Language of document : ECLI:EU:C:2019:100

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NILS WAHL

apresentadas em 6 de fevereiro de 2019(1)

Processo C‑724/17

Vantaan kaupunki

contra

Skanska Industrial Solutions Oy

NCC Industry Oy

Asfaltmix Oy

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Korkein oikeus (Supremo Tribunal, Finlândia)]

«Pedido de decisão prejudicial — Artigo 101.o TFUE — Aplicação privada do direito da concorrência — Responsabilidade civil — Ação de indemnização — Indemnização pelos prejuízos causados por comportamentos contrários ao direito da concorrência da União Europeia — Requisitos prévios para a indemnização — Pessoas responsáveis pelo pagamento da indemnização — Conceito de empresa — Princípio da continuidade económica»






1.        Este processo diz respeito às condições que regulam a responsabilidade civil decorrente de infração ao direito da concorrência da União Europeia, responsabilidade que foi veementemente defendida pelo falecido advogado‑geral W. Van Gerven nas suas conclusões pioneiras que apresentou há cerca de 25 anos no processo Banks (2). Essas conclusões impressionaram‑me na época e são ainda hoje fonte de inspiração. Por isso, é com prazer que termino o meu mandato como advogado‑geral, apresentando umas conclusões neste mesmo domínio e desenvolvo, assim, o legado deixado pelas conclusões apresentadas no processo Banks.

2.        Importantes desenvolvimentos jurisprudenciais (3) e legislativos (4) no campo da responsabilidade civil ocorreram desde as referidas conclusões. No entanto, muitas questões de importância fundamental permanecem sem solução. Uma dessas questões diz respeito às pessoas que podem ser consideradas responsáveis por danos causados por infração ao direito da concorrência.

3.        Na aplicação por iniciativa pública das regras de concorrência da União pelas autoridades da concorrência, é aplicado o princípio da continuidade económica, a fim de ajudar a determinar as pessoas responsáveis pela infração a essas regras. Com base numa interpretação ampla do conceito de «empresa» contido nas disposições do Tratado em matéria de concorrência, este princípio estabelece que a responsabilidade não se limita à entidade jurídica que participou em comportamentos anticoncorrenciais. Em caso de reestruturação ou outras alterações na estrutura societária, uma sanção pecuniária compulsória pode, por exemplo, ser imposta a qualquer entidade que seja idêntica, economicamente, à entidade que infringiu as regras de concorrência da União (5).

4.        No caso em apreço, põe‑se a questão de saber se este princípio fundamental do direito da concorrência da União deve ser aplicado também no contexto da aplicação privada do direito da concorrência da União. Mais especificamente, a questão submetida ao Tribunal de Justiça consiste em saber se, numa ação de indemnização de direito privado, uma empresa que tenha continuado a atividade económica de um participante no cartel pode ser considerada responsável pelo pagamento de uma indemnização pelos danos causados por infração ao artigo 101.o TFUE.

I.      Quadro jurídico

5.        Segundo o direito nacional finlandês, só a entidade jurídica que causou o dano é, em princípio, obrigada a pagar uma indemnização.

6.        De acordo com a legislação nacional finlandesa sobre as sociedades, as sociedades anónimas e de responsabilidade limitada são pessoas coletivas autónomas com o seu próprio património e a sua própria responsabilidade.

7.        Além disso, no que diz respeito aos requisitos prévios para a indemnização no âmbito da responsabilidade extracontratual, segundo o direito finlandês, quem, deliberadamente ou por negligência, causar danos a outrem está obrigado a reparar o dano causado.

II.    Matéria de facto, tramitação e questões prejudiciais

8.        Na Finlândia, entre 1994 e 2002, operou um cartel no mercado do asfalto. Por decisão de 29 de setembro de 2009, o Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo, Finlândia) aplicou sanções pecuniárias a sete empresas por comportamento anticoncorrencial considerado contrário à legislação nacional relativa às restrições à concorrência e (atendendo ao efeito desse cartel no comércio entre os Estados‑Membros) ao atual artigo 101.o TFUE.

9.        Uma das empresas condenadas a pagar uma sanção pecuniária compulsória foi a Lemminkäinen Oyj, com a qual o Vantaan kaupunki (Município de Vantaa, Finlândia, a seguir «Município de Vantaa») tinha celebrado vários contratos para a execução de obras de asfaltagem no período compreendido entre 1998 e 2001.

10.      Ao contrário da Lemminkäinen Oyj, outras empresas envolvidas no cartel, nomeadamente a Sata‑Asfaltti Oy, a Interasfaltti Oy e a Asfalttineliö Oy, foram dissolvidas posteriormente em processos de liquidação voluntária e os seus únicos acionistas, denominados atualmente Skanska Industrial Solutions Oy, NCC Industry Oy e Asfaltmix Oy, adquiriram os ativos das suas filiais e deram continuidade às atividades económicas das referidas filiais.

11.      Com base no princípio da continuidade económica, o Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo) aplicou uma sanção pecuniária compulsória à Skanska Industrial Solutions Oy, pelo seu próprio comportamento e pelo comportamento da Sata‑Asfaltti Oy, à NCC Industry Oy, pelo comportamento da Interasfaltti Oy, e à Asfaltmix Oy, pelo comportamento da Asfalttineliö Oy.

12.      Na sequência da decisão do Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo), o Município de Vantaa intentou uma ação de indemnização no Helsingin käräjäoikeus (Tribunal de Primeira Instância de Helsínquia, Finlândia) contra as empresas que tinham sido condenadas no pagamento de sanções pecuniárias, incluindo a Skanska Industrial Solutions Oy, a NCC Industry Oy e a Asfaltmix Oy.

13.      Nesse processo, o Município de Vantaa pediu que as referidas empresas fossem conjunta e solidariamente condenadas a indemnizar os danos e os prejuízos causados pelos preços excessivos que pagou pelas obras de asfaltagem devido à existência do cartel. A Skanska Industrial Solutions Oy, a NCC Industry Oy e a Asfaltmix Oy contestaram a ação, sustentando, designadamente, que não podiam ser responsabilizadas por danos alegadamente causados por sociedades juridicamente independentes. Consequentemente, alegaram que os pedidos de indemnização deviam ter sido instaurados contra as sociedades dissolvidas no âmbito dos processos de liquidação. No seu entender, dado que os pedidos de indemnização não foram apresentados no âmbito dos processos de liquidação voluntária em que as empresas que tinham participado no cartel foram dissolvidas, as obrigações já tinham prescrito.

14.      O cerne da questão em causa no processo nacional consiste, portanto, em saber se a Skanska Industrial Solutions Oy, a NCC Industry Oy e a Asfaltmix Oy são responsáveis pelo pagamento da indemnização pelos danos causados pelo comportamento anticoncorrencial da Sata‑Asfaltti Oy, da Interasfaltti Oy e da Asfalttineliö Oy. A este respeito, o Helsingin käräjäoikeus (Tribunal de Primeira Instância de Helsínquia) e o Helsingin hovioikeus (Tribunal de Recurso de Helsínquia, Finlândia) têm opiniões diferentes.

15.      O Helsingin käräjäoikeus (Tribunal de Primeira Instância de Helsínquia) declarou que, se o princípio da continuidade económica não for aplicado em tal situação, poderá tornar‑se praticamente impossível ou excessivamente difícil uma pessoa obter a reparação de um prejuízo causado por infração às regras de concorrência pertinentes. É o que acontece, nomeadamente, quando a sociedade que cometeu a infração cessou a sua atividade e foi dissolvida. Nestas condições, o Helsingin käräjäoikeus (Tribunal de Primeira Instância de Helsínquia) considerou que, para garantir a eficácia e preservar o efeito útil do artigo 101.o TFUE, a imputação da responsabilidade pela sanção pecuniária, por um lado, e a imputação da responsabilidade pela reparação do dano, por outro, devem obedecer aos mesmos princípios. Assim, o Helsingin käräjäoikeus (Tribunal de Primeira Instância de Helsínquia) concluiu que a Skanska Industrial Solutions Oy, a NCC Industry Oy e a Asfaltmix Oy eram obrigadas a pagar uma indemnização resultante do comportamento anticoncorrencial da Sata‑Asfaltti Oy, da Interasfaltti Oy e da Asfalttineliö Oy.

16.      Esta decisão foi objeto de recurso para o Helsingin hovioikeus (Tribunal de Recurso de Helsínquia) que declarou que não existiam motivos para aplicar o princípio da continuidade económica a ações de indemnização por infração ao direito da concorrência com base em fundamentos de direito privado. No entender do referido órgão jurisdicional, a necessidade de garantir a eficácia do direito da concorrência da União não pode ser invocada para justificar a interferência nos princípios fundamentais da responsabilidade extracontratual decorrentes da ordem jurídica interna. Os princípios que regulam a aplicação de sanção pecuniária não devem ser aplicados no âmbito de uma ação de indemnização de direito privado, na ausência de disposições mais específicas para esse efeito. Por conseguinte, o Helsingin hovioikeus (Tribunal de Recurso de Helsínquia) negou provimento ao recurso interposto pelo Município de Vantaa, uma vez que se dirigia contra a Skanska Industrial Solutions Oy, a NCC Industry Oy e a Asfaltmix Oy, pelo comportamento da Sata Asfaltti Oy, da Interasfaltti Oy e da Asfalttineliö Oy.

17.      No mesmo processo, o Helsingin hovioikeus (Tribunal de Recurso de Helsínquia) condenou a Lemminkäinen Oyj a indemnizar o Município de Vantaa pelos danos causados pelo cartel. A Lemminkäinen Oyj pagou ao Município a indemnização em que tinha sido condenada.

18.      No entanto, tal como o Município de Vantaa, a Lemminkäinen Oyj pediu autorização para interpor recurso no Korkein oikeus (Supremo Tribunal, Finlândia), tendo o requerimento de interposição de recurso sido deferido. A Lemminkäinen Oyj alega, designadamente, que o montante da indemnização em que foi condenada a pagar deve ser reduzido, uma vez que o Município de Vantaa não pediu uma indemnização às sociedades (agora dissolvidas) envolvidas no cartel. O Município de Vantaa foi autorizado a interpor recurso no Korkein oikeus (Supremo Tribunal), no que respeita à questão de saber se a Skanska Industrial Solutions Oy, a NCC Industry Oy e a Asfaltmix Oy podem ser responsabilizadas civilmente, com base no princípio da continuidade económica.

19.      À luz dos argumentos apresentados, o Korkein oikeus (Supremo Tribunal) deve agora decidir se a obrigação de indemnizar pode ser imputada a uma sociedade que tenha retomado a atividade económica de uma sociedade que participou num cartel que foi subsequentemente dissolvido num processo de liquidação voluntária. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio explica que, no âmbito da responsabilidade extracontratual, nos termos do direito finlandês, se parte do princípio de que só a pessoa coletiva que causou o dano é responsável pela indemnização. Tal se sucede, exceto em certas circunstâncias, quando é considerado necessário «levantar o véu da pessoa coletiva» para se ter a certeza de que a responsabilidade não é indevidamente contornada.

20.      Tendo dúvidas quanto à interpretação correta do direito da União, o Korkein oikeus (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      A pessoa responsável pela reparação dos danos causados por um comportamento contrário ao artigo 101.o TFUE é determinada através da aplicação direta deste artigo ou à luz das regras nacionais?

2)      No caso de os responsáveis pela reparação dos danos serem determinados diretamente com base no artigo 101.o TFUE, respondem pelos danos aqueles que são abrangidos pelo conceito de “empresa” previsto nessa disposição? Para determinar os sujeitos obrigados a pagar uma indemnização, aplicam‑se os mesmos princípios que o Tribunal de Justiça aplicou em processos em matéria de coimas para determinar os responsáveis, e segundo os quais a responsabilidade pode ser baseada, em especial, no facto de pertencerem à mesma entidade económica ou na continuidade económica?

3)      No caso de os responsáveis pela reparação dos danos serem determinados à luz das regras nacionais: viola o requisito da efetividade consagrado no direito da União uma regulamentação nacional nos termos da qual uma sociedade que, após ter adquirido todas as ações de uma sociedade envolvida num cartel proibido pelo artigo 101.o TFUE, dissolve esta última sociedade e prossegue as suas atividades, não responde pelos danos causados pelo comportamento restritivo da concorrência por parte da sociedade dissolvida, apesar de a obtenção de uma indemnização por parte da sociedade dissolvida ser praticamente impossível ou excessivamente difícil? O requisito da efetividade opõe‑se a uma interpretação do direito interno de um Estado‑Membro que subordina a responsabilidade pelo dano à condição de a referida restruturação da empresa ter ocorrido de forma ilegal ou artificial para contornar a obrigação de reparação dos danos causados pelas infrações ao direito da concorrência, ou de outra forma desleal ou, pelo menos, que a sociedade, no momento da reestruturação, tivesse ou devesse ter conhecimento da infração ao direito da concorrência?»

21.      O Município de Vantaa, a Skanska Industrial Solutions Oy (a seguir «Skanska»), a NCC Industry Oy (a seguir «NCC») e a Asfaltmix Oy (a seguir «Asfaltmix»), os Governos finlandês, italiano e polaco e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas. Exceto a Asfaltmix e os Governos italiano e polaco, todas as outras partes apresentaram alegações orais na audiência realizada em 16 de janeiro de 2019.

III. Análise

22.      O caso em apreço incide sobre um aspeto fundamental da aplicação do direito da concorrência da União no âmbito do privado: a zona de interação entre o direito da União e os direitos nacionais dos Estados‑Membros na regulamentação dos pedidos de indemnização por comportamentos contrários ao direito da concorrência da União. Com efeito, os princípios que regem a responsabilidade civil por infração às regras de concorrência da União baseiam‑se em larga medida na jurisprudência do Tribunal de Justiça. No entanto, embora o Tribunal de Justiça tenha deduzido dos Tratados o direito de pedir uma indemnização pelos danos causados por infração às regras da União em matéria de concorrência (6) e tenha dado orientações sobre alguns aspetos mais específicos do direito à reparação do dano (7), a aplicação do direito da concorrência da União no âmbito privado também se baseia no direito privado e nas regras processuais dos Estados‑Membros.

23.      O legislador da União procurou clarificar a interação entre o direito da União e o direito dos Estados‑Membros na Diretiva 2014/104. Trata‑se de um instrumento que não é aplicável ratione temporis ao presente caso. Esta diretiva harmonizou determinados aspetos das ações de indemnização por infrações ao direito da concorrência intentadas nos órgãos jurisdicionais nacionais. Contudo, tal como acontece com a jurisprudência, a diretiva também deixa várias questões de princípio por responder.

24.      Uma dessas questões é saber como (e, especialmente, com que fundamento jurídico) devem ser determinadas as pessoas responsáveis por danos causados por infração ao direito da concorrência da União. No caso em apreço, o Tribunal de Justiça tem a oportunidade de esclarecer esta questão: é chamado a declarar em que medida o direito da União determina como deve ser imputada a responsabilidade nas ações de indemnização de direito privado por infrações ao direito da concorrência intentadas nos órgãos jurisdicionais nacionais.

25.      Antes de abordar esta questão, são necessárias algumas observações preliminares sobre o sistema de aplicação do direito da concorrência da União no âmbito privado.

A.      Introdução: o sistema de aplicação do direito da concorrência da União no âmbito privado

26.      De modo geral, no que diz respeito à responsabilidade extracontratual nos sistemas jurídicos europeus, uma pessoa pode, mediante uma ação de indemnização de direito privado, pedir a reparação dos danos causados por determinado ato ou comportamento. Contudo, dependendo do sistema jurídico, os contornos precisos de tais ações intentadas nos tribunais judiciais são regidos por regras e princípios muito variados. As diferentes tradições jurídicas dos Estados‑Membros da União explicam por que existem divergências, entre outras coisas, no que respeita ao tipo de comportamento que pode implicar responsabilidade (com base, por exemplo, na responsabilidade extracontratual ou responsabilidade objetiva); ao circuito de pessoas que se podem considerar prejudicadas; ao nexo de causalidade; às pessoas que podem ser responsabilizadas pelo dano alegado; e aos tipos de danos que podem ser indemnizados.

27.      No entanto, apesar destas diferenças, na Europa, os pedidos de indemnização tendem a ter uma função essencialmente de reparação e ressarcimento (restitutio ad integrum). Embora a obrigação de pagar uma indemnização também possa ter uma função dissuasora em certos contextos, a responsabilidade no que se refere à indemnização como medida dissuasora (ou sancionária autónoma) de um comportamento indesejado é, indiscutivelmente, um fenómeno menos difundido no panorama jurídico europeu.

28.      Ora, no contexto do direito da concorrência da União, as ações de indemnização tendem a desempenhar ambas as funções. Por um lado, um pedido de indemnização por infração ao direito da concorrência da União tem uma função compensatória. Permite aos particulares obter uma indemnização integral por algum dano alegadamente sofrido por infração ao direito da concorrência da União (8). Por outro lado, um pedido de indemnização emergente do direito privado por danos causados por infração ao direito da concorrência também pode funcionar como elemento dissuasor, complementando, assim, a sua aplicação no âmbito do direito público (aplicação pública).

1.      Importância atribuída na jurisprudência à plena eficácia do direito da concorrência da União e à dissuasão

29.      Ao utilizar a linguagem contundente dos direitos e a eficácia das regras de concorrência do direito da União, o Tribunal de Justiça deu especial ênfase à função dissuasora das ações de indemnização por infração ao direito da concorrência da União.

30.      O Tribunal de Justiça estabeleceu as premissas para um sistema de aplicação privada na União nos seus Acórdãos Courage e Crehan (9) e Manfredi e o. (10) Nesses processos, o Tribunal de Justiça definiu o direito — de qualquer pessoa — de pedir indemnização por danos causados por comportamentos anticoncorrenciais (11).

a)      Dupla função das ações de indemnização por infração ao direito da concorrência

31.      Ora, resulta da jurisprudência que o direito a uma indemnização não foi, no entanto, estabelecido apenas para garantir a reparação dos danos causados por comportamentos anticoncorrenciais. Pelo contrário, o direito à indemnização estava associado à necessidade de garantir a plena eficácia do direito da concorrência da União (12). A este respeito, o Tribunal de Justiça reconheceu expressamente que o direito a uma indemnização reforça a eficácia do direito da concorrência da União ao dissuadir as empresas de celebrar acordos anticoncorrenciais ou de participar noutras práticas e acordos anticoncorrenciais frequentemente dissimulados. Assim, as ações de indemnização nos órgãos jurisdicionais nacionais são também um instrumento para manter uma concorrência efetiva na União (13). Por outras palavras, estas ações visam dissuadir as empresas de adotar comportamentos prejudiciais à concorrência.

32.      Há que salientar que, embora o Tribunal de Justiça tenha estabelecido um direito a indemnização com base no artigo 101.o TFUE, até à data, absteve‑se de definir claramente as condições essenciais da responsabilidade civil. Além disso, é evidente que o quadro processual e material necessário para invocar em tribunal o direito a uma indemnização se insere, por uma questão de princípio, no âmbito do direito interno (14). Como o Tribunal de Justiça já declarou nos Acórdãos Courage e Crehan e Manfredi e o., na falta de regulamentação comunitária na matéria, compete à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro definir regras concretas, isto é, regular as modalidades do exercício do direito de reclamar uma indemnização por danos resultantes de infração ao artigo 101.o TFUE (ou ao artigo 102.o TFUE), incluindo as regras de aplicação do conceito de nexo de causalidade, desde que sejam respeitados os princípios da equivalência e da efetividade (15).

33.      Mas quais as questões relativas a ações de indemnização que são regidas pelo direito da União e quais as que, pelo contrário, são regidas pela ordem jurídica interna dos Estados‑Membros? A meu ver, uma resposta a esta pergunta pode deduzir‑se da jurisprudência mais recente.

b)      Interação entre o direito da União e o direito nacional e a consolidação da dissuasão como objetivo das ações de indemnização por infração ao direito da concorrência

34.      O Acórdão Kone e o. (16) do Tribunal de Justiça contribui para esclarecer esta questão. Neste processo, o Tribunal de Justiça declarou que as vítimas dos chamados «preços de proteção» («umbrellapricing») — pessoas que sofreram indiretamente um prejuízo devido ao aumento de preços resultante de infração ao artigo 101.o TFUE — podem ser indemnizadas por esses danos, mediante uma ação de indemnização de direito privado. Assim, considerou que o artigo 101.o TFUE se opõe a uma norma interna em matéria de nexo de causalidade que exclui logo a possibilidade de pedir uma indemnização por prejuízos sofridos por preços de proteção (17).

35.      Destacam‑se duas questões interligadas.

36.      Em primeiro lugar, no Acórdão Kone e o., o Tribunal de Justiça reiterou que compete à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro regular as modalidades do exercício do direito de exigir uma indemnização pelos danos resultantes de um cartel ou de uma prática proibida pelo artigo 101.o TFUE, incluindo as da aplicação do conceito de nexo de causalidade, desde que sejam respeitados os princípios da equivalência e da efetividade. Ou seja, as regras em causa não devem ser menos favoráveis do que as que regem as ações por infração aos direitos similares conferidos pela ordem jurídica interna e essas regras não devem, na prática, tornar impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União (18).

37.      Tendo isso presente, pode parecer, portanto, que a compatibilidade com o direito da União de qualquer norma interna relativa às ações de indemnização por infração ao direito da concorrência deve ser apreciada com base no clássico critério da equivalência e efetividade. Contudo, há que ter presente que, após ter enunciado essa declaração geral, o Tribunal de Justiça considerou, no contexto particular do direito da concorrência, que a aplicação da norma de direito interno relevante não pode prejudicar a aplicação efetiva do artigo 101.o TFUE(19) Com efeito, como um olhar mais atento revela, a avaliação subsequente é feita por referência à plena eficácia do artigo 101.o TFUE (20).

38.      O raciocínio seguido pelo Tribunal de Justiça parece‑me, claramente, que é mais do que uma apreciação baseada nos princípios da equivalência e da efetividade. No meu entender, esta é uma apreciação da compatibilidade da regra nacional controvertida à luz da plena eficácia de uma disposição do Tratado, a do artigo 101.o TFUE.

39.      A diferença entre uma apreciação baseada nos princípios da equivalência e da efetividade, por um lado, e uma apreciação baseada na plena eficácia do artigo 101.o TFUE, por outro, é importante. Permite delimitar entre as questões que são regidas, respetivamente, pelo direito da União e pelos sistemas jurídicos internos dos Estados‑Membros.

40.      Segundo a leitura que faço da jurisprudência, o critério clássico da equivalência e da efetividade aplica‑se apenas à «regulação das modalidades do exercício do direito de exigir uma indemnização» nos órgãos jurisdicionais nacionais. Por outras palavras, este critério é aplicado em relação a regras que (de uma forma ou de outra) se referem à aplicação do direito a indemnização num tribunal (21). Tais regras devem ser estabelecidas pelos Estados‑Membros.

41.      Em contrapartida, quando estão em causa as condições constitutivas do direito de pedir uma indemnização (como o nexo de causalidade), essas condições são reguladas pelo artigo 101.o TFUE.

42.      É verdade que, no Acórdão Kone e o., o Tribunal de Justiça se absteve de dar uma definição positiva, em matéria de direito da União, do conceito de «nexo de causalidade», ao contrário da proposta da advogada‑geral J. Kokott (22). Ao invés disso, o Tribunal de Justiça abordou cuidadosamente a questão (como muitas vezes sucede) e limitou a sua resposta ao que era estritamente necessário no caso em apreço (23). Deste modo, no que se refere à plena eficácia do artigo 101.o TFUE, o Tribunal de Justiça declarou que essa disposição do Tratado se opõe a uma disposição de direito interno relativa ao nexo de causalidade, que exclui logo a possibilidade de pedir uma indemnização com base na existência de preços de proteção.

43.      Por outras palavras, embora o Tribunal de Justiça tenha optado por deixar a cargo da futura jurisprudência a tarefa de desenvolver o significado do conceito de nexo de causalidade, tal não deve ser entendido no sentido de que os requisitos que constituem a pedra angular de um pedido de indemnização sejam regidos pelo direito nacional.

44.      Em segundo lugar, como corolário imediato da importância conferida à plena eficácia do artigo 101.o TFUE, o Acórdão Kone e o. ligou o fundamento do direito de pedir uma indemnização pelos danos causados por infração ao direito da concorrência da União à dissuasão. Com efeito, ao afastar a aplicabilidade de uma regra que exige um nexo de causalidade direto entre o dano sofrido e o comportamento proibido para determinar de quem é a responsabilidade civil, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 101.o TFUE se opõe a uma norma de direito interno que exclui que as empresas que participem num cartel sejam civilmente responsabilizadas pelos danos causados por um aumento dos preços no mercado como resultado de um comportamento anticoncorrencial (24).

45.      O «dano» causado por preços de proteção é consequência de uma decisão autónoma de fixação de preços tomada por uma pessoa não envolvida no comportamento anticoncorrencial impugnado. Essa decisão pode afetar um elevado número de pessoas. Consequentemente, o número de pessoas que beneficiam do direito de pedir uma indemnização por infração ao direito da concorrência da União diretamente com base no artigo 101.o (ou no artigo 102.o TFUE) aumenta consideravelmente. Tendo isto presente, o Acórdão Kone e o. constitui um passo decisivo na consolidação do papel das ações de indemnização por infração ao direito da concorrência como instrumento destinado a dissuadir as empresas de adotar comportamentos anticoncorrenciais.

2.      É justificada a importância atribuída à dissuasão?

46.      Embora se possa dizer muito sobre o valor prático que traz a solução encontrada no Acórdão Kone e o. para a efetividade global do sistema de aplicação privada, a ênfase dada pelo Tribunal de Justiça à dissuasão geral parece‑me justificada por várias razões. Gostaria de salientar aqui brevemente duas delas.

47.      Em primeiro lugar, como o Tribunal de Justiça observou, a aplicação privada por entre ações de indemnização constitui um meio complementar de dissuadir, e assim impedir, comportamentos anticoncorrenciais, sendo certo que a aplicação pública por si só não é capaz de alcançar este efeito dissuasivo. Tal como acontece no caso da aplicação pública, o principal objetivo da aplicação privada é influenciar o comportamento das empresas no mercado, a fim de as dissuadir de adotar comportamentos anticoncorrenciais.

48.      Por um lado, se os particulares (muitas vezes com conhecimentos em primeira mão de cartéis ou de outros comportamentos anticoncorrenciais) tiverem à sua disposição soluções eficazes de direito privado, aumentará a probabilidade de se detetar um maior número de restrições ilegais e de os infratores serem responsabilizados(25) Isto é, o risco de deteção aumenta consideravelmente. Por outro lado, embora o efeito dissuasivo de um único pedido de indemnização seja provavelmente insignificante, é o número de potenciais requerentes [da indemnização], juntamente com o aumento do risco de deteção, que ajuda a explicar por que razão os mecanismos de aplicação privada (nomeadamente as ações de indemnização) constituem um meio eficaz para garantir a observância das regras de concorrência (26).

49.      Em segundo lugar, cumpre recordar que os danos causados por comportamentos anticoncorrenciais são, geralmente, puramente económicos. Embora, em certos casos, os danos diretos aos interesses económicos de algumas partes possam ser relativamente simples de identificar e provar, vale a pena sublinhar que as infrações às regras de concorrência também implicam danos indiretos e, de modo mais geral, consequências negativas na estrutura e no funcionamento do mercado. É evidente que quantificar ou provar o dano, sobretudo o nexo de causalidade, com base numa sucessão contrafactual de acontecimentos, suscita uma miríade de problemas.

50.      Porém, no fundo, o verdadeiro dano causado por restrições ilegais da concorrência é a perda irrecuperável resultante de tais restrições, isto é, a perda de eficiência no plano económico causada pelo comportamento anticoncorrencial em questão. Isto significa que os danos identificados nas ações de indemnização com base na infração ao direito da concorrência são, na realidade, sinónimo de ineficiências económicas resultantes da infração e o corolário das perdas para a sociedade no seu conjunto, no que respeita à redução do bem‑estar dos consumidores. Em última análise, portanto, a função compensatória de uma ação de indemnização por infração ao direito da concorrência continua, na minha opinião, subordinada à sua função dissuasora.

51.      Atendendo a estas considerações, irei agora debruçar‑me especificamente sobre as questões prejudiciais submetidas pelo Korkein oikeus (Supremo Tribunal).

B.      Quanto às questões prejudiciais

52.      O órgão jurisdicional de reenvio submeteu três questões ao Tribunal de Justiça, duas das quais apresentadas a título subsidiário (consoante a resposta dada à primeira questão prejudicial). As três questões estão intrinsecamente ligadas e procuram esclarecer um assunto específico: o direito da União exige que, numa ação de indemnização de direito privado intentada num órgão jurisdicional nacional, uma pessoa seja autorizada a pedir uma indemnização por danos causados por infração ao direito da concorrência da União a uma empresa que tenha continuado a atividade económica de um participante num cartel? Por outras palavras, o princípio da continuidade económica deve ser aplicado neste contexto?

53.      No meu entender, esta questão exige uma resposta afirmativa.

54.      Para explicar por que razão é assim, analisarei sucessivamente a primeira e a segunda questão prejudicial.

1.      Determinação das pessoas obrigadas a pagar uma indemnização pertence ao domínio do direito da União

55.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se os responsáveis pela reparação dos danos causados por um comportamento contrário ao artigo 101.o TFUE devem ser determinados com base no direito da União ou nos termos do direito nacional.

56.      A maioria das partes que apresentaram observações alegaram que a determinação dos responsáveis pelos danos é regulada pelo direito nacional. Na sua opinião, a margem de manobra de que os Estados‑Membros dispõem nesta matéria é delimitada pelos princípios da equivalência e da efetividade.

57.      Não subscrevo este ponto de vista.

58.      Por um lado, uma vez que o artigo 101.o TFUE tem efeito direto produz consequências jurídicas nas relações entre particulares e cria, assim, direitos em benefício daqueles, que os órgãos jurisdicionais nacionais devem proteger. Como precisado anteriormente, o Tribunal de Justiça deduziu do efeito direto do artigo 101.o TFUE o direito — de qualquer pessoa — de pedir uma indemnização por infração a essa disposição. Por outro lado, o Tribunal de Justiça declarou, repetidamente, neste contexto, que compete à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro regular as modalidades do exercício deste direito, sem prejuízo do respeito pelos requisitos (mínimos) de equivalência e de efetividade (27).

59.      A determinação do responsável pela reparação dos danos causados por infração ao direito da concorrência da União constituiu uma modalidade desse tipo que regula o exercício do direito de pedir uma indemnização? Ou é uma condição constitutiva da responsabilidade regulada pelo direito da União?

60.      A meu ver, é uma condição constitutiva da responsabilidade regulada pelo direito da União.

61.      A determinação das pessoas que podem ser consideradas responsáveis pelo pagamento de uma indemnização não é uma questão relativa às particularidades da aplicação concreta de um pedido de indemnização ou de uma regra que regula a aplicação efetiva do direito de pedir a reparação. Essa determinação é o outro lado da moeda do direito de pedir uma indemnização pelos danos causados por infração ao direito da concorrência da União. Com efeito, a existência do direito de pedir uma indemnização com base no artigo 101.o TFUE pressupõe o incumprimento de uma obrigação legal (28). Pressupõe, também, a existência de uma pessoa responsável por essa infração.

62.      Esse responsável pode ser deduzido do artigo 101.o TFUE, uma disposição aplicável às empresas. Com efeito, os destinatários da proibição prevista no artigo 101.o TFUE são as empresas, conceito que foi aplicado com flexibilidade pelo Tribunal de Justiça no contexto da aplicação pública e da imposição de sanções pecuniárias compulsórias.

63.      De acordo com os princípios estabelecidos na jurisprudência, o conceito de empresa abrange qualquer entidade que exerça uma atividade económica, independentemente do seu estatuto jurídico e do seu modo de financiamento. Quando uma entidade deste tipo infringe o direito da concorrência da União, incumbe‑lhe, segundo o princípio da responsabilidade pessoal, responder por essa infração (29).

64.      Tendo isso presente, tenho dificuldade em encontrar uma razão válida na qual a determinação das pessoas responsáveis pelo pagamento da indemnização, no contexto da responsabilidade civil, se deva basear em fundamentos diferentes. Muito pelo contrário.

65.      Na audiência, a Comissão sugeriu que o silêncio da jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre esta matéria — juntamente com o facto de a Diretiva 2014/104 se referir especificamente à responsabilidade conjunta e solidária das empresas por infração ao direito da concorrência (30) — indica que a determinação dos responsáveis é uma questão de direito interno sujeita à observância dos princípios da equivalência e da efetividade. O facto de o Tribunal de Justiça não ter tido ainda oportunidade de esclarecer esta questão ou de o legislador da União ter incluído na diretiva uma disposição sobre a responsabilidade conjunta e solidária das empresas diz pouco sobre a base normativa segundo a qual devem ser determinados os responsáveis pelos danos, ou mesmo sobre os princípios que devem ser aplicados nessa determinação.

66.      A determinação das pessoas responsáveis afeta diretamente a existência do direito de pedir uma indemnização. Como tal, compõe uma questão fundamental de importância constitucional, a par do próprio direito a uma indemnização. Por outras palavras, tal como acontece com o nexo de causalidade, que é outro requisito constitutivo da responsabilidade, as pessoas responsáveis devem ser determinadas com base no direito da União.

67.      As condições constitutivas da responsabilidade devem ser uniformes (31). Se as pessoas responsáveis pelo pagamento de uma indemnização diferissem de um Estado‑Membro para outro, existiria o risco óbvio de os operadores económicos serem tratados de forma diferente, dependendo do órgão jurisdicional nacional que conhece do pedido de indemnização emergente do direito privado. Do ponto de vista da aplicação efetiva do direito da concorrência da União, deixar a determinação das pessoas responsáveis pelos danos à discricionariedade dos Estados‑Membros poderia limitar consideravelmente o direito de pedir uma indemnização. Além disso, a aplicação de regras diferentes em todos os Estados‑Membros relativamente a uma questão fundamental que afeta diretamente a própria existência do direito de pedir uma indemnização não só seria contrária a um dos objetivos fundamentais do direito da concorrência da União, que é criar condições equitativas para todas as empresas que desenvolvem atividades no mercado interno, mas também um convite para procurar o tribunal mais favorável («forum shopping») (32).

68.      Em última análise, tal solução afetaria negativamente a função dissuasora das ações de indemnização e, por conseguinte, a efetividade da aplicação do direito da concorrência da União, objetivo a que o Tribunal de Justiça atribuiu especial importância na sua jurisprudência.

69.      Por conseguinte, numa ação de indemnização de direito privado apresentada num órgão jurisdicional nacional, as pessoas responsáveis pela reparação dos danos causados por infração ao direito da concorrência da União devem ser determinadas com base no direito da União, à luz do artigo 101.o TFUE (ou, consoante o caso, do artigo 102.o TFUE).

70.      Significa isto que o princípio da continuidade económica deve ser aplicado no âmbito de uma ação de indemnização por infração ao direito da concorrência num órgão jurisdicional nacional para determinar os responsáveis pelo pagamento da indemnização?

2.      Saber se o princípio da continuidade económica deve ser aplicado na determinação dos responsáveis pelo pagamento de uma indemnização no contexto de uma ação de indemnização por infração ao direito da concorrência

71.      Com a sua segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se, para determinar os responsáveis pelo pagamento de uma indemnização, se aplicam os mesmos princípios que o Tribunal de Justiça estabeleceu no âmbito da imposição de sanções pecuniárias compulsórias.

72.      É útil começar por recordar brevemente os fundamentos básicos da jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre o princípio da continuidade económica. Jurisprudência que, deve recordar‑se, foi desenvolvida no contexto da aplicação pública do direito da concorrência da União.

73.      O princípio da continuidade económica é uma expressão da definição ampla de empresa, no âmbito do direito da concorrência. Aplica‑se, nomeadamente, quando a entidade que cometeu a infração deixou de existir jurídica ou economicamente. Com efeito, como o Tribunal de Justiça explicou, uma sanção aplicada a uma empresa que subsiste juridicamente, mas que cessou a atividade económica, pode ser desprovida de efeito dissuasivo (33).

74.      De modo geral — embora a responsabilidade pessoal continue a ser a regra principal —, a lógica de alargar a responsabilidade à entidade que prosseguiu as atividades da entidade que infringiu o direito da concorrência da União é que as empresas poderiam escapar a sanções pelo simples facto de a sua identidade ter sido alterada na sequência de reestruturações, cessões ou outras alterações jurídicas ou organizacionais. O objetivo de reprimir os comportamentos contrários às regras de concorrência e de prevenir a sua reiteração por meio de sanções dissuasivas ficaria comprometido (34).

75.      Assim, da perspetiva do direito da concorrência da União, uma alteração jurídica ou organizacional não cria necessariamente uma nova empresa isenta de responsabilidade pelo comportamento infrator da sua antecessora, quando, do ponto de vista económico, ambas são idênticas. A este respeito, segundo o Tribunal de Justiça, as formas jurídicas da entidade que cometeu a infração e da entidade que lhe sucedeu são irrelevantes (35). Isto porque, numa perspetiva económica, a entidade permanece a mesma.

76.      Na minha opinião, os argumentos apresentados no contexto da aplicação pública do direito da concorrência, para justificar o recurso a um conceito amplo de «empresa» e, o seu corolário próximo, o princípio da continuidade económica, são também válidos no contexto de um pedido de indemnização emergente do direito privado por infração ao direito da concorrência da União. Isto porque uma ação de indemnização, tal como a aplicação pública do direito da concorrência por uma autoridade da concorrência, procura — embora não por meio do mesmo mecanismo — dissuadir as empresas de adotar comportamentos concorrenciais proibidos. Com efeito, tal como salientou o Município de Vantaa, a aplicação pública e a aplicação privada do direito da concorrência constituem, juntas, um sistema de execução completo, embora dividido em duas partes, que deve ser considerado como um todo.

77.      Se o princípio da continuidade económica não fosse aplicado no âmbito de uma ação de indemnização, isso enfraqueceria consideravelmente o elemento dissuasivo que consiste em permitir a qualquer pessoa pedir uma indemnização por infração às regras de concorrência da União.

78.      Contudo, não é só isso. Como este caso bem demonstra, as empresas poderiam esquivar‑se da responsabilidade civil, recorrendo a acordos de sociedade ou de outro tipo que tornassem praticamente impossível o exercício do direito a uma indemnização conferido aos particulares pelo direito da União com base no artigo 101.o TFUE. A este respeito, a Skanska, a NCC e a Asfaltmix alegaram, no Tribunal de Justiça, que o Município de Vantaa também podia ter pedido uma indemnização às empresas agora dissolvidas. Embora a legislação finlandesa relativa às sociedades pareça, de facto, permitir que uma parte lesada tome medidas nesse sentido, é difícil prever como esta forma de agir poderia garantir a um particular um direito efetivo à reparação: como sabemos, é inútil.

79.      Certamente, pode parecer problemático que uma empresa possa ser considerada responsável pelos danos causados pelo comportamento anticoncorrencial de outra empresa (dissolvida), simplesmente porque essa empresa deu continuidade às atividades económicas da infratora. Assim, poder‑se‑ia argumentar que a aplicação do princípio da continuidade económica a um pedido de indemnização subverte a lógica do direito privado de tais pedidos, uma vez que o infrator e o responsável pela indemnização não são (juridicamente) os mesmos.

80.      Contudo, na minha opinião, não há nada de extraordinário — ou sequer surpreendente — nesta solução. Como expliquei anteriormente, as ações de indemnização por infração às regras de concorrência são parte integrante da aplicação do direito da concorrência da União, um sistema que (considerado no seu conjunto) visa, essencialmente, dissuadir as empresas de adotar comportamentos anticoncorrenciais. Neste sistema, a responsabilidade é atribuída aos ativos, e não a uma personalidade jurídica específica. Por conseguinte, do ponto de vista económico, a mesma empresa que infringiu as regras de concorrência é responsável tanto pelas sanções públicas como pelos danos no âmbito do direito privado. Tendo em conta que a aplicação pública e a aplicação privada são complementares e constituem partes de um todo, a solução segundo a qual a interpretação do conceito de «empresa» seria diferente em função do mecanismo utilizado para aplicar as regras de concorrência da União seria simplesmente insustentável.

81.      Por conseguinte, considero que o artigo 101.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que, ao determinar o responsável pelo pagamento dos danos causados por infração a esta disposição, seja aplicado o princípio da continuidade económica, de modo que, numa ação de indemnização no âmbito do direito privado instaurada num órgão jurisdicional nacional, um particular possa pedir uma indemnização a uma empresa que tenha continuado a atividade económica de um participante num cartel.

82.      Antes de concluir, é, no entanto, necessário fazer uma observação final decorrente dos argumentos apresentados pela NCC na audiência.

83.      Nas suas alegações orais, a NCC solicitou ao Tribunal de Justiça que limitasse no tempo os efeitos do seu acórdão, caso considerasse que o princípio da continuidade económica devesse ser aplicado no contexto da determinação dos responsáveis pelo pagamento de uma indemnização no âmbito do direito privado por infração às regras de concorrência da União. Esse pedido baseou‑se, no entanto, numa afirmação geral e insuficientemente fundamentada sobre as consequências financeiras que uma interpretação deste género teria nos operadores económicos que tivessem procedido a aquisições de empresas. Por conseguinte, este pedido deve, logo, ser rejeitado, sem que haja necessidade de analisar minuciosamente se as duas condições cumulativas estabelecidas na jurisprudência se encontram preenchidas no caso em apreço (36).

IV.    Conclusão

84.      Ante o exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pelo Korkein oikeus (Supremo Tribunal, Finlândia) do seguinte modo:

O artigo 101.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que, para determinar o responsável pelo pagamento de uma indemnização por prejuízos e danos causados por infração a este artigo, há que aplicar o princípio da continuidade económica de modo que, numa ação de indemnização no âmbito do direito privado instaurada num órgão jurisdicional nacional, um particular possa pedir uma indemnização a uma empresa que tenha continuado a atividade económica de um participante num cartel.


1      Língua original: inglês.


2      Conclusões do advogado‑geral W. Van Gerven no processo Banks (C‑128/92, EU:C:1993:860).


3      V., sobretudo, Acórdãos de 20 de setembro de 2001, Courage e Crehan (C‑453/99, EU:C:2001:465), e de 13 de julho de 2006, Manfredi e o. (C‑295/04 a C‑298/04, EU:C:2006:461).


4      Diretiva 2014/104/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de novembro de 2014, relativa a certas regras que regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional por infração às disposições do direito da concorrência dos Estados‑Membros e da União Europeia (JO 2014,349, p. 1) (a seguir «diretiva 2014/104»).


5      V., para uma expressão precoce deste princípio, Acórdão de 28 de março de 1984, Compagnie Royale Asturienne des Mines e Rheinzink/Comissão (29/83 e 30/83, EU:C:1984:130, n.o 9). V., mais recentemente, por exemplo, Acórdãos de 8 de julho de 1999, Comissão/Anic Partecipazioni (C‑49/92 P, EU:C:1999:356, n.o 145); de 7 de janeiro de 2004, Aalborg Portland e o./Comissão (C‑204/00 P, C‑205/00 P, C‑211/00 P, C‑213/00 P, C‑217/00 P e C‑219/00 P, EU:C:2004:6, n.o 59); de 11 de dezembro de 2007, ETI e o. (C‑280/06, EU:C:2007:775, n.os 45 e 46); e de 18 de dezembro de 2014, Comissão/Parker Hannifin Manufacturing e Parker‑Hannifin (C‑434/13 P, EU:C:2014:2456, n.o 39 e 40).


6      Acórdão de 20 de setembro de 2001, Courage e Crehan (C‑453/99, EU:C:2001:465 n.o 26), e de 13 de julho de 2006, Manfredi e o. (C‑295/04 a C‑298/04, EU:C:2006:461, n.o 60).


7      V., especialmente, Acórdãos de 13 de julho de 2006, Manfredi e o. (C‑295/04 a C‑298/04, EU:C:2006:461, n.os 95 a 97); de 14 de junho de 2011, Pfleiderer (C‑360/09, EU:C:2011:389, n.o 32); e de 5 de junho de 2014, Kone e o. (C‑557/12, EU:C:2014:1317, n.o 37).


8      V., especialmente, Acórdão de 13 de julho de 2006, Manfredi e o. (C‑295/04 a C‑298/04, EU:C:2006:461, n.os 95 e 96 e jurisprudência referida).


9      Acórdão de 20 de setembro de 2001, Courage e Crehan (C‑453/99, EU:C:2001:465).


10      Acórdão de 13 de julho de 2006, Manfredi e o. (C‑295/04 a C‑298/04, EU:C:2006:461).


11      Mesmo antes do Acórdão de 20 de setembro de 2001, Courage e Crehan (C‑453/99, EU:C:2001:465), o Tribunal de Justiça reconheceu o efeito direto dos atuais artigos 101.o e 102.o TFUE. V. Acórdãos de 30 de janeiro de 1974, BRT e Société belge des auteurs, compositeurs et éditeurs (127/73, EU:C:1974:6, n.o 16), e de 18 de março de 1997, Guérin automobiles/Comissão (C‑282/95 P, EU:C:1997:159, n.o 39).


12      Acórdãos de 20 de setembro de 2001, Courage e Crehan (C‑453/99, EU:C:2001:465, n.os 24 a 26), e de 13 de julho de 2006, Manfredi e o. (C‑295/04 a C‑298/04, EU:C:2006:461, n.o 59).


13      Acórdãos de 20 de setembro de 2001, Courage e Crehan (C‑453/99, EU:C:2001:465, n.o 27), e de 13 de julho de 2006, Manfredi e o. (C‑295/04 a C‑298/04, EU:C:2006:461, n.o 91). V., ainda, Acórdãos de 14 de junho de 2011, Pfleiderer (C‑360/09, EU:C:2011:389, n.o 29); 6 de novembro de 2012, Otis e o. (C‑199/11, EU:C:2012:684, n.o 42); de 6 de junho de 2013, Donau Chemie e o. (C‑536/11, EU:C:2013:366, n.o 23); e de 5 de junho de 2014, Kone e o. (C‑557/12, EU:C:2014:1317, n.o 23).


14      Acórdão de 13 de julho de 2006, Manfredi e o. (C‑295/04 a C‑298/04, EU:C:2006:461, n.o 62).


15      Acórdãos de 20 de setembro de 2001, Courage e Crehan (C‑453/99, EU:C:2001:465, n.o 29), e de 13 de julho de 2006, Manfredi e o. (C‑295/04 a C‑298/04, EU:C:2006:461, n.o 62).


16      Acórdão de 5 de junho de 2014, Kone e o. (C‑557/12, EU:C:2014:1317).


17      Acórdão de 5 de junho de 2014, Kone e o. (C‑557/12, EU:C:2014:1317, n.o 37).


18      Acórdão de 5 de junho de 2014, Kone e o. (C‑557/12, EU:C:2014:1317, n.os 24 e 25 e jurisprudência referida).


19      Acórdão de 5 de junho de 2014, Kone e o. (C‑557/12, EU:C:2014:1317, n.o 26 e jurisprudência referida).


20      Acórdão de 5 de junho de 2014, Kone e o. (C‑557/12, EU:C:2014:1317, n.os 27 e segs., especialmente n.º 34). A título comparativo, v., quanto à aplicação dos princípios da equivalência e da efetividade, Acórdãos de 14 de junho de 2011, Pfleiderer (C‑360/09, EU:C:2011:389, n.os 30 a 32), e de 6 de junho de 2013, Donau Chemie e o. (C‑536/11, EU:C:2013:366, n.os 32 a 34).


21      Foi assim que a advogada‑geral J. Kokott descreveu como se exerce o direito de pedir uma indemnização (v. Conclusões da advogada‑geral J. Kokott no Acórdão Kone e o. C‑557/12, EU:C:2014:45, n.o 23). Além disso, poderá ser possível distinguir entre as normas corretivas e as regras puramente processuais, bem como entre os requisitos decorrentes do direito da União que tais regras devem cumprir (v., a este respeito, Van Gerven, W., «Of rights, remedies and procedures», Common Market Law Review, Vol. 37, 2000, pp. 501‑536, especialmente pp. 503‑504.


22      Conclusões da advogada‑geral J. Kokott no Acórdão Kone e o. (C‑557/12, EU:C:2014:45, n.os 31 e segs.).


23      C. Sunstein, One case at a time: judicial minimalism on the Supreme Court, Harvard, Harvard University Press, 1999. V., no contexto da União sobre o minimalismo judicial, D. Sarmiento, «Half a case at a time: dealing with judicial minimalism at the European Court of justice», em M. Claes e o., Constitutional conversations, Cambridge, Intersentia, 2012, pp. 11‑40.


24      Acórdão de 5 de junho de 2014, Kone e o. (C‑557/12, EU:C:2014:1317, n.o 37).


25      Embora a Comissão realce a função compensatória das ações de indemnização, reconhece, todavia, a utilidade de se dissuadir as empresas de adotar comportamentos anticoncorrenciais. V., neste sentido, Livro Branco da Comissão sobre ações de indemnização por incumprimento das regras comunitárias no domínio antitrust COM(2008)165 final, p. 3 com referências. Disponível em: http://ec.europa.eu/competition/antitrust/actionsdamages/files_white_paper/whitepaper_en.pdf.


26      V., igualmente, Conclusões do advogado‑geral W. Van Gerven no Acórdão Banks (C‑128/92, EU:C:1993:860, n.o 44).


27      V., especialmente, Acórdãos de 20 de setembro de 2001, Courage e Crehan (C‑453/99, EU:C:2001:465, n.os 24 e 29); de 13 de julho de 2006, Manfredi e o. (C‑295/04 a C‑298/04, EU:C:2006:461, n.os 61 e 62); de 14 de junho de 2011, Pfleiderer (C‑360/09, EU:C:2011:389, n.os 29 e 30); de 6 de junho de 2013, Donau Chemie e o. (C‑536/11, EU:C:2013:366, n.os 23 e 27); e de 5 de junho de 2014, Kone e o. (C‑557/12, EU:C:2014:1317, n.os 23 e 24).


28      Como o leitor saberá, a ideia de correspondência entre direitos e obrigações legais reporta‑se a Hohfeld. V. Hohfeld, W., «Some Fundamental Legal Conceptions as Applied in Judicial Reasoning», Yale Law Journal, Vol. 23, 1913, pp. 16‑59, especialmente pp. 30‑32. V., igualmente, Van Gerven, W., «Of rights, remedies and procedures», Common Market Law Review, Vol. 37, 2000, pp. 501‑536, especialmente p. 524.


29      V., por exemplo, Acórdãos de 11 de dezembro de 2007, ETI e o. (C‑280/06, EU:C:2007:775, n.os 38 e 39 e jurisprudência referida); de 13 de junho de 2013, Versalis/Comissão (C‑511/11 P, EU:C:2013:386, n.o 51); e de 18 de dezembro de 2014, Comissão/Parker Hannifin Manufacturing e Parker‑Hannifin, C‑434/13 P, EU:C:2014:2456, n.o 39).


30      Artigo 11.o, n.o 1, da diretiva prevê: «Os Estados‑Membros asseguram que as empresas que infringem o direito da concorrência por meio de um comportamento conjunto sejam solidariamente responsáveis pelos danos causados pela infração ao direito da concorrência; cada uma dessas empresas fica obrigada a reparar integralmente os danos, e o lesado tem o direito de exigir reparação integral de qualquer uma delas até ser indemnizado na íntegra».


31      V. Conclusões do advogado‑geral W. Van Gerven no processo Banks (C‑128/92, EU:C:1993:860, n.os 49 a 54) sobre essas condições (a existência de um dano, um nexo de causalidade entre o dano invocado e o comportamento alegado, e a ilegalidade de tal comportamento). Nesta análise, parece que se devem considerar responsáveis implicitamente as empresas que se envolveram no comportamento ilegal.


32      V., para considerações semelhantes em relação à questão do nexo de causalidade, Conclusões da advogada‑geral J. Kokott no Acórdão Kone e o. (C‑557/12, EU:C:2014:45, n.o 29).


33      Acórdão de 11 de dezembro de 2007, ETI e o. (C‑280/06, EU:C:2007:775, n.os 40 e 42 e jurisprudência referida).


34      V., designadamente, Acórdãos de 11 de dezembro de 2007, ETI e o. (C‑280/06, EU:C:2007:775, n.o 41 e jurisprudência referida), e de 18 de dezembro de 2014, Comissão/Parker Hannifin Manufacturing e Parker‑Hannifin (C‑434/13 P, EU:C:2014:2456, n.o 40).


35      Acórdão de 11 de dezembro de 2007, ETI e o. (C‑280/06, EU:C:2007:775, n.o 43).


36      V., no que respeita a essas condições, por exemplo, Acórdão de 22 de setembro de 2016, Microsoft Mobile Sales International e o. (C‑110/15, EU:C:2016:717, n.os 59 a 61 e jurisprudência referida).