4)      As medidas dissuasivas fazem parte integrante da política comunitária de segurança marítima, uma vez que asseguram a ligação entre a responsabilidade de cada uma das partes envolvidas no transporte marítimo de substâncias poluentes e a sua sujeição a sanções. Para assegurar a efetiva proteção do ambiente, são necessárias sanções efetivas, dissuasivas e proporcionadas.

[…]

12)      Quando existam provas inequívocas e objetivas de uma descarga que cause danos importantes ou ameaça de danos importantes, os Estados‑Membros devem apresentar a questão às suas autoridades competentes para iniciar procedimentos nos termos do artigo 220.o da [Convenção de Montego Bay].»

25      O artigo 1.o desta diretiva dispõe:

«1.      O objeto da presente diretiva consiste em incorporar no direito comunitário as normas internacionais relativas à poluição provocada por navios e assegurar que as pessoas responsáveis por descargas ilegais são sujeitas a sanções adequadas, em conformidade com o artigo 8.o, a fim de melhorar a segurança marítima e de reforçar a proteção do meio marinho relativamente à poluição por navios.

2.      A presente diretiva não obsta a que os Estados‑Membros tomem medidas mais rigorosas contra a poluição provocada por navios, nos termos do direito internacional.»

26      O artigo 3.o, n.o 1, alíneas b) e d), da referida diretiva enuncia:

«1.      A presente diretiva é aplicável, nos termos do direito internacional, a descargas de substâncias poluentes:

[…]

b)      No mar territorial de um Estado‑Membro;

[…]

d)      Na [ZEE] de um Estado‑Membro ou numa zona equivalente, estabelecida nos termos do direito internacional […]»

27      O artigo 7.o desta mesma diretiva, sob a epígrafe «Medidas de aplicação dos Estados costeiros em relação a navios em trânsito», prevê, no seu n.o 2:

«Sempre que existam provas inequívocas e objetivas de que um navio a navegar nas zonas referidas nas alíneas b) ou d) do n.o 1 do artigo 3.o cometeu, na zona a que se refere a alínea d) do n.o 1 do artigo 3.o, uma infração resultante numa descarga que cause danos importantes, ou ameaça de danos importantes, no litoral ou em interesses afins do Estado‑Membro em questão, ou em quaisquer recursos das zonas referidas nas alíneas b) ou d) do n.o 1 do artigo 3.o, esse Estado, sem prejuízo da secção 7 da parte XII, da Convenção [de Montego Bay], deve, desde que as provas o justifiquem, submeter a questão à apreciação das autoridades competentes a fim de iniciar procedimentos, incluindo a imobilização do navio, nos termos do seu direito interno.»

 Direito finlandês

28      A Diretiva 2005/35 foi transposta para a Finlândia, nomeadamente, pela merenkulun ympäristönsuojelulaki (1672/2009) [Lei relativa à proteção do ambiente na navegação marítima (1672/2009)].

29      O capítulo 3 desta lei, intitulado «Coima em caso de descarga de hidrocarbonetos», dispõe, no seu § 1, primeiro parágrafo:

«A infração à proibição de descarga de hidrocarbonetos ou de misturas que contenham hidrocarbonetos nas águas ou na [ZEE] da Finlândia, estabelecida no capítulo 2, § 1, supra, é punida com coima (coima por descarga de hidrocarbonetos), desde que a descarga de hidrocarbonetos ou da mistura que contenha hidrocarbonetos não possa ser tida como despicienda, atendendo à sua dimensão ou aos seus efeitos. Porém, a infração à descarga de hidrocarbonetos cometida por um navio estrangeiro que esteja a atravessar na [ZEE] finlandesa só é punida com coima se a descarga causar ou ameaçar causar danos graves ao litoral da Finlândia ou aos interesses com ele conexos ou aos recursos do mar territorial ou da [ZEE] da Finlândia.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

30      Segundo a Autoridade de Proteção das Fronteiras, em 11 de julho de 2011, o navio Bosphorus Queen efetuou uma descarga de hidrocarbonetos no mar quando estava a atravessar a ZEE finlandesa.

31      Esta descarga ocorreu na faixa externa desta ZEE, a uma distância de cerca de 25 a 30 km do litoral finlandês. Os hidrocarbonetos descarregados dispersaram‑se numa faixa de 37 km de comprimento por 10 m de largura, tendo a superfície total coberta pela descarga sido calculada em cerca de 0,222 km2 e o seu volume entre 0,898 e 9,050 m3.

32      O órgão jurisdicional de reenvio precisa que as autoridades finlandesas não tomaram então nenhumas medidas de combate à descarga destes hidrocarbonetos. Também não houve nenhuma indicação de os hidrocarbonetos descarregados tivessem alcançado o litoral, nem se verificou que os hidrocarbonetos descarregados tivessem provocado danos concretos.

33      Em contrapartida, quando o navio, proveniente de São Petersburgo (Rússia), voltou a passar na ZEE finlandesa, a Autoridade de Proteção das Fronteiras, por decisão de 23 de julho de 2011, por um lado, ordenou, a título de medidas cautelares, a prestação pela Bosphorus de uma garantia de 17 112 euros, destinada a cobrir o montante de uma eventual coima que lhe viesse a ser aplicada pela descarga de hidrocarbonetos efetuada por esse navio e, por outro, determinou a sua detenção. Após a prestação desta garantia em 25 de julho de 2011, o navio prosseguiu a sua rota.

34      Os riscos provocados pela descarga de hidrocarbonetos em causa foram objeto de um parecer, emitido em 26 de julho de 2011, pela Suomen ympäristökeskus (Instituto Finlandês do Ambiente) à Autoridade de Proteção das Fronteiras. As consequências no ambiente desta descarga de hidrocarbonetos foram apreciadas com base na quantidade mínima calculada para a descarga. Deste parecer resulta que:

–        Pelo menos parte dos hidrocarbonetos podem ter alcançado as zonas litorais finlandesas. Se alcançarem a zona litoral, esses hidrocarbonetos podem prejudicar a utilização dessas zonas para fins de lazer.

–        Parte dos hidrocarbonetos produziram efeitos adicionais no alto mar, na proximidade da zona da descarga.

–        A descarga foi prejudicial ao bom desenvolvimento da situação do ambiente no mar Báltico.

–        A descarga pôs em perigo as aves que se alimentam e descansam no mar aberto.

–        Os hidrocarbonetos danificaram o fitoplâncton e o zooplâncton. Os compostos de hidrocarbonetos propagaram‑se na cadeia alimentar.

–        Os peixes‑espinhos das águas superficiais do mar aberto sofreram provavelmente danos diretos devido aos hidrocarbonetos descarregados, pelo que não se podem excluir efeitos negativos a curto prazo a nível dos recursos haliêuticos.

–        Nesta zona, a sedimentação é forte e é provável que parte dos compostos de hidrocarbonetos alcance o leito do mar e cause danos na fauna que aí vive;

–        Na proximidade da referida zona encontram‑se muitos espaços naturais valiosos pertencentes à Rede Natura 2000.

–        A data da descarga dos hidrocarbonetos foi particularmente prejudicial para as populações de aves marinhas, dado que estas ainda tinham, nas águas que se estendem das ilhas mais afastadas da península de Hanko (Finlândia) até ao arquipélago finlandês, grandes bandos de juvenis incapazes de voar, e que os jovens eideres‑edredão se movem a grande distância da costa.

–        À data da descarga dos hidrocarbonetos, havia dezenas de milhares de eideres‑edredão na zona em face da península de Hanko. A descarga causou um grande perigo para as populações de aves marinhas do litoral finlandês.

35      Por decisão de 16 de setembro de 2011, a Autoridade de Proteção das Fronteiras aplicou à Bosphorus uma coima no montante de 17 112 euros por a descarga ter causado, ou ameaçar causar, danos importantes ao litoral ou aos interesses conexos da República da Finlândia ou aos recursos do seu mar territorial ou da sua ZEE.

36      A Bosphorus e o armador do navio intentaram então uma ação no Helsingin käräjäoikeus (Tribunal de Primeira Instância de Helsínquia, Finlândia), decidindo enquanto tribunal marítimo, em que pediam a anulação das decisões de 23 de julho e de 16 de setembro de 2011 que fixavam, respetivamente, a prestação de uma garantia e a aplicação de uma coima pela descarga desses hidrocarbonetos. Alegaram, nomeadamente, que essa descarga não tinha causado danos importantes ao ambiente e que só os órgãos jurisdicionais do Estado do pavilhão do navio, concretamente o Panamá, tinham competência para conhecer deste processo.

37      Por sentença de 30 de janeiro de 2012, o Helsingin käräjäoikeus (Tribunal de Primeira Instância de Helsínquia) considerou provado que o navio em causa tinha descarregado no mar um volume mínimo de aproximadamente 900 litros de hidrocarbonetos. No decurso do processo em que esta sentença foi proferida, o Helsingin käräjäoikeus (Tribunal de Primeira Instância de Helsínquia) ouviu, na qualidade de testemunha, um perito do Instituto Finlandês do Ambiente. Em seguida, à luz dos elementos de que dispunha, considerou que a descarga de hidrocarbonetos ameaçava causar danos importantes, na aceção do capítulo 3, § 1, da Lei (1672/2009). Com estes fundamentos, o Helsingin käräjäoikeus (Tribunal de Primeira Instância de Helsínquia) julgou a ação improcedente.

38      Na sequência do recurso interposto pela Bosphorus no Helsingin hovioikeus (Tribunal de Recurso de Helsínquia, Finlândia), este órgão jurisdicional dispensou esta sociedade da obrigação de pagar a coima por descarga de hidrocarbonetos, com o fundamento de que essa obrigação incumbia ao armador, cuja identidade era conhecida.

39      A Autoridade de Proteção das Fronteiras interpôs então um recurso no Korkein oikeus (Supremo Tribunal, Finlândia), que infirmou esta decisão e devolveu o processo ao Helsingin hovioikeus (Tribunal de Recurso de Helsínquia) a fim de este apreciar a existência de um motivo, na aceção do capítulo 3, § 1, da Lei da proteção do ambiente na navegação marítima, que justificasse a aplicação de uma coima pela descarga de hidrocarbonetos.

40      Por decisão de 18 de novembro de 2014, este órgão jurisdicional de recurso concluiu da prova perante ele produzida que existia um risco de a referida descarga de hidrocarbonetos provocar danos importantes no litoral ou nos interesses conexos da República da Finlândia ou em quaisquer recursos do seu mar territorial ou da sua ZEE. Consequentemente, negou provimento ao recurso interposto da decisão do Helsingin käräjäoikeus (Tribunal de Primeira Instância de Helsínquia).

41      A Bosphorus interpôs então recurso para o Korkein oikeus (Supremo Tribunal) pedindo a anulação da decisão do Helsingin hovioikeus (Tribunal de Recurso de Helsínquia), da decisão do Helsingin käräjäoikeus (Tribunal de Primeira Instância de Helsínquia) e das decisões de 23 de julho e 16 de setembro de 2011 e a eliminação da coima por descarga de hidrocarbonetos.

42      Nestas condições, o Korkein oikeus (Supremo Tribunal, Finlândia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve a expressão “litoral ou […] interesses conexos”, constante do artigo 220.o, n.o 6, da Convenção [de Montego Bay], ou “litoral ou […] interesses afins”, constante do artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva [2005/35], ser interpretada com recurso à definição da expressão “interesses relacionad[o]s” do artigo II, n.o 4, da [Convenção sobre a Intervenção em Alto Mar de 1969]?

2)      Segundo a definição constante do artigo II, n.o 4, alínea c), da [Convenção sobre a Intervenção em Alto Mar de 1969] referida na primeira questão prejudicial, “interesses relacionad[o]s” são, entre outros, o bem‑estar da região considerada, incluindo a conservação dos recursos biológicos marinhos, a fauna e a flora. Esta disposição da Convenção aplica‑se também à conservação dos recursos vivos, da fauna e da flora na [ZEE], ou diz respeito unicamente à conservação dos interesses da zona litoral?

3)      Em caso de resposta negativa à primeira questão: o que significa a expressão “litoral ou […] interesses conexos”, constante do artigo 220.o, n.o 6, da Convenção [de Montego Bay], ou “litoral ou […] interesses afins”, constante do artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva [2005/35]?

4)      O que significa a expressão “recursos do seu mar territorial ou da sua [ZEE]”, na aceção do artigo 220.o, n.o 6, da Convenção [de Montego Bay], ou do artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva [2005/35]? Deve entender‑se por recursos vivos apenas as espécies úteis, ou também as espécies a elas associadas, na aceção do artigo 61.o, n.o 4, da Convenção [de Montego Bay], como espécies de plantas e de animais utilizadas como alimento pelas espécies úteis?

5)      Como se devem definir as expressões “ameace provocar danos”, constante do artigo 220.o, n.o 6, da Convenção [de Montego Bay], ou “cause […] ameaça de danos”, constante do artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva [2005/35]? A ameaça de danos deve ser definida em função do conceito de perigo abstrato, do conceito de perigo concreto, ou de outra forma?

6)      Para efeitos da apreciação dos pressupostos estabelecidos no artigo 220.o, n.o 6, da Convenção [de Montego Bay] e no artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35 para a competência do Estado costeiro, deve partir‑se do princípio de que os danos importantes causados, ou que ameaçam ser causados, são uma consequência mais grave do que uma poluição importante no meio marinho, na aceção do artigo 220.o, n.o 5, da referida Convenção [de Montego Bay]? Como se define uma poluição importante no meio marinho, e como deve a mesma ser considerada para efeitos da valoração dos danos causados, ou que ameaçam ser causados?

7.      Que circunstâncias devem ser levadas em conta na valoração dos danos causados ou que ameaçam ser causados? Para efeitos dessa valoração deve, por exemplo, levar se em conta a duração e a extensão geográfica dos efeitos prejudiciais, que se manifestam como danos? Em caso de resposta afirmativa a esta questão: como devem ser valoradas a duração e a dimensão dos danos?

8)      A Diretiva 2005/35 estabelece [normas mínimas] e não obsta a que os Estados‑Membros tomem medidas mais rigorosas contra a poluição provocada por navios, nos termos do direito internacional (artigo [1.o, n.o 2]). A possibilidade de adotar normas mais rigorosas também se aplica ao artigo 7.o, n.o 2, da diretiva, em que se determina a competência do Estado costeiro para intervir contra um navio que esteja a atravessar o seu mar territorial ou a sua zona económica exclusiva?

9)      Ao interpretar os requisitos da competência do Estado costeiro/ribeirinho, definidos no artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay e no artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35], podem as características geográficas e ecológicas especiais e a sensibilidade do mar Báltico ser relevantes […]?

10)      Entende‑se por “prova manifesta e objetiva”, na aceção do artigo 220.o, n.o 6, da Convenção [de Montego Bay], ou “provas inequívocas e objetivas”, na aceção do artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35, além da prova de que um navio cometeu as infrações a que essas disposições se referem, a prova das consequências da descarga? O que se deve exigir como meio de prova de que há ameaça de danos importantes para o litoral ou para os interesses conexos, ou para os recursos do mar territorial, ou para a [ZEE] — por exemplo, para as populações de aves ou de peixes, ou para o ambiente marinho na zona? O requisito da prova manifesta e objetiva das provas inequívocas e objetivas significa, por exemplo, que a valoração dos efeitos prejudiciais dos hidrocarbonetos descarregados para o ambiente marinho tem sempre de se basear em pesquisas e estudos concretos sobre os efeitos de descargas de hidrocarbonetos ocorridas?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Observações preliminares

43      Para responder às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio no presente processo, o Tribunal de Justiça tem de pronunciar‑se sobre a Convenção de Montego Bay, a Convenção Marpol 73/78 e a Convenção sobre a Intervenção em Alto Mar de 1969. Por conseguinte, é importante recordar o estatuto destas convenções à luz do direito da União.

44      Em primeiro lugar, no que respeita à Convenção de Montego Bay, uma vez que esta foi assinada e aprovada pela União, as suas disposições fazem parte integrante da ordem jurídica da União e vinculam esta. Por conseguinte, esta Convenção prima sobre os atos de direito derivado da União (v., neste sentido, Acórdão de 3 de junho de 2008, Intertanko e o., C‑308/06, EU:C:2008:312, n.os 42 e 53), os quais devem ser interpretados, na medida do possível, em conformidade com essas disposições.

45      Em segundo lugar, no que respeita à Convenção Marpol 73/78, à qual a União não aderiu mas que vincula todos os seus Estados‑Membros, a mesma é suscetível de ter consequências na aplicação quer da Convenção de Montego Bay quer das disposições do direito derivado que se enquadram no âmbito de aplicação da Convenção Marpol 73/78, como é o caso das disposições da Diretiva 2005/35. Com efeito, atendendo ao princípio consuetudinário da boa‑fé, que faz parte do direito internacional geral, e ao artigo 4.o, n.o 3, TUE, cabe ao Tribunal de Justiça interpretar estas disposições tendo em conta a Convenção Marpol 73/78 (v., neste sentido, Acórdão de 3 de junho de 2008, Intertanko e o., C‑308/06, EU:C:2008:312, n.os 47 e 52).

46      Em terceiro lugar, no que respeita à Convenção sobre a Intervenção em Alto Mar de 1969, há que salientar, por um lado, que a União não aderiu à mesma e, por outro, que não se pode considerar que a União se tenha substituído aos seus Estados‑Membros, quanto mais não seja porque nem todos são Parte na referida Convenção. Daqui decorre que a mencionada Convenção não vincula a União e que o Tribunal de Justiça não é competente para a interpretar, enquanto tal, no âmbito de um reenvio prejudicial (v., por analogia, Acórdão de 24 de junho de 2008, Commune de Mesquer, C‑188/07, EU:C:2008:359, n.o 85).

47      Todavia, no presente processo, sendo o Tribunal de Justiça chamado a interpretar a Convenção de Montego Bay, haverá que ter em conta a Convenção sobre a Intervenção em Alto Mar de 1969, dado que esta última Convenção faz parte das regras pertinentes para efeitos da interpretação da Convenção de Montego Bay.

48      Com efeito, resulta nomeadamente do artigo 237.o da Convenção de Montego Bay, que regula as relações entre esta Convenção e convenções específicas que tenham por objeto a preservação do meio marinho, entre as quais figura a Convenção sobre a Intervenção em Alto Mar de 1969, que a Convenção de Montego Bay não afeta as obrigações específicas contraídas pelos Estados em virtude destas convenções especiais.

49      Em quarto lugar, face à conclusão a que se chegou no n.o 44 do presente acórdão, o artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35, que incorpora no direito da União as disposições do artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay e cuja redação é, em substância, idêntica a este, deve ser interpretado em conformidade com este último. Consequentemente, a interpretação deste artigo 220.o, n.o 6, deve, em princípio, ser considerada transponível para o artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35.

 Quanto ao primeiro período da décima questão

50      Com o primeiro período da sua décima questão, que importa examinar em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay e o artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35 devem ser interpretados no sentido de que os termos «prova manifesta» ou «prova inequívoca», na aceção destas disposições, visam não só a prática de uma infração mas igualmente a prova das consequências dessa infração.

51      O artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay prevê que, quando exista prova manifesta e objetiva de que uma embarcação que navegue na ZEE ou no mar territorial de um Estado cometeu, na ZEE, uma das infrações referidas no n.o 3 deste artigo 220.o, que tenha tido como resultado uma descarga que provoque ou ameace provocar danos importantes para o litoral ou para os interesses conexos do Estado costeiro ou para quaisquer recursos do seu mar territorial ou da sua ZEE, esse Estado pode, tendo em conta o disposto na secção 7, e quando as provas o justificarem, iniciar procedimentos incluindo a detenção da embarcação, em conformidade com o direito interno do referido Estado.

52      Há que observar que a redação do artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay não permite determinar se a existência de uma «prova manifesta», na aceção desta disposição, se refere unicamente à infração cometida ou também às consequências desta.

53      Nestas condições, há que recorrer ao contexto em que os termos «prova manifesta», na aceção desta disposição, se inscrevem e aos objetivos prosseguidos pelo artigo 220.o da Convenção de Montego Bay.

54      A este respeito, importa salientar que os n.os 3, 5 e 6 do artigo 220.o da Convenção de Montego Bay constituem um conjunto de medidas graduadas que o Estado costeiro pode tomar em relação a uma embarcação que se suspeite ter cometido ou que tenha cometido uma infração na ZEE desse Estado.

55      Em primeiro lugar, o artigo 220.o, n.o 3, desta Convenção refere‑se a uma violação das regras e normas internacionais aplicáveis para prevenir, reduzir e controlar a poluição proveniente de embarcações ou das leis e regulamentos desse Estado, adotados em conformidade e que apliquem tais regras e normas, entendendo‑se que é em particular a Convenção Marpol 73/78 que define essas violações.

56      Esta disposição prevê, assim, que, existindo motivos sérios para acreditar que essa infração foi cometida, o Estado costeiro pode exigir à embarcação em causa que forneça determinadas informações sobre a sua identidade e o porto de registo, a sua última e próxima escala, e outras informações pertinentes que sejam necessárias para determinar se foi cometida uma infração.

57      Em seguida, o artigo 220.o, n.o 5, da Convenção de Montego Bay, habilita o Estado costeiro a proceder a uma inspeção material da embarcação. Para esse efeito, esta disposição exige não apenas que existam motivos sérios para acreditar que uma embarcação cometeu uma infração, conforme definida no artigo 220.o, n.o 3, desta Convenção, mas também que essa infração esteja especificamente tipificada ao nível dos seus efeitos (a seguir «infração com efeitos tipificados»). Com efeito, a referida infração deve ter tido como resultado uma descarga substancial que provoque ou ameace provocar uma poluição importante no meio marinho.

58      Tudo indica, por conseguinte, que é devido à existência de uma infração com consequências caracterizadas, prevista no artigo 220.o, n.o 5, da Convenção de Montego Bay, que os autores desta Convenção habilitaram o Estado costeiro a adotar uma medida mais intrusiva do que a prevista no referido artigo 220.o, n.o 3.

59      Por último, o artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay é comparável ao artigo 220.o, n.o 5, desta Convenção, na medida em que se refere a uma infração com consequências caracterizadas. De facto, a infração, na aceção desta disposição, deve ter tido como resultado uma descarga que tenha provocado ou ameace provocar danos importantes para o litoral ou para os interesses conexos do Estado costeiro ou para quaisquer recursos do mar territorial ou da ZEE desse Estado (a seguir «bens e interesses conexos do Estado costeiro»).

60      No entanto, estas duas disposições diferem, na medida em que o artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay subordina o poder de intervenção do Estado costeiro à existência de uma «prova manifesta» de que uma infração com consequências caracterizadas foi efetivamente cometida, e não apenas à existência de motivos sérios para acreditar que essa infração foi cometida. Além disso, quando as condições de aplicação deste artigo 220.o, n.o 6, estiverem reunidas, o Estado costeiro pode iniciar procedimentos especialmente severos, dado que pode ordenar a detenção da embarcação em causa em conformidade com o direito interno desse Estado.

61      Afigura‑se, assim, que os autores da Convenção de Montego Bay pretenderam conferir ao Estado costeiro o direito de adotar essa medida particularmente severa quando, por um lado, a infração que uma embarcação cometeu provoca ou ameaça provocar danos importantes a esse Estado e, por outro, está provado que a embarcação em causa é a autora dessa infração.

62      Uma vez que estas duas condições, de igual importância, são cumulativas, há, por conseguinte, que interpretar o artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay no sentido de que prevê que o poder de intervenção do Estado costeiro está subordinado à existência de uma prova manifesta relativa tanto à prática, por essa embarcação, de uma infração, na aceção do artigo 220.o, n.o 3, desta Convenção, como aos danos importantes que esta provoque ou ameace provocar ao Estado costeiro em causa.

63      Esta interpretação é corroborada pelo objetivo da Convenção de Montego Bay, que consiste em estabelecer, para todos os espaços marítimos, um justo equilíbrio entre os interesses dos Estados na sua qualidade de Estados costeiros e os interesses dos Estados na sua qualidade de Estados da bandeira, os quais podem ser opostos (Acórdão de 3 de junho de 2008, Intertanko e o., C‑308/06, EU:C:2008:312, n.o 58).

64      Com efeito, o exercício do poder de intervenção do Estado costeiro na sua ZEE, nomeadamente o poder de ordenar a detenção de uma embarcação que arvora a bandeira de outro Estado, impedindo assim temporariamente essa embarcação de exercer a sua liberdade de navegação, que é no, entanto, garantida pelo direito internacional do mar nessa zona, pressupõe, a fim de assegurar um justo equilíbrio entre os interesses desse Estado costeiro e do Estado da bandeira que o referido Estado costeiro tenha prova suficiente, e não uma suspeita séria, da prática por essa embarcação de uma infração que tenha provocado ou ameaçado provocar danos importantes.

65      Por conseguinte, há que responder ao primeiro período da décima questão que o artigo 220.o, n.o 6 da Convenção de Montego Bay e o artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35 devem ser interpretados no sentido de que os termos «prova manifesta» ou «prova inequívoca», na aceção destas disposições, visam não só a prática de uma infração mas igualmente a prova das consequências dessa infração.

 Quanto às três primeiras questões

66      Com as suas três primeiras questões, que importa examinar em conjunto e em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se, em substância, sobre a interpretação dos termos «litoral ou […] interesses conexos», que constam do artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay e «litoral ou […] interesses afins», que constam do artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35, à luz das disposições da Convenção sobre a Intervenção em Alto Mar de 1969.

67      Para interpretar as disposições da Convenção de Montego Bay, há que ter em conta as regras do direito internacional consuetudinário, refletidas no disposto no artigo 31.o da Convenção de Viena, que vinculam as instituições da União e fazem parte da sua ordem jurídica (v., neste sentido, Acórdão de 27 de fevereiro de 2018, Western Sahara Campaign UK, C‑266/16, EU:C:2018:118, n.o 58 e jurisprudência referida), das quais resulta que um tratado deve ser interpretado de boa‑fé, de acordo com o sentido comum a atribuir aos termos do tratado no seu contexto e à luz dos respetivos objeto e fim.

68      Importa começar por constatar que os termos «litoral ou interesses conexos do Estado costeiro», em causa no artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay, não são definidos nesta Convenção.

69      A Convenção sobre a Intervenção em Alto Mar de 1969 utiliza os termos «costas, ou interesses relacionados, de um Estado ribeirinho» e precisa o sentido que se deve dar ao conceito de «interesses relacionados».

70      Em particular, nos termos do artigo I, n.o 1, dessa Convenção, as Partes Contratantes «podem tomar [no] alto mar as medid[a]s consideradas necessári[a]s para impedir, atenuar ou eliminar os perigos graves e iminentes, que poderão representar para as suas costas, ou interesses relacionados, uma poluição ou uma ameaça de poluição das águas do mar por hidrocarbonetos como consequência de um acidente de mar, ou ações com ele relacionadas, suscetíveis de terem consequências perniciosas consideráveis».

71      Por outro lado, o artigo II, n.o 4, da referida Convenção define «interesses relacionad[o]s» como «os interesses de um Estado ribeirinho diretamente afetados ou ameaçados pelo acidente de mar e que dizem respeito especialmente[, em primeiro lugar], à atividades marítimas costeiras, portuárias ou de estuário, incluindo a atividade pesqueira, constituindo um modo de vida essencial das populações envolvidas[, em segundo lugar,] à atração turística da região considerada [e, em terceiro lugar,] à saúde das populações ribeirinhas e ao bem‑estar da região considerada, incluindo a conservação dos recursos biológicos marinhos, a fauna e a flora».

72      Importa salientar que os termos «costas, ou interesses relacionados, de um Estado ribeirinho», na aceção da Convenção sobre a Intervenção em Alto Mar de 1969, são análogos aos termos «litoral ou interesses conexos do Estado costeiro», utilizados no artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay.

73      É certo que o artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay se refere ao termo «litoral», ao passo o artigo I, n.o 1, da Convenção sobre a Intervenção em Alto Mar de 1969 utiliza o termo «costas». No entanto, ambos os termos designam, de acordo com o seu sentido habitual em linguagem corrente, a zona de contacto entre o mar e a terra. Por outro lado, estas duas disposições estão redigidas da mesma maneira na sua versão em língua inglesa, tendo sido utilizado o mesmo termo, concretamente «coastline», para designar esta zona de contacto.

74      Este artigo 220.o, n.o 6, refere‑se igualmente aos termos «Estado costeiro», ao passo que o artigo II, n.o 4, da Convenção sobre a Intervenção em Alto Mar de 1969 utiliza os termos «Estado ribeirinho». Contudo, ambos os termos designam, de acordo com o seu sentido habitual em linguagem corrente, o Estado cujo território terrestre está situado na margem de um espaço marinho.

75      Por outro lado, como afirmou o advogado‑geral no n.o 70 das suas conclusões, decorre claramente da génese do artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay que as Partes Contratantes desta última se inspiraram na Convenção sobre a Intervenção em Alto Mar de 1969 quando decidiram que o Estado costeiro também devia ter competência para tomar medidas contra os navios estrangeiros que tenham cometido uma infração na ZEE abrangida pela jurisdição desse Estado. Por conseguinte, há que considerar que o sentido a atribuir aos termos «litoral ou […] interesses conexos», que constam do artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay, deve, em princípio, ser o mesmo que o resultante do artigo I, n.o 1, e do artigo II, n.o 4, da Convenção sobre a Intervenção em Alto Mar de 1969.

76      Não obstante, importa igualmente recordar que, à data da adoção da Convenção sobre a Intervenção em Alto Mar de 1969, o regime da ZEE ainda não fazia parte do direito internacional.

77      Ora, a Convenção de Montego Bay consagrou o reconhecimento da ZEE e regula atualmente o seu regime jurídico. Neste contexto, resulta claramente da própria redação do artigo 220.o, n.o 6, desta Convenção que este se estende igualmente a «quaisquer recursos da sua ZEE», biológicos ou não biológicos, sujeitos, conforme prevê o artigo 56.o, n.o 1, alíneas a) e b), da referida Convenção, à jurisdição do Estado costeiro.

78      Por outro lado, há que entender os termos «quaisquer recursos» do mar territorial do Estado costeiro, previstos no artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay, no sentido de que incluem os recursos não biológicos do mar territorial.

79      Decorre das considerações precedentes que há que responder às três primeiras questões que os termos «litoral ou […] interesses conexos», que constam do artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay e «litoral ou […] interesses afins», que constam do artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35, devem ser interpretados no sentido de que têm, em princípio, o mesmo significado que os termos «costas, ou interesses relacionados», utilizados no artigo I, n.o 1, e no artigo II, n.o 4, da Convenção sobre a Intervenção em Alto Mar de 1969, devendo considerar‑se que este artigo 220.o, n.o 6, se aplica igualmente aos recursos não biológicos do mar territorial do Estado costeiro e a todos os recursos da sua ZEE.

 Quanto à quarta questão

80      Com a sua quarta questão, que importa examinar em terceiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, em substância, sobre a questão de saber se o artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay e o artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35 devem ser interpretados no sentido de que os recursos do mar territorial ou da ZEE de um Estado costeiro, na aceção destas disposições, visam apenas as espécies capturadas ou também as espécies vivas associadas às espécies capturadas ou dependentes destas, como as espécies animais e vegetais de que se alimentam as espécies capturadas.

81      Importa salientar que o artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay visa os danos provocados ou que ameaçam ser provocados a «quaisquer» recursos do mar territorial ou da ZEE de um Estado costeiro. Esta disposição deve, portanto, ser objeto de interpretação ampla a este respeito, que resulta da própria letra, e não ser entendida no sentido de que exclui certos recursos do âmbito da referida disposição.

82      Assim, os recursos do mar territorial ou da ZEE de um Estado costeiro, na aceção do artigo 220.o, n.o 6, devem ser entendidos no sentido de que visam as espécies capturadas, mas também as espécies vivas associadas às espécies capturadas ou dependentes destas.

83      A interdependência entre as diferentes espécies é, aliás, expressamente tida em conta pela Convenção de Montego Bay. Com efeito, a título da conservação dos recursos vivos, prevista no artigo 61.o desta Convenção, o Estado costeiro, no âmbito das medidas que adota nos termos do n.o 3 deste artigo, com a finalidade de preservar ou restabelecer as populações das espécies capturadas, deve igualmente ter expressamente em conta, por força do n.o 4 do referido artigo, os seus efeitos sobre espécies associadas às espécies capturadas, ou dependentes das espécies capturadas.

84      Por conseguinte, há que responder à quarta questão que o artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay e o artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35 devem ser interpretados no sentido de que os recursos do mar territorial ou da ZEE de um Estado costeiro, na aceção destas disposições, visam as espécies capturadas, mas também as espécies vivas associadas às espécies capturadas ou dependentes destas, como as espécies animais e vegetais de que se alimentam as espécies capturadas.

 Quanto à sexta questão

85      Com a sua sexta questão, que importa examinar em quarto lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se e, sendo caso disso, de que maneira deve ser tido em conta o conceito de «poluição importante», referido no artigo 220.o, n.o 5, da Convenção de Montego Bay, na aplicação do artigo 220.o, n.o 6, desta Convenção e do artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35, e, em especial, na apreciação das consequências de uma infração, conforme definidos nestas disposições.

86      A este respeito, embora o artigo 220.o, n.o 5, da Convenção de Montego Bay não defina o conceito de «poluição», resulta do artigo 1.o, n.o 4, desta Convenção que a «poluição do meio marinho» significa a «introdução pelo homem, direta ou indiretamente, de substâncias ou de energia no meio marinho, incluindo os estuários, sempre que a mesma provoque ou possa vir a provocar efeitos nocivos, tais como danos aos recursos vivos e à vida marinha, riscos à saúde do homem, entrave às atividades marítimas, incluindo a pesca e as outras utilizações legítimas do mar, alteração da qualidade da água do mar, no que se refere à sua utilização, e deterioração dos locais de recreio».

87      Por seu turno, o artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay refere‑se, nomeadamente, ao conceito de «interesses conexos» do Estado costeiro que, conforme decorre do n.o 75 do presente acórdão, deve, em princípio, ter o mesmo sentido que o precisado no artigo II, n.o 4, da Convenção sobre a Intervenção em Alto Mar de 1969.

88      Ora, embora a proteção dos «interesses conexos» do Estado costeiro se torne normalmente pertinente em situação de poluição, há que observar que o artigo II, n.o 4, da Convenção sobre a Intervenção em Alto Mar de 1969 visa, no entanto, especificamente as consequências prejudiciais económicas, sociais e ao nível da saúde decorrentes dessa poluição num Estado costeiro, a saber, mais concretamente, o facto de um prejuízo importante ser provocado ou ameaçar ser provocado, antes de mais, às diferentes atividades profissionais ligadas à utilização do mar, exercidas pela sua população ribeirinha, que constituem um modo de vida essencial dessa população, em seguida, às atividades turísticas nessas regiões costeiras e, por último, à saúde e ao bem‑estar da referida população.

89      Resulta desta comparação que existem diferenças substanciais entre o artigo 220.o, n.o 5, e o artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay.

90      Com efeito, por um lado, este artigo 220.o, n.o 5, lido em conjugação com o artigo 1.o, n.o 4, da Convenção de Montego Bay, não visa proteger especificamente os bens e os interesses conexos do Estado costeiro e, por outro, este Estado não tem de demonstrar a existência de um «dano importante» a esses interesses.

91      Por conseguinte, uma vez que o objeto destas duas disposições é diferente, em princípio, para efeitos da aplicação do artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay, não há que ter em conta o conceito de «poluição importante» previsto no artigo 220.o, n.o 5, desta Convenção.

92      Consequentemente, há que responder à sexta questão no sentido de que, em princípio, não há que ter em conta o conceito de «poluição importante», referido no artigo 220.o, n.o 5, da Convenção de Montego Bay, na aplicação do artigo 220.o, n.o 6, desta Convenção e do artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35 e, em especial, na apreciação das consequências de uma infração, conforme definidas nestas disposições.

 Quanto à quinta e sétima questões e às duas últimas frases da décima questão

93      Com a sua quinta e sétima questões e os dois últimos períodos da décima questão, que há que examinar em conjunto e em quinto lugar, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, em substância, sobre a questão de saber como devem ser apreciadas as consequências de uma infração, conforme definidas no artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay e no artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35.

94      Como decorre do n.o 65 do presente acórdão, o artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay deve ser interpretado no sentido de que visa não só a prova manifesta da prática de uma infração mas igualmente a prova das consequências dessa infração.

95      Esta disposição prevê igualmente que, para efeitos da sua aplicação, é necessário que a infração cometida por uma embarcação tenha tido como resultado uma descarga que provoque ou ameace provocar, como foi exposto no n.o 59 do presente acórdão, danos importantes a certos bens e interesses conexos do Estado costeiro.

96      Isso implica, numa situação concreta, a tomada em consideração do conjunto dos indícios que permitam demonstrar que um dano foi provocado ou ameaça ser provocado a esses bens e a esses interesses, assim como avaliar a importância do dano provocado ou que ameaça ser provocado aos referidos bens ou aos referidos interesses, sem privilegiar, a priori, um certo tipo de provas.

97      Neste contexto, cabe salientar que os bens e os interesses conexos do Estado costeiro, protegidos pelo artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay, abrangem elementos heterogéneos.

98      Por conseguinte, há que identificar os bens e os interesses afetados e avaliar a gravidade da lesão de um ou de outro desses elementos, ou até de todos eles.

99      Importa igualmente ter em conta o caráter específico do bem ou do interesse conexo afetado pelo dano. Com efeito, a vulnerabilidade do Estado costeiro face à ação prejudicial das descargas difere consoante a natureza dos bens ou dos interesses conexos em causa. Assim, nomeadamente, um perigo para a saúde da população ribeirinha de uma costa, em princípio, afeta mais gravosamente um Estado costeiro do que um dano meramente económico.

100    Além disso, há que demonstrar as consequências das descargas em causa para os bens e os interesses conexos do Estado costeiro.

101    A este respeito, atendendo, por um lado, à urgência que pode apresentar a adoção de uma medida de proteção e, por outro, à pertinência, como decorre do teor do artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay, de uma simples ameaça de dano, afigura‑se suficiente, para habilitar o Estado costeiro a adotar essa medida, demonstrar, tendo em consideração os dados científicos disponíveis, o caráter e o alcance do prejuízo suscetível de ser provocado pelas referidas descargas nos diferentes bens e interesses conexos do Estado costeiro. Para esse efeito, importa, nomeadamente, ter em conta, na medida do possível, a natureza da substância ou das substâncias nocivas contidas nas descargas em causa e o volume, o sentido, a velocidade e a duração da propagação das referidas descargas.

102    Decorre das considerações precedentes que há que responder à quinta e sétima questões e aos dois últimos períodos da décima questão que, para apreciar as consequências de uma infração, conforme definidas no artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay e no artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35, há que ter em consideração todos os indícios que permitam demonstrar que um dano foi provocado ou ameaça ser provocado aos bens e aos interesses conexos do Estado costeiro, bem como avaliar a importância do dano provocado ou que ameaça ser provocado a estes bens ou a estes interesses, tendo nomeadamente em conta:

–        O caráter cumulativo da lesão de vários, ou mesmo de todos esses bens e de todos esses interesses conexos bem como as diferenças de vulnerabilidade do Estado costeiro no que respeita às lesões dos vários bens e interesses conexos;

–        As consequências prejudiciais previsíveis das descargas nos referidos bens e interesses conexos, com base não só nos dados científicos disponíveis mas também na natureza da substância ou das substâncias nocivas contidas nas descargas em causa e no volume, no sentido, na velocidade e na duração da propagação das referidas descargas.

 Quanto à nona questão

103    Com a sua nona questão, que importa examinar em sexto lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se e, sendo caso disso, de que maneira podem as características geográficas e ecológicas específicas e a vulnerabilidade da zona do mar Báltico ter uma repercussão nas condições de aplicação do artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay e do artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35.

104    A este respeito, como salientou o advogado‑geral no n.o 105 das suas conclusões, o mar Báltico é reconhecido internacionalmente como uma área especial, caracterizada por especificidades geográficas e um ecossistema particularmente vulnerável que precisa de particular proteção.

105    Ora, tais especificidades repercutem‑se diretamente na definição e na qualificação da infração na aceção do artigo 220.o, n.o 3, da Convenção de Montego Bay e, consequentemente, na aplicação do artigo 220.o, n.o 6, desta Convenção. Com efeito, a regra 15, ponto B, da parte C do capítulo 3 do anexo I da Convenção Marpol 73/78 determina a infração cometida numa área especial de maneira mais rigorosa do que em caso de descarga fora da área especial.

106    No entanto, importa recordar que o objetivo específico do artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay não consiste em assegurar uma proteção particular de uma zona especial, mas em proteger certos bens e interesses do Estado costeiro independentemente da circunstância de o mar adjacente a esse Estado constituir ou não uma zona especial.

107    Assim, mesmo que as especificidades do mar Báltico pudessem eventualmente ser tidas em conta, ao apreciar o alcance do dano provocado ao Estado costeiro, essas especificidades não poderiam ter, de maneira automática, repercussão nessa apreciação.

108    Resulta destas considerações que há que responder à nona questão que as características geográficas e ecológicas especiais e a vulnerabilidade do mar Báltico têm uma repercussão nas condições de aplicação do artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay e do artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35, no que respeita à definição e à qualificação da infração bem como, embora não automaticamente, na apreciação do alcance do dano que essa infração provocou aos bens e aos interesses do Estado costeiro.

 Quanto à oitava questão

109    Com a sua oitava questão, que importa examinar em último lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35 deve ser interpretado no sentido de que permite aos Estados‑Membros imporem medidas mais rigorosas, nos termos do direito internacional, do que as enunciadas no artigo 7.o, n.o 2, desta diretiva quando este seja aplicável.

110    A este respeito, como decorre do próprio teor do artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35, esta última não obsta a que os Estados‑Membros tomem medidas mais rigorosas contra a poluição provocada por navios, nos termos do direito internacional.

111    Há que salientar igualmente que não resulta de nenhuma disposição da referida diretiva que a faculdade conferida aos Estados‑Membros por este artigo 1.o, n.o 2, deva limitar‑se a algumas das suas disposições.

112    Consequentemente, essa faculdade deve aplicar‑se, em princípio, igualmente ao artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35, que regula a competência do Estado costeiro para iniciar procedimentos contra um navio em trânsito.

113    No entanto, o artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35 precisa que essas eventuais medidas mais rigorosas devem ser tomadas nos termos do direito internacional.

114    A este propósito, há que salientar, como resulta do n.o 49 do presente acórdão, que o artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35 deve ser interpretado de acordo com o artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay.

115    Ora, segundo o n.o 63 do presente acórdão, este artigo 220.o, n.o 6, traduz o objetivo, prosseguido pela Convenção de Montego Bay, de estabelecer, para todos estes espaços marítimos, um justo equilíbrio entre os interesses dos Estados na sua qualidade de Estados costeiros e os interesses dos Estados na sua qualidade de Estados da bandeira.

116    Por conseguinte, não se pode considerar que o artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35 autoriza o Estado costeiro a tomar medidas mais rigorosas do que as previstas neste artigo, sob pena de quebrar o justo equilíbrio entre os interesses do Estado costeiro e os interesses do Estado de bandeira, pugnado pelo artigo 220.o, n.o 6, da Convenção de Montego Bay.

117    Não obstante, esta interpretação não pode impedir o Estado costeiro de tomar medidas de alcance equivalente às previstas no artigo 220.o, n.o 6, uma vez que o referido artigo não prevê uma lista exaustiva das medidas autorizadas, como decorre da utilização do termo «incluindo».

118    Resulta das considerações que precedem que há que responder à oitava questão que o artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35 deve ser interpretado no sentido de que não permite aos Estados‑Membros imporem medidas mais rigorosas, nos termos do direito internacional, do que as enunciadas no artigo 7.o, n.o 2, desta diretiva quando este seja aplicável, devendo considerar‑se que os Estados costeiros estão habilitados a tomar outras medidas de alcance equivalente às medidas previstas no referido artigo 220.o, n.o 6.

 Quanto às despesas

119    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

1)      O artigo 220.o, n.o 6, da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, assinada em Montego Bay em 10 de dezembro de 1982, e o artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de setembro de 2005, relativa à poluição por navios e à introdução de sanções, incluindo sanções penais, por crimes de poluição, conforme alterada pela Diretiva 2009/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de outubro de 2009, devem ser interpretados no sentido de que os termos «prova manifesta» ou «prova inequívoca», na aceção destas disposições, visam não só a prática de uma infração mas igualmente a prova das consequências dessa infração.

2)      Os termos «litoral ou […] interesses conexos», que constam do artigo 220.o, n.o 6, da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, e «litoral ou […] interesses afins», que constam do artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35, conforme alterada pela Diretiva 2009/123, devem ser interpretados no sentido de que têm, em princípio, o mesmo significado que os termos «costas, ou interesses relacionados», utilizados no artigo I, n.o 1, e no artigo II, n.o 4, da Convenção Internacional de 1969 sobre a Intervenção em Alto Mar em Caso de Acidente que Provoque ou Possa Vir a Provocar a Poluição por Hidrocarbonetos, celebrada em Bruxelas em 29 de novembro de 1969, devendo considerarse que este artigo 220.o, n.o 6, se aplica igualmente aos recursos não biológicos do mar territorial do Estado costeiro e a todos os recursos da sua zona económica exclusiva.

3)      O artigo 220.o, n.o 6, da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar e o artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35, conforme alterada pela Diretiva 2009/123, devem ser interpretados no sentido de que os recursos do mar territorial ou da zona económica exclusiva de um Estado costeiro, na aceção destas disposições, visam as espécies capturadas, mas também as espécies vivas associadas às espécies capturadas ou dependentes destas, como as espécies animais e vegetais de que se alimentam as espécies capturadas.

4)      Em princípio, não há que ter em conta o conceito de «poluição importante», referido no artigo 220.o, n.o 5, da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, na aplicação do artigo 220.o, n.o 6, desta Convenção e do artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35, conforme alterada pela Diretiva 2009/123, e, em especial, na apreciação das consequências de uma infração, conforme definidas nestas disposições.

5)      Para apreciar as consequências de uma infração, conforme definidas no artigo 220.o, n.o 6, da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar e no artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35, conforme alterada pela Diretiva 2009/123, há que ter em consideração todos os indícios que permitam demonstrar que um dano foi provocado ou ameaça ser provocado aos bens e aos interesses conexos do Estado costeiro, bem como avaliar a importância do dano provocado ou que ameaça ser provocado a estes bens ou a estes interesses, tendo nomeadamente em conta:

–        O caráter cumulativo da lesão de vários, ou mesmo de todos esses bens e de todos esses interesses conexos bem como as diferenças de vulnerabilidade do Estado costeiro no que respeita às lesões dos vários bens e interesses conexos;

–        As consequências prejudiciais previsíveis das descargas nos referidos bens e interesses conexos, com base não só nos dados científicos disponíveis mas também na natureza da substância ou das substâncias nocivas contidas nas descargas em causa e no volume, no sentido, na velocidade e na duração da propagação das referidas descargas.

6)      As características geográficas e ecológicas especiais e a vulnerabilidade do mar Báltico têm uma repercussão nas condições de aplicação do artigo 220.o, n.o 6, da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar e do artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35, conforme alterada pela Diretiva 2009/123, no que respeita à definição e à qualificação da infração bem como, embora não automaticamente, na apreciação do alcance do dano que essa infração provocou aos bens e aos interesses do Estado costeiro.

7)      O artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 2005/35, conforme alterada pela Diretiva 2009/123, deve ser interpretado no sentido de que não permite aos EstadosMembros imporem medidas mais rigorosas, nos termos do direito internacional, do que as enunciadas no artigo 7.o, n.o 2, desta diretiva quando este seja aplicável, devendo considerarse que os Estados costeiros estão habilitados a tomar outras medidas de alcance equivalente às medidas previstas no referido artigo 220.o, n.o 6.

Assinaturas


* Língua do processo: finlandês.