Language of document : ECLI:EU:C:2019:747

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

ELEANOR SHARPSTON

apresentadas em 17 de setembro de 2019 (1)

Processo C489/19 PPU

NJ (Procuradoria de Viena)

Processo penal

na presença de

Generalstaatsanwaltschaft Berlin

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Kammergericht Berlin (Tribunal Regional Superior de Berlim, Alemanha)]

«Reenvio prejudicial — Pedido prejudicial urgente — Cooperação policial e judiciária em matéria penal — Mandado de detenção europeu — Decisão‑Quadro 2002/584/JAI — Artigo 6.o, n.o 1 — Autoridade judiciária de emissão — Independência da procuradoria face ao poder executivo — Critérios de apreciação — Mandado de detenção europeu emitido por um procurador e confirmado, após fiscalização exaustiva, por um tribunal comum, antes da sua execução»






1.        No Acórdão OG e PI (2), proferido em Grande Secção, o Tribunal de Justiça declarou que o conceito de «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI (3) deve ser interpretado no sentido de que não visa as procuradorias de um Estado‑Membro que correm o risco de estar sujeitas, direta ou indiretamente, às ordens ou instruções individuais por parte do poder executivo, no âmbito da adoção de uma decisão relativa à emissão de um mandado de detenção europeu. Com o seu pedido de decisão prejudicial, o Kammergericht Berlin (Tribunal Regional Superior de Berlim, Alemanha), ao qual foi apresentado um pedido de entrega pelas autoridades austríacas, questiona o Tribunal de Justiça sobre a aplicação dessa exigência de independência e sobre os critérios de apreciação a adotar no caso em apreço, dado que se trata de um mandado de detenção europeu emitido por uma procuradoria e confirmado previamente por um juiz (4).

 Quadro jurídico

 Direito da União

 DecisãoQuadro 2002/584

2.        Nos considerandos da Decisão‑Quadro 2002/584, o legislador da União formula as afirmações seguintes:

«(5)      O objetivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduz à supressão da extradição entre os Estados‑Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias. Acresce que a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal permite suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos atuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que até ao momento prevaleceram entre Estados‑Membros devem dar lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré‑sentencial como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.

(6)      O mandado de detenção europeu previsto na presente decisão‑quadro constitui a primeira concretização, no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de “pedra angular” da cooperação judiciária.

[…]

(8)      As decisões sobre a execução do mandado de detenção europeu devem ser objeto de um controlo adequado, o que implica que deva ser a autoridade judiciária do Estado‑Membro onde a pessoa procurada foi detida a tomar a decisão sobre a sua entrega.

[…]

(10)      O mecanismo do mandado de detenção europeu é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados‑Membros. A execução desse mecanismo só poderá ser suspensa no caso de violação grave e persistente, por parte de um Estado‑Membro, dos princípios enunciados no n.o 1 do artigo 6.o do Tratado da União Europeia, verificada pelo Conselho nos termos do n.o 1 do artigo 7.o do mesmo Tratado e com as consequências previstas no n.o 2 do mesmo artigo.

[…]

(12)      A presente decisão‑quadro respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos pelo artigo 6.o do Tratado da União Europeia e consignados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, nomeadamente o seu capítulo VI. […]»

3.        O artigo 1.o desta decisão‑quadro, intitulado «Definição de mandado de detenção europeu e obrigação de o executar», prevê:

«1.      O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2.      Os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.

3.      A presente decisão‑quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.o do Tratado da União Europeia.»

4.        O artigo 2.o, n.o 1, da referida decisão‑quadro dispõe:

«O mandado de detenção europeu pode ser emitido por factos puníveis, pela lei do Estado‑Membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses ou, quando tiver sido decretada uma pena ou aplicada uma medida de segurança, por sanções de duração não inferior a quatro meses.»

5.        Segundo o artigo 2.o, n.o 2, caso sejam puníveis no Estado‑Membro de emissão com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a três anos e tal como definidas pela legislação do Estado‑Membro de emissão, as infrações enumeradas nessa disposição determinam a entrega com base num mandado de detenção europeu sem controlo da dupla incriminação do facto. É esse o caso no que respeita ao roubo organizado ou à mão armada (5).

6.        Os artigos 3.o, 4.o e 4.o‑A da Decisão‑Quadro 2002/584 enumeram os motivos de não execução obrigatória e facultativa do mandado de detenção europeu.

7.        Nos termos do artigo 6.o desta decisão‑quadro, intitulado «Determinação das autoridades judiciárias competentes»:

«1.      A autoridade judiciária de emissão é a autoridade judiciária do Estado‑Membro de emissão competente para emitir um mandado de detenção europeu nos termos do direito desse Estado.

2.      A autoridade judiciária de execução é a autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução competente para executar o mandado de detenção europeu nos termos do direito desse Estado.

3.      Cada Estado‑Membro informa o Secretariado‑Geral do Conselho da autoridade judiciária competente nos termos do respetivo direito nacional.»

8.        O artigo 8.o da referida decisão‑quadro regula o conteúdo e a forma do mandado de detenção europeu.

9.        O artigo 11.o, relativo aos direitos da pessoa procurada, dispõe que «[q]uando uma pessoa procurada for detida, a autoridade judiciária de execução competente informa‑a, em conformidade com o seu direito nacional, da existência e do conteúdo do mandado de detenção europeu, bem como da possibilidade ao seu dispor de consentir em ser entregue à autoridade judiciária de emissão».

10.      O artigo 14.o prevê que «[a] pessoa procurada, se não consentir na sua entrega como previsto no artigo 13.o, tem o direito de ser ouvida pela autoridade judiciária de execução, em conformidade com o direito nacional do Estado‑Membro de execução».

 Direito austríaco

11.      O § 2, n.o 1, da Staatsanwaltschaftsgesetz (Lei Relativa ao Ministério Público; a seguir «StAG») dispõe:

«Na sede de cada Landesgericht (Tribunal Regional) com competência penal há uma procuradoria, na sede de cada Oberlandesgericht (Tribunal Regional Superior), há uma procuradoria regional e no Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal) está presente a procuradoria‑geral. As procuradorias estão diretamente subordinadas às procuradorias regionais e sujeitas às suas instruções e estas, bem como a procuradoria‑geral, estão subordinadas ao Ministro Federal da Justiça.»

12.      O § 29 da Gesetz über die Justizielle Zusammenarbeit in Strafsachen mit den Mitgliedstaaten der Europäischen Union (Lei Relativa à Cooperação Judiciária em Matéria Penal com os Estados‑Membros da União Europeia; a seguir «EU‑JZG») consagra a exigência de confirmação judicial do mandado de detenção europeu (confirmação que ocorreu no caso vertente). O § 29, n.o 1, primeiro período, da EU‑JZG dispõe o seguinte:

«A procuradoria ordena a detenção através de um mandado de detenção europeu confirmado por um tribunal e, se for caso disso, a inclusão da pessoa procurada no Sistema de Informação Schengen, nos termos do artigo 95.o do Schengener Durchführungsübereinkommen [Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen], por intermédio das autoridades de segurança competentes, quando haja motivos para iniciar uma busca de uma pessoa para detenção em, pelo menos, um Estado‑Membro.»

13.      No âmbito desta fiscalização jurisdicional, devem ser tidos em conta os requisitos de legalidade e proporcionalidade previstos no § 5, n.os 1 e 2, do Strafprozessordnung (Código de Processo Penal austríaco; a seguir «StPO»):

«(1)      A polícia judiciária, o Ministério Público e o tribunal, no exercício das suas competências e durante a recolha de elementos de prova, só podem interferir com os direitos das pessoas em conformidade com o expressamente previsto na lei, e na medida do necessário para cumprirem a sua missão. Qualquer ingerência num direito cometida por esta via deve ser proporcional à gravidade da infração, ao grau de suspeita e ao êxito previsto.

(2)      Cabe à polícia judiciária, ao Ministério Público e ao tribunal escolher, de entre os vários atos de inquérito e medidas de coação pertinentes, os que menos afetem os direitos dos interessados. As competências previstas na lei devem ser exercidas em qualquer fase do procedimento de forma a evitar causar sensação, [a] respeitar a dignidade das pessoas em causa e os seus direitos e interesses legítimos.»

14.      Nos termos do § 87, n.o 1, do StPO, a decisão de confirmação é suscetível de recurso (6).

15.      O processo de confirmação judiciária rege‑se pelo § 105 do StPO:

«(1)      Compete ao tribunal decidir sobre os pedidos de aplicação e prorrogação da detenção provisória bem como sobre a confirmação de outras determinadas medidas coercivas. O tribunal fixa um prazo de execução da medida confirmada (§ 101, n.o 3), decorrido o qual a medida caduca. No caso de ter sido ordenada a detenção em conformidade com o § 169, o prazo não inclui o período de validade dessa ordem, mas o Ministério Público verifica pelo menos uma vez por ano se os requisitos para a detenção ainda se verificam.

(2)      Na medida em que tal seja necessário por razões de direito ou de facto para decidir sobre um pedido nos termos do n.o 1, o tribunal pode ordenar uma investigação mais aprofundada pela polícia criminal ou efetuá‑la ex officio. Pode também ordenar ao Ministério Público e à polícia judiciária que clarifiquem matéria de facto constante do processo e elaborem um relatório sobre a execução da medida confirmada e a prossecução do inquérito. Após a aplicação da detenção provisória, o tribunal pode ordenar que lhe sejam facultadas cópias dos documentos referidos no § 52, n.os 2 e 3.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

16.      Nos termos do mandado de detenção europeu emitido no caso vertente, as autoridades austríacas solicitaram a detenção de NJ e a sua entrega para efeitos de procedimento penal, em virtude de o interessado ter alegadamente cometido as seguintes infrações em Viena, na Áustria.

17.      Em 9 de agosto de 2018, juntamente com um cúmplice, introduziu‑se num autocarro de turismo da empresa SQ Equipment Leasing Polska e aí furtou uma câmara fotográfica e respetiva bolsa, duas mochilas, uma carteira e numerário no montante de 1 000 yuan chinês (CYN) (cerca de 128 euros). Na mesma ocasião, terá furtado o cartão de crédito pertencente a uma vítima. Em 10 de agosto de 2018, juntamente com um cúmplice, introduziu‑se num veículo da empresa W. E. Blaschitz, para aí furtar bens, porém fugiu de mãos vazias após ter sido surpreendido por um terceiro, que, perante a ameaça de uma faca, desistiu de o perseguir. Em 17 de agosto de 2018, juntamente com um cúmplice, furtou uma mala de mão com uma carteira, um telemóvel e um par de óculos, num montante total de 950 euros, e 50 euros em dinheiro, fazendo‑o enquanto o cúmplice distraía o marido da vítima. Em 18 de agosto de 2018, juntamente com um cúmplice, introduziu‑se num veículo de passageiros de um terceiro, tendo para tal quebrado uma das janelas laterais, para aí furtar bens, embora não tenha encontrado nada (a seguir «infrações penais alegadas»).

18.      Desde 14 de maio de 2019, NJ é alvo de uma medida de detenção provisória por furto num processo instaurado pela procuradoria de Berlim (Alemanha). O mandado de detenção europeu emitido pela procuradoria de Viena em 16 de maio de 2019, confirmado judicialmente por Despacho do Landesgericht Wien (Tribunal Regional de Viena, Áustria) de 20 de maio de 2019, atesta que NJ é alvo de um mandado de detenção nacional emitido pela procuradoria de Viena em 14 de maio de 2019, confirmado judicialmente pelo mesmo tribunal regional em 16 de maio de 2019, pelas alegadas infrações penais.

19.      Em 24 de maio de 2019, NJ negou o seu acordo para a entrega simplificada (7). Por Despacho de 29 de maio de 2019, o órgão jurisdicional de reenvio ordenou apenas uma medida de detenção provisória de NJ (dadas as dúvidas relativas à autoridade judiciária de emissão do mandado de detenção europeu), realçando que o interessado já estava detido.

20.      Segundo a declaração (8) que fez na sequência do Acórdão OG e PI (9), o Governo austríaco entende que o referido acórdão não tem consequências para a Áustria, porque o procedimento estabelecido pelo direito austríaco (10) corresponde, no seu entender, às exigências expostas nesse acórdão. Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio não partilha dessa análise, porque, na sua opinião, as condições expressas nos n.os 74 e 75 do Acórdão OG e PI são cumulativas (e não alternativas, como o Governo austríaco parecia afirmar na referida declaração) (11).

21.      Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Opõe‑se à emissão eficaz de um mandado de detenção europeu por uma Staastsanwaltschaft (Procuradoria do Ministério Público) a sua condição de órgão hierárquico sujeito a instruções dos seus superiores, mesmo que esta decisão esteja sujeita a uma fiscalização jurisdicional exaustiva antes da execução do mandado de detenção europeu?»

22.      Foram apresentadas observações escritas pelos Governos austríaco e alemão e pela Comissão Europeia. As referidas partes e o Governo espanhol foram ouvidos em alegações na audiência realizada em 3 de setembro de 2019.

 Quanto à aplicação da tramitação processual urgente

23.      O órgão jurisdicional de reenvio pediu que seja aplicada ao presente pedido de decisão prejudicial a tramitação processual urgente prevista no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

24.      Em apoio deste pedido, o órgão jurisdicional de reenvio alegou que o interessado estava atualmente privado de liberdade em razão de dois processos. Com efeito, é objeto, por um lado de uma detenção provisória no âmbito de um processo penal instaurado contra ele na Alemanha (a seguir «primeira detenção provisória»), por factos estranhos ao processo principal. Esta primeira detenção, por um período máximo de seis meses, pode terminar a qualquer momento. Por outro lado, apesar de ter dúvidas sobre a autoridade judiciária de emissão e sobre a validade do mandado de detenção europeu emitido neste caso, o órgão jurisdicional de reenvio ordenou uma segunda detenção provisória, tendo em vista a eventual entrega do interessado às autoridades austríacas (a seguir «segunda detenção provisória»). Esta segunda medida de detenção só produz efeitos após o termo da primeira detenção provisória e não pode legalmente exceder o prazo de dois meses.

25.      Resulta dos elementos transmitidos pelo órgão jurisdicional de reenvio que, por um lado, o acórdão a proferir pelo Tribunal de Justiça é suscetível de ter consequências sobre a duração da segunda detenção provisória e, portanto, sobre a duração total de detenção do interessado e que, por outro, há um risco efetivo, nomeadamente em razão da duração da primeira detenção provisória e do processo prejudicial no Tribunal de Justiça, de que o interessado deva ser posto em liberdade e que possa subtrair‑se aos procedimentos penais instaurados contra si, frustrando assim a execução do mandado de detenção europeu emitido pelas autoridades austríacas.

26.      Em primeiro lugar, deve realçar‑se que este reenvio prejudicial tem como objeto a interpretação da Decisão‑Quadro 2002/584, que se refere aos domínios enumerados no título V da parte III do TFUE, relativo ao espaço de liberdade, segurança e justiça. O referido reenvio pode, portanto, ser submetido à tramitação processual urgente, nos termos do artigo 107.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

27.      Em segundo lugar, no que se refere ao critério da urgência, há que reconhecer que a pessoa em causa no processo principal se encontra atualmente privada de liberdade e que a solução do litígio no processo principal é suscetível de ter uma incidência não negligenciável na duração de tal privação (12). Por outro lado, a situação da pessoa em causa deve ser apreciada conforme se apresenta na data da análise do pedido por meio do qual se requer que o reenvio prejudicial seja submetido à tramitação urgente (13). No caso em apreço, verifica‑se que, na data da apreciação do pedido formulado pelo órgão jurisdicional de reenvio, o interessado está efetivamente detido e que a manutenção da sua detenção dependerá, nomeadamente, da solução do litígio no processo principal (14).

28.      Além disso, há que ter em conta o risco da libertação do interessado, que poderia prejudicar, no caso concreto, a eficácia do regime de entrega instituído pela Decisão‑Quadro 2002/584 e o cumprimento da obrigação de execução do mandado de detenção europeu, obrigação que tem um caráter central segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça (15).

29.      Tendo em conta estas considerações, a Segunda Secção do Tribunal de Justiça decidiu, em 11 de julho de 2019, mediante proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral, deferir o pedido do órgão jurisdicional de reenvio de que o presente pedido de decisão prejudicial seja submetido à tramitação processual urgente.

 Análise

 Observações liminares

30.      Resulta do pedido de decisão prejudicial que este processo é abrangido pelo âmbito de aplicação da Decisão‑Quadro 2002/584. Com efeito, os factos alegados constituem, em parte, infrações que correspondem ao critério da dupla incriminação enunciado no artigo 2.o, n.o 1, da decisão‑quadro e, noutra parte, infrações enumeradas no artigo 2.o, n.o 2, da decisão‑quadro (dado que estes factos poderiam constituir roubo organizado ou à mão armada) (16).

31.      Além disso, também decorre do pedido de decisão prejudicial que o mandado de detenção europeu emitido pela Procuradoria de Viena cumpre os requisitos materiais e formais referidos no artigo 8.o da Decisão‑Quadro 2002/584.

32.      Antes de iniciar a minha análise, devo ainda clarificar o alcance da questão prejudicial.

33.      O órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se a procuradoria de Viena é uma «autoridade judiciária de emissão» e se cumpre os requisitos de independência, à luz do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 e do Acórdão do Tribunal de Justiça no processo OG e PI, tendo em conta que, por um lado, esta procuradoria pode estar sujeita a instruções individuais por parte do executivo, mas que, por outro, a sua decisão de emissão de um mandado de detenção europeu é sempre objeto de fiscalização jurisdicional antes de produzir efeitos (ou seja, uma fiscalização ex ante, que, no caso em apreço, reveste a forma de confirmação judicial).

34.      Noutros termos, esta questão prejudicial não se refere, portanto, a uma situação em que a procuradoria potencialmente sujeita a instruções individuais por parte do poder executivo emite um mandado de detenção europeu que produz os seus efeitos e do qual a pessoa visada pode recorrer, provocando a fiscalização jurisdicional posterior (fiscalização ex post). Tal como a Comissão, realço que o Tribunal de Justiça precisou que tal fiscalização jurisdicional a posteriori não constitui uma garantia de independência da procuradoria (17).

 Ensinamentos do Acórdão OG e PI

35.      Observo, antes de mais, que o Acórdão OG e PI foi proferido em reenvios prejudiciais apresentados por dois órgãos jurisdicionais irlandeses no âmbito da execução de mandados de detenção europeus emitidos, respetivamente, no processo C‑508/18, pela procuradoria junto do Landgericht Lübeck (Alemanha) para efeitos de procedimento penal contra OG e, no processo C‑82/19 PPU, pela procuradoria de Zwickau (Alemanha) para procedimento penal contra PI.

36.      Os interessados, OG e PI, tinham alegado que as procuradorias que tinham emitido estes mandados de detenção não eram «autoridades judiciárias de emissão» na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 e que, por isso, os referidos mandados eram inválidos.

37.      Os órgãos jurisdicionais de reenvio irlandeses submeteram questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça sobre se o conceito de «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da decisão‑quadro, deve ser interpretado no sentido de que abrange as procuradorias de um Estado‑Membro que são competentes para exercerem o procedimento penal e que estão numa relação de subordinação em relação a um órgão do poder executivo deste Estado‑Membro, como o ministro da Justiça, e podem estar sujeitas, direta ou indiretamente, a ordens ou instruções individuais por parte deste último a respeito da decisão de emissão de um mandado de detenção europeu.

38.      O Tribunal de Justiça deu uma resposta negativa a esta questão.

39.      No seu acórdão, o Tribunal de Justiça realçou antes de mais o princípio de que os termos «autoridade judiciária» devem ser objeto de uma interpretação autónoma e uniforme. Além disso, referindo‑se à sua jurisprudência anterior, o Tribunal de Justiça sublinhou também que estes termos «não se limitam a designar apenas os juízes ou órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro, mas permitem incluir, de forma mais abrangente, as autoridades chamadas a participar na administração da justiça na ordem jurídica em questão», por oposição, designadamente, aos ministérios ou aos serviços de polícia, que fazem parte do poder executivo (18).

40.      A este propósito, o Tribunal de Justiça decidiu que uma autoridade, como uma procuradoria, que tem competência, no quadro do processo penal, para exercer o procedimento penal contra uma pessoa suspeita de ter cometido uma infração penal a fim de a apresentar a um órgão jurisdicional, deve ser considerada como participante na administração da justiça do Estado‑Membro em causa.

41.      Num segundo momento, o Tribunal de Justiça pronunciou‑se sobre a exigência de independência das autoridades judiciárias de emissão (19).

42.      Depois de ter realçado que o regime do mandado de detenção europeu previa uma «proteção em dois níveis» dos direitos em matéria processual e dos direitos fundamentais de que deve beneficiar a pessoa procurada (20), o Tribunal de Justiça sublinhou o princípio consagrado (nomeadamente) no seu Acórdão Kovalkovas (21), segundo o qual o segundo nível de proteção dos direitos da pessoa interessada «implica que a autoridade judiciária competente, nos termos do direito nacional, para emitir um mandado de detenção europeu fiscaliza, em especial, o cumprimento das condições necessárias a esta emissão e analisa a questão de saber se, à luz das especificidades de cada caso, a referida emissão reveste caráter proporcionado» (22). A este respeito, o segundo nível de proteção comporta, portanto, a fiscalização da legalidade e da proporcionalidade do mandado de detenção europeu assim emitido.

43.      Neste contexto, o Tribunal de Justiça decidiu, nos n.os 74 e 75 do Acórdão OG e PI, a seguir citado in extenso, que:

«[…] a autoridade judiciária de emissão deve poder assegurar à autoridade judiciária de execução que, à luz das garantias dadas pela ordem jurídica do Estado‑Membro de emissão, atua de forma independente no exercício das suas funções inerentes à emissão de um mandado de detenção europeu. Esta independência exige que existam regras estatutárias e organizativas adequadas para garantir que a autoridade judiciária de emissão, no âmbito da adoção de uma decisão de emissão desse mandado de detenção, não corra nenhum risco de estar sujeita nomeadamente a uma instrução individual da parte do poder executivo.

Além disso, quando o direito do Estado‑Membro de emissão atribui a competência para emitir um mandado de detenção europeu a uma autoridade que, embora participando na administração da justiça desse Estado‑Membro, não é ela mesma um órgão jurisdicional, a decisão de emitir esse mandado de detenção e, nomeadamente, o caráter proporcionado dessa decisão devem poder estar sujeitos, no referido Estado‑Membro, a um recurso judicial que cumpra plenamente as exigências inerentes a uma proteção judicial efetiva.»

44.      No que respeita ao risco de que o poder executivo possa exercer uma influência sobre a procuradoria num caso individual, o Tribunal de Justiça precisou ainda, nos n.os 85 e 87 do referido Acórdão OG e PI, que:

«Esta consideração não pode ser posta em causa pelo facto de, como alegou o Governo alemão na audiência no Tribunal de Justiça, a decisão das procuradorias, como as que estão em causa no processo principal, de emitir um mandado de detenção europeu poder ser objeto de um recurso pela pessoa em causa nos órgãos jurisdicionais alemães competentes.

[…]

Com efeito, embora essa via de recurso permita assegurar que o exercício das funções da procuradoria está sujeito à possibilidade de um controlo judicial a posteriori, uma eventual instrução individual do ministro da Justiça relativamente às procuradorias aquando da emissão do mandado de detenção europeu continua a ser, em todo o caso, permitida pela lei alemã.»

45.      Estas afirmações do Tribunal de Justiça ecoam no Acórdão PF (23), proferido no mesmo dia que o Acórdão OG e PI e que se refere, por seu turno, à independência do procurador‑geral da Lituânia. Observo que os n.os 52 e 53 do Acórdão PF são idênticos aos n.os 74 e 75 do Acórdão OG e PI.

46.      Embora, no referido Acórdão OG e PI, o Tribunal de Justiça tenha considerado que as procuradorias alemãs não cumpriam o requisito de independência acima referido, considerou todavia, no Acórdão PF, que o procurador da Lituânia estava protegido de qualquer influência exterior e que o seu estatuto constitucional podia assegurar «não apenas a objetividade da sua função», mas também uma garantia de independência em relação ao poder executivo no âmbito da emissão de um mandado de detenção europeu (24).

47.      Há agora que aplicar os ensinamentos decorrentes desta jurisprudência no contexto do presente reenvio prejudicial.

 Autoridade judiciária de emissão, neste caso concreto à luz do artigo 6.o, n.o 1, da DecisãoQuadro 2002/584

48.      Um organismo nacional como a procuradoria austríaca é uma autoridade judiciária na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584?

49.      À luz das observações escritas das partes e das suas alegações na audiência, verifica‑se que o facto de a referida procuradoria poder estar sujeita a instruções individuais do poder executivo não a impede de emitir validamente um mandado de detenção europeu, na medida em que este esteja sujeito a confirmação prévia e sistemática por um órgão jurisdicional (25). Realço a este propósito que, no direito austríaco, o mandado de detenção europeu só pode produzir efeitos jurídicos a partir da referida confirmação. Um mandado de detenção europeu desprovido de confirmação (na sequência da recusa de confirmação pelo juiz requerido) é ineficaz.

50.      Há que constatar, em primeiro lugar, que esta procuradoria é uma autoridade que participa na administração da justiça penal (26), na medida em que, no âmbito do processo penal, dispõe da competência para exercer a perseguição penal de uma pessoa suspeita de ter cometido uma infração penal, a fim de a apresentar a um órgão jurisdicional (27).

51.      Com efeito, como decorre do despacho de reenvio, mas também das observações escritas e orais do Governo austríaco, no direito penal austríaco a acusação incumbe à procuradoria, à qual compete assim recolher previamente as informações necessárias. A procuradoria desempenha um papel de direção no âmbito do inquérito criminal. A procuradoria é responsável pelo bom andamento do processo e é detentora dos autos. Neste contexto, a referida procuradoria pode dar ordens à polícia criminal encarregada das investigações ou — se for mais eficaz — efetuar ela própria as diligências de inquérito.

52.      Ao emitir um mandado de detenção europeu no quadro do procedimento de inquérito (que precede a constituição de arguido), a procuradoria ordena a detenção, sem prejuízo da confirmação judicial referida no § 29, n.o 1, primeiro período, da EU‑JZG (sendo esta suscetível de recurso, nos termos do § 87, n.o 1, do StPO, ao contrário da própria decisão da procuradoria).

53.      Por esta razão, a procuradoria austríaca é suscetível de assumir o papel de autoridade judiciária de emissão, na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, desde que esteja cumprido o critério da independência realçado pelo Acórdão OG e PI. Voltarei a este elemento na sequência das presentes conclusões (28).

54.      Antes de examinar as garantias de independência no contexto da emissão de um mandado de detenção europeu pela referida procuradoria, devo, porém, clarificar o ponto seguinte. Contrariamente ao que os Governos austríaco e alemão, bem como a Comissão, pareceram afirmar ao referirem‑se ao Acórdão Özçelik (29), parece‑me que não se pode qualificar, por equiparação, o tribunal encarregado da confirmação judicial do mandado de detenção europeu como autor efetivo do referido mandado, por três razões.

55.      Em primeiro lugar, saliento que o procedimento controvertido no processo Özçelik implicava um mandado de detenção nacional emitido por um serviço de polícia húngaro e «homologado» pelo Ministério Público. Neste contexto, o Tribunal de Justiça considerou que a decisão pela qual o Ministério Público tinha homologado o mandado de detenção emitido pelo serviço de polícia em causa constituía o fundamento do mandado de detenção europeu emitido neste contexto. O Tribunal de Justiça acrescentou que a validação, pelo Ministério Público, do mandado de detenção emitido por este serviço de polícia era um ato jurídico pelo qual o Ministério Público controlava e confirmava esse mandado de detenção. Na sequência desta homologação, que constava do mandado de detenção europeu, tinha de se considerar o Ministério Público, por equiparação, como responsável da emissão do mandado de detenção nacional.

56.      Deve observar‑se a este respeito que, contrariamente ao Ministério Público, tal serviço de polícia nunca poderia ser qualificado como autoridade judiciária, na medida em que se integra estruturalmente no executivo (30). É precisamente por esta razão que o Ministério Público, pelo mecanismo da homologação, era a única autoridade judiciária em condições de emitir validamente um mandado de detenção europeu na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584.

57.      No caso em apreço, como já afirmei anteriormente no n.o 53, supra, a procuradoria austríaca pode ser uma autoridade que participa na administração da justiça penal, com competência para emitir um mandado de detenção europeu. Ipso facto, a situação de tal procuradoria não é comparável à do serviço de polícia em causa no processo Özçelik.

58.      Em segundo lugar, deve observar‑se que, no regime processual instituído pelo legislador austríaco, há uma distinção muito clara entre a fase de inquérito criminal (que precede a constituição de arguido), no âmbito da qual a procuradoria exerce uma função de direção para reunir os elementos de prova necessários, e o processo principal, no qual a direção do processo compete ao tribunal competente (que, nesta qualidade, está habilitado a ordenar uma detenção por meio do mandado de detenção europeu, eventualmente mediante proposta da procuradoria).

59.      Na fase de inquérito, a procuradoria e o tribunal encarregado da confirmação de um mandado de detenção europeu exercem prerrogativas de natureza diferente. A iniciativa da emissão do mandado de detenção compete à procuradoria (que ordena a detenção, nos termos do § 171 do StPO). A este título, é a procuradoria que é «gestora do processo» (31) e que determina, nomeadamente, a oportunidade de tal medida (32). Neste contexto, a missão do tribunal consiste essencialmente em examinar a legalidade e a proporcionalidade da decisão tomada pela procuradoria (expressa, na prática, num formulário), nos termos do § 5, n.os 1 e 2, do StPO. Neste contexto, o tribunal examina o dossiê que lhe foi transmitido integralmente (o qual contém cópia das instruções dirigidas à procuradoria por instâncias superiores como o poder executivo). Se o entender necessário, o tribunal pode ordenar ou efetuar diligências complementares neste contexto. Se, no termo desta fiscalização, o tribunal concluir pela confirmação, esta reveste a forma de uma simples frase acrescentada no formulário. A confirmação não é acompanhada de uma ordem à procuradoria quanto à execução da medida em causa: o tribunal limita‑se a fixar um prazo de validade da confirmação (cujo incumprimento implica a caducidade da medida em causa). Uma vez dada a confirmação, é à procuradoria que incumbe assinar o mandado de detenção europeu, aplicá‑lo e transmiti‑lo ao Estado‑Membro de execução. A procuradoria poderia, por exemplo, decidir não proceder à aplicação e à transmissão do mandado assim confirmado.

60.      Tal como o Governo austríaco expôs nas suas observações escritas e nas suas alegações na audiência, a repartição de competências entre a procuradoria e o tribunal resulta de uma reforma do direito penal austríaco que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2008. Na sequência dessa reforma, a função anteriormente exercida pelos juízes de instrução foi confiada à procuradoria — tendo esta transferência de poderes sido contrabalançada pela instituição de uma supervisão judicial (a confirmação).

61.      Finalmente, em terceiro lugar, há que realçar que, em conformidade com o artigo 6.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2002/584, cada Estado‑Membro informa o Secretariado‑Geral do Conselho da autoridade judiciária competente, nos termos do respetivo direito nacional, para emitir um mandado de detenção europeu. Verifica‑se que, em 28 de janeiro de 2008 (v. documento do Conselho n.o 5711/08), a República da Áustria declarou que a autoridade judiciária competente na aceção dessa disposição era a procuradoria (33) do lugar da sede de um Landesgericht (Tribunal Regional).

62.      No decurso da audiência, as partes questionaram‑se nomeadamente sobre a possibilidade de haver uma «dupla» autoridade de emissão no sistema austríaco, constituída pela procuradoria e pelo tribunal (o que implica que a informação comunicada ao Secretariado‑Geral do Conselho pela República da Áustria seria parcialmente inexata). Isto suscita também a questão de saber se a Decisão‑Quadro 2002/584, que se refere à autoridade competente no singular, admite essa estrutura binária ou complexa, suscetível de diluir a responsabilidade da emissão de um mandado de detenção europeu.

63.      Na minha opinião, há que atender à informação transmitida ao Secretariado‑Geral do Conselho pelo Governo austríaco. Com efeito, é ao Estado‑Membro em causa que compete designar — nos termos do artigo 6.o, n.o 3, da decisão‑quadro — a autoridade competente segundo o seu direito interno. Parece‑me que não cabe ao Tribunal de Justiça, decidindo a título prejudicial, nem às autoridades do Estado‑Membro de execução completar ou corrigir as informações devidamente notificadas ao Conselho pelo Estado‑Membro de emissão e decidir em conformidade quanto à estrutura (potencialmente) binária ou complexa da referida autoridade de emissão.

64.      No meu entender, por todas estas razões, parece bastante artificial considerar o tribunal — que só intervém a jusante, na medida em que a direção da fase de inquérito compete à procuradoria — como autor do mandado de detenção europeu. O facto de o eventual recurso interposto pela pessoa em causa ter como objeto a confirmação judicial (e não a decisão da procuradoria stricto sensu) não me parece ter relevância a este respeito. Contrariamente à posição defendida pela Comissão na audiência, considero que a procuradoria é o autor do mandado, mesmo se, de certa forma, a responsabilidade dessa decisão é partilhada com o juiz que autoriza a sua aplicação e cuja decisão é, por esta razão, recorrível.

65.      Por conseguinte, não partilho do entendimento do Governo austríaco, segundo o qual a confirmação judicial permite equiparar o tribunal ao autor do mandado de detenção nacional ou europeu.

66.      Na minha opinião, a procuradoria é, por isso, a autoridade que emite o mandado de detenção europeu no sistema penal austríaco. É, assim, necessário examinar a sua posição, nomeadamente a sua independência, tendo porém em conta o mecanismo de confirmação judicial instituído pelo § 29, n.o 1, primeiro período, da EU‑JZG.

 Exigência de independência da autoridade judiciária de emissão

67.      Tal como já realcei anteriormente, o Tribunal de Justiça, no seu Acórdão OG e PI, constatou que o sistema do mandado de detenção europeu comporta uma proteção em dois níveis dos direitos em matéria processual e dos direitos fundamentais de que deve beneficiar a pessoa procurada. Esta deve beneficiar de proteção jurisdicional, em primeiro lugar, no momento da adoção de uma decisão nacional, como um mandado de detenção nacional, e, em segundo lugar, no momento da emissão do mandado de detenção europeu (34).

68.      No cerne do processo em causa coloca‑se a questão de saber se o sistema austríaco pode garantir os direitos da pessoa afetada com plena independência, à luz dos requisitos inerentes a uma proteção jurisdicional efetiva.

 Conceito de «independência» no sistema austríaco à luz do Acórdão OG e PI

69.      O Tribunal de Justiça decidiu que «[c]om efeito, é à “autoridade judiciária de emissão”, referida no artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, ou seja, a entidade que, em última análise, toma a decisão de emitir o mandado de detenção europeu, que incumbe assegurar esse segundo nível de proteção […], mesmo quando este mandado de detenção europeu se baseie numa decisão nacional proferida por um juiz ou órgão jurisdicional». Assim, a «autoridade judiciária de emissão» deve ser independente, o que significa que não pode «[…] correr o risco de que o seu poder decisório seja objeto de ordens ou de instruções externas, nomeadamente da parte do poder executivo, de forma a que não exista nenhuma dúvida quanto ao facto de a decisão de emitir o mandado de detenção europeu ser da responsabilidade desta autoridade e não, em última análise, do referido poder» (35).

70.      Como já afirmei, o Tribunal de Justiça constatou que este conceito de independência assenta essencialmente em dois elementos. A autoridade judiciária de emissão deve poder assegurar à autoridade judiciária de execução que existem no EstadoMembro a que pertence, regras estatutárias e organizativas adequadas para garantir que a autoridade judiciária de emissão, no âmbito da adoção de uma decisão de emissão desse mandado de detenção, não corra nenhum risco de estar sujeita nomeadamente a uma instrução individual por parte do poder executivo. Além disso, quando a autoridade judiciária de emissão é um organismo que  não é ele mesmo um órgão jurisdicional (a exemplo de uma procuradoria, como acontece no caso vertente), a decisão de emitir um mandado de detenção e, nomeadamente, o caráter proporcionado dessa decisão devem poder estar sujeitos, no referido Estado‑Membro, a um recurso judicial que cumpra plenamente as exigências inerentes a uma proteção judicial efetiva (36).

71.      A discussão na audiência permitiu concluir que o sistema austríaco de confirmação judicial da decisão da procuradoria quanto à emissão de um mandado de detenção europeu é atípico em relação aos regimes vigentes noutros Estados‑Membros. Apesar disso, considero que tal sistema nacional é compatível com as exigências do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 (37).

72.      Segundo as informações constantes do despacho de reenvio, as disposições legais pertinentes do direito austríaco preveem que, no âmbito da fiscalização jurisdicional efetuada com vista à confirmação, o juiz competente examina a questão de saber se a decisão da procuradoria respeita as exigências legais, incluindo à luz dos direitos fundamentais, e se a referida decisão é proporcionada (38), tendo em conta ao mesmo tempo o contexto factual dessa decisão (39). Além disso, a pessoa procurada tem o direito de interpor recurso da confirmação em si mesma (40).

73.      Parece‑me que, no caso em apreço, tendo em conta os elementos assinalados no despacho de reenvio, e bem assim nas observações escritas e orais do Governo austríaco, tal sistema nacional (incluindo, nomeadamente, o procedimento de confirmação) é suscetível de garantir um exame rigoroso da decisão da procuradoria pelo juiz chamado a confirmá‑la. O objetivo desta fiscalização jurisdicional é verificar a conformidade da emissão do mandado de detenção europeu com as exigências legais aplicáveis, inclusivamente do ponto de vista da proporcionalidade. No meu entender, a finalidade da fiscalização efetuada pelo juiz não é verificar a eventual existência de instruções dirigidas à procuradoria pelo poder executivo num caso particular (embora, segundo o Governo austríaco, tais instruções devam ser formuladas por escrito e juntas aos autos do procedimento penal que são transmitidos ao juiz competente para a confirmação) (41). A nuance é subtil, mas importante. Na minha opinião, é conveniente, antes de mais, que a fiscalização jurisdicional efetuada permita ao juiz chamado a decidir constatar o respeito global das exigências de legalidade. O sistema em causa deve garantir que a autoridade judiciária em causa emitiu o mandado de detenção europeu em plena conformidade com o direito. Desse modo, tal sistema deve permitir eliminar as consequências ilícitas do poder de dar instruções de que goza o executivo, impedindo a aplicação de decisões ilegais da procuradoria, graças à fiscalização prévia do juiz (42).

74.      Considero que um tal sistema assegura o respeito do fundamento em que assenta o regime do mandado de detenção europeu instituído pela Decisão‑Quadro 2002/584, a saber, a confiança mútua entre os Estados‑Membros no quadro da sua cooperação em matéria penal (43).

75.      Por razões de exaustividade, acrescento que, se existisse um risco de a procuradoria receber instruções do poder executivo posteriores à confirmação e relativas à aplicação e à transmissão do mandado de detenção europeu ao Estado‑Membro de execução (não estando este risco provado, de resto, no caso vertente), incumbiria às autoridades desse Estado‑Membro de execução examinar esta questão e tirar daí as consequências, se necessário. Em todo o caso, observo que tal risco poderia existir em qualquer outro regime de emissão do mandado de detenção europeu e que, de resto, a falta de aplicação e de transmissão, do mandado de detenção pelas autoridades do Estado‑Membro de emissão, não é de molde a violar os direitos da pessoa procurada — sendo este, todavia, o objeto da nossa análise neste caso.

 Condições mencionadas no Acórdão OG e PI

76.      O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se as condições mencionadas nos n.os 74 e 75 do Acórdão OG e PI devem ser entendidas como cumulativas ou alternativas.

77.      O Governo alemão sustenta que tanto a conclusão a que o Tribunal de Justiça chegou no Acórdão OG e PI quanto às procuradorias alemãs como o teor dos n.os 74 e 75 do referido acórdão (que contém os termos «além disso») apontam no sentido de uma leitura cumulativa destas duas condições. Por seu turno, o Governo austríaco entende que não há que examinar a relação entre os n.os 74 e 75 do Acórdão OG e PI dado que, no caso concreto, é o órgão jurisdicional ao qual cabe confirmação do mandado de detenção que deve ser considerado responsável pela respetiva emissão, privando assim esta questão da sua pertinência. Por fim a Comissão considera que se trata de duas questões distintas, que não têm nenhuma relação cumulativa ou alternativa entre si, mas que, pelo contrário, devem ser apreciadas segundo os seus próprios critérios e exigências. Segundo a Comissão, trata‑se de exigências jurídicas aplicáveis, por um lado, à emissão válida de um mandado de detenção europeu e, por outro, à proteção jurídica contra os mandados de detenção europeus assim emitidos.

78.      À primeira vista, considero que, em conformidade com jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, se deve proceder à análise tendo em conta simultaneamente os termos do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, o contexto em que o mesmo se insere e o objetivo prosseguido por esta decisão‑quadro (44). Além disso, observo que, no âmbito do processo previsto no artigo 267.o TFUE, o Tribunal de Justiça, quando faz uma interpretação do direito da União no quadro concreto de um litígio pendente num órgão jurisdicional nacional, limita‑se a deduzir da letra e do espírito deste direito o significado das normas que o mesmo estabelece, estando reservada ao órgão jurisdicional nacional a aplicação das normas assim interpretadas ao caso concreto (45).

79.      Por isso, no caso vertente, é ao Tribunal de Justiça que compete interpretar o artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 e fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio os critérios de análise necessários para confirmar que o sistema nacional controvertido é compatível com as exigências da referida decisão‑quadro. É ao Tribunal de Justiça que compete clarificar as normas de verificação destacadas pela Grande Secção no Acórdão OG e PI. A este respeito, não se trata de impor exigências adicionais em relação à disposição em causa, mas de elucidar as exigências que decorrem do próprio conceito de «autoridade judiciária de emissão».

80.      Na minha opinião, as duas condições mencionadas nos n.os 74 e 75 do Acórdão OG e PI são pertinentes para a apreciação da fiscalização jurisdicional exercida pelo juiz que deve decidir da confirmação da decisão da procuradoria. Partilho a posição da Comissão de que não parece adequado qualificar estas condições como «alternativas» ou «cumulativas», na medida em que têm um objeto diferente e devem ser apreciadas segundo os seus próprios critérios e exigências. Por esta razão, considero que o Tribunal de Justiça destacou deste modo duas etapas necessárias na avaliação da fiscalização jurisdicional da decisão da procuradoria.

81.      Por conseguinte, sem verificação das garantias de independência da autoridade habilitada para emitir um mandado de detenção europeu no ordenamento jurídico do Estado‑Membro de emissão e da proporcionalidade do mandado de detenção europeu em causa, este não deveria produzir efeitos jurídicos.

 Garantias

82.      Deve observar‑se desde já que é à autoridade judiciária de emissão que compete comprovar o respeito das exigências do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 no Estado‑Membro de emissão. Subscrevo inteiramente a abordagem defendida pelo meu saudoso colega e amigo, o advogado‑geral Y. Bot, que sublinhou, nas conclusões que apresentou no processo Bob‑Dogi, que:

«Em nossa opinião, o enquadramento drástico dos motivos para a não execução do mandado de detenção europeu pressupõe que haja, em contrapartida, garantias processuais concretas e efetivas dos direitos de defesa no Estado‑Membro de emissão do mandado de detenção europeu, sem as quais se romperia o indispensável equilíbrio, inerente à construção de um espaço judiciário europeu, entre as exigências da eficácia da justiça penal e os imperativos da salvaguarda dos direitos fundamentais.» (46)

83.      Assim, cada sistema nacional deve poder apresentar garantias processuais totalmente conformes com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») (47). É o que decorre da jurisprudência constante, segundo a qual o mandado de detenção europeu se baseia no princípio do reconhecimento mútuo (48). O princípio do reconhecimento mútuo, que constitui, como resulta do sexto considerando da Decisão‑Quadro 2002/584, a «pedra angular» da cooperação judiciária em matéria penal, encontra a sua expressão no artigo 1.o, n.o 2, da referida decisão‑quadro, segundo o qual os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu (49).

84.      No que respeita às exigências de independência e de proporcionalidade a respeito do artigo 6.o, n.o 1, da decisão‑quadro, deve observar‑se que a primeira abrange os direitos fundamentais da pessoa procurada (50). A segunda visa garantir que as autoridades judiciárias dos Estados‑Membros não perseguem a referida pessoa por infrações menores (51). Quanto a esta segunda exigência, admite‑se geralmente que a questão do controlo da proporcionalidade constitui uma das dificuldades maiores com as quais o sistema do mandado de detenção europeu se confronta desde o início da sua aplicação. Agora, na sequência do Acórdão OG e PI, é claro que o controlo da proporcionalidade é uma exigência fundamental (52).

85.      O Tribunal de Justiça já realçou as exigências de independência e de proporcionalidade que devem ser aplicadas quando um Estado‑Membro de emissão atribui a competência para a emissão do mandado de detenção europeu a uma autoridade que, ao mesmo tempo que participa na administração da justiça desse Estado‑Membro, não é em si mesma um órgão jurisdicional (como no caso vertente), à luz dos objetivos e da economia da decisão‑quadro (53).

86.      Na minha opinião, se o Tribunal de Justiça precisasse as normas de referência a seguir a este respeito, seria mais simples decidir a questão de saber se uma autoridade nacional habilitada a emitir um mandado de detenção europeu cumpre as condições do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584. A este respeito, sublinho que é imperativo prever garantias processuais na fase da emissão do mandado de detenção europeu.

87.      No meu entender, quando o ordenamento jurídico do Estado‑Membro de emissão admite que a decisão de emitir o mandado de detenção europeu seja tomada por uma autoridade que não é ela própria um órgão jurisdicional, mas exige que a referida decisão seja confirmada por um órgão jurisdicional, é de primordial importância que o referido Estado possa demonstrar que a fiscalização jurisdicional assim estabelecida não consiste em conceder um simples «nihil obstat», sem um verdadeiro exame da decisão inicial de um organismo como uma procuradoria.

88.      Acrescentarei que, quando a autoridade judiciária que tomou a decisão de emitir o mandado de detenção europeu é uma procuradoria suscetível de estar sujeita a instruções, designadamente (como no caso em apreço) do poder executivo, é necessário que a confirmação judiciária de tal decisão ocorra antes de este mandado de detenção produzir efeitos jurídicos.

89.      Por fim, dado que a emissão de um mandado de detenção europeu é suscetível de violar o direito à liberdade da pessoa em causa, consagrado no artigo 6.o da Carta, parece‑me que o sistema nacional de confirmação deveria permitir à pessoa procurada ser ouvida num tribunal para contestar a validade dessa decisão em conformidade com o artigo 47.o da Carta.

 Aplicação neste caso concreto

90.      Quais são as consequências da decisão do Tribunal de Justiça no Acórdão OG e PI para o litígio no processo principal?

91.      Na minha opinião, o sistema austríaco difere claramente do sistema alemão que esteve na origem daquele acórdão em aspetos essenciais (54).

92.      É verdade que as procuradorias estão subordinadas ao poder executivo na hierarquia do sistema austríaco. Com efeito, segundo as informações fornecidas no despacho de reenvio, as procuradorias estão diretamente subordinadas às procuradorias regionais e sujeitas às suas instruções e as procuradorias regionais e o procurador‑geral, por seu turno, estão subordinados ao ministro federal da Justiça.

93.      Porém, como o próprio órgão jurisdicional de reenvio realça, o procedimento de emissão de um mandado de detenção europeu na Áustria distingue‑se das circunstâncias que deram lugar ao Acórdão OG e PI. Em primeiro lugar, o sistema austríaco prevê a confirmação judicial do mandado de detenção europeu (confirmação que ocorreu efetivamente no caso em apreço). Em segundo lugar, esta confirmação judicial implica a verificação do respeito dos critérios da legalidade e da proporcionalidade (em conformidade com o § 5, n.os 1 e 2, do StPO). Em terceiro lugar, o procedimento de confirmação judicial é regido por lei; se forem necessárias diligências de inquérito complementares para decidir sobre a confirmação do mandado de detenção, o órgão jurisdicional requerido pode ordenar à polícia criminal que as efetue ou efetuá‑las ex officio (55). Por fim, em quarto lugar, a confirmação pode ser objeto de recurso jurisdicional, nos termos do § 87, n.o 1, do StPO (56). Considero que tal recurso é um elemento que cumpre perfeitamente as exigências inerentes a uma proteção jurisdicional efetiva.

94.      Observo, além disso, que a confirmação judicial ocorre antes de a decisão da procuradoria produzir os seus efeitos.

95.      À luz das informações fornecidas no despacho de reenvio, nas observações escritas e orais do Governo austríaco, bem como nas respostas que este deu às questões colocadas pelo Tribunal de Justiça na audiência, parece‑me que, por força da legislação austríaca, os órgãos jurisdicionais nacionais estão vinculados a proceder a um exame aprofundado e rigoroso de cada mandado que lhes é submetido e dos autos do processo penal relativos ao mesmo. Nesta fiscalização jurisdicional, devem ser observados os critérios da legalidade e da proporcionalidade.

96.      Uma vez que o sistema instituído pela Decisão‑Quadro 2002/584 se baseia num grau de confiança elevado entre os Estados‑Membros, o que implica uma presunção de respeito dos direitos consagrados na Carta por todos os Estados‑Membros, parece‑se que não se pode pôr em causa, até prova em contrário, a conformidade com a Carta e com a referida decisão‑quadro de um sistema legal como o que está aqui em causa, que sujeita a emissão de um mandado de detenção europeu pela procuradoria à fiscalização jurisdicional prévia. Só pode justificar‑se a elisão desta presunção à luz de elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados relativos ao funcionamento do sistema judicial no Estado‑Membro de emissão (57), que constituam essa prova em contrário — elementos que aparentemente não existem neste caso.

97.      Por isso, considero que, à luz dos elementos submetidos à apreciação do Tribunal de Justiça, um regime como o que vigora atualmente na Áustria é compatível com as exigências do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584.

98.      Concluo do exposto que compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, tendo em conta todas as circunstâncias do processo principal, se o sistema do Estado‑Membro de emissão em causa prevê as garantias processuais necessárias para salvaguardar os direitos de defesa da pessoa visada pelo mandado de detenção europeu e assegurar a fiscalização da proporcionalidade deste mandado, em conformidade com as exigências do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584. Num caso como o do processo principal, este sistema nacional deve conter os seguintes elementos: (i) a decisão inicial de emissão do mandado de detenção europeu deve ser objeto de fiscalização jurisdicional, em cujo contexto o órgão jurisdicional requerido procede a um exame rigoroso da referida decisão, antes de a confirmar; (ii) esta fiscalização jurisdicional deve ser feita antes de o referido mandado produzir efeitos jurídicos; e (iii) a confirmação do mandado de detenção europeu (resultante desta fiscalização jurisdicional) deve ser recorrível em si mesma.

 Conclusão

99.      À luz de todas as considerações expostas, entendo que deve ser dada a seguinte resposta à questão dirigida ao Tribunal de Justiça pelo Kammergericht Berlin (Tribunal Regional Superior de Berlim, Alemanha):

Compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, tendo em conta todas as circunstâncias do processo em causa, nos termos do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009: (i) Se foi uma autoridade judiciária que emitiu o mandado de detenção europeu neste caso concreto; (ii) se esta autoridade judiciária agiu em completa independência e (iii) se a referida autoridade apreciou a legalidade e a proporcionalidade da decisão de emitir tal mandado.

Num caso como o do processo principal, podem ser invocados os seguintes elementos para concluir que o sistema do Estado‑Membro de emissão cumpre as exigências inerentes a uma proteção jurisdicional efetiva:

–        A decisão inicial de emissão do mandado de detenção europeu é objeto de fiscalização jurisdicional, em cujo contexto o órgão jurisdicional requerido procede a um exame rigoroso da referida decisão antes de a confirmar;

–        Esta fiscalização jurisdicional é feita antes de o referido mandado produzir efeitos jurídicos;

–        a confirmação do mandado de detenção europeu (resultante desta fiscalização jurisdicional) deve ser recorrível em si mesma.


1      Língua original: francês.


2      Acórdão de 27 de maio de 2019 (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau) (C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456; a seguir «Acórdão OG e PI»).


3      Decisão‑Quadro do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24) (a seguir «Decisão‑Quadro 2002/584»).


4      Há que assinalar três pedidos de decisão prejudicial (C‑625/199 PPU, C‑626/19 PPU e C‑627/199 PPU), apresentados em 22 de agosto de 2019 pelo mesmo órgão jurisdicional (o rechtbank Amsterdam, Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão, Países Baixos), sobre a mesma problemática jurídica.


5      V. artigo 2.o, n.o 2, 18.o travessão.


6      V. n.o 93 das presentes conclusões.


7      V. n.os 9 e 10 das presentes conclusões.


8      No seu despacho de reenvio, o órgão jurisdicional de reenvio refere‑se (no n.o 22) a uma declaração feita pelo Governo austríaco. Parece‑me que se trata provavelmente da declaração referida no documento do Conselho de 12 de junho de 2019, intitulado «Judgments of the CJEU of 27 May 2019 in joined cases C‑508/18 and C‑82/19 PPU and in case C‑509/18 — public prosecutors offices acting as judicial authorities — Exchange of views on the follow‑up — Paper by the Presidency», documento n.o ST 9974 2019, p. 13.


9      Tal como definido anteriormente (v. nota 2).


10      V. n.os 11 a 15 das presentes conclusões.


11      V. n.os 76 a 81 das presentes conclusões.


12      Acórdão de 30 de maio de 2013, F (C‑168/13 PPU, EU:C:2013:358, n.o 31).


13      V. Acórdão de 12 de fevereiro de 2019, TC (C‑492/18 PPU, EU:C:2019:108, n.o 30 e jurisprudência aí referida).


14      V. n.os 24 e 25 das presentes conclusões.


15      Acórdão de 16 de julho de 2015, Lanigan (C‑237/15 PPU, EU:C:2015:474, n.o 37).


16      V. o artigo 2.o, n.o 2, 18.o travessão, da Decisão‑Quadro 2002/584. Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio informa que o interessado teria cometido, pelo menos, uma tentativa de roubo em coautoria com um cúmplice e usando uma faca para intimidar um terceiro (v. n.os 4 e 17 das presentes conclusões).


17      Acórdão OG e PI (n.os 85 a 87).


18      Acórdão de 10 de novembro de 2016, Poltorak (C‑452/16 PPU, EU:C:2016:858, n.os 33 e 35); e de 10 de novembro de 2016, Kovalkovas (C‑477/16 PPU, EU:C:2016:861, n.os 34 e 36).


19      V. n.o 76 e seguintes das presentes conclusões.


20      V. n.o 67 do Acórdão OG e PI.


21      V. Acórdão de 10 de novembro de 2016, C‑477/16 PPU, EU:C:2016:861, n.o 47.


22      V. n.o 71 do Acórdão OG e PI.


23      Acórdão de 27 de maio de 2019 (procurador‑geral da Lituânia) (C‑509/18, EU:C:2019:457).


24      Ibidem, n.os 55 e 56. Todavia, o Tribunal de Justiça não se pronunciou sobre a questão de saber se as decisões de emissão de um mandado de detenção europeu tomadas pelo procurador da Lituânia podiam ser objeto de um recurso que cumpra plenamente os requisitos inerentes a uma proteção jurisdicional efetiva: o Tribunal de Justiça convidou o órgão jurisdicional de reenvio a verificar esta questão.


25      A Comissão acrescenta que o referido órgão jurisdicional deve proceder à fiscalização das condições de emissão do mandado de detenção europeu e da sua proporcionalidade.


26      Na aceção visada nos Acórdãos de 10 de novembro de 2016, Poltorak (C‑452/16 PPU, EU:C:2016:858, n.os 33 e 35); e de 10 de novembro de 2016, Kovalkovas (C‑477/16 PPU, EU:C:2016:861, n.os 34 e 36); Acórdão OG e PI (n.o 50).


27      Acórdão OG e PI (n.o 60).


28      V. n.o 67 e seguintes das presentes conclusões.


29      Acórdão de 10 de novembro de 2016, Özçelik (C‑453/16 PPU, EU:C:2016:860).


30      V. Acórdão OG e PI (n.o 50), no qual o Tribunal de Justiça evoca «os ministérios ou autoridades policiais, que fazem parte do poder executivo». V. também o Acórdão de 10 de novembro de 2016, Özçelik (C‑453/16 PPU, EU:C:2016:860, n.o 32).


31      Refiro‑me assim à formulação utilizada pelo Governo austríaco nas suas alegações.


32      Este elemento também foi confirmado pelo Governo austríaco na audiência. A procuradoria conduz o inquérito e está na melhor posição para decidir quanto à oportunidade de emitir um mandado de detenção europeu.


33      As partes precisaram na audiência que esta notificação informava nomeadamente da reforma evocada no n.o 60 das presentes conclusões — que transferiu as competências dos juízes de instrução para a procuradoria. V. também «Statement by the Republic of Austria pursuant to Article 6 of Council Framework Decision 2002/584/JHA of 13 June 2002 on the European arrest warrant and the surrender procedures between Member States, Annex to Council of the European Union, Council Framework Decision 2002/584/JHA on the European arrest warrant and the surrender procedures between Member States ‑ Statement by the Republic of Austria on a change in the competent Authorities, Brussels, 5711/08, 28 January 2008».


34      V. n.o 67 do Acórdão OG e PI. V. igualmente o n.o 42 e a nota 21 das presentes conclusões.


35      Acórdão OG e PI (n.os 72 e 73).


36      Acórdão OG e PI (n.os 74 e 75).


37      V. n.o 66 das presentes conclusões.


38      V. n.o 66 das presentes conclusões.


39      V. n.o 15 das presentes conclusões.


40      V. n.o 14 das presentes conclusões.


41      O Tribunal de Justiça fez referência, a título de exemplo, às instruções individuais por parte do poder executivo (v. Acórdão OG e PI, n.o 74).


42      V. n.o 59 das presentes conclusões.


43      V. décimo considerando da Decisão‑Quadro 2002/584.


44      Acórdão OG e PI (n.o 49 e jurisprudência aí referida).


45      V., mutatis mutandis, Acórdão de 27 de março de 1963, Da Costa e o., 28/62 a 30/62, EU:C:1963:6, p. 76.


46      C‑241/15, EU:C:2016:131, n.o 55.


47      V. nomeadamente o artigo 6.o (Direito à liberdade e à segurança) e o artigo 47.o (Direito à ação e a um tribunal imparcial) da Carta.


48      Acórdão OG e PI (n.os 43 a 46 e jurisprudência aí referida).


49      V. Acórdão de 10 de novembro de 2016, Özçelik (C‑453/16 PPU, EU:C:2016:860, n.o 25 e jurisprudência aí referida).


50      V. décimo segundo considerando e artigo 1.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2002/584.


51      V. Conclusões do advogado‑geral Y. Bot no processo Bob‑Dogi, C‑241/15, EU:C:2016:131, n.os 77 a 83.


52      V. as minhas conclusões no processo Radu (C‑396/11, EU:C:2012:648), n.o 60.


53      V. oitavo considerando da Decisão‑Quadro 2002/584, Acórdão de 10 de novembro de 2016, Kovalkovas (C‑477/16 PPU, EU:C:2016:861, n.o 47) e Acórdão OG e PI (n.o 71).


54      V. n.os 58 e seguintes das presentes conclusões.


55      V. n.o 13 das presentes conclusões.


56      V. n.o 14 das presentes conclusões.


57      V., por analogia, Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (falhas no sistema judicial) (C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.o 61 e jurisprudência aí referida).