Language of document : ECLI:EU:C:2010:560

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

ELEANOR SHARPSTON

apresentadas em 30 de Setembro de 2010 1(1)

Processo C‑34/09

Gerardo Ruiz Zambrano

contra

Office national de l'emploi (ONEM)

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo tribunal du travail de Bruxelles (Bélgica)]

«Artigos 18.° TFUE, 20.° TFUE e 21.° TFUE – Direitos fundamentais como princípios gerais do direito da União Europeia – Artigo 7.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – Cidadania europeia – Subsídios de desemprego – Menor nacional de um Estado‑Membro – Direito de residência de progenitores nacionais de um Estado terceiro – Efeitos obstantes de medidas nacionais – Discriminação inversa – Relação entre a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o Tribunal de Justiça da União Europeia – Níveis de protecção dos direitos fundamentais»





1.        O presente pedido de decisão prejudicial apresentado pelo tribunal du travail de Bruxelles (Bélgica) tem por objecto o âmbito do direito de residência de nacionais de um país terceiro progenitores de um menor cidadão da União que ainda não saiu do Estado‑Membro em que nasceu.

2.        Ao responder às questões prejudiciais submetidas pelo tribunal nacional, o Tribunal de Justiça tem de fazer algumas opções difíceis e importantes. O que é que implica exactamente a cidadania da União Europeia? As circunstâncias que deram origem ao processo nacional constituem uma situação «puramente interna» do Estado‑Membro em causa, na qual o direito da União Europeia não desempenha nenhum papel? Ou o reconhecimento pleno dos direitos (incluindo direitos futuros) que decorrem necessariamente da cidadania da União Europeia significa que um menor, cidadão da União Europeia, tem o direito, baseado no direito da União Europeia e não no direito nacional, de residir em qualquer lugar do território da União (incluindo no Estado‑Membro da sua nacionalidade)? Se assim for, para garantir ao menor a possibilidade de exercer efectivamente esse direito, pode ser necessário conceder uma autorização de residência ao seu progenitor, nacional de um país terceiro, se, não sendo assim, forem violados substancialmente direitos fundamentais.

3.        De um ponto de vista mais conceptual, o exercício de direitos enquanto cidadão da União – como o exercício das «liberdades» económicas clássicas – depende de este ter exercido a sua liberdade de circulação transfronteiriça (ainda que de modo acidental, periférico ou remoto) antes da apresentação do pedido? Ou a cidadania da União olha para o futuro, e não para o passado, para definir os direitos e obrigações que confere? Colocando a mesma questão numa perspectiva ligeiramente diferente: a cidadania da União é simplesmente a versão não económica do mesmo tipo genérico de direitos de livre circulação que existem desde há muito para as pessoas economicamente activas e para as pessoas que dispõem de recursos próprios? Ou significa algo mais radical: uma verdadeira cidadania, que inclui um conjunto uniforme de direitos e obrigações, numa União de direito (2) em que o respeito pelos direitos fundamentais deve necessariamente desempenhar um papel essencial?

 Quadro jurídico

 Disposições pertinentes do direito da União Europeia

4.        O artigo 6.° TUE (ex‑artigo 6.° UE) dispõe:

«1. A União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 7 de Dezembro de 2000, com as adaptações que lhe foram introduzidas em 12 de Dezembro de 2007, em Estrasburgo, e que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados.

De forma alguma o disposto na Carta pode alargar as competências da União, tal como definidas nos Tratados.

Os direitos, as liberdades e os princípios consagrados na Carta devem ser interpretados de acordo com as disposições gerais constantes do Título VII da Carta que regem a sua interpretação e aplicação e tendo na devida conta as anotações a que a Carta faz referência, que indicam as fontes dessas disposições.

2. A União adere à Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. Essa adesão não altera as competências da União, tal como definidas nos Tratados.

3. Do direito da União fazem parte, enquanto princípios gerais, os direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros.»

5.        O artigo 18.° TFUE (ex‑artigo 12.° CE) dispõe:

«No âmbito de aplicação dos Tratados, e sem prejuízo das suas disposições especiais, é proibida toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade.

[…]»

6.        O artigo 20.° TFUE (ex‑artigo 17.° CE) enuncia:

«1. É instituída a cidadania da União. É cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado‑Membro. A cidadania da União acresce à cidadania nacional e não a substitui.

2. Os cidadãos da União gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres previstos nos Tratados.

[…]»

7.        O artigo 21.° TFUE (ex‑artigo 18.° CE) dispõe:

«1. Qualquer cidadão da União goza do direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros, sem prejuízo das limitações e condições previstas nos Tratados e nas disposições adoptadas em sua aplicação.

[…]»

8.        Os artigos 7.°, 21.° e 24.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (3) enunciam:

«Artigo 7.°

Respeito pela vida privada e familiar

Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua vida privada e familiar, pelo seu domicílio e pelas suas comunicações.

[…]

Artigo 21.°

Não discriminação

1. É proibida a discriminação em razão, designadamente, do sexo, raça, cor ou origem étnica ou social, características genéticas, língua, religião ou convicções, opiniões políticas ou outras, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento, deficiência, idade ou orientação sexual.

2. No âmbito de aplicação dos Tratados e sem prejuízo das suas disposições específicas, é proibida toda a discriminação em razão da nacionalidade.

[…]

Artigo 24.°

Direitos das crianças

1. As crianças têm direito à protecção e aos cuidados necessários ao seu bem‑estar. Podem exprimir livremente a sua opinião, que será tomada em consideração nos assuntos que lhes digam respeito, em função da sua idade e maturidade.

2. Todos os actos relativos às crianças, quer praticados por entidades públicas, quer por instituições privadas, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança.

3. Todas as crianças têm o direito de manter regularmente relações pessoais e contactos directos com ambos os progenitores, excepto se isso for contrário aos seus interesses.»

 Disposições pertinentes do direito internacional

9.        O artigo 17.° do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (4) dispõe:

«1.      Ninguém será objecto de intervenções arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem de atentados ilegais à sua honra e à sua reputação.

2.      Toda e qualquer pessoa tem direito à protecção da lei contra tais intervenções ou tais atentados.»

10.      O artigo 9.°, n.° 1, da Convenção sobre os Direitos da Criança (5) dispõe:

«Os Estados Partes garantem que a criança não é separada de seus pais contra a vontade destes, salvo se as autoridades competentes decidirem, sem prejuízo de revisão judicial e de harmonia com a legislação e o processo aplicáveis, que essa separação é necessária no interesse superior da criança. Tal decisão pode mostrar‑se necessária no caso de, por exemplo, os pais maltratarem ou negligenciarem a criança ou no caso de os pais viverem separados e uma decisão sobre o lugar da residência da criança tiver de ser tomada.»

11.      O artigo 8.° da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (a seguir «CEDH») e o artigo 3.° do Protocolo n.° 4 desta dispõem o seguinte (6):

«Artigo 8.°

1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.

2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem‑estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.»

Artigo 3.° do Protocolo n.° 4

«1. Ninguém pode ser expulso, em virtude de disposição individual ou colectiva, do território do Estado de que for cidadão.

2. Ninguém pode ser privado do direito de entrar no território do Estado de que for cidadão.»

 Disposições pertinentes da legislação nacional

 Decreto Real de 25 de Novembro de 1991

12.      O artigo 30.° do Decreto Real de 25 de Novembro de 1991, que regulamenta o desemprego, dispõe o seguinte:

«Para beneficiar de subsídio de desemprego, o trabalhador a tempo inteiro deve cumprir um período do estágio com o número de dias de trabalho a seguir indicado:

1.° [...]

2.° 468 dias ao longo dos 27 meses que precedem [o] pedido [de subsídio de desemprego], se o trabalhador tiver entre 36 e 50 anos de idade;

[…]»

13.      O artigo 43.°, n.° 1, do decreto real dispõe:

«Sem prejuízo das disposições anteriores, o trabalhador estrangeiro ou apátrida tem direito ao subsídio de desemprego se obedecer ao disposto na legislação relativa a estrangeiros e ao emprego da mão‑de‑obra estrangeira.

O trabalho efectuado na Bélgica só será tido em consideração se obedecer ao disposto na legislação relativa ao emprego da mão‑de‑obra estrangeira.

[…]»

14.      De acordo com as disposições pertinentes da legislação belga (artigo 40.° da Lei de 15 de Dezembro de 1980 e artigo 2.° do Decreto Real de 9 de Junho de 1999), são equiparados ao estrangeiro nacional de um Estado‑Membro da União Europeia o seu cônjuge e os seus filhos ou os filhos do seu cônjuge que estejam a cargo de ambos, independentemente da sua nacionalidade, desde que tenham entrado no país com o objectivo de viverem com ele.

15.      Os ascendentes de um cidadão belga ou de um estrangeiro nacional de um Estado‑Membro da União Europeia que estejam a seu cargo, independentemente da sua nacionalidade, não necessitam de autorizações de trabalho [nos termos, respectivamente, do artigo 2.°, n.° 2, segundo parágrafo, alínea b), do Decreto Real de execução da Lei de 30 de Abril de 1999, relativa ao emprego de trabalhadores estrangeiros, e do artigo 40.°, n.° 4, iii), da Lei de 15 de Dezembro de 1980].

 Código da nacionalidade belga

16.      Nos termos do artigo 10.°, primeiro parágrafo, do Código da Nacionalidade belga, na sua versão aplicável à época dos factos, tem nacionalidade belga, nomeadamente:

«[O] filho nascido na Bélgica e que, em qualquer momento antes de atingir 18 anos de idade ou da emancipação anterior a essa idade, seria apátrida se não tivesse essa nacionalidade.»

17.      Subsequentemente, a Lei de 27 de Dezembro de 2006 excluiu a possibilidade de um menor nascido na Bélgica de progenitores não belgas adquirir a nacionalidade belga «se o menor puder obter outra nacionalidade através do cumprimento pelos seus representantes legais de diligências administrativas junto das autoridades diplomáticas ou consulares do país dos seus progenitores ou de um deles».

 Matéria de facto e processo principal

18.      G. Ruiz Zambrano e a sua mulher, a Sr.ª Moreno López, são ambos nacionais colombianos. Chegaram à Bélgica em 7 de Abril de 1999, com um visto emitido pela Embaixada da Bélgica em Bogotá, acompanhados do seu primeiro filho.

19.      Uma semana depois, G. Ruiz Zambrano pediu asilo na Bélgica. Fundamentou o seu pedido na necessidade de fugir da Colômbia depois de ter estado exposto desde 1997 a contínuas extorsões (com ameaças de morte) por parte de milícias privadas, de ter testemunhado actos de violência contra o seu irmão e de ter sofrido o rapto do seu filho de três anos durante uma semana em Janeiro de 1999.

20.      Em 11 de Setembro de 2000, o Commissariat général aux réfugiés et aux apatrides (Comissariado‑Geral para refugiados e apátridas) indeferiu o pedido de asilo de G. Ruiz Zambrano e emitiu uma ordem de expulsão da Bélgica. No entanto, acrescentou uma cláusula de não repulsão, afirmando que G. Ruiz Zambrano e a sua família não deveriam ser enviados de volta para a Colômbia tendo em conta a situação crítica nesse país.

21.      Apesar dessa ordem, G. Ruiz Zambrano pediu autorização de residência ao Office des étrangers (Serviço de Estrangeiros) em 20 de Outubro de 2000. Subsequentemente, apresentou mais dois pedidos (7). Os três pedidos foram indeferidos. G. Ruiz Zambrano pediu a anulação dessas decisões, tendo, entretanto, requerido a suspensão da ordem de expulsão da Bélgica. No momento em que foi apresentado o presente pedido de decisão prejudicial, ainda estava pendente o recurso de anulação no Conseil d’État.

22.      G. Ruiz Zambrano e a sua mulher estão registados no município de Schaerbeek desde 18 de Abril de 2001.

23.      Em Outubro de 2001, G. Ruiz Zambrano obteve trabalho a tempo inteiro na oficina de Bruxelas de uma sociedade belga, a Plastoria SA (a seguir «Plastoria»), desempenhando tarefas de oficina ao abrigo de um contrato de trabalho por tempo indeterminado. O trabalho foi devidamente declarado ao Office national de la sécurité sociale (Serviço Nacional da Segurança Social). A sua remuneração estava sujeita às deduções legais da segurança social na forma habitual e, consequentemente, o seu empregador estava obrigado a pagar (e pagou) as correspondentes contribuições. O pedido de decisão prejudicial não indica expressamente se (como é frequentemente o caso) a sua remuneração estava também sujeita a retenção na fonte do imposto sobre o rendimento.

24.      G. Ruiz Zambrano não tinha uma autorização de trabalho quando foi contratado pela Plastoria nem obteve uma durante os cinco anos em que trabalhou para esta sociedade.

25.      Entretanto, a sua mulher deu à luz o segundo filho, Diego, em 1 de Setembro de 2003, e o terceiro, Jessica, em 26 de Agosto de 2005. Ambos nasceram na Bélgica. Nos termos do artigo 10.°, primeiro parágrafo, do Código da Nacionalidade belga, ambos adquiriram nacionalidade belga (8). O advogado de G. Ruiz Zambrano informou o Tribunal de Justiça na audiência que tanto Diego como Jessica estavam actualmente matriculados na escola em Schaerbeek.

26.      O nascimento de Diego e Jessica deu origem, respectivamente, ao segundo e terceiro pedidos apresentados no Serviço de Estrangeiros (9). Em cada um deles, G. Ruiz Zambrano afirmou que o nascimento de um filho com nacionalidade belga lhe conferia o direito de obter uma autorização de residência ao abrigo da Lei de 15 de Dezembro de 1980 e do artigo 3.° do Protocolo n.° 4 da CEDH.

27.      Na sequência do terceiro pedido, as autoridades belgas decidiram conceder um certificado de registo de residência a G. Ruiz Zambrano que regularizou a sua estadia na Bélgica de 13 de Setembro de 2005 a 13 de Fevereiro de 2006. Em razão do recurso das diversas decisões de indeferimento do pedido de autorização de residência, a estadia de G. Ruiz Zambrano na Bélgica ficou coberta por uma autorização especial válida até decisão final desse processo.

28.      Em 10 de Outubro de 2005, o contrato de G. Ruiz Zambrano foi suspenso temporariamente. Este requereu imediatamente ao Office national de l’emploi (Serviço Nacional do Emprego) o subsídio de desemprego a título temporário. Este pedido foi indeferido com o fundamento de que G. Ruiz Zambrano não tinha uma autorização de trabalho (porque a sua estadia na Bélgica era irregular). G. Ruiz Zambrano intentou a primeira acção no tribunal du travail (Tribunal do Trabalho) impugnando esse indeferimento (a seguir «primeira acção»), tendo sido, porém, pouco depois, novamente contratado pela Plastoria para trabalhar a tempo inteiro.

29.      No entanto, na sequencia dessa primeira acção, as autoridades laborais belgas procederam a uma inspecção a fim de verificar as condições em que G. Ruiz Zambrano trabalhava. Um inspector de trabalho visitou as instalações da Plastoria em 11 de Outubro de 2006. Encontrou G. Ruiz Zambrano no trabalho e confirmou que este não tinha uma autorização de trabalho. O inspector ordenou a imediata suspensão do trabalho. A Plastoria rescindiu devidamente o contrato de trabalho de G. Ruiz Zambrano, sem pagamento de indemnização, invocando um motivo de força maior, e entregou‑lhe o documento oficial («impresso C 4») que certificava terem sido pagas as contribuições para a segurança social e o seguro de desemprego relativos ao período completo de trabalho de Outubro de 2001 a Outubro de 2006.

30.      As autoridades laborais belgas decidiram não instaurar nenhum processo penal contra a Plastoria, afirmando que, salvo o facto de a empresa ter contratado G. Ruiz Zambrano sem uma autorização de trabalho, não tinham sido encontradas quaisquer outras violações dos requisitos relativos às obrigações para com a segurança social, ao arquivo dos documentos sociais correctos, à cobertura contra acidentes de trabalho ou às obrigações salariais.

31.      Ao encontrar‑se desempregado, G. Ruiz Zambrano requereu novamente o subsídio de desemprego ao Serviço Nacional do Emprego, mas desta vez requereu o subsídio total. Voltou‑lhe a ser recusado o pagamento deste subsídio. G. Ruiz Zambrano intentou nova acção no tribunal du travail de Bruxelles para impugnar esta decisão (a seguir «segunda acção»). A primeira e segunda acções constituem o objecto do processo principal no tribunal de reenvio.

32.      Nas suas observações escritas, o Governo belga declara que, na sequência de uma medida governamental destinada a regularizar situações específicas de residentes ilegais no país, foi concedida a G. Ruiz Zambrano, em 30 de Abril de 2009, uma autorização de residência provisória e renovável, bem como uma autorização de trabalho (tipo C). Esta última não tem efeito retroactivo, continuando a considerar‑se que o trabalho de G. Ruiz Zambrano na Plastoria, de 2001 a 2006, não estava coberto por uma autorização de trabalho.

 Questões prejudiciais

33.      Nas causas propostas para impugnar as duas decisões do Serviço Nacional do Emprego pelas quais foram recusados os pedidos de concessão de subsídio de desemprego temporário e total de G. Ruiz Zambrano, o tribunal du travail de Bruxelles submeteu as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Os artigos 12.° [CE], 17.° [CE] e 18.° [CE], ou algum ou alguns deles, lidos de forma separada ou conjugada, conferem um direito de residência ao cidadão da União no território do Estado‑Membro de que esse cidadão tem a nacionalidade, independentemente do exercício prévio por parte deste do seu direito de circular no território dos Estados‑Membros?

2)      Os artigos 12.° [CE], 17.° [CE] e 18.° [CE], conjugados com as disposições dos artigos 21.°, 24.° e 34.° da Carta dos Direitos Fundamentais [...], devem ser interpretados no sentido de que o direito neles reconhecido, sem discriminação em razão da nacionalidade, a todos os cidadãos da União de circularem e residirem livremente no território dos Estados‑Membros implica, quando um desses cidadãos for um menor de tenra idade a cargo de um ascendente cidadão de um Estado terceiro, que o gozo do direito de residência do referido menor no território do Estado‑Membro no qual reside e de que tem a nacionalidade lhe deve ser garantido, independentemente de ter exercido previamente, ou através do seu representante legal, o direito de circular, associando a esse direito de residência o efeito útil cuja necessidade foi reconhecida pela jurisprudência comunitária [acórdão de 19 de Outubro de 2004, Zhu e Chen (C‑200/02)], através do reconhecimento ao ascendente cidadão de um Estado terceiro, que assume o encargo do referido menor e dispõe de recursos suficientes e de uma cobertura social de saúde, do direito de residência derivado de que esse mesmo cidadão de um Estado terceiro beneficiaria se o menor que tem a seu cargo fosse um cidadão da União que não tivesse a nacionalidade do Estado‑Membro em que reside?

3)      Os artigos 12.° [CE], 17.° [CE] e 18.° [CE], conjugados com as disposições dos artigos 21.°, 24.° e 34.° da Carta dos Direitos Fundamentais, devem ser interpretados no sentido de que o direito de residência de um menor, cidadão de um Estado‑Membro em cujo território reside, deve implicar a dispensa de uma autorização de trabalho ao ascendente, cidadão de um Estado terceiro, que assume o encargo do referido menor e que – se não fosse a exigência da autorização de trabalho imposta pelo direito interno do Estado‑Membro em que reside – preenche, pelo exercício de um trabalho assalariado sujeito à [s]egurança [s]ocial do referido Estado, a condição de recursos suficientes e a posse de um seguro de saúde, a fim de que ao direito de residência desse filho seja associado o efeito útil que a jurisprudência comunitária reconhece a favor de uma criança menor, cidadão europeu que tem uma nacionalidade diferente da do Estado‑Membro em que reside a cargo de um ascendente, cidadão de um Estado terceiro?»

34.      Foram apresentadas observações escritas por G. Ruiz Zambrano, pelos Governos belga, dinamarquês, alemão, helénico, irlandês, dos Países Baixos, austríaco e polaco, bem como pela Comissão Europeia.

35.      O advogado de G. Ruiz Zambrano e os agentes dos Governos belga, dinamarquês, grego, francês, irlandês e dos Países Baixos, e a Comissão participaram na audiência, que se realizou em 26 de Janeiro de 2010, e apresentaram alegações orais.

 Questões preliminares

36.      Nenhuma das partes envolvidas no presente pedido de decisão prejudicial questionou especificamente a sua admissibilidade. No entanto, há duas questões que devo abordar brevemente.

37.      A primeira é a de saber se as questões prejudiciais são realmente relevantes para o processo pendente no tribunal nacional.

38.      Resulta dos documentos incluídos no despacho de reenvio que G. Ruiz Zambrano cumpriu os requisitos substantivos para poder requerer o subsídio de desemprego (como ter trabalhado durante, pelo menos, 468 dias ao longo dos 27 meses que precederam o pedido, conforme exigido pelo artigo 30.° do Decreto Real de 25 de Novembro de 1991, e ter pagado as devidas contribuições para a segurança social). O seu pedido enfrenta dois obstáculos inter‑relacionados. Em primeiro lugar, o direito nacional dispõe (10) que só pode ser tido em consideração o trabalho efectuado que obedecer ao disposto na legislação relativa a estrangeiros e à mão‑de‑obra estrangeira. A aplicação deste requisito significaria que seria ignorado o trabalho a tempo inteiro efectuado por G. Ruiz Zambrano na Plastoria de 1 de Outubro de 2001 a 12 de Outubro de 2006, dado que durante esse período não teve qualquer autorização de trabalho e só obteve um certificado de registo de residência a partir de 13 de Setembro de 2005 (11). Em segundo lugar, o direito nacional enuncia que, para receber prestações, um trabalhador estrangeiro deve obedecer ao disposto na legislação relativa a estrangeiros (12).

39.      No entanto, todo o processo de G. Ruiz Zambrano no tribunal nacional gira em torno da questão de saber se, como nacional de um país terceiro, progenitor de menores com nacionalidade belga, a) a sua posição pode ser equiparada à de um nacional da União Europeia ou b) se goza de um direito de residência derivado pelo facto de, para além de serem nacionais belgas, os seus filhos serem cidadãos da União. Tanto a hipótese a) como a hipótese b) confeririam o necessário direito de residência substantivo ao abrigo do direito da União Europeia (13); a hipótese a), por si só, também o libertaria da necessidade de possuir uma autorização de trabalho; e a hipótese b) permitir‑lhe‑ia beneficiar, alegadamente, por necessária analogia, da dispensa da exigência de possuir uma autorização de trabalho, a que têm direito, nos termos do artigo 2.°, n.° 2, segundo parágrafo, alínea b), da Lei de 30 de Abril de 1999, os ascendentes a cargo de um nacional belga. De acordo com este argumento, se assim não fosse, haveria discriminação inversa contra os nacionais belgas que não tivessem exercido os direitos de livre circulação ao abrigo do direito da União Europeia, na medida em que não poderiam beneficiar das disposições relativas à reunificação familiar (14), que permitem, tanto a um cidadão da União Europeia que se tenha mudado de outro Estado‑Membro para a Bélgica como a um nacional belga que tenha exercido previamente a liberdade de circulação, a reunião deste com um ascendente, que não esteja a seu cargo, nacional de um país terceiro.

40.      Embora a acção no tribunal nacional tenha por objecto principal o pedido de concessão de subsídio de desemprego ao abrigo da legislação relativa à segurança social e laboral, e não o pedido de concessão de uma autorização de residência regulado pelo direito administrativo, é assim evidente que o tribunal nacional não se pode pronunciar sobre a causa que lhe foi submetida sem saber a) se G. Ruiz Zambrano pode invocar direitos derivados ao abrigo do direito da União Europeia pelo facto de, como cidadãos belgas, os seus filhos serem também cidadãos da União e b) quais os direitos de que gozaria um cidadão belga que, como cidadão da União, tivesse residido noutro Estado‑Membro e depois regressado à Bélgica (de modo a avaliar o argumento da discriminação inversa e a aplicar as eventuais normas pertinentes de direito nacional). Além disso, o tribunal nacional explicou com algum pormenor que o direito nacional (15) remete para o direito da União Europeia para efeitos da definição de quem é considerado um «membro da família» de um cidadão da União, indicando que esta definição é pertinente para a resolução do litígio nele pendente (16).

41.      A segunda questão decorre do facto de o advogado de G. Ruiz Zambrano ter informado o Tribunal de Justiça de que o Conseil d’État e a Cour Constitutionnelle da Bélgica tinham ambos decidido recentemente em circunstâncias semelhantes que, devido à discriminação inversa gerada pelo direito da União Europeia, tinha sido violado o princípio constitucional da igualdade (17). Poder‑se‑ia pensar que, em consequência disto, o presente pedido prejudicial se tornou supérfluo. Dito de outro modo: o tribunal de reenvio necessitará ainda de respostas às suas questões sobre o direito da União Europeia, agora que tem essa orientação, no âmbito do direito nacional, dos seus próprios tribunais superiores?

42.      Em meu entender, sim.

43.      Antes de o tribunal du travail poder aplicar a jurisprudência desenvolvida pelo Conseil d’État e pela Cour constitutionnelle, terá de verificar se surge efectivamente uma situação de discriminação inversa em resultado da interacção entre o direito da União Europeia e o direito nacional. Para o fazer, precisa da orientação do Tribunal de Justiça em relação à interpretação correcta do direito da União Europeia. No passado, o Tribunal de Justiça decidiu reenvios prejudiciais com este preciso objectivo: facilitar a tarefa do tribunal de reenvio de comparar a situação à luz do direito da União Europeia com a situação à luz do direito nacional (18). Admitiu, numa série de casos, que deveria proferir uma decisão em que a «interpretação de disposições do direito comunitário [actual direito da União Europeia] pode eventualmente ser útil ao órgão jurisdicional nacional, […] em especial na hipótese de o direito do Estado‑Membro em causa impor que qualquer cidadão nacional beneficie dos mesmos direitos que os que o cidadão de outro Estado‑Membro extrairia do direito comunitário [actual direito da União Europeia] numa situação considerada comparável pelo referido órgão jurisdicional» (19). Com efeito, o agente do Governo belga admitiu nas alegações orais que o tribunal de reenvio necessitaria de uma resposta do Tribunal de Justiça para poder verificar se existia discriminação inversa gerada pelo direito da União Europeia.

44.      Daqui decorre que o Tribunal de Justiça deve responder às questões prejudiciais.

 Reformulação das questões a serem resolvidas

45.      As questões submetidas pelo tribunal nacional impõem três linhas de argumentação. Mesmo não resultando, eventualmente, de forma totalmente clara da própria redacção das questões submetidas, podem ser inferidas da análise mais pormenorizada exposta no despacho de reenvio.

46.      A maior preocupação do tribunal de reenvio está relacionada com a questão de saber se é necessário haver circulação para serem aplicadas as disposições do Tratado sobre a cidadania da União. O tribunal de reenvio está bem ciente de que os artigos 20.° TFUE e 21.° TFUE são distintos, do ponto de vista conceptual, da livre circulação de trabalhadores prevista no artigo 45.° TFUE, da liberdade de estabelecimento prevista no artigo 49.° TFUE, ou, com efeito, de todas as liberdades «económicas» previstas nos artigos 34.° TFUE e seguintes. No entanto, quão diferentes são as disposições relativas à cidadania?

47.      O tribunal nacional interroga‑se então sobre o papel que desempenham os direitos fundamentais (em particular, o direito fundamental à vida familiar, conforme definido pelo Tribunal de Justiça nos acórdãos Carpenter (20), MRAX (21) e Zhu e Chen (22)) na determinação do âmbito de aplicação dos artigos 20.° TFUE e 21.° TFUE.

48.      Por último, o tribunal nacional coloca uma questão sobre a função do artigo 18.° TFUE na protecção dos particulares contra a discriminação inversa gerada pelo direito da União Europeia através das disposições relativas à cidadania da União.

49.      Para que não haja dúvidas, e para poder dar uma resposta útil ao tribunal de reenvio, abordarei as três questões do seguinte modo.

50.      Em primeiro lugar, tratarei da questão de saber se Diego e Jessica podem invocar direitos ao abrigo dos artigos 20.° TFUE e 21.° TFUE como cidadãos da União, apesar de não terem (ainda) saído do Estado‑Membro de que são nacionais, e se G. Ruiz Zambrano pode, por conseguinte, invocar um direito de residência derivado de modo a estar presente na Bélgica para cuidar e sustentar os seus filhos pequenos (primeira questão). A resposta a esta questão exige que eu verifique se esta é – como tem sido convictamente sugerido – uma situação «puramente interna» ou se existe realmente um nexo suficiente com o direito da União Europeia para serem invocados direitos de cidadania. É igualmente suscitada a questão de saber se o artigo 21.° TFUE inclui dois direitos autónomos – o direito de circulação e o direito de residência autónomo – ou se confere simplesmente o direito de circulação (e então o de residência).

51.      Em segundo lugar, abordarei a questão da discriminação inversa, que é suscitada reiteradamente pelo tribunal nacional. Por conseguinte, analisarei o âmbito do artigo 18.° TFUE e se este pode ser aplicado para resolver casos de discriminação inversa gerada pelas disposições do direito da União Europeia relativas à cidadania da União (segunda questão). Embora esta questão tenha sido abordada nos últimos anos (23), continua por resolver.

52.      Por último, tratarei da questão dos direitos fundamentais (terceira questão). O tribunal nacional deixou bem claro no despacho de reenvio que pretende ser esclarecido sobre se o direito fundamental à vida familiar desempenha algum papel no presente caso, em que nem o cidadão da União nem os seus progenitores colombianos se deslocaram para fora da Bélgica. Esta questão levanta, por sua vez, uma questão mais básica: qual é o âmbito dos direitos fundamentais conferidos pelo direito da União Europeia? Podem estes ser invocados autonomamente? Ou deverá existir algum tipo de nexo com um outro direito, clássico, conferido pelo direito da União Europeia?

53.      Uma vez que é evidente que o problema dos direitos fundamentais se reflecte como um «leitmotiv» nas três questões, antes de iniciar esta análise examinarei – a título de prólogo – se é plausível considerar que G. Ruiz Zambrano e a sua família correm realmente o risco de o seu direito fundamental à vida familiar consagrado no direito da União Europeia ser violado.

 Prólogo: situação da família Ruiz Zambrano e potencial violação do direito fundamental à vida familiar consagrado no direito da União Europeia

54.      No acórdão Carpenter (24), o Tribunal de Justiça reconheceu o direito fundamental à vida familiar como fazendo parte dos princípios gerais do direito da União Europeia. Para chegar a esta conclusão, baseou‑se na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «Tribunal de Estrasburgo»). No acórdão Boultif c. Suíça (25), esse tribunal declarou que «excluir uma pessoa de um país onde vivem os seus familiares chegados pode constituir uma ingerência no direito ao respeito da vida familiar tal como vem protegido no artigo 8.°, n.° 1, da [CEDH]» (26). O conceito de «família» na CEDH limita‑se, em grande medida, à família nuclear (27), que inclui claramente G. Ruiz Zambrano e a Sr.ª Moreno López como progenitores de Diego e de Jessica.

55.      De igual modo, segundo jurisprudência assente do Tribunal de Estrasburgo, só se pode permitir a separação de uma pessoa dos seus familiares quando for demonstrado que esta é «necessári[a] numa sociedade democrática, isto é, justificad[a] por uma necessidade social imperiosa e, nomeadamente, proporcionad[a] ao objectivo legítimo prosseguido» (28). A aplicação do artigo 8.°, n.° 2, da CEDH, que estabelece uma derrogação ao direito garantido pelo artigo 8.°, n.° 1, da CEDH, implica que seja aplicado o critério da proporcionalidade que tem em conta factores, nomeadamente, como o momento em que a família se estabeleceu, a boa fé do requerente, as diferenças culturais e sociais do Estado para o qual os membros da família seriam enviados e o respectivo grau de integração na sociedade do Estado contratante (29).

56.      Por seu turno, o Tribunal de Justiça, embora baseando‑se em larga medida na jurisprudência do Tribunal de Estrasburgo, desenvolveu a sua própria linha de raciocínio. Em resumo, o Tribunal de Justiça concederá protecção nos seguintes casos e/ou com referência aos seguintes factores (30).

57.      Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça não exige que o cidadão da União seja o demandante no processo principal para conceder protecção. Assim, o direito fundamental à vida familiar consagrado no direito da União Europeia já serviu indirectamente para proteger nacionais de países terceiros que eram familiares chegados do cidadão da União. Na medida em que teria havido ingerência no direito à vida familiar do cidadão da União, o nacional do país terceiro, membro da família que intentou a acção, também gozava de protecção (31).

58.      Em segundo lugar, o direito fundamental pode ser invocado mesmo que o membro da família a quem seja dada a ordem de expulsão do país não seja um residente legal (32).

59.      Em terceiro lugar, o Tribunal de Justiça avalia se o membro da família constitui um perigo para a ordem pública ou a segurança pública (que justificaria a sua expulsão do território) (33).

60.      Em quarto lugar, o Tribunal de Justiça só aceitará uma justificação baseada no abuso de direitos no caso de o Estado‑Membro poder demonstrar claramente a má fé do demandante (34).

61.      Estas e outras características dos direitos fundamentais aqui em questão – o direito à vida familiar e os direitos da criança – estão reflectidas, respectivamente, nos artigos 7.° e 24.°, n.° 3, da Carta dos Direitos Fundamentais. À época dos factos, a Carta constituía soft law, não vinculando as autoridades belgas. No entanto, o Tribunal de Justiça já se tinha nela baseado como auxílio à interpretação, incluindo em casos relativos ao direito à vida familiar (35). Desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, a Carta adquiriu o estatuto de direito primário (36).

62.      Em meu entender, a decisão das autoridades belgas de ordenar a expulsão de G. Ruiz Zambrano da Bélgica, seguida da sua contínua recusa em conceder‑lhe uma autorização de residência, constitui uma potencial violação do direito fundamental dos seus filhos à vida familiar e à protecção dos seus direitos como crianças e, assim (aplicando a jurisprudência Carpenter e Zhu e Chen), do direito equivalente de G. Ruiz Zambrano à vida familiar como seu progenitor. Digo «potencial» porque G. Ruiz Zambrano ainda se encontra em território belga. É, contudo, evidente que a execução da ordem de expulsão poderia desencadear a violação destes direitos.

63.      É igualmente evidente que esta violação poderia ser grave. Se G. Ruiz Zambrano fosse expulso, então a sua mulher também o seria. O efeito destas medidas nos filhos seria radical. Dadas as suas idades, os menores deixariam de poder viver autonomamente na Bélgica. Por consequência, o mal menor seria, presumivelmente, que deixassem a Bélgica com os seus pais. Todavia, isso implica desenraizá‑los da sociedade e da cultura em que nasceram e se integraram. Ainda que, em última instância, seja da competência do órgão jurisdicional nacional fazer uma apreciação pormenorizada do caso concreto, é conveniente partir do pressuposto de que a violação pode bem ser grave.

64.      É verdade que os filhos de G. Ruiz Zambrano nasceram numa época em que a situação deste já era irregular. No entanto, a informação constante do despacho de reenvio sugere que G. Ruiz Zambrano se integrou totalmente na sociedade belga e que não coloca qualquer ameaça ou perigo. Ainda que seja da competência do tribunal nacional, como único juiz da matéria de facto, efectuar as necessárias constatações a este respeito, parece‑me que os seguintes elementos sustentam esta ideia.

65.      Em primeiro lugar, G. Ruiz Zambrano trabalhou regularmente depois de ter entrado na Bélgica, contribuiu devidamente para o sistema de segurança social belga e não apresentou nenhum pedido de apoio financeiro (37). Em segundo lugar, ele e a sua mulher, a Sr.ª Moreno López, tiveram uma vida familiar normal e os seus filhos estão agora na escola na Bélgica. Em terceiro lugar, as autoridades belgas estiveram dispostas a aceitar, nos cofres do Estado belga, as contribuições para a segurança social de G. Ruiz Zambrano durante os cinco anos em que este trabalhou na Plastoria – atitude que contrasta, curiosamente, com a relutância de um outro ministério belga em conceder‑lhe uma autorização de residência (38). Em quarto lugar, o facto de o Commissariat général aux réfugiés et aux apatrides ter emitido uma ordem de não repulsão indica que G. Ruiz Zambrano e a sua família não podem ser enviados de volta para a Colômbia porque isso os colocaria numa situação de perigo real. Assim, se lhes fosse exigido abandonar a Bélgica, teriam de encontrar um Estado terceiro que estivesse disposto a aceitá‑los, com o qual poderiam ter ou não alguma ligação. Em quinto lugar, ao conceder a G. Ruiz Zambrano uma autorização de residência temporária renovável em 2009, as autoridades belgas confirmaram tacitamente que a sua presença na Bélgica não coloca nenhum risco para a sociedade e que não existem razões imperativas de ordem pública que justificassem exigir‑lhe que abandonasse o país imediatamente.

66.      Por estas razões, parece‑me que, se as autoridades belgas tivessem continuado a recusar conceder a G. Ruiz Zambrano uma autorização de residência depois do nascimento do seu primeiro filho belga (Diego), executando a ordem existente contra ele em que se exigia que abandonasse o país (39), é provável que esta atitude fosse considerada uma violação grave do direito fundamental à vida familiar, consagrado no direito da União Europeia, de Diego e, portanto, indirectamente, de G. Ruiz Zambrano.

 Primeira questão – Cidadania da União

 Observações preliminares

67.      Em 1992, o Tratado de Maastricht introduziu a cidadania europeia como um estatuto novo e complementar para todos os nacionais dos Estados‑Membros. Ao conceder a todos os cidadãos o direito de circular e de residir livremente no território dos Estados‑Membros, o novo Tratado reconheceu o papel essencial das pessoas singulares, independentemente de serem ou não economicamente activas, na nova União. Cada cidadão goza dos direitos e está sujeito aos deveres que, em conjunto, constituem um novo estatuto – estatuto este que o Tribunal de Justiça declarou em 2001 que visava tornar‑se «o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros» (40).

68.      As consequências dessa declaração são, em meu entender, tão importantes e de tão grande alcance como as da jurisprudência anterior mais importante do Tribunal de Justiça. De facto, considero que a descrição da cidadania da União que o Tribunal de Justiça faz no acórdão Gryzelczyk pode ter tanta importância como a sua declaração pioneira no acórdão van Gend & Loos, segundo a qual «[a] Comunidade constitui uma nova ordem jurídica de direito international, em favor da qual os Estados limitaram [...] os seus direitos soberanos, e cujos sujeitos são não só os Estados‑Membros, mas também os seus nacionais» (41).

 Pode uma pessoa invocar direitos derivados da cidadania da União Europeia pelo simples facto de residir no Estado‑Membro da sua nacionalidade?

 Circulação e direitos (económicos) clássicos de livre circulação

69.      É consabido que, para se poder invocar os direitos económicos clássicos associados às quatro liberdades, se exige normalmente algum tipo de circulação entre os Estados‑Membros. No entanto, mesmo neste contexto, importa salientar que o Tribunal de Justiça reconheceu a importância de não obstar ou impedir o exercício de tais direitos e viu com maus olhos as medidas nacionais que podiam ter um efeito dissuasor no potencial exercício do direito de livre circulação.

70.      No acórdão Dassonville (42), o Tribunal de Justiça fez a famosa declaração de que «toda e qualquer legislação comercial dos Estados‑Membros susceptível de entravar, directa ou indirectamente, efectiva ou potencialmente, o comércio [na União] deve ser considerada uma medida de efeito equivalente a restrições quantitativas». O carácter geral desta fórmula tem permitido ao Tribunal de Justiça examinar minuciosamente as medidas nacionais discriminatórias e não discriminatórias mesmo quando não tenha havido necessariamente circulação de mercadorias (43). O efeito dissuasor de uma medida nacional pode ser suficiente para desencadear a aplicação do que é actualmente o artigo 34.° TFUE (ex‑artigo 28.° CE). Assim, no acórdão Carbonati Apuani (44), o Tribunal de Justiça, seguindo o advogado‑geral M. Poiares Maduro, concluiu que os encargos que incidiam sobre as mercadorias no interior de um Estado‑Membro violavam o Tratado (45). O Tribunal de Justiça indicou claramente que o actual artigo 26.°, n.° 2, TFUE (ex‑artigo 14.°, n.° 2, CE), ao definir o mercado interno como «um espaço sem fronteiras internas no qual a livre circulação das mercadorias, das pessoas, dos serviços e dos capitais é assegurada», o faz «sem que esta disposição proceda a uma distinção entre fronteiras interestatais e intra‑estatais» (46).

71.      Um exame semelhante foi alargado à livre circulação de pessoas e serviços no acórdão Säger (47), no qual o Tribunal de Justiça explicou que o artigo 59.° CEE (actual artigo 56.° TFUE) exigia «não só a eliminação de qualquer discriminação contra o prestador de serviços em razão da sua nacionalidade, mas também a supressão de qualquer restrição, ainda que indistintamente aplicada a prestadores nacionais e de outros Estados-Membros, quando seja susceptível de impedir ou entravar de alguma forma as actividades do prestador estabelecido noutro Estado‑Membro onde preste legalmente serviços análogos» (48). Com esta linha de argumentação, o Tribunal de Justiça completou o raciocínio no acórdão Kraus (49), no qual declarou que uma medida «susceptível de afectar ou de tornar menos atraente o exercício pelos nacionais [da União Europeia], incluindo os do Estado‑Membro autor da medida, das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado» é também abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União Europeia (50).

72.      No entanto, segundo jurisprudência assente actual, uma pessoa cuja capacidade de circular na União Europeia seja «afectada» ou se tenha «tornado menos atraente», mesmo pelo Estado‑Membro da sua nacionalidade, pode invocar os direitos conferidos pelo Tratado (51).

73.      Com efeito, o Tribunal de Justiça já aceitou uma certa atenuação da exigência de que o exercício de direitos implica uma deslocação física efectiva através de uma fronteira. Assim, no acórdão Alpine Investments (52), o Tribunal declarou que a proibição de contactar telefonicamente clientes potenciais que se encontram noutro Estado‑Membro se enquadra no âmbito de aplicação das disposições do Tratado relativas à liberdade de prestação de serviços, apesar de não haver qualquer deslocação física. No acórdão Carpenter (53), o Tribunal de Justiça admitiu que o direito da União Europeia tinha um efeito determinante no resultado de um recurso da decisão de expulsão emitida pelas autoridades do Reino Unido contra uma nacional filipina. O direito da União Europeia podia ser invocado porque o marido de M. Carpenter, um cidadão britânico, se deslocava de vez em quando para outros Estados‑Membros para vender espaços publicitários numa revista britânica. O Tribunal de Justiça aceitou o argumento de que era mais fácil para o marido de M. Carpenter prestar e receber serviços pelo facto de ela se ocupar dos seus filhos nascidos do primeiro casamento. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça concluiu que a expulsão de M. Carpenter restringiria o direito do seu marido de prestar e de receber serviços, bem como o seu direito à vida familiar (54).

74.      Mais recentemente, no acórdão Metock e o. (55), o Tribunal de Justiça admitiu que o exercício, no passado, do direito de liberdade de circulação pela Sr.ª Metock, uma nacional dos Camarões que subsequentemente obteve a nacionalidade britânica e que já residia e trabalhava na Irlanda quando casou com o seu marido (também nacional dos Camarões, que tinha conhecido doze anos antes nesse país), bastava para permitir que o seu marido adquirisse um direito de residência derivado na Irlanda, apesar de não satisfazer o requisito estabelecido no direito nacional de que deveria ter residido legalmente noutro Estado‑Membro antes da sua chegada à Irlanda (56).

 Circulação e cidadania da União

75.      Em muitos casos de cidadania, existe um elemento transfronteiriço claramente identificável que é equivalente ao exercício dos direitos económicos clássicos de livre circulação. Assim, no processo Bickel e Franz (57), os arguidos, que eram um nacional austríaco e um nacional alemão, respectivamente, contra quem tinham sido instaurados processos penais no Trentino – Alto Adige, região da Itália (isto é, no antigo Süd Tirol), desejavam que esses processos decorressem em alemão e não em italiano. No processo Martínez Sala (58), a recorrente era uma cidadã espanhola que se tinha estabelecido na Alemanha. No processo Bidar (59), Dany Bidar tinha‑se mudado de França para o Reino Unido, onde viveu com a sua avó para completar os seus estudos após a morte da sua mãe antes de pedir um empréstimo para financiar os seus estudos universitários.

76.      Além disso, quando os nacionais de um Estado‑Membro invocam direitos decorrentes da cidadania da União contra o seu próprio Estado‑Membro, normalmente deixaram já esse Estado‑Membro para depois regressarem. No processo D’Hoop (60), Marie‑Nathalie D’Hoop tinha deixado a Bélgica para ir viver para França, onde completou os seus estudos, tendo regressado depois à Bélgica onde requereu o «subsídio de inserção» concedido aos jovens que tinham acabado de concluir os seus estudos e que procuravam o seu primeiro emprego. No processo Grunkin e Paul (61), Leonhard Matthias Grunkin‑Paul viajava entre a Dinamarca (onde tinha nascido, vivido e frequentado a escola) e a Alemanha (país de que era nacional) para aí estar com o seu pai divorciado. Precisava que o seu passaporte alemão fosse emitido no mesmo nome que lhe tinha sido dado legalmente na Dinamarca, e não num nome diferente.

77.      No entanto, não creio que o exercício dos direitos derivados da cidadania da União esteja sempre indissociável e necessariamente dependente de uma deslocação física. Existem já processos relativos à cidadania em que o elemento de deslocação efectiva é dificilmente identificável ou francamente inexistente.

78.      No processo Garcia Avello (62), os progenitores eram cidadãos espanhóis que foram viver para a Bélgica, mas os seus filhos Esmeralda e Diego (que tinham dupla nacionalidade, espanhola e belga, e cujo apelido controvertido constituía o objecto do processo) nasceram na Bélgica e, tanto quanto é possível deduzir dos autos, nunca tinham saído do país. No processo Zhu e Chen (63), Catherine Zhu nasceu numa região do Reino Unido (Irlanda do Norte), tendo­‑se deslocado meramente dentro do Reino Unido (para a Inglaterra). As leis que então concediam a nacionalidade irlandesa a qualquer pessoa nascida na ilha da Irlanda (incluindo a Irlanda do Norte), juntamente com bom aconselhamento jurídico, permitiu‑lhe invocar a cidadania da União para obter o direito de residência no Reino Unido para si e para a sua mãe, de nacionalidade chinesa, uma vez que, de outro modo, ter-lhe-ia sido impossível, como criança que começa a andar, exercer efectivamente os seus direitos como cidadã da União. No processo Rottmann (64), J. Rottmann adquiriu a cidadania em causa (cidadania alemã adquirida por naturalização, e não a sua anterior cidadania austríaca adquirida por nascimento) depois de ter deixado a Áustria para ir residir na Alemanha. No entanto, o acórdão não tem em conta essa deslocação anterior, examinando exclusivamente os efeitos futuros que a revogação da naturalização teria ao tornar apátrida J. Rottmann (voltarei mais tarde, mais pormenorizadamente, a este recente acórdão importante) (65).

79.      Quando se examinam os vários direitos que o Tratado confere aos cidadãos da União, é evidente que alguns deles – nomeadamente, o direito de votar e de se candidatar às eleições municipais e às eleições para o Parlamento Europeu – só podem ser invocados num Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro de que é nacional a pessoa em causa (66). Outros – o direito de petição ao Parlamento Europeu, nos termos do disposto no artigo 227.° TFUE, e o direito de se dirigir ao Provedor de Justiça, nos termos do disposto no artigo 228.° TFUE – parecem poder ser exercidos sem qualquer limitação geográfica (67). O direito à protecção diplomática ou consular, previsto no artigo 23.° TFUE (ex‑artigo 20.° CE), pode ser exercido em qualquer país terceiro em que o Estado‑Membro de que é nacional a pessoa em causa não se encontre representado.

80.      O que é, talvez, o direito «essencial» – o «direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros» (68) – é mais difícil de definir. É um direito combinado (direito de «circular‑e‑permanecer»)? Um direito sequencial («direito de circular e, tendo circulado nalgum momento do passado, de permanecer»)? Ou são dois direitos autónomos («direito de circular» e «direito de permanecer»)?

 Impacto dos direitos fundamentais

81.      Perante a escolha entre restringir a interpretação do «direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros», consagrado nos artigos 20.°, n.° 2, alínea a), e 21.°, n.° 1, TFUE, às situações em que o cidadão da União Europeia se tenha primeiro deslocado para outro Estado‑Membro ou aceitar que os termos «circular» e «permanecer» possam ser considerados separadamente, de modo a que um cidadão da União Europeia não seja impedido de invocar esses direitos no caso de residir (sem deslocação prévia) no Estado‑Membro de que é nacional, o que deve fazer o Tribunal de Justiça?

82.      Nesta altura, é necessário voltar à questão da protecção dos direitos fundamentais na ordem jurídica da União Europeia.

83.      No processo Konstantinidis (69), o advogado‑geral F. Jacobs expôs, de modo muito eloquente, a importância dos direitos fundamentais no contexto clássico da livre circulação. Este processo dizia respeito a um massagista grego que trabalhava na Alemanha, no qual alegava que a transliteração oficial do seu nome violava os direitos que lhe eram conferidos pelo direito da União Europeia. A abordagem do advogado‑geral F. Jacobs em relação à jurisprudência Wachauf (acórdão de 13 de Julho de 1989, 5/88, Colect., p. 2609) existente teve consequências consideráveis. O processo Konstantinidis deixou de ser meramente um caso sobre discriminação em razão da nacionalidade para se tornar num caso sobre o direito fundamental à identidade pessoal. Reconhecer o direito do requerente (como fez o Tribunal de Justiça no seu acórdão) implica aceitar o princípio de que um nacional da União Europeia que se desloca para outro Estado‑Membro tem o direito de presumir «que, aonde quer que vá ganhar a vida na [União Europeia], será tratado de acordo com um código comum de valores fundamentais […]. Por outras palavras, tem o direito de afirmar civis europeus sum e de invocar esta condição para se opor a qualquer violação dos seus direitos fundamentais» (70). Um cidadão da União que exerce o direito de livre circulação pode invocar o leque completo de direitos fundamentais protegidos pelo direito da União Europeia (quer estejam ou não ligados à actividade económica para cujo exercício circula entre os Estados‑Membros). Se assim não fosse, poderia ser dissuadido de exercer esse direito de livre circulação.

84.      Seria (no mínimo) paradoxal que um cidadão da União pudesse invocar os direitos fundamentais consagrados no direito da União Europeia quando exerce um direito económico de livre circulação enquanto trabalhador, ou quando o direito nacional é abrangido pelo âmbito de aplicação do Tratado (por exemplo, as disposições sobre a igualdade salarial) ou quando invoca o direito derivado da União Europeia (como a directiva serviços), mas não o pudesse fazer quando se limita a «permanecer» nesse Estado‑Membro. Pondo de lado, para exemplificar o problema, qualquer tipo de protecção que possa ser obtida, no âmbito da própria ordem jurídica nacional, por se invocar o artigo 8.° da CEDH, suponhamos (muito improvavelmente) que uma norma nacional do Estado‑Membro A concede uma protecção reforçada à liberdade de expressão religiosa apenas às pessoas que nele tenham permanecido continuamente durante 20 anos. Um nacional do Estado‑Membro A (como Marie‑Nathalie D’Hoop) que, no passado, tenha exercido o direito de livre circulação ao ir para o Estado‑Membro vizinho B e que só recentemente tenha regressado ao Estado‑Membro A poderia invocar os seus direitos fundamentais contra o Estado‑Membro de que é nacional no contexto da sua cidadania da União (invocando tanto o artigo 9.° da CEDH como o artigo 10.° da Carta). Um cidadão da União de 18 anos de idade, nacional do Estado‑Membro B, mas que tenha nascido e vivido sempre no Estado‑Membro A, poderia fazer o mesmo? [Não há qualquer discriminação na norma nacional impugnada baseada, directa ou indirectamente, na nacionalidade, pelo que não pode ser invocado o artigo 18.° TFUE (ex‑artigo 12.° CE)]. Com base no acórdão Garcia Avello, a resposta é certamente «sim» – mas dar esta resposta implica que o «direito de permanecer» é um direito autónomo, e não um direito ligado por algum cordão umbilical legal ao direito de circulação. Por último, o que acontece (e aqui deixo antever a discussão sobre a discriminação inversa) com um cidadão da União de 18 anos, nacional do Estado‑Membro A, que nele reside e que não pode indicar qualquer outra ligação com o direito da União Europeia que tenha surgido por acidente ou de forma deliberada (por exemplo, quando tenha viajado para o Estado‑Membro B numa excursão escolar)?

85.      Perante este cenário, volto à jurisprudência existente do Tribunal de Justiça relativa à cidadania.

86.      Se se insistir no princípio de que é necessário haver deslocação física para um Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro de que se é nacional antes de poderem ser invocados direitos de residência como cidadão da União, corre‑se o risco de se obter um resultado não só estranho como ilógico. Suponhamos que um vizinho simpático tenha levado Diego e Jessica a visitar uma ou duas vezes o Parc Astérix em Paris ou a costa da Bretanha (71). Nesse caso, teriam recebido serviços noutro Estado‑Membro. Se tentassem invocar direitos decorrentes da sua «circulação», não se poderia dizer que a sua situação fosse «puramente interna» da Bélgica (72). Teria bastado uma visita? Duas? Várias? Teria sido suficiente uma viajem de um dia, ou precisariam de ter permanecido uma noite ou duas em França?

87.      Se a família, tendo sido obrigada a deixar a Bélgica e mesmo a União Europeia, procurasse obter refúgio, por exemplo, na Argentina, Diego e Jessica poderiam, como cidadãos da União Europeia, pedir protecção diplomática e consular a missões de outros Estados‑Membros nesse país terceiro. Poderiam procurar obter acesso a documentos e escrever ao Provedor de Justiça; mas não poderiam, nesta hipótese, invocar os seus direitos como cidadãos da União para continuar a residir na Bélgica.

88.      É difícil evitar uma sensação de mal-estar perante um resultado como este. O exercício dos direitos de cidadania da União Europeia parece ser regido pela sorte, e não pela lógica.

89.      Seria necessário alargar radicalmente a jurisprudência em matéria de cidadania para se poder declarar, no presente caso, que os direitos dos filhos de G. Ruiz Zambrano como cidadãos da União eram já susceptíveis de ser invocados – não obstante não se terem ainda aventurado a sair do Estado‑Membro de que são nacionais – e (nesse caso) para então se verificar se G. Ruiz Zambrano pode invocar um direito de residência derivado?

90.      Penso não ser necessário dar um passo especialmente grande.

 É esta uma situação puramente interna?

91.      No presente processo, os Estados‑Membros que apresentaram observações afirmaram unanimemente que a situação de G. Ruiz Zambrano é uma situação «puramente interna» da Bélgica e que as disposições de direito da União Europeia, incluindo as relativas à cidadania da União, não são, por isso, aplicáveis. A Comissão seguiu uma linha de argumentação semelhante. Em maior ou menor medida, todos apontam para a possível protecção que pode ser concedida a G. Ruiz Zambrano e à sua família ao abrigo do direito nacional ou da CEDH e convidam o Tribunal de Justiça, com maior ou menor veemência, a não contemplar a possibilidade de serem aplicáveis os direitos previstos nas disposições relativas à cidadania.

92.      Não concordo com esta opinião.

93.      Importa salientar que, no processo Rottmann, tanto a República Federal da Alemanha (Estado‑Membro de que J. Rottmann obteve nacionalidade por naturalização) como a República da Áustria (Estado‑Membro de origem), apoiadas pela Comissão, alegaram que, «no momento da decisão de revogação da [sua] naturalização […] no processo principal, [J. Rottmann] era [um] cidadão alemão, residente na Alemanha, ao qual era dirigido um acto administrativo emanado duma autoridade alemã. [...] [T]rata‑se de uma situação puramente interna, que não tem conexão alguma com o direito da União, não devendo este aplicar‑se pelo simples facto de um Estado‑Membro adoptar uma medida relativamente a um dos seus cidadãos. O facto de, numa situação como a do processo principal, o interessado ter exercido o seu direito de livre circulação antes da sua naturalização não pode constituir, por si só, um elemento transfronteiriço susceptível de influenciar a revogação da referida naturalização» (73).

94.       Quando examinou esse argumento, o Tribunal de Justiça aceitou a sugestão de não considerar o exercício anterior por parte de J. Rottmann do seu direito de livre circulação (da Áustria para a Alemanha) e olhou para o futuro e não para o passado. Salientou, convictamente, que, apesar de a concessão e perda da nacionalidade serem matérias da competência dos Estados‑Membros, em situações abrangidas pelo direito da União, as normas nacionais em causa devem, todavia, respeitar este direito. O Tribunal de Justiça concluiu que «a situação de um cidadão da União [...] confrontado com uma decisão de revogação da naturalização [...] que o coloca [...] numa situação susceptível de implicar a perda do estatuto conferido pelo artigo [20.° TFUE] e dos direitos correspondentes[…] é abrangida, pela sua própria natureza e pelas suas consequências, pelo direito da União» (74).

95.      Parece‑me que o raciocínio do Tribunal de Justiça no acórdão Rottmann, lido em conjugação com a sua decisão anterior no acórdão Zhu e Chen, pode ser imediatamente transposto para o presente caso. Aqui, a concessão da nacionalidade belga aos filhos de G. Ruiz Zambrano, Diego e Jessica, era uma questão da competência desse Estado‑Membro. No entanto, uma vez concedida essa nacionalidade, os filhos tornaram­‑se cidadãos da União e podem exercer os direitos que lhe foram conferidos como tais cidadãos, simultaneamente aos seus direitos como nacionais belgas. Ainda não saíram do seu próprio Estado‑Membro. Assim como não tinha saído J. Rottmann após a sua naturalização. Se os progenitores não tiverem um direito de residência derivado e se foram obrigados a deixar a Bélgica, as crianças, com toda a probabilidade, terão de partir com eles. Na prática, isso colocaria Diego e Jessica numa «situação susceptível de implicar a perda do estatuto conferido [pela sua cidadania da União] e dos direitos correspondentes». Donde decorre – como para J. Rottmann – que a situação das crianças «é abrangida, pela sua própria natureza e pelas suas consequências, pelo direito da União».

96.      Além disso, como Catherine Zhu, Diego e Jessica não podem exercer plena e efectivamente os seus direitos como cidadãos da União (concretamente, os seus direitos de circular e de residir em qualquer Estado‑Membro) sem a presença e o apoio dos seus progenitores. Em razão da mesma conexão que o Tribunal de Justiça reconheceu no acórdão Zhu e Chen (conexão que permite a uma criança exercer efectivamente os seus direitos de cidadania), daqui decorre que a situação de G. Ruiz Zambrano não é igualmente uma situação «puramente interna» do Estado‑Membro. É abrangida também pelo âmbito do direito da União Europeia.

97.      Por conseguinte, daqui decorre também (como no acórdão Rottmann) que, «[n]estas condições, compete ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se sobre as questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio» – ou, para expor essencialmente a mesma ideia de modo diferente, que os factos deste caso não constituem uma situação puramente interna, sem qualquer conexão ao direito da União Europeia. Ao fazê‑lo, considero que o Tribunal de Justiça precisa de resolver as seguintes questões: a) poderá haver ingerência nos direitos dos filhos de G. Ruiz Zambrano, como cidadãos da União, de circular e de permanecer livremente no território dos Estados‑Membros? b) Se esta ingerência existir, é, em princípio, admissível? c) Se for, em princípio, admissível, está sujeita, contudo, a alguma limitação (por exemplo, por razões de proporcionalidade)?

 Existe ingerência?

98.      Como cidadãos da União, os filhos de G. Ruiz Zambrano têm indubitavelmente o «direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros». Teoricamente, podem exercer este direito. Na prática, não o podem fazer independentemente dos seus pais por causa da sua idade.

99.      Se G. Ruiz Zambrano não puder gozar de um direito de residência derivado na Bélgica (questão de que depende o seu direito ao subsídio de desemprego), então, mais cedo ou mais tarde, terá de abandonar o Estado‑Membro de que são nacionais os seus filhos. Atendendo à sua idade (e desde que, evidentemente, qualquer partida não tenha sido adiada até ao ponto de as crianças terem atingido a maioridade), os seus filhos terão de partir com ele (75). Não poderão exercer o seu direito de circular e de permanecer no território da União Europeia. As semelhanças com o processo Rottmann são óbvias. Os direitos de J. Rottmann como cidadão da União estavam seriamente ameaçados pelo facto de a revogação da sua naturalização na Alemanha o deixar impossibilitado de exercer esses direitos ratione personae. No presente caso, os filhos de G. Ruiz Zambrano enfrentam uma ameaça semelhante aos seus direitos ratione loci; precisam de poder continuar fisicamente presentes no território da União Europeia para circular entre os Estados‑Membros ou permanecer em qualquer Estado‑Membro (76).

100. Como vimos (principalmente nos processos Garcia Avello, Zhu e Chen e Rottmann), a jurisprudência existente permite já que sejam invocados certos direitos de cidadania independentemente de ter havido circulação prévia transfronteiriça por parte do cidadão da União em questão. Parece‑me que, se o recorrente ou recorrentes dos primeiros dois processos tivessem tido necessidade de invocar um direito de residência autónomo perante as autoridades dos Estados‑Membros em causa (nacionais espanhóis na Bélgica, nacional irlandês no Reino Unido), o Tribunal de Justiça ter‑lhes‑ia certamente reconhecido esse direito. No acórdão Rottmann, o Tribunal de Justiça foi já mais longe ao proteger os direitos de cidadania futuros de um nacional alemão residente na Alemanha. Perante este cenário, seria artificial não reconhecer abertamente que (embora, na prática, o direito de residência seja, na grande maioria dos casos, provavelmente exercido após o exercício do direito de circulação) o artigo 21.° TFUE prevê um direito de residência distinto, que é independente do direito de livre circulação.

101. Por conseguinte, recomendo que o Tribunal de Justiça reconheça agora a existência deste direito de residência autónomo.

102. Pelas razões que já indiquei, Diego e Jessica não podem exercer esse direito de residência sem o apoio dos seus pais. Por conseguinte, concluo que, nas circunstâncias do presente caso, a recusa em reconhecer um direito de residência derivado a G. Ruiz Zambrano pode, eventualmente, constituir uma ingerência no direito de residência de Diego e Jessica como cidadãos da União.

103. Acrescento que, se o Tribunal de Justiça não estiver disposto a aceitar que o artigo 21.° TFUE confere um direito de residência autónomo, ainda assim concluiria, nas circunstâncias deste caso, que a potencial ingerência no direito de Diego e de Jessica de circular e de permanecer no território da União é suficientemente análoga à de Catherine Zhu (que nunca havia residido na República da Irlanda e que, com efeito, nunca havia saído do território do Reino Unido) para que a sua situação deva ser equiparada à desta.

 A ingerência pode ser justificada?

104. Começo por observar que, ao optar por não fazer uma declaração expressa de que os seus filhos deveriam tornar‑se colombianos e ao optar, em vez disso, por que eles adquirissem a nacionalidade do Estado‑Membro da União Europeia em que nasceram, G. Ruiz Zambrano fez uso de uma possibilidade prevista na lei. A este respeito, o seu comportamento pode ser devidamente comparado ao do Sr. Zhu e da sua mulher. O Tribunal de Justiça deixou claro que não há nada de repreensível por se aproveitar de uma possibilidade conferida por lei e que essa situação se pode claramente distinguir de um abuso de direitos (77). Desde que ocorreram os factos do presente caso, a legislação belga relativa à nacionalidade foi alterada (78), deixando de ser possível a alguém na situação de G. Ruiz Zambrano optar por não registar os seus filhos junto das autoridades diplomáticas ou consulares do seu próprio país, de modo a garantir que obteriam a nacionalidade belga. No entanto, nessa altura, o seu comportamento não tinha nada de errado.

105. É importante ter em conta este facto – em particular, em relação a qualquer argumento de «portas abertas» à imigração. Os Estados‑Membros controlam quem se pode tornar seu nacional (79). No caso vertente, o Tribunal de Justiça considera exclusivamente os direitos que essas pessoas podem invocar, depois de se terem tornado nacionais de um Estado‑Membro, pelo facto de terem adquirido simultaneamente a cidadania da União.

106. Assim, no processo Kaur (80), Manjit Kaur não podia ser «privada» dos direitos decorrentes do estatuto de cidadão da União, porque não correspondia à definição de nacional do Reino Unido da Grã-bretanha e Irlanda do Norte. Como não superou o primeiro obstáculo e não preenchia as condições, à luz das normas em matéria de nacionalidade que lhe eram aplicáveis, para poder ser considerada uma «pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado‑Membro», não pôde subsequentemente invocar os direitos conferidos pelo direito da União Europeia que lhe permitiam, como cidadão da União, residir em qualquer Estado‑Membro (incluindo o Reino Unido) (81). No presente caso, porém, os filhos de G. Ruiz Zambrano são titulares e gozam dos direitos normais dos nacionais belgas, tal como J. Rottmann era titular e gozava dos direitos normais da sua nacionalidade alemã adquirida por naturalização.

107. Existem, claramente, situações em que o exercício de direitos por um cidadão da União Europeia não depende da concessão de direitos de residência a um ascendente. Assim, um cidadão da União Europeia que tenha atingido a maioridade pode exercer os seus direitos de viajar e de residir no território da União Europeia sem que seja necessário conceder ao seu progenitor ou progenitores direitos de residência paralelos no Estado‑Membro escolhido.

108. Por conseguinte, em meu entender, a potencial ingerência nos direitos de cidadania da União Europeia que se produz se um ascendente não gozar de um direito de residência derivado automático no Estado‑Membro de que é nacional o cidadão da União é, em princípio, admissível. No entanto, pode não ser uma ingerência admissível em determinadas circunstâncias (em especial, porque pode não ser proporcionada).

 Proporcionalidade

109. Como declarou o Tribunal de Justiça nos acórdãos Micheletti e o. (82), Kaur (83) e, mais recentemente, no acórdão Rottmann (84), embora a concessão da nacionalidade seja uma matéria da competência de cada Estado‑Membro, este deve, no entanto, no exercício dessa competência, respeitar o direito da União Europeia. O Tribunal de Justiça chegou ao mesmo resultado no acórdão Bickel e Franz (85), no que se refere à legislação e processo penal, no acórdão García Avello (86), no que respeita às normas nacionais que regem os apelidos, e no acórdão Schempp (87), em relação à tributação directa – todas elas matérias sensíveis em que os Estados‑Membros ainda exercem poderes significativos.

110. No caso em apreço, como tão frequentemente, a situação implica o exercício de um direito e uma potencial justificação para uma ingerência nesse direito (ou uma derrogação ao mesmo), e a questão resume‑se a uma questão de proporcionalidade. É proporcionado, nas circunstâncias do presente caso, recusar reconhecer a G. Ruiz Zambrano um direito de residência derivado dos direitos dos seus filhos como cidadãos da União Europeia? Embora a decisão sobre a proporcionalidade seja (como de costume), em definitivo, uma questão a resolver pelo órgão jurisdicional nacional, podem ser úteis algumas breves considerações.

111. A aplicação do princípio da proporcionalidade no presente caso (como no processo Rottmann) exige que o «órgão jurisdicional de reenvio averigu[e] se a decisão [...] em causa no processo principal respeita o princípio da proporcionalidade, no que respeita às consequências que implica para a situação da pessoa interessada, à luz do direito da União» (88) (para além de examinar a proporcionalidade dessa decisão se assim for exigido pelo direito nacional). Como explicou a seguir nesse processo o Tribunal de Justiça, «[p]or conseguinte, dada a importância que o direito primário atribui ao estatuto de cidadão da União, há que ter em conta [...] as eventuais consequências que essa decisão implica para o interessado e, eventualmente, para os membros da sua família, no que respeita à perda dos direitos de que goza qualquer cidadão da União. A este propósito, importa essencialmente verificar, nomeadamente, se essa perda se justifica [...]» (89).

112. Durante a audiência, os Estados‑Membros intervenientes sublinharam que as condições de residência para nacionais de países terceiros são da competência dos Estados‑Membros. Os agentes dos Governos belga e dinamarquês afirmaram que G. Ruiz Zambrano é um requerente de asilo cujo pedido foi indeferido, a quem foi dada ordem de expulsão do território belga pouco depois de aí ter chegado em 1999. A partir de então, permaneceu ilegalmente durante um considerável período de tempo, não devendo assim beneficiar de um direito de residência ao abrigo do direito da União Europeia. O agente da Irlanda traçou um quadro dramático da vaga de imigração de nacionais de países terceiros que inevitavelmente iria ocorrer se se declarasse que G. Ruiz Zambrano gozava do direito de residência decorrente da nacionalidade belga dos seus filhos.

113. O advogado de G. Ruiz Zambrano salientou que o seu cliente tinha trabalhado sem interrupção para a Plastoria durante quase cinco anos. Durante esse período, pagou devidamente as suas contribuições à segurança social. Na inspecção efectuada pelas autoridades belgas à Plastoria, não tinham sido encontradas irregularidades em matéria de fiscalidade, de segurança social e laboral em relação ao seu emprego. Os únicos problemas constatados tinham sido a falta de autorização de trabalho e de autorização de residência, não tendo sido intentada nenhuma acção legal contra o seu empregador. Diego e Jessica nasceram muitos anos depois de G. Ruiz Zambrano e a sua mulher terem entrado na Bélgica com o seu primeiro filho. Não havia qualquer prova de que a adição à família, primeiro, de Diego e, depois, de Jessica representasse uma tentativa cínica de explorar uma eventual lacuna na legislação de modo a permanecer na Bélgica. Esta era uma verdadeira família. G. Ruiz Zambrano estava totalmente integrado na Bélgica. Os seus filhos frequentavam regularmente a sua escola local. Ele não tinha antecedentes criminais. De facto, desde então, tinha‑lhe sido concedida tanto uma autorização de residência provisória e renovável como uma autorização de trabalho de tipo C.

114. Já tratei, no essencial, do argumento do Governo irlandês relativo às «portas abertas» à imigração. Como demonstrou o próprio Estado‑Membro após o acórdão do Tribunal de Justiça no processo Zhu e Chen, se as normas específicas relativas à aquisição da sua nacionalidade forem – ou parecerem ser – susceptíveis de levar a resultados «impossíveis de gerir», o Estado‑Membro em causa pode alterá‑las de modo a resolver o problema.

115. Ao dizer isto, não estou a encorajar os Estados‑Membros a serem xenófobos ou a fechar as portas e a tornar a União Europeia numa «fortaleza Europa». Isto seria, de facto, um passo retrógrado e repreensível, e, além do mais, estaria em clara contradição com os objectivos políticos declarados (90). Recordo simplesmente que as normas relativas à aquisição da nacionalidade são da exclusiva competência dos Estados‑Membros. No entanto, os Estados‑Membros – tendo eles próprios criado o conceito de «cidadania da União» – não podem exercer o mesmo poder ilimitado relativamente às consequências, à luz do direito da União Europeia, da cidadania da União que resultam da concessão da nacionalidade de um Estado‑Membro.

116. No que respeita ao facto de G. Ruiz Zambrano não ter abandonado a Bélgica após o seu pedido de asilo ter sido indeferido, recordo que o mesmo impugnou as decisões administrativas em questão, e que esses processos judiciais têm sido longos. Recordo também que, no processo Carpenter, a nacional do país terceiro (M. Carpenter) tinha infringido a legislação nacional em matéria de imigração ao não ter abandonado o Reino Unido antes de ter expirado a sua autorização de permanência na qualidade de visitante. O Tribunal de Justiça não considerou que isso constituísse um obstáculo intransponível para posteriormente invocar direitos conferidos pelo direito da União Europeia, salientando que «a sua conduta, desde a sua chegada ao Reino Unido em Setembro de 1994, não foi objecto de qualquer outra censura susceptível de criar o receio de que constitua futuramente um perigo para a ordem pública e a segurança pública» (91).

117. Pelo contrário, no presente caso, as consequências a longo prazo para Diego e Jessica resultantes do não reconhecimento de um direito de residência derivado para G. Ruiz Zambrano são duras. Não podem exercer efectivamente o seu direito de residência como cidadãos da União sem a ajuda e o apoio dos seus pais. Por conseguinte, o seu direito de residência – até terem idade suficiente para o exercer de modo autónomo – será quase totalmente desprovido de conteúdo (como teria sido o caso de Catherine Zhu se a sua mãe, a Sr.ª Zhu, não tivesse continuado a permanecer no Reino Unido).

118. Para ser exaustiva, abordarei brevemente um argumento adicional que surge do objecto do processo perante o tribunal nacional, nomeadamente o possível risco de G. Ruiz Zambrano se tornar uma «sobrecarga excessiva» para as finanças públicas.

119. No acórdão Baumbast e R (92), o Tribunal de Justiça sublinhou que as limitações e condições indicadas no artigo 21.° TFUE se inspiram na ideia de que o exercício do direito de residência dos cidadãos da União pode ser subordinado aos interesses legítimos dos Estados‑Membros. A este respeito, «os beneficiários do direito de residência não devem constituir uma sobrecarga ‘não razoável’ para as finanças públicas do Estado‑Membro de acolhimento» (93). Todavia, o Tribunal de Justiça declarou também que «a aplicação das referidas limitações e condições deve ser feita respeitando os limites impostos pelo direito [da União Europeia] e em conformidade com os princípios gerais deste direito, designadamente o princípio da proporcionalidade» (94). Por outras palavras, as medidas nacionais adoptadas nesta matéria devem ser adequadas e necessárias para atingir o fim visado (95).

120. Ao apreciar a proporcionalidade no presente caso, o tribunal nacional precisará de ter em conta o facto de G. Ruiz Zambrano ter trabalhado a tempo inteiro durante quase cinco anos para a Plastoria. O seu trabalho foi declarado ao Office national de la sécurité sociale. Pagou as contribuições para a segurança social obrigatórias, e o seu empregador pagou as contribuições correspondentes. Assim, no passado, contribuiu constante e regularmente para as finanças públicas do Estado‑Membro de acolhimento.

121. Em meu entender, estes são factores que apontam para a conclusão de que seria desproporcionado não reconhecer um direito de residência derivado no presente caso. Contudo, em última instância, a decisão compete exclusivamente ao órgão jurisdicional nacional.

122. Por conseguinte, concluo que os artigos 20.° TFUE e 21.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que conferem o direito de permanecer no território dos Estados‑Membros, com base na cidadania da União, que é independente do direito de circular entre os Estados‑Membros. Estas disposições não impedem um Estado‑Membro de recusar conceder um direito de residência derivado a um ascendente de um cidadão da União que é nacional do Estado‑Membro em causa e que ainda não exerceu o seu direito de livre circulação, desde que essa decisão respeite o princípio da proporcionalidade.

 Segunda questão – Discriminação inversa

123. Com esta questão, pergunta­‑se se o artigo 18.° TFUE pode ser invocado para resolver uma situação de discriminação inversa gerada pela interacção do direito da União Europeia (neste caso, as disposições que regem a cidadania da União) com o direito nacional. O problema pode ser explicado do seguinte modo: se filhos pequenos (como Catherine Zhu) tiverem adquirido a nacionalidade de um Estado‑Membro diferente do seu Estado‑Membro de residência, os seus progenitores gozarão de um direito de residência derivado no Estado‑Membro de acolhimento em virtude do artigo 21.° TFUE e da decisão do Tribunal de Justiça no acórdão Zhu e Chen. Diego e Jessica têm nacionalidade belga e residem na Bélgica. G. Ruiz Zambrano pode invocar o artigo 18.° TFUE, que proíbe, no âmbito de aplicação dos Tratados, «toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade», de forma a invocar o mesmo direito de residência derivado?

124. Se o Tribunal de Justiça aceitar o raciocínio que propus relativamente à primeira questão, esta questão torna‑se redundante. No entanto, se o Tribunal de Justiça não seguir o meu raciocínio, torna‑se necessário considerar se o artigo 18.° TFUE pode ser invocado para resolver uma discriminação inversa deste tipo.

 Jurisprudência actual: uma crítica

125. No acórdão Baumbast e R (96), o Tribunal de Justiça afirmou que o artigo 18.° CE (actual artigo 21.° TFUE) tem efeito directo, conferindo aos particulares não economicamente activos um direito autónomo de livre circulação. Ao assim declarar, alargou os direitos de livre circulação às pessoas que não têm conexão directa com a economia do mercado único, que, por isso, não podiam invocar os direitos «clássicos» de livre circulação. Em meu entender, a evolução foi tanto coerente como inevitável, decorrendo logicamente da criação da cidadania da União. Se a União Europeia evoluísse para algo mais do que um enquadramento conveniente e efectivo para o desenvolvimento do comércio, tinha de garantir um papel adequado para aqueles a quem tinha decidido começar a chamar seus cidadãos (97).

126. No entanto, esse desenvolvimento implicou necessariamente uma série de outras consequências.

127. Em primeiro lugar, a partir do momento em que os Estados‑Membros decidiram acrescentar, aos conceitos existentes de nacionalidade, um estatuto novo e complementar de «cidadão da União», tornou‑se impossível considerar essas pessoas como meros factores económicos de produção. Os cidadãos não são «recursos» utilizados para produzir bens e serviços, mas pessoas vinculadas a uma comunidade política e protegidas pelos direitos fundamentais (98).

128. Em segundo lugar, quando os cidadãos circulam, fazem‑no como seres humanos e não como «robots». Apaixonam‑se, casam e criam famílias. A unidade familiar, dependendo das circunstâncias, pode ser composta exclusivamente por cidadãos da União Europeia ou por cidadãos da União Europeia e nacionais de países terceiros, estreitamente ligados uns aos outros. Se os membros da família não forem tratados do mesmo modo que o cidadão da União Europeia que exerce o seu direito de livre circulação, o conceito de liberdade de circulação torna‑se desprovido de qualquer real significado (99).

129. Em terceiro lugar, ao reconhecer direitos fundamentais ao abrigo do direito da União Europeia aos seus cidadãos, e ao declarar que tais direitos constituem a própria fundação da União (artigo 6.°, n.° 1, TUE), a União Europeia compromete‑se a respeitar o princípio de que os cidadãos que exercem direitos de liberdade de circulação o farão com a protecção desses direitos fundamentais (100).

130. Em quarto lugar, ao ratificarem o Tratado de Maastricht e os subsequentes Tratados que o alteraram, os Estados‑Membros aceitaram que – uma vez que os seus nacionais são também cidadãos da União Europeia – a tarefa de tratar das tensões ou dificuldades resultantes do exercício dos direitos de livre circulação desses cidadãos é uma tarefa partilhada: cabe a cada Estado‑Membro mas também à União Europeia (101).

131. Estas consequências não se coadunam com a ideia de que se deve seguir, relativamente à cidadania da União, a abordagem ortodoxa à livre circulação de mercadorias e à liberdade de circulação de trabalhadores, por conta de outrem ou independentes, e de capitais.

132. A razão subjacente às liberdades económicas fundamentais é criar um mercado único eliminando os entraves ao comércio e aumentando a concorrência. As ferramentas que o Tratado confere para prosseguir os objectivos do mercado único (estabelecidos, nomeadamente, no que é actualmente o artigo 3.° TUE) foram, consequentemente, desenvolvidas pelo Tribunal de Justiça. Assim, o Tribunal estabeleceu, designadamente, critérios para determinar o que constitui o nexo necessário com cada liberdade fundamental. Por exemplo, desde o acórdão Dassonville (102), tanto a circulação física potencial como a real têm sido relevantes para a livre circulação de mercadorias. Embora esta jurisprudência concreta não exija que tenha havido circulação real prévia, continua a ser a ideia de circulação (ainda que hipotética) que serve como chave para os direitos conferidos pelas liberdades fundamentais.

133. Uma consequência desta abordagem ao mercado interno é o risco de que os factores de produção «estáticos» fiquem em pior posição do que os «dinâmicos», apesar de em todos os outros aspectos as suas circunstâncias poderem ser semelhantes ou idênticas. O resultado é a discriminação inversa gerada pela interacção do direito da União Europeia com o direito nacional – discriminação esta que o Tribunal de Justiça deixou que fosse cada Estado‑Membro a resolver, apesar de tal resultado constituir, à primeira vista, uma violação do princípio da não discriminação em razão da nacionalidade (103).

134. Este resultado é aceitável, na perspectiva do direito da União Europeia, no presente contexto específico da cidadania da União?

135. Um exame de três acórdãos recentes serve para demonstrar que continuar a aplicar esta abordagem tradicional, de não interferência, pode gerar resultados curiosamente aleatórios (104).

136. Resulta do acórdão Carpenter (105) que um trabalhador por conta própria que tem clientes noutros Estados‑Membros pode conferir um direito de residência derivado ao seu cônjuge, nacional de um país terceiro, no interesse da protecção do direito à vida familiar. Se o mesmo trabalhador por conta própria só tiver clientes no seu próprio Estado‑Membro, o direito da União Europeia é irrelevante. Contudo, hoje em dia, e precisamente devido ao sucesso do mercado interno, é problemático traçar esta clara distinção entre trabalhadores por conta própria com interesses noutro Estado‑Membro e trabalhadores por conta própria somente com interesses no seu próprio Estado‑Membro. P. Carpenter viajava ocasionalmente para outros Estados‑Membros para vender espaços publicitários em revistas. E se ele não se tivesse fisicamente deslocado, mas mesmo assim tivesse prestado serviços ocasionais a clientes noutros Estados‑Membros, por telefone ou por Internet? E se os seus clientes incluíssem de vez em quando filiais, no Reino Unido, de sociedades‑mãe alemãs ou francesas? E se, numa dada ocasião, ele tivesse vendido espaço publicitário numa revista a um cliente que não estava exclusivamente estabelecido no Reino Unido?

137. No processo Zhu e Chen (106), a mãe, chinesa, de Catherine Zhu obteve um direito de residência derivado devido à nacionalidade irlandesa da sua filha, adquirida através da aplicação da norma extraterritorial que então fazia parte da lei da nacionalidade desse Estado‑Membro. No caso, toda a «circulação» teve lugar através da canal de São Jorge, entre a Inglaterra e a Irlanda do Norte, dentro de um único Estado‑Membro (o Reino Unido). No entanto, existia um vínculo suficiente com o direito da União Europeia para permitir que mãe e filha invocassem direitos de residência no Reino Unido. Este vínculo só surgiu por se ter organizado o nascimento de Catherine Zhu na Irlanda do Norte. Mas deve ser uma questão de sorte condicionada pela história (a norma extraterritorial na lei da nacionalidade de um Estado‑Membro) que determina a possibilidade de o direito da União Europeia ser invocado em tais circunstâncias? É este um resultado razoável em termos de segurança jurídica e de igualdade de tratamento dos cidadãos da União?

138. A recente decisão no processo Metock e o. ilustra claramente a incerteza e a consequente discriminação. Em 2003, a Grande Secção declarou no acórdão Akrich que, «para poder beneficiar dos direitos previstos no artigo 10.° do Regulamento [(CEE) n.° 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade (JO L 257, p. 2; EE 05 F1 p. 77)], o nacional de um país terceiro, cônjuge de um cidadão da União, deve residir legalmente num Estado‑Membro no momento da sua deslocação para outro Estado‑Membro, para o qual o cidadão da União migra ou migrou» (107). Cinco anos mais tarde, o Tribunal de Justiça declarou que, à luz dos acórdãos MRAX (108) e Comissão/Espanha (109), a jurisprudência Akrich devia ser reconsiderada. E assim foi: o benefício dos mesmos direitos que estavam em causa no processo Akrich já não pode depender de um cônjuge, nacional de um país terceiro, ter previamente residido legalmente noutro Estado‑Membro. Não obstante, o Tribunal de Justiça continuou a traçar uma distinção entre cidadãos da União que já tinham exercido o direito de livre circulação e os que não tinham, recordando laconicamente que todos os Estados‑Membros assinaram a CEDH e que o artigo 8.° desta protege o direito ao respeito da vida familiar (110). Os cidadãos «estáticos» da União continuavam, deste modo, a sofrer as potenciais consequências da discriminação inversa, apesar de os direitos dos cidadãos «dinâmicos» da União terem sido consideravelmente ampliados.

 Uma proposta

139. Em meu entender, existem desvantagens significativas na linha jurisprudencial actual do Tribunal de Justiça. Por conseguinte, creio que chegou o momento de convidar o Tribunal de Justiça a tratar abertamente da questão da discriminação inversa. Os argumentos que apresentarei seguem a linha que expus no processo Gouvernement de la Communauté française e gouvernement wallon, mas atrever‑me‑ei a sugerir – no contexto específico de casos relacionados com os direitos de cidadania ao abrigo do artigo 21.° TFUE – critérios que podem ser utilizados para determinar se o próprio artigo 18.° TFUE pode ser invocado para contrapor a este tipo de discriminação.

140. Não vai haver, de um momento para o outro, uma mudança radical em toda a jurisprudência sobre a discriminação inversa. Com efeito, não é isto que proponho. As minhas sugestões limitam‑se a casos relacionados com a cidadania da União. É nesta área que os resultados da jurisprudência actual são mais claramente prejudiciais e em que uma mudança é, talvez, mais necessária.

141. Todos os processos que acabei de discutir – Carpenter, Zhu e Chen e Metock e o. – têm em comum duas características: geram insegurança jurídica numa matéria delicada tanto de direito da União Europeia como de direito interno, e são casos em que o Tribunal de Justiça optou por fazer uma interpretação generosa do artigo 21.° TFUE de modo a proteger os direitos fundamentais. Ao equilibrar a segurança jurídica e a protecção dos direitos fundamentais, o Tribunal de Justiça deu assim preferência, coerentemente, a esta última. O seu raciocínio está de acordo com a sua declaração seminal anterior de que a cidadania da União visa tornar‑se «o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros» (111).

142. Todavia, a insegurança gerada pela jurisprudência não é desejável. Qual é, assim, a direcção que o Tribunal de Justiça deve agora seguir?

143. Por um lado, é necessário evitar a tentação de «esticar» o artigo 21.° TFUE de modo a alargar a protecção àqueles que «por pouco» não preenchem os requisitos para dela beneficiar. Tem de existir um limite relativamente a qualquer norma que confira um direito. Se não existir tal limite, a norma torna‑se indecifrável e ninguém poderá dizer com certeza quem irá ou não gozar do benefício que ela confere. Isto não é do interesse dos Estados‑Membros nem do cidadão e põe em causa a autoridade do Tribunal de Justiça. Por outro lado, se o artigo 21.° TFUE for interpretado de modo demasiado restritivo, gera‑se um maior número de situações de discriminação inversa que serão deixadas para os Estados‑Membros resolverem. Este não parece também um resultado muito satisfatório.

144. Por conseguinte, sugiro ao Tribunal de Justiça que o artigo 18.° TFUE seja interpretado no sentido de que proíbe a discriminação inversa causada pela interacção entre o artigo 21.° TFUE e o direito nacional que implica a violação de um direito fundamental protegido pelo direito da União Europeia, quando não estiver prevista uma protecção pelo menos equivalente no direito nacional.

145. Se esta interpretação fosse seguida, o artigo 18.° TFUE aplicar‑se‑ia apenas quando estivessem preenchidos três requisitos cumulativos.

146. Em primeiro lugar, o demandante deveria ser um cidadão da União residente no Estado‑Membro da sua nacionalidade que não tivesse exercido o direito de livre circulação ao abrigo do Tratado FUE (o direito económico clássico de livre circulação ou de livre circulação ao abrigo do artigo 21.° TFUE), mas cuja situação fosse comparável, noutros aspectos importantes, à de outros cidadãos da União no mesmo Estado‑Membro que pudessem invocar os direitos decorrentes do artigo 21.° TFUE. Assim, a discriminação inversa contestada deveria ser causada pelo facto de os sujeitos comparáveis adequados (os outros cidadãos da União) poderem invocar direitos ao abrigo do artigo 21.° TFUE, enquanto um cidadão «estático» da União residente no Estado‑Membro da sua nacionalidade não poderia, à primeira vista, basear­‑se no direito nacional para obter essa protecção.

147. Em segundo lugar, a discriminação inversa contestada deveria implicar a violação de um direito fundamental protegido pelo direito da União Europeia. Nem todos os exemplos menores de discriminação inversa seriam abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 18.° TFUE. O que constituísse uma «violação de um direito fundamental» seria definido, na medida do possível, com referência à jurisprudência do Tribunal de Estrasburgo (112). Quando a discriminação inversa conduzisse a um resultado que fosse considerado uma violação de um direito protegido pelo Tribunal de Estrasburgo, seria, de igual modo, considerado uma violação de um direito protegido pelo nosso Tribunal de Justiça. Assim, o direito da União Europeia assumiria a responsabilidade de remediar as consequências da discriminação inversa causada pela interacção do direito da União Europeia com o direito nacional somente nos casos em que essas consequências fossem incoerentes com os níveis de protecção mínimos estabelecidos pela CEDH. Ao garantir assim, nestas circunstâncias, a protecção efectiva dos direitos fundamentais nos níveis mínimos de «Estrasburgo», o Tribunal de Justiça anteciparia em parte as exigências que poderiam advir da planeada adesão da União Europeia à CEDH. Tal desenvolvimento só poderia fortalecer o espírito de cooperação e confiança mútua já existente entre os dois órgãos jurisdicionais (113).

148. Em terceiro lugar, o artigo 18.° TFUE seria utilizado unicamente a título subsidiário em relação a situações em que o direito nacional não proporciona uma protecção adequada dos direitos fundamentais. O direito da União Europeia tem uma longa tradição de conferir protecção com carácter subsidiário. Assim, os princípios da efectividade (114) e da equivalência (115), o direito à protecção jurídica efectiva (116) e o princípio da responsabilidade do Estado pela violação do direito da União Europeia (117) são todos eles ferramentas que entram em jogo somente quando as normas de direito interno se revelam inadequadas. Este último requisito serve para manter um equilíbrio adequado entre a autonomia do Estado‑Membro e o «efeito útil» do direito da União Europeia (118), assegurando que a protecção subsidiária conferida pelo direito da União Europeia complementa o direito nacional, e não que se impõe à força. Competiria ao órgão jurisdicional nacional determinar a) se o direito nacional previa algum tipo de protecção e, b) no caso de esta, em princípio, estar prevista, se esta protecção era ou não pelo menos equivalente à protecção prevista no direito da União Europeia.

149. Na audiência, o advogado de G. Ruiz Zambrano indicou que o Conseil d’État e a Cour constitutionnelle da Bélgica se tinham recentemente pronunciado sobre a discriminação inversa sofrida por um nacional de um Estado terceiro numa situação comparável à do seu cliente (119). Cabe, obviamente, em exclusivo ao órgão jurisdicional nacional verificar se, no presente caso, G. Ruiz Zambrano pode obter a necessária protecção do direito nacional, sem recorrer ao artigo 18.° TFUE. De acordo com a minha proposta, continuaria a caber ao órgão jurisdicional nacional aplicar os três critérios cumulativos que sugiro e permitir que o direito da União Europeia fosse invocado para evitar a discriminação inversa somente nos casos em que esses critérios fossem satisfeitos.

150. Por conseguinte, sugiro que se responda à segunda questão que o artigo 18.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que proíbe a discriminação inversa causada pela interacção do artigo 21.° TFUE com o direito nacional, que implica a violação de um direito fundamental protegido pelo direito da União Europeia, quando não estiver prevista uma protecção pelo menos equivalente no direito nacional.

 Terceira questão – Direitos fundamentais

151. Se o Tribunal de Justiça considerar que tanto a primeira como a segunda questão (conforme acima expostas) devem ser respondidas de um modo que não é favorável a G. Ruiz Zambrano, torna‑se necessário examinar a terceira questão. Pode este invocar o direito fundamental à vida familiar, consagrado no direito da União Europeia, independentemente de quaisquer outras disposições deste?

152. Esta questão suscita uma questão de princípio da maior importância: qual é o âmbito de aplicação dos direitos fundamentais ao abrigo do direito da União Europeia? Podem estes ser invocados como direitos autónomos contra um Estado‑Membro? Ou deve existir qualquer outro nexo com o direito da União Europeia? Não é necessário alongar‑me acerca da potencial importância da resposta a esta questão.

153. O próprio Tribunal de Justiça foi, naturalmente, responsável pelo primeiro reconhecimento dos princípios fundamentais de direito e dos direitos fundamentais na ordem jurídica da União Europeia (120). Em 1992, os frutos dessa jurisprudência foram incorporados no Tratado da União Europeia, estabelecendo no artigo 6.° TUE a obrigação da União de respeitar os direitos fundamentais.

154. Em anos subsequentes, a União Europeia reforçou a sua política dos direitos fundamentais através, por exemplo, da criação de uma Agência dos Direitos Fundamentais (121), da criação de um portefólio autónomo no interior da Comissão responsável pelos direitos fundamentais (122), do apoio a projectos humanitários em todo o mundo (123) e da transformação da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada pela primeira vez em 2000, de um texto não vinculativo (soft law) em direito primário (124). Os direitos fundamentais tornaram‑se, assim, num elemento central na evolução da União como processo de integração económica, jurídica e social destinado a proporcionar paz e prosperidade a todos os seus cidadãos.

155. É verdade, obviamente, que este Tribunal não é, como tal, um «tribunal de direitos humanos». Não obstante, como intérprete supremo do direito da UE, o Tribunal de Justiça tem a responsabilidade permanente de assegurar o respeito dos referidos direitos na esfera da competência da União. Com efeito, no acórdão Bosphorus Hava Yolları Turizm ve Ticaret Anonim Şirketi c. Irlanda (125), o Tribunal de Estrasburgo indicou que o Tribunal de Justiça da União Europeia tem um papel essencial a desempenhar na salvaguarda dos direitos decorrentes da CEDH e respectivos protocolos, na medida em que são aplicáveis a questões regidas pelo direito da União Europeia – função esta que só poderá adquirir um maior significado quando a União Europeia aderir à CEDH (126). Por esta razão, é essencial que o Tribunal de Justiça assegure uma interpretação dos Tratados que reflicta, de modo coerente, o papel e significado actuais dos direitos fundamentais da União Europeia.

 Âmbito de aplicação dos direitos fundamentais da União Europeia

156. De acordo com jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, os direitos fundamentais da União Europeia podem ser invocados unicamente quando a medida impugnada se enquadrar no âmbito de aplicação do direito da União Europeia (127). Todas as medidas adoptadas pelas instituições estão, portanto, sujeitas a fiscalização quanto ao seu respeito dos direitos fundamentais da União Europeia. O mesmo se poderá dizer em relação aos actos dos Estados‑Membros adoptados para dar cumprimento às obrigações que lhes incumbem por força do direito da União Europeia ou, mais geralmente, que são abrangidas pelo âmbito de aplicação do direito da União Europeia (128). Este aspecto é obviamente delicado (129), na medida em que leva a protecção dos direitos fundamentais da União Europeia para a esfera de cada Estado‑Membro, onde coexiste com os níveis de protecção dos direitos fundamentais consagrados no direito interno ou na CEDH. Os consequentes problemas que surgem em relação à sobreposição dos níveis de protecção previstos nos diversos sistemas (direito da União Europeia, direito constitucional nacional e CEDH) e o nível de protecção dos direitos fundamentais garantidos pelo direito da União Europeia são bem conhecidos (130) e, por isso, não os aprofundarei aqui.

157. O Tribunal de Justiça desenvolveu ampla jurisprudência que confirma a sua declaração inicial no acórdão Wachauf (131) de que «as exigências dos [direitos fundamentais] vinculam igualmente os Estados‑Membros aquando da implementação das regulamentações da [União Europeia]». Significativamente, também declarou que esta regra é aplicável quando um Estado‑Membro estabelece uma derrogação a uma liberdade económica fundamental garantida pelo direito da União Europeia (132). No acórdão Carpenter (133), o Tribunal de Justiça foi mais longe, partindo da jurisprudência relativa ao chamado «cold calling» do acórdão Alpine Investments (134), de forma a proteger os direitos fundamentais de um cidadão da União Europeia (P. Carpenter), residente no seu próprio Estado‑Membro, mas que prestava ocasionalmente serviços a clientes residentes noutros Estados‑Membros. O reconhecimento de que a expulsão de M. Carpenter constituiria uma ingerência desproporcionada no direito à vida familiar de P. Carpenter teve como efeito a concessão a M. Carpenter – uma nacional de um país terceiro que não teria podido exercer os direitos de livre circulação conferidos pelo direito da União Europeia – do direito de residência.

158. No entanto, o Tribunal de Justiça estabeleceu limites ao âmbito de aplicação dos direitos fundamentais da União Europeia – concretamente, em relação a situações que considerou não estarem abrangidas pelo âmbito de aplicação do direito da União Europeia.

159. Assim, no processo Maurin (135), o arguido foi acusado de ter posto à venda géneros alimentícios cuja data‑limite de consumo tinha sido ultrapassada. Este alegou que os seus direitos de defesa tinham sido violados no decurso do processo nacional. O Tribunal de Justiça sublinhou que, embora houvesse uma directiva que exigia que os géneros alimentícios indicassem uma data‑limite de consumo, a directiva não regulamentava a venda de géneros alimentícios com rótulos adequados cuja data‑limite de consumo tivesse sido ultrapassada. Consequentemente, a infracção de que J.‑L. Maurin foi acusado «releva[va] de uma regulamentação nacional que se situa[va] fora do âmbito do direito [da União Europeia], de modo que o Tribunal carec[ia] de competência para se pronunciar sobre a eventual violação dos princípios relativos à protecção dos direitos d[e] defesa e ao respeito do contraditório por regras processuais aplicáveis a essa infracção» (136).

160. De igual modo, no acórdão Kremzow (137), o Tribunal de Justiça julgou improcedentes as alegações de um cidadão austríaco que tinha sido condenado na Áustria, mas cujo recurso tinha sido posteriormente declarado pelo Tribunal de Estrasburgo como tendo violado o direito a um processo equitativo consagrado no artigo 6.° da CEDH. F. Kremzow pediu uma indemnização e alegou também que o seu direito à liberdade de circulação ao abrigo do direito da União Europeia tinha sido violado em consequência da sua prisão ilegal. O Tribunal de Justiça não concordou com essa posição, afirmando que, «[c]om efeito, embora a privação de liberdade seja susceptível de impedir o exercício pelo interessado do seu direito à livre circulação, […] a perspectiva puramente hipotética desse exercício não constitui um nexo suficiente com o direito [da União Europeia] para justificar a aplicação das disposições [do direito da União Europeia]» (138).

161.  No entanto, o acórdão Kremzow acrescenta um importante matiz à jurisprudência anterior. Tendo confirmado a natureza hipotética do pedido, o Tribunal de Justiça declarou que, uma vez que «F. Kremzow foi condenado por homicídio e posse ilegal de armas de fogo nos termos de disposições de direito nacional que não se destinavam a garantir o respeito das regras de direito [da União Europeia], [d]aqui resulta que a regulamentação nacional ora aplicável no processo principal respeita a uma situação que não entra no âmbito de aplicação do direito da [União Europeia]» (139). A contrario, parece inferir‑se que poderia ter sido encontrado um nexo relevante com o direito da União Europeia se as infracções tivessem tido uma conexão com uma política da União Europeia (por exemplo, se tivessem sido geradas para garantir o cumprimento de um objectivo do direito da União Europeia estabelecido na legislação derivada da União Europeia) (140).

162. São relevantes para a questão dos direitos fundamentais o domínio concreto do direito envolvido e a amplitude da competência da União Europeia nesse domínio? Esta questão parece importante. O desejo de promover uma protecção adequada dos direitos fundamentais não deve levar a uma usurpação de competências. Desde que as competências da União Europeia continuem baseadas no princípio da atribuição de competências, os direitos fundamentais da União Europeia devem respeitar os limites dessa atribuição (141).

163. A transparência e a clareza exigem que se possa identificar com certeza o que significa «o âmbito de aplicação do direito da União Europeia» para efeitos da protecção dos direitos fundamentais da União Europeia. Parece‑me que, a longo prazo, a regra mais clara seria a regra que não fizesse depender a protecção dos direitos fundamentais da União Europeia de uma disposição do Tratado ser directamente aplicável nem de ter sido adoptada legislação derivada, mas da existência e do âmbito de aplicação de uma competência material da União Europeia. Dito de outro modo, a regra seria que, desde que a União Europeia tivesse competência (exclusiva ou partilhada) num determinado domínio do direito, os direitos fundamentais da União Europeia deviam proteger o cidadão da União Europeia mesmo que essa competência não tivesse sido ainda exercida.

164. Por que é que faço esta sugestão?

165. Os Estados‑Membros atribuíram competências à União Europeia que lhe permite adoptar medidas que têm primazia sobre o direito nacional e que podem ter efeito directo. Como corolário, uma vez atribuídas essas competências, a União Europeia deve ter tanto a competência como a responsabilidade de garantir os direitos fundamentais, independentemente de essas competências terem sido ou não exercidas de facto. A União Europeia «funda‑se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem» (142). Esta garantia do Tratado não deve depender do exercício efectivo da competência legislativa. Numa União Europeia fundada nos direitos fundamentais e no Estado de direito, a protecção não deve depender da iniciativa legislativa das instituições e do processo político. Tal protecção contingente de direitos é a antítese do modo como as democracias contemporâneas legitimam a autoridade do Estado (143).

166. Esta abordagem teria várias vantagens.

167. Em primeiro lugar, evita a necessidade de criar ou promover «nexos com o direito da União Europeia» fictícios ou hipotéticos do tipo que, no passado, tem por vezes confundido e possivelmente ampliado o âmbito de aplicação das disposições do Tratado. Uma pessoa que tenha exercido o direito à liberdade de circulação não necessitaria de demonstrar a existência de um nexo entre o direito fundamental subsequentemente invocado e a facilitação dessa liberdade de circulação (144). A pessoa que ainda não tivesse exercido esses direitos não necessitaria de planear fazê‑lo para criar as circunstâncias em que poderia beneficiar da protecção dos direitos fundamentais (145) (a liberdade de circulação para receber serviços é, talvez, a mais fácil, das quatro liberdades, de explorar a este respeito). A discriminação inversa contra nacionais de um Estado‑Membro causada pela protecção dos direitos fundamentais da União Europeia concedida aos concidadãos da União Europeia e aos concidadãos do Estado‑Membro que exerceram direitos de livre circulação deixaria de existis (146). No futuro, não haveria discrepância (no que diz respeito à protecção dos direitos fundamentais da União Europeia) entre políticas harmonizadas no todo e em parte. Em termos de segurança jurídica, a melhoria seria significativa.

168. Em segundo lugar, esta abordagem mantém a União Europeia dentro dos limites das suas competências. A protecção dos direitos fundamentais ao abrigo do direito da União Europeia só seria relevante quando as circunstâncias que levaram a que fosse invocada fossem abrangidas num domínio da competência exclusiva ou partilhada da União Europeia (147). O tipo de competência envolvido seria relevante para efeitos da definição do âmbito de protecção adequado. No caso de competências partilhadas, a própria lógica subjacente à repartição de competências tenderia a implicar que a protecção dos direitos fundamentais prevista no direito da União Europeia fosse complementar à prevista no direito nacional (148). (Isto reflecte a abordagem que sugeri acima relativamente à discriminação inversa.)

169. Em terceiro lugar, se se soubesse que os direitos fundamentais ao abrigo do direito da União Europeia são garantidos em todas as áreas de competência partilhada ou exclusiva da União, os Estados‑Membros poderiam sentir‑se encorajados a avançar com disposições pormenorizadas de direito derivado da União Europeia em certas áreas particularmente sensíveis (como a imigração ou o direito penal), que incluiria uma definição apropriada do alcance exacto dos direitos fundamentais da União Europeia, em vez de deixar que o problema dos direitos fundamentais fosse solucionado pelo Tribunal de Justiça numa base ad hoc, à medida que são objecto de processos.

170. Em quarto lugar, esta definição do âmbito de aplicação dos direitos fundamentais da União Europeia seria coerente com todas as implicações da cidadania da União, que visa tornar‑se «o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros» (149). Este estatuto não se concilia com a noção de que a protecção dos direitos fundamentais é parcial e fragmentada, que depende da questão de saber se uma disposição substantiva relevante tem efeito directo ou se o Conselho e o Parlamento Europeu exerceram os poderes legislativos. A longo prazo, somente a protecção perfeita dos direitos fundamentais ao abrigo do direito da União Europeia em todas as áreas da competência exclusiva ou partilhada da União Europeia se coaduna com o conceito de cidadania da União Europeia.

171. Apesar destas vantagens consideráveis, não considero que tal passo possa ser dado unilateralmente pelo Tribunal de Justiça no presente caso.

172. Tornar a aplicação dos direitos fundamentais da União Europeia dependente unicamente da existência de uma competência exclusiva ou partilhada da União Europeia implicaria introduzir um elemento claramente federal na estrutura do sistema jurídico e político da União Europeia. Dito simplesmente, uma mudança deste tipo seria análoga à experimentada no direito constitucional dos Estados Unidos depois da decisão no processo Gitlow c. Nova Iorque (150), no qual a Supreme Court dos Estados Unidos ampliou o alcance de vários direitos consagrados na primeira alteração da Constituição aos Estados individualmente considerados. A jurisprudência da «incorporação», baseada desde então na cláusula «processo justo» da décima quarta alteração dessa Constituição, não exige circulação interestatal nem actos legislativos do Congresso. Segundo a Supreme Court, certos direitos fundamentais são tão importantes que estão «entre os direitos e liberdades fundamentais da pessoa protegidos pela cláusula do processo justo […] dos danos causados pelos Estados» (151).

173. O efeito federalizante da doutrina da incorporação americana é bem conhecido. Uma mudança deste tipo alteraria, em termos jurídicos e políticos, a própria natureza dos direitos fundamentais ao abrigo do direito da União Europeia. Por conseguinte, exige uma evolução da jurisprudência e uma declaração política inequívoca dos poderes constituintes da União Europeia (os seus Estados‑Membros) apontando para o novo papel dos direitos fundamentais na União Europeia.

174. Para os efeitos do presente processo, o momento importante é o nascimento do segundo filho de G. Ruiz Zambrano, Diego, em 1 de Setembro de 2003. É este acontecimento (a entrada na equação de um cidadão da União) que – se G. Ruiz Zambrano tiver razão – devia ter levado as autoridades belgas a admitirem que este tinha direitos de residência derivados e a examinarem assim o seu pedido de subsídio de desemprego.

175. Nessa altura, o Tratado da União Europeia tinha‑se mantido essencialmente inalterado desde Maastricht. O Tribunal de Justiça tinha declarado claramente no parecer 2/94 que a Comunidade Europeia não tinha, nessa altura, poderes para ratificar a CEHD (152). A Carta era ainda soft law, sem ter efeito directo ou reconhecimento no Tratado. O Tratado de Lisboa nem sequer estava no horizonte. Perante este cenário, simplesmente não considero que a evolução constitucional necessária dos fundamentos da União Europeia, que pudesse justificar dizer que os direitos fundamentais ao abrigo do direito da União Europeia podiam ser invocados de modo independente como direitos autónomos, já tivesse ocorrido.

176. Por conseguinte, concluo, em resposta à última das questões que reformulei, que, à época dos factos no processo principal, o direito fundamental à vida familiar consagrado no direito da União Europeia não podia ser invocado como um direito autónomo, independentemente de qualquer outro nexo com o direito da União Europeia, tanto por um nacional de um Estado terceiro como por um cidadão da União, quer no território do Estado‑Membro de que era nacional esse cidadão quer em qualquer outro lugar no território dos Estados‑Membros.

177. Ao propor essa resposta, estou a admitir que o Tribunal de Justiça não deveria, no presente caso, antecipar abertamente a mudança. Sugiro, porém, que o Tribunal de Justiça terá de optar (quanto antes) entre acompanhar o ritmo de uma situação em evolução ou deixar‑se para trás em relação aos desenvolvimentos legislativos e políticos que já ocorreram. A certa altura, o Tribunal de Justiça terá provavelmente de examinar um caso – supostamente, um reenvio prejudicial de um tribunal nacional – que exige que se confronte com a questão de saber se a União não está agora na transição de uma mudança constitucional (como o próprio Tribunal de Justiça previu parcialmente quando emitiu o parecer 2/94). Para já, pode adiar‑se a resposta a esta questão, mas provavelmente não por muito mais tempo.

 Conclusão

178. À luz de todas as considerações precedentes, considero que o Tribunal de Justiça deve responder às questões submetidas pelo tribunal du travail de Bruxelles do seguinte modo:

«1)      Os artigos 20.° TFUE e 21.° TFUE (ex‑artigos 17.° CE e 18.° CE) devem ser interpretados no sentido de que conferem o direito de permanecer no território dos Estados‑Membros, com base na cidadania da União, que é independente do direito de circular entre os Estados‑Membros. Estas disposições não impedem um Estado‑Membro de recusar conceder um direito de residência derivado a um ascendente de um cidadão da União que é nacional do Estado‑Membro em causa e que ainda não exerceu o seu direito de livre circulação, desde que essa decisão respeite o princípio da proporcionalidade.

2)      O artigo 18.° TFUE (ex‑artigo 12.° CE) deve ser interpretado no sentido de que proíbe a discriminação inversa causada pela interacção do artigo 21.° TFUE com o direito nacional, que implica a violação de um direito fundamental protegido pelo direito da União Europeia, quando não estiver prevista uma protecção pelo menos equivalente no direito nacional.

3)      À época dos factos no processo principal, o direito fundamental à vida familiar consagrado no direito da União Europeia não podia ser invocado como um direito autónomo, independentemente de qualquer outro nexo com o direito da União Europeia, tanto por um nacional de um Estado terceiro como por um cidadão da União, quer no território do Estado‑Membro de que era nacional esse cidadão quer em qualquer outro lugar no território dos Estados‑Membros.»


1 – Língua original: inglês.


2 – Utilizo a expressão «União de direito» utilizada nas conclusões apresentadas pelo advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer no processo Petersen (acórdão de 11 de Setembro de 2008, C‑228/07, Colect., p. I‑6989), n.° 32. Na sequência do seu falecimento súbito e prematuro em 12 de Novembro de 2009, assumi a responsibilidade do presente pedido de decisão prejudicial. Gostaria, antes de mais, de reconhecer tanto o trabalho como a dedicação já investidos neste caso e, mais geralmente, a qualidade e dimensão da sua contribuição para o que ainda era, para ele, direito «comunitário» e não «direito da União Europeia».


3 – Proclamada em Nice, em 7 de Dezembro de 2000 (JO C 364, p. 1). O Parlamento Europeu aprovou uma versão actualizada em 29 de Novembro de 2007, após remoção das referências à Constituição Europeia (JO C 303, p. 1).


4 – Tratado aberto à assinatura em 19 de Dezembro de 1966; Recueil des traités des Nations unies, vol. 999, p. 171, e vol. 1057, p. 407. Todos os Estados‑Membros da União Europeia são partes no pacto e não foram formuladas reservas ao artigo 17.°


5 – Tratado adoptado pela Resolução 44/25, de 20 de Novembro de 1989; Recueil des traités des Nations unies, vol. 1577, p. 3. Todos os Estados‑Membros da União Europeia são partes na Convenção e não foram formuladas reservas ao artigo 9.°, n.° 1.


6 – Assinada em Roma, em 4 de Novembro de 1950, e ratificada por todos os Estados‑Membros da União Europeia. A situação é ligeiramente mais complicada em relação ao Protocolo n.° 4. Até este momento, a República Helénica não assinou nem ratificou este protocolo, enquanto o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte assinou, mas não ratificou. A República da Áustria, a Irlanda e o Reino dos Países Baixos formularam reservas ao artigo 3.° relativamente a aspectos específicos que não são relevantes para os factos e questões do presente caso.


7 – Os pedidos posteriores seguiram‑se ao nascimento do seu segundo e terceiro filhos: v. n.° 26 infra.


8 – De acordo com a legislação colombiana pertinente, as crianças nascidas fora do território da Colômbia não adquirem nacionalidade colombiana, salvo se for feita declaração expressa nesse sentido perante funcionários consulares competentes. Não foi feita qualquer declaração neste sentido relativamente a Diego e a Jessica Ruiz Moreno.


9 – V. n.° 21 supra.


10 – Artigo 43.°, n.° 1, segundo período, do Decreto Real de 25 de Novembro de 1991 e artigo 7.°, n.° 14, segundo período, do Decreto‑Lei de 28 de Dezembro de 1944.


11 – V., respectivamente, n.os 24 e 22 supra.


12 – Artigo 43.°, n.° 1, primeiro período, e artigo 69.°, n.° 1, do Decreto Real de 25 de Novembro de 1991 e artigo 7.°, n.° 14, primeiro período, do Decreto‑Lei de 28 de Dezembro de 1944.


13 – Segundo jurisprudência assente, uma autorização de residência serve para confirmar o direito de residência e não para o conferir; v. acórdãos de 8 de Abril de 1976, Royer (48/75, Colect., p. 221, n.° 50), e de 17 de Fevereiro de 2005, Oulane (C‑215/03, Colect., p. I‑1215, n.° 25).


14 – Directiva 90/364/CEE do Conselho, de 28 de Junho de 1990, relativa ao direito de residência (JO L 180, p. 26), actualmente substituída pela Directiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros (JO L 158, p. 77, e rectificação no JO 2004, L 229, p. 35).


15 – Artigo 40.°‑A da Lei de 15 de Dezembro de 1980 e artigo 2.° do Decreto Real de 9 de Junho de 1999.


16 – V. acórdão de 18 de Outubro de 1990, Dzodzi (C‑297/88 e C‑197/89, Colect., p. I‑3763, n.° 42).


17 – Conseil d’État, acórdão n.° 193.348, de 15 de Maio de 2009, e acórdão 196.294, de 22 de Setembro de 2009; Cour constitutionnelle, acórdão 174/2009, de 3 de Novembro de 2009.


18 – V., por exemplo, acórdãos de 5 de Dezembro de 2000, Guimont (C‑448/98, Colect., p. I‑10663, n.° 23); de 5 de Março de 2002, Reisch e o. (C‑515/99, C‑519/99 a C‑524/99 e C‑526/99 a C‑540/99, Colect., p. I‑2157, n.° 26); de 11 de Setembro de 2003, Anomar e o. (C‑6/01, Colect., p. I‑8621, n.° 41); e de 1 de Abril de 2008, Gouvernement de la Communauté française e gouvernement wallon (C‑212/06, Colect., p. I‑1683, n.° 29).


19 – Acórdão Gouvernement de la Communauté française e gouvernement wallon, já referido na nota anterior, n.° 40.


20 – Acórdão de 11 de Julho de 2002 (C‑60/00, Colect., p. I‑6279).


21 – Acórdão de 25 de Julho de 2002 (C‑459/99, Colect., p. I‑6591).


22 – Acórdão de 19 de Outubro de 2004 (C‑200/02, Colect., p. I‑9925). Tendo examinado os autos nacionais do processo Zhu e Chen, aproveito esta oportunidade para esclarecer a confusão que existe desde há muito sobre o nome das partes no processo. Quando nasceu, o nome da mãe de Catherine era Lavette Man Chen. Casou‑se com Guoqing Zhu (conhecido como Hopkins Zhu) e ficou com o apelido Zhu. Por conseguinte, a filha do casal chamava‑se Catherine Zhu. Tanto a mãe como a filha tinham o apelido Zhu quando foi entregue a petição que deu origem ao processo C‑200/02. A referência a Chen (e a confusão daí decorrente quanto à questão de saber qual das recorrentes era Zhu e qual era Chen) resulta de um simples mal‑entendido.


23 – V., nomeadamente, as minhas conclusões apresentadas no processo Gouvernement de la Communauté française e gouvernement wallon, já referido na nota 18.


24 – Já referido na nota 20, n.° 41; v., também, acórdãos MRAX, já referido na nota 21, n.° 53; de 23 de Setembro de 2003, Akrich (C‑109/01, Colect., p. I‑9607, n.os 58 e 59); de 14 de Abril de 2005, Comissão/Espanha (C‑157/03, Colect., p. I‑2911, n.° 26); de 31 de Janeiro de 2006, Comissão/Espanha (C‑503/03, Colect., p. I‑1097, n.° 41); de 27 de Abril de 2006, Comissão/Alemanha (C‑441/02, Colect., p. I‑3449, n.° 109); de 27 de Junho de 2006, Parlamento/Conselho (C‑540/03, Colect., p. I‑5769, n.° 52); e de 25 de Julho de 2008, Metock e o. (C‑127/08, Colect., p. I‑6241, n.° 79). Sobre o direito fundamental à vida familiar consagrado no direito da União e o respectivo impacto nos nacionais de países terceiros, v. Carrera, S. – In Search of the Perfect Citizen?, Martinus Nijhoff Publishers, Leiden, 2009, pp. 375 a 388.


25 – V. TEDH, acórdão de 2 de Agosto de 2001, Recueil des arrêts et décisions, 2001‑IX, §§ 39, 41 e 46.


26 – V., também, TEDH, acórdão Amrollahi c. Dinamarca de 11 de Julho de 2002, §§ 33 a 44, não publicado.


27 – V. TEDH, acórdão Slivenko c. Letónia de 9 de Outubro de 2003, Recueil des arrêts et décisions, 2003‑X, § 94.


28 – V. TEDH, acórdãos Mehemi c. França de 26 de Setembro de 1997, Recueil des arrêts et décisions, 1997‑VI, § 34, e Dália c. França de 19 de Fevereiro de 1998, Recueil des arrêts et décisions, 1998‑I, § 52.


29 – V. TEDH, acórdão Sen c. Países Baixos de 21 de Dezembro de 2001, § 40, não publicado.


30 – Sobre as diferenças entre a jurisprudência do Tribunal de Justiça e a jurisprudência do Tribunal de Estrasburgo relativa ao artigo 8.° da CEDH, v. Sudre, F. – Les grands arrêts de la Cour européenne des Droits de l'Homme, 3.ª edição, PUF, Paris, 2003, pp. 510 e 511.


31 – V. acórdão Carpenter, já referido na nota 20. No processo Zhu e Chen, já referido na nota 22, tanto a filha menor, de tenra idade (Catherine Zhu, cidadã da União), como o nacional de país terceiro (a sua mãe, M. L. Zhu) eram, formalmente, recorrentes. Dada a idade de Catherine, o recurso foi efectivamente interposto apenas pela mãe, em nome da sua filha e em nome próprio.


32 – V. acórdão Carpenter, já referido na nota 20, n.° 44. Nos termos do regime jurídico da imigração do Reino Unido, M. Carpenter era uma «overstayer» (pessoa que teve autorização para entrar no Reino Unido, mas que acabou por permanecer após a expiração dessa autorização), enquanto G. Ruiz Zambrano é um requerente de asilo cujo pedido de asilo foi indeferido. Contudo, em meu entender, não se pode traçar qualquer distinção com base nisto. Resulta claramente do acórdão Carpenter que o Secretary of State (Secretário de Estado) tinha o poder, ao abrigo do direito nacional, de tomar medidas contra M. Carpenter como as autoridades belgas têm para actuar contra G. Ruiz Zambrano no presente caso.


33 – V. acórdão Carpenter, já referido na nota 20, n.° 44.


34 – V. acórdãos Carpenter, já referido na nota 20, n.° 44; Zhu e Chen, já referido na nota 22, n.os 36 a 41; Akrich, já referido na nota 24, n.° 57; e Metock e o., já referido na nota 24, n.° 75.


35 – V. acórdão Parlamento/Conselho, já referido na nota 24, n.° 38.


36 – V. artigo 6.°, n.° 1, TUE.


37 – Deve recordar‑se que o subsídio de desemprego que G. Ruiz Zambrano agora requer é uma das prestações a que as suas contribuições lhe dariam direito se o seu trabalho na Plastoria fosse tido em consideração, desde o nascimento de Diego, para efeitos do período mínimo de trabalho.


38 – No acórdão de 7 de Setembro de 2004, Trojani (C‑456/02, Colect., p. I‑7573), o facto de, embora as autoridades em matéria de segurança social belgas contestassem o pagamento do minimex, as autoridades municipais de Bruxelas terem concedido uma autorização de residência (permis de séjour) foi um factor que levou o Tribunal de Justiça a decidir que M. Trojani podia invocar o artigo 18.° CE (actual artigo 21.° TFUE), em conjugação com o artigo 12.° CE (actual artigo 18.° TFUE): v. n.° 44 do acórdão. A actual autorização de residência temporária renovável de G. Ruiz Zambrano é válida apenas durante o processo de recurso no Conseil d’État. V. n.° 27 supra.


39 – Tanto quanto sei, apesar da ordem de expulsão ter sido suspensa até ser decidido o seu recurso no Conseil d’État, não foi anulada.


40 – Acórdão de 20 de Setembro de 2001, Grzelczyk (C‑184/99, Colect., p. I‑6193, n.° 31), confirmado posteriormente pelos acórdãos de 11 de Julho de 2002, D’Hoop (C‑224/98, Colect., p. I‑6191, n.° 28); de 17 de Setembro de 2002, Baumbast e R (C‑413/99, Colect., p. I‑7091, n.° 82); de 2 de Outubro de 2003, Garcia Avello (C‑148/02, Colect., p. I‑11613, n.° 22); Zhu e Chen, já referido na nota 22, n.° 25; de 29 de Abril de 2004, Orfanopoulos e Oliveri (C‑482/01 e C‑493/01, Colect., p. I‑5257, n.° 65), e Pusa (C‑224/02, Colect., p. I‑5763, n.° 16); de 15 de Março de 2005, Bidar (C‑209/03, Colect., p. I‑2119, n.° 31); de 7 de Julho de 2005, Comissão/Áustria (C‑147/03, Colect., p. I‑5969, n.° 45); de 12 de Julho de 2005, Schempp (C‑403/03, Colect., p. I‑6421, n.° 15); de 12 de Setembro de 2006, Espanha/Reino Unido (C‑145/04, Colect., p. I‑7917, n.° 74); de 7 de Junho de 2007, Comissão/Países Baixos (C‑50/06, Colect., p. I‑4383, n.° 32); e de 16 de Dezembro de 2008, Huber (C‑524/06, Colect., p. I‑9705, n.° 69).


41 – Acórdão de 5 de Fevereiro de 1963 (26/62, Colect. 1962‑1964, p. 205). Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que os Estados‑Membros tinham limitado os seus direitos soberanos «ainda que em domínios restritos». Quando a declaração do acórdão Van Gend & Loos foi repetida no parecer 2/94, de 28 de Março de 1996 (Colect., p. I‑1759), a segunda parte da frase foi omitida.


42 – Acórdão de 11 de Julho de 1974 (8/74, Recueil, p. 837, n.° 5, Colect., p. 423).


43 – V., designadamente, acórdãos de 12 de Março de 1987, Comissão/Alemanha (178/84, Colect., p. 1227, n.° 27); de 19 de Junho de 2003, Comissão/Itália (C‑420/01, Colect., p. I‑6445, n.° 25); de 23 de Setembro de 2003, Comissão/Dinamarca (C‑192/01, Colect., p. I‑9693, n.° 39); de 11 de Dezembro de 2003, Deutscher Apothekerverband (C‑322/01, Colect., p. I‑14887, n.° 66); e de 5 de Fevereiro de 2004, Comissão/França (C‑24/00, Colect., p. I‑1277, n.° 22).


44 – Acórdão de 9 de Setembro de 2004 (C‑72/03, Colect., p. I‑8027).


45 – O advogado‑geral descreveu claramente a natureza das medidas em causa em processos como o Carbonati Apuani, admitindo que «nem a regulamentação nacional nem o direito comunitário criam, por si mesmos, uma discriminação. Mas esta é o resultado da aplicação parcial do direito [da União Europeia] à regulamentação nacional em causa. Embora não tendo sido desejada, nem prevista, esta situação é uma consequência necessária da aplicação do direito [da União Europeia]. Embora, nos seus principais elementos, faça parte do direito interno, esta situação é também uma situação ‘residual’ do ponto de vista do direito [da União Europeia]. Pelos efeitos que gerou, voluntária ou involuntariamente, o direito [da União Europeia] torna‑se um dos seus elementos constitutivos» (n.° 64).


46 – Acórdão já referido na nota 44, n.° 23.


47 – Acórdão de 25 de Julho de 1991 (C‑76/90, Colect., p. I‑4221).


48Ibidem, n.° 12.


49 – Acórdão de 31 de Março de 1993 (C‑19/92, Colect., p. I‑1663, n.os 28 e 32).


50Ibidem, nota 49, n.° 32. V., ainda, em particular, acórdão de 7 de Julho de 1992, Singh (C‑370/90, Colect., p. I‑4265, n.° 23), aplicando esta jurisprudência à unidade familiar constituída pelo marido e mulher.


51 – V., designadamente, acórdãos de 30 de Novembro de 1995, Gebhard (C‑55/94, Colect., p. I‑4165, n.° 37); de 9 de Setembro de 2003, Burbaud (C‑285/01, Colect., p. I‑8219, n.° 95); de 14 de Outubro de 2004, Comissão/Países Baixos (C‑299/02, Colect., p. I‑9761, n.° 15); de 26 de Maio de 2005, Allard (C‑249/04, Colect., p. I‑4535, n.° 32); e de 17 de Julho de 2008, Comissão/França (C‑389/05, Colect., p. I‑5337, n.° 56).


52 – Acórdão de 10 de Maio de 1995 (C‑384/93, Colect., p. I‑1141).


53 – Já referido na nota 20.


54Ibidem, n.° 39.


55 – Já referido na nota 24.


56Ibidem, n.° 58.


57 – Acórdão de 24 de Novembro de 1998 (C‑274/96, Colect., p. I‑7637).


58 – Acórdão de 12 de Maio de 1998 (C‑85/96, Colect., p. I‑2591).


59 – Já referido na nota 40.


60 – Já referido na nota 40.


61 – Acórdão de 14 de Outubro de 2008 (C‑353/06, Colect., p. I‑7639).


62 – Já referido na nota 40.


63 – Já referido na nota 22.


64 – Acórdão de 2 de Março de 2010 (C‑135/08, Colect., p. I‑1449).


65 – V. n.os 93 e segs. infra.


66 – V. artigo 22.° TFUE (ex‑artigo 19.° CE), que se refere expressamente a «residente num Estado‑Membro que não seja o da sua nacionalidade», e artigo 20.°, n.° 2, alínea b), TFUE (ex‑artigo 17.° CE), que se refere a cidadãos da União que exercem esses direitos no «Estado‑Membro de residência, nas mesmas condições que os nacionais desse Estado».


67 – O artigo 24.° TFUE (ex‑artigo 21.° CE) estabelece ambos os direitos. Ao abrigo do mesmo artigo, um cidadão da União pode também (presumivelmente) dirigir‑se por escrito a qualquer das instituições a partir de qualquer parte do mundo, desde que respeite o regime linguístico e tenha direito a obter uma resposta. Assim, por exemplo, os filhos de G. Ruiz Zambrano poderiam dirigir‑se por escrito em espanhol a uma das instituições a partir de qualquer país terceiro, assim como de qualquer Estado‑Membro, e ter direito a uma resposta.


68 – Conforme estabelecido no artigo 20.°, n.° 2, alínea a), TFUE (ex‑artigo 17.° CE) e no artigo 21.°, n.° 1, TFUE (ex‑artigo 18.°, n.° 1, CE).


69 – Acórdão de 30 de Março de 1993 (C‑168/91, Colect., p. I‑1191).


70 – Conclusões apresentadas no processo Konstantinidis, já referido, n.° 46.


71 – É evidente que os progenitores dos menores não poderiam racionalmente contemplar a possibilidade de fazerem eles próprios essa viagem e de correrem o risco de não poder reentrar na Bélgica.


72 – Acórdão de 2 de Fevereiro de 1989, Cowan (186/87, Colect., p. 195, n.° 15).


73 – Acórdão, já referido na nota 64, n.° 38 (o sublinhado é meu).


74Ibidem, n.° 42 (o sublinhado é meu).


75 – V. n.os 86 e 87 supra, onde se examina o impacto no direito à vida familiar.


76 – É, evidentemente, teoricamente possível que outro Estado‑Membro esteja preparado para acolher a família. Se assim for, Diego e Jessica poderiam ainda exercer os seus direitos como cidadãos da União, pelo menos em certa medida.


77 – V. acórdãos Akrich, já referido na nota 24, n.os 55 a 57 (relativamente a direitos conferidos pelo direito da União Europeia), e Zhu e Chen, já referido na nota 22, n.° 36 (relativamente a direitos derivados inicialmente do direito nacional).


78 – A legislação irlandesa sobre a nacionalidade foi alterada de modo semelhante (neste caso, depois do acórdão do Tribunal de Justiça no processo Zhu e Chen) pelo Irish Nationality and Citizenship Act de 2004.


79 – V. acórdãos de 7 de Julho de 1992, Micheletti e o. (C‑369/90, Colect., p. I‑4239, n.° 10); de 11 de Novembro de 1999, Mesbah (C‑179/98, Colect., p. I‑7955, n.° 29); de 20 de Fevereiro de 2001, Kaur (C‑192/99, Colect., p. I‑1237, n.° 19); e Zhu e Chen, já referido na nota 22, n.° 37.


80 – Acórdão referido na nota anterior.


81 – Acórdão já referido na nota 79 (e no acórdão Rottmann, n.° 49): v., designadamente, n.os 20 a 24.


82 – Já referido na nota 79, n.° 10.


83 – Já referido na nota 79, n.° 19.


84 – Já referido na nota 64, n.os 41 e 42.


85 – Já referido na nota 40, n.° 17.


86 – Já referido na nota 40, n.° 25.


87 – Já referido na nota 40, n.° 19.


88 – Acórdão Rottmann, já referido na nota 64, n.° 55.


89Ibidem, n.° 56.


90 – As conclusões da Presidência do Conselho Europeu de Tampere, de 15 e 16 de Outubro de 1999, declaravam que «[o] desafio […] consiste agora em assegurar que a liberdade, que inclui o direito de livre circulação em toda a União, possa ser desfrutada em condições de segurança e de justiça acessíveis a todos […]. No entanto, esta liberdade não deve ser considerada apanágio exclusivo dos cidadãos da União. A sua própria existência exerce um poder de atracção para muitos outros cidadãos em todo o mundo que não podem gozar da liberdade que os cidadãos da União dão como certa. Seria contrário às tradições europeias negar esta liberdade às pessoas cujas circunstâncias as levam, justificadamente, a procurar aceder ao nosso território» (n.os 2 e 3). De modo semelhante, no Pacto Europeu para a Imigração e o Asilo de 15 e 16 de Outubro de 2008, o Conselho Europeu convida os Estados‑Membros «a favorecer a integração harmoniosa no país de acolhimento dos migrantes que tenham a perspectiva de nele se instalarem duradouramente; essas políticas, cuja aplicação exigirá um verdadeiro esforço por parte dos países de acolhimento, deverão assentar no equilíbrio entre os direitos dos migrantes (em especial o acesso à educação, ao trabalho, à segurança e aos serviços públicos e sociais) e os seus deveres».


91 – Acórdão já referido na nota 20, n.° 44.


92 – Já referido na nota 40.


93Ibidem, n.° 90.


94Ibidem, n.° 91.


95 – V., designadamente, acórdãos de 2 de Agosto de 1993, Allué e o. (C‑259/91, C‑331/91 e C‑332/91, Colect., p. I‑4309, n.° 15); Zhu e Chen, já referido na nota 22, n.° 32; e Rottmann, já referido na nota 64, n.° 56.


96 – Já referido na nota 40, n.os 82 a 84.


97 – Para duas primeiras e ponderadas análises do âmbito e significado da cidadania europeia após Tratado de Maastricht, v. O’Leary, S. – The Evolving Concept of Community Citizenship, Kluwer Law International, Haia/Londres/Boston, 1996, e Closa, C. – «The Concept of Citizenship in the Treaty on European Union», Common Market Law Review, 1992, pp. 1137 a 1169.


98 – Sobre a importância da cidadania da União Europeia e os vínculos da pessoa com a comunidade política, v. acórdão Espanha/Reino Unido, já referido na nota 40, n.os 78 e 79.


99 – V. acórdão Carpenter, já referido na nota 20, n.° 39. A Directiva 2004/38, embora não aplicável no presente caso, dispõe no seu quinto considerando que «[o] direito de todos os cidadãos da União circularem e residirem livremente no território dos Estados‑Membros implica, para que possa ser exercido em condições objectivas de liberdade e de dignidade, que este seja igualmente concedido aos membros das suas famílias, independentemente da sua nacionalidade».


100 – V. acórdão Metock e o., já referido na nota 24, n.° 56.


101 – V. acórdão Rottmann, já referido na nota 64, n.os 41 e 42.


102 – Já referido na nota 42.


103 – V., designadamente, acórdãos de 13 de Março de 1979, Peureux (86/78, Colect., p. 475, n.° 38); de 23 de Outubro de 1986, Cognet (355/85, Colect., p. 3231, n.os 10 e 11); de 18 de Fevereiro de 1987, Mathot (98/86, Colect., p. 809, n.° 7); Gouvernement de la Communauté française e gouvernement wallon, já referido na nota 18, n.° 33; e Metock e o., já referido na nota 24, n.° 77. Os advogados‑gerais tomaram diferentes posições sobre este ponto. V. conclusões do advogado‑geral P. Léger no processo Granarolo (acórdão de 13 de Novembro de 2003, C‑294/01, Colect., p. I‑13429), n.os 78 e segs.; conclusões do advogado‑geral M. Poiares Maduro no processo Carbonati Apuani, já referido na nota 44, n.os 51 e segs.; e minhas conclusões no processo Gouvernement de la Communauté française e gouvernement wallon, já referido na nota 18, n.os 112 e segs.


104 – Para uma análise crítica, v., designadamente, Tryfonidou, A. – Reverse Discrimination in EC Law, Kluwer Law International, Haia, 2009; Spaventa, E. – Free Movement of Persons in the EU: Barriers to Movement in their Constitutional Context, Kluwer Law International, Haia, 2007; Barnard, C. – EC Employment Law, 3.ª edição, OUP, Oxford, 2006, pp. 213 e 214; Nic Shuibhne, N. – «Free Movement of Persons and the Wholly Internal Rule: Time to Move On?», Common Market Law Review, 2002, p. 748; e Ritter, C. – «Purely internal situations, reverse discrimination, Guimont, Dzodzi and article 234», 31 European Law Review, 2006.


105 – Já referido na nota 20.


106 – Já referido na nota 22.


107 – Acórdão já referido na nota 24, n.° 50, resumido no acórdão Metock e o., n.° 58.


108 – Já referido na nota 21.


109 – Já referido na nota 24.


110 – V. acórdão já referido na nota 24, n.os 77 a 79.


111 – V. jurisprudência referida na nota 40.


112 – Na medida em que foram invocados direitos fundamentais consagrados na Carta que não reproduzem os direitos da CEDH, deveria necessariamente desenvolver‑se uma nova jurisprudência, mas isso provavelmente aconteceria em qualquer caso no contexto normal do direito da União Europeia.


113 – Essa tarefa colaborativa é implicitamente atribuída ao Tribunal de Justiça pelo artigo 52.°, n.° 3, da Carta dos Direitos Fundamentais, quando dispõe que, «[n]a medida em que a presente Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção. Esta disposição não obsta a que o direito da União confira uma protecção mais ampla». A necessidade prática de o Tribunal de Justiça adoptar uma posição proactiva para promover os níveis mínimos de «Estrasburgo» foi retratada, designadamente, por Alonso, R. – «The General Provisions of the Charter of Fundamental Rights of the European Union», European Law Journal, 8 2002, pp. 450 e segs., e Torres Pérez, A. – Conflicts of Rights in the European Union. A Theory of Supranational Adjudication, Oxford University Press, Oxford, 2009, pp. 31 e segs.


114 – V., designadamente, acórdãos de 14 de Dezembro de 1995, Peterbroeck (C‑312/93, Colect., p. I‑4599, n.° 14), e de 13 de Março de 2007, Test Claimants in the Thin Cap Group Litigation (C‑524/04, Colect., p. I‑2107, n.° 123).


115 – V., designadamente, acórdãos de 15 de Setembro de 1998, Edis (C‑231/96, Colect., p. I‑4951, n.° 36), e de 1 de Dezembro de 1998, Levez (C‑326/96, Colect., p. I‑7835, n.° 41).


116 – V., designadamente, acórdãos de 15 de Maio de 1986, Johnston (222/84, Colect., p. 1651, n.° 18), e de 27 de Novembro de 2001, Comissão/Áustria (C‑424/99, Colect., p. I‑9285, n.° 45).


117 – V., designadamente, acórdãos de 19 de Novembro de 1991, Francovich e o. (C‑6/90 e C‑9/90, Colect., p. I‑5357, n.° 35); de 5 de Março de 1996, Brasserie du pêcheur e Factortame (C‑46/93 e C‑48/93, Colect., p. I‑1029, n.° 31); e de 24 de Março de 2009, Danske Slagterier (C‑445/06, Colect., p. I‑2119, n.° 19).


118 – Infelizmente, nem sempre os órgãos jurisdicionais nacionais examinam e corrigem a discriminação inversa gerada pelo direito da União Europeia. No seu acórdão Gouvernement de la Communauté française e gouvernement wallon, já referido na nota 18, o Tribunal de Justiça convidou abertamente o órgão jurisdicional nacional a corrigir a diferença de tratamento sofrida por aqueles que não foram abrangidos pelo âmbito de aplicação do direito da União Europeia (n.° 40). O processo voltou então à Cour constitutionnelle (Bélgica), que não tratou da questão (v. acórdão 11/2009, de 21 de Janeiro de 2009, e a análise crítica de van Elsuwege, P., e Adam, S.,– «The Limits of Constitutional Dialogue for the Prevention of Reverse Discrimination», European Constitutional Law Review, 5 2009, pp. 327 e segs.). Para um exemplo mais encorajante de um tribunal supremo nacional com intenção de corrigir a discriminação inversa (ainda que sem necessariamente seguir um acórdão relacionado proferido num processo prejudicial), v. decisão do Tribunal Constitucional (Espanha) (acórdão 96/2002, de 25 de Abril de 2002).


119 – V. acórdãos já referidos na nota 17.


120 – V., por exemplo, acórdãos de 17 de Dezembro de 1970, Internationale Handelsgesellschaft (11/70, Colect. 1969‑1970, p. 625); de 14 de Maio de 1974, Nold/Comissão (4/73, Colect., p. 283); de 13 de Dezembro de 1979, Hauer (44/79, Recueil, p. 3727); e de 21 de Setembro de 1989, Hoechst/Comissão (46/87 e 227/88, Colect., p. 2859).


121 – V. Regulamento (CE) n.° 168/2007 do Conselho, de 15 de Fevereiro de 2007, que cria a Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (JO L 53, p. 1), e Decisão 2008/203/CE do Conselho, de 28 de Fevereiro de 2008, que aplica o Regulamento n.° 168/2007 no que respeita à adopção de um quadro plurianual para a Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia relativo a 2007‑2012 (JO L 63 p. 14).


122 – Pela primeira vez, um dos actuais vice‑presidentes da Comissão é comissário para a justiça, direitos fundamentais e cidadania.


123 – V., designadamente, Regulamento (CE) n.° 1257/96 do Conselho, de 20 de Junho de 1996, relativo à ajuda humanitária (JO L 163, p. 1), e Regulamento (CE) n.° 1889/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Dezembro de 2006, que institui um instrumento financeiro para a promoção da democracia e dos direitos humanos a nível mundial (JO L 386, p. 1).


124 – O artigo 6.°, n.° 1, TUE confere agora os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta «que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados».


125 – Acórdão de 30 de Junho de 2005, Recueil des arrets et décisions, 2005‑VI.


126 – V. artigo 6.°, n.° 2, TFUE e Protocolo n.° 8 relativo ao n.° 2 do artigo 6.° do Tratado da União Europeia respeitante à adesão da União à Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.


127 – Acórdãos de 28 de Outubro de 1975, Rutili (36/75, Colect., p. 415, n.° 26); Johnston, já referido na nota 116, n.os 17 a 19; e de 15 de Outubro de 1987, Heylens e o. (222/86, Colect., p. 4097, n.os 14 e 15).


128 – V., designadamente, acórdãos de 25 de Novembro de 1986, Klensch e o. (201/85 e 202/85, Colect., p. 3477, n.os 10 e 11); Wachauf (já referido no n.° 83 das presentes conclusões), n.° 22; de 24 de Março de 1994, Bostock (C‑2/92, Colect., p. I‑955, n.° 16); e de 10 de Julho de 2003, Booker Aquaculture e Hydro Seafood (C‑20/00 e C‑64/00, Colect., p. I‑7411, n.° 68).


129 – V., por exemplo, acórdão de 11 de Janeiro de 2000, Kreil (C‑285/98, Colect., p. I‑69, n.os 15 e 16).


130 – V., designadamente, acórdãos do Bundesverfassungsgericht (Alemanha) de 29 de Maio de 1974, dito «Solange I» (2 BvL 52/71), e de 22 de Outubro de 1986, dito «Solange II» (2 BvR 197/83); acórdão da Corte Costituzionale (Itália) de 21 de Abril de 1989 (n.° 232, Fragd, in Foro it., 1990, I, 1855); declaração do Tribunal Constitucional (Espanha) de 13 de Dezembro de 2004; (DTC 1/2004); e acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Bosphorus Hava Yolları Turizm ve Ticaret Anonim Şirketi c. Irlanda, já referido no n.° 155 das presentes conclusões.


131 – Já referido no n.° 183 das presentes conclusões, n.° 19.


132 – V., designadamente, acórdãos de 18 de Junho de 1991, ERT (C‑260/89, Colect., p. I‑2925, n.os 42 e segs.); de 12 de Junho de 2003, Schmidberger (C‑112/00, Colect., p. I‑5659, n.° 75); e de 14 de Outubro de 2004, Omega (C‑36/02, Colect., p. I‑9609, n.os 30 e 31).


133 – Já referido na nota 20, n.os 43 e 44.


134 – Já referido na nota 52.


135 – Acórdão de 13 de Junho de 1996 (C‑144/95, Colect., p. I‑2909).


136Ibidem, n.os 12 e 13.


137 – Acórdão de 29 de Maio de 1997 (C‑299/95, Colect., p. I‑2629, n.° 15).


138Ibidem, n.° 16.


139Ibidem, n.os 17 e 18.


140 – V. acórdão de 13 de Setembro de 2005, Comissão/Conselho (C‑176/03, Colect., p. I‑7879).


141 – V., designadamente, acórdãos de 5 de Outubro de 2000, Alemanha/Parlamento e Conselho (C‑376/98, Colect., p. I‑8419, n.° 83); de 3 de Setembro de 2008, Kadi e Al Barakaat International Foundation/Conselho e Comissão (C‑402/05 P e C‑415/05 P, Colect., p. I‑6351, n.° 203); de 30 de Abril de 2009, Itália e Donnici/Parlamento (C‑393/07 e C‑9/08, Colect., p. I‑3679, n.° 67); e de 1 de Outubro de 2009, Comissão/Conselho (C‑370/07, Colect., p. I‑8917, n.° 46).


142 – Artigo 2.° TUE. O seu antecessor, artigo 6.°, n.° 1, UE, dispunha: «A União assenta nos princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos direitos do Homem e pelas liberdades fundamentais, bem como do Estado de direito, princípios que são comuns aos Estados‑Membros».


143 –      Locke, J. – Two Treatises of Government, Cambridge University Press, Cambridge, 1988, livro II, secção II.


144 – Os acórdãos Singh, já referido na nota 50, Cowan, já referido na nota 72, e Carpenter, já referido na nota 20, dão exemplos de circunstâncias em que o nexo entre a livre circulação e o direito fundamental/protecção adicional conferido pelo direito da União não era particularmente directo. Não discuto de modo algum a correcção, na perspectiva da protecção de direitos, das decisões a que o Tribunal de Justiça chegou nesses três processos. O meu objectivo é simplesmente salientar a natureza por vezes ténue do nexo em que essa protecção se baseava.


145 – No acórdão Akrich, já referido na nota 24, H. Akrich e mulher não esconderam, durante a sua entrevista pelas autoridades nacionais competentes, o facto de esta última ter aceitado trabalho temporário na Irlanda de modo a poder regressar ao Reino Unido com o seu marido e invocar o direito de entrada a favor deste com base no direito comunitário.


146 – V. acórdão Gouvernement de la Communauté française e gouvernement wallon, já referido na nota 18.


147 – V., relativamente às competências exclusivas e partilhadas, acórdãos de 15 de Dezembro de 1976, Donckerwolcke e Schou (41/76, Colect., p. 781, n.° 32); de 16 de Março de 1977, Comissão/França (68/76, Recueil, p. 515, n.° 23, Colect., p. 167); e de 18 de Fevereiro de 1986, Bulk Oil (174/84, Colect., p. 559, n.° 31); Sobre a aplicação destas normas em relação à competência externa da União Europeia, v., designadamente, acórdão de 31 de Março de 1971, Comissão/Conselho, dito «AETR» (22/70, Colect., p. 69).


148 – As anotações relativas à Carta (JO 2007, C 303, p. 17) são claras neste ponto: «Os direitos fundamentais garantidos na União só produzem efeitos no âmbito das competências determinadas pelos Tratados. Por conseguinte, a obrigação de as instituições da União promoverem os princípios consagrados na Carta […] apenas pode existir dentro dos limites das referidas competências». No entanto, as anotações prosseguem afirmando que «é evidente que a remissão para a Carta feita no artigo 6.° do Tratado da União Europeia não pode ser entendida como constituindo, por si só, um alargamento da esfera de acção dos Estados‑Membros que se considere como aplicação do direito da União». Em meu entender, estas observações ligam inequivocamente a protecção dos direitos fundamentais ao abrigo do direito da União Europeia àquilo que é abrangido pelo âmbito da competência da União Europeia. Consideradas conjuntamente, a protecção dos direitos fundamentais ao abrigo do direito da União Europeia e a protecção dos direitos fundamentais ao abrigo do direito nacional deveria, no entanto, dar origem a uma protecção adequada (pelo menos em relação a todos os direitos fundamentais que podem ser encontrados tanto na Carta como na CEDH).


149 – V. jurisprudência acima referida na nota 40.


150 – 268 US 652 (1925).


151 – Sobre o acórdão Gitlow c. Nova Iorque e a doutrina da incorporação, v. Cortner, R. – The Supreme Court and the Second Bill of Rights: The Fourteenth Amendment and the Nationalization of Civil Liberties, Madison, University of Wisconsin Press, 1981; Henkin, L. – «‘Selective Incorporation’ in the Fourteenth Amendment», Yale Law Journal, 1963, pp. 74 a 88; e Pohlman, H. L. – Justice Oliver Wendell Holmes: Free Speech & the Living Constitution, NYU Press, Nova Iorque, 1991, pp. 82 a 87.


152 – N.° 6 do referido parecer.