Language of document : ECLI:EU:C:2018:850

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MICHAL BOBEK

apresentadas em 18 de outubro de 2018 (1)

Processo C535/17

NK, administrador das insolvências da PI Gerechtsdeurwaarderskantoor BV e de PI

contra

BNP Paribas Fortis NV

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal, Países Baixos)]

«Pedido de decisão prejudicial — Espaço de liberdade, de segurança e de justiça — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência em matéria civil e comercial — Regulamento (CE) n.o 44/2001 — Processos de insolvência — Regulamento (CE) n.o 1346/2000 — Âmbito de aplicação — Regulamento (CE) n.o 864/2007 — Âmbito ratione temporis — Ação de indemnização instaurada por um administrador da insolvência contra um terceiro que agiu ilicitamente contra os credores»






I.      Introdução

1.        PI foi oficial de justiça nos Países Baixos. Era titular de uma conta corrente no BNP Paribas Fortis NV («Fortis») na Bélgica. PI utilizava a conta para efeitos profissionais relativos à sua atividade de oficial de justiça. Em 2006, constituiu uma sociedade através da qual exercia as atividades de oficial de justiça. Era o único acionista e diretor desta sociedade. A sociedade era titular de outra conta, uma conta de clientes, no Rabobank nos Países Baixos.

2.        Em setembro de 2008, PI transferiu 550 000 euros da conta de clientes no Rabobank nos Países Baixos para a conta corrente no Fortis na Bélgica. Alguns dias depois, levantou em numerário esta quantia da conta corrente no Fortis.

3.        Quer PI quer a sociedade foram declarados insolventes. O administrador da insolvência responsável por estes processos de insolvência, que foram instaurados nos Países Baixos, pretende agora a condenação do Fortis no pagamento dos 550 000 euros no interesse do conjunto dos credores de PI e da sociedade. Este tipo de ação é denominado no direito dos Países Baixos como «ação Peeters/Gatzen». Foi admitida pela primeira vez em 1983 por acórdão do Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal, Países Baixos), o órgão jurisdicional de reenvio no presente processo.

4.        Para efeitos de decisão da questão de competência internacional, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se uma ação como a ação «Peeters/Gatzen» está abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento (CE) n. o 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência (2) (a seguir «Regulamento da Insolvência»), ou do Regulamento (CE) n. o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (3) (a seguir «Regulamento Bruxelas I»).

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União Europeia

1.      Regulamento Bruxelas I

5.        O artigo 1. o, n. o 2, alínea b), do Regulamento Bruxelas I estabelece que são excluídos da aplicação deste regulamento «[a]s falências, as concordatas e os processos análogos».

2.      Regulamento Roma II

6.        O artigo 17. o do Regulamento (CE) n. o 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais («Roma II») (4) (a seguir «Regulamento Roma II») estabelece:

«Ao avaliar o comportamento da pessoa cuja responsabilidade é invocada, são tidas em conta, a título de matéria de facto e na medida em que for apropriado, as regras de segurança e de conduta em vigor no lugar e no momento em que ocorre o facto que dá origem à responsabilidade.»

7.        O artigo 31.o do Regulamento Roma II tem por epígrafe «Aplicação no tempo». Estabelece que o regulamento «é aplicável a factos danosos que ocorram após a sua entrada em vigor». Nos termos do artigo 32.o, sob a epígrafe «Data de aplicação», o regulamento «é aplicável a partir de 11 de janeiro de 2009».

3.      Regulamento da Insolvência

8.        O considerando 6 do Regulamento da Insolvência estabelece que «[d]e acordo com o princípio da proporcionalidade, o presente regulamento deve limitar‑se às disposições que regulam a competência em matéria de abertura de processos de insolvência e de decisões diretamente decorrentes de processos de insolvência e com eles estreitamente relacionadas».

9.        O artigo 3. o do Regulamento da Insolvência estabelece regras relativas à competência internacional. O seu n. o 1 atribui competência para a abertura de processos principais de insolvência nos «órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor».

10.      O artigo 4.o do Regulamento da Insolvência estabelece as regras relativas à lei aplicável. Tem a seguinte redação:

«1.      Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado‑Membro em cujo território é aberto o processo, a seguir designado “Estado de abertura do processo”.

2.      A lei do Estado de abertura do processo determina as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência. A lei do Estado de abertura do processo determina, nomeadamente:

[…]

c)      Os poderes respetivos do devedor e do síndico;

[…]

m)      As regras referentes à nulidade, à anulação ou à impugnação dos atos prejudiciais aos credores.»

11.      Nos termos do artigo 13.o do Regulamento da Insolvência, sob a epígrafe «Atos prejudiciais»:

«O n.o 2, alínea m), do artigo 4.o não é aplicável se quem tiver beneficiado de um ato prejudicial a todos os credores fizer prova de que:

–        esse ato se rege pela lei de um Estado‑Membro que não o Estado de abertura do processo, e

–        no caso em apreço, essa mesma lei não permite a impugnação do ato por nenhum meio.»

B.      Jurisprudência dos Países Baixos

1.      Ação «Peeters/Gatzen»

12.      A ação «Peeters/Gatzen» foi admitida pela primeira vez por Acórdão de 14 de janeiro de 1983 (5) do órgão jurisdicional de reenvio, o Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal, Países Baixos). No seu despacho de reenvio, esse órgão jurisdicional destaca algumas das características principais deste tipo de ação, conforme desenvolvida na sua posterior jurisprudência. (6)

13.      Em caso de prejuízo causado aos credores pelo insolvente antes da insolvência, o administrador da insolvência é competente para defender os interesses do conjunto dos credores. O Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal, Países Baixos) declarou que, em determinadas circunstâncias, também é possível instaurar uma ação de indemnização por facto ilícito contra um terceiro envolvido nesse prejuízo, mesmo que tal ação não possa ser instaurada pelo próprio insolvente. Os ganhos obtidos com essa ação instaurada pelo administrador da insolvência em nome do conjunto dos credores pertence à massa insolvente, tal como os ganhos obtidos com um recurso de anulação nos termos dos artigos 42.o e seguintes da Faillissementswet, de 30 de setembro de 1893 (a seguir «Lei da Insolvência» ou «Fw»). Por conseguinte, tais ganhos beneficiam o conjunto dos credores sob a forma de um aumento dos ativos da massa insolvente.

14.      O administrador da insolvência pode instaurar tais ações com base no artigo 68.o, n.o 1, da Fw, que lhe atribui a missão de gerir e liquidar a massa insolvente. Esse direito de instaurar uma ação não impede, independentemente de ser ou não exercido, que os próprios credores individuais instaurem uma ação por facto ilícito de um terceiro. No entanto, o interesse numa liquidação adequada da insolvência pode implicar que, no caso de o administrador da insolvência instaurar em nome do conjunto de credores uma ação de indemnização pelos mesmos factos ilícitos, esta ação deva ser decidida em primeiro lugar, seguida da ação do credor individual.

15.      Na apreciação da ação instaurada pelo administrador da insolvência a favor do conjunto de credores, não tem lugar o exame da situação individual de cada um dos credores em causa: em primeiro lugar, trata‑se da reparação do prejuízo sofrido conjuntamente pelos credores. Além disso, o interesse coletivo que o administrador da insolvência pretende proteger justifica que se aceite que, numa ação «Peeters/Gatzen», o terceiro não possa fazer uso contra o administrador da insolvência de todos os meios de defesa que, de outro modo, lhe teria sido permitido utilizar contra determinados credores individuais.

16.      A competência do administrador da insolvência para instaurar uma ação «Peeters/Gatzen» não está limitada ao caso em que o terceiro pertence ao grupo de pessoas que podem ser responsabilizadas, com base numa ação pauliana (de insolvência) (artigos 42.o e seguintes da FW), por envolvimento em alegados atos lesivos. A competência do administrador da insolvência visa, em termos mais gerais, o prejuízo do conjunto de credores resultante do ato ilícito de um terceiro envolvido na produção desse prejuízo. Não se exige que o terceiro tenha causado o prejuízo ou beneficiado dele: é suficiente que pudesse ter impedido o prejuízo mas, em vez disso, tenha cooperado.

III. Matéria de facto, processo principal e questões prejudiciais

17.      PI foi oficial de justiça em Beek (Países Baixos) desde 2002 até à sua interdição do exercício da função. Desde 2002, PI teve uma conta corrente no Fortis, um banco constituído em conformidade com o direito belga. Esta conta corrente estava localizada na Bélgica e era utilizada no exercício da atividade de PI para cobrança a devedores belgas.

18.      Em 2006, PI constituiu a sociedade de responsabilidade limitada PI Gerechtsdeurwaarderskantoor BV (a seguir «PI BV»), da qual era único acionista e único diretor. Com a constituição da PI BV, os ativos obtidos no exercício da atividade de oficial de justiça a título individual, incluindo a conta corrente no Fortis, foram transferidos para aquela sociedade. A PI BV também era titular de uma conta de clientes no Rabobank, nos Países Baixos, relativa à sua atividade de oficial de justiça. Nesta conta estavam depositados fundos de cerca de 200 clientes.

19.      Entre 23 e 26 de setembro de 2008, PI transferiu um total de 550 000 euros da conta de clientes no Rabobank para a conta corrente no Fortis através dos serviços de banca online. Em 1 e 3 de outubro de 2008, PI levantou em numerário a quantia total de 550 000 euros da conta corrente no Fortis na Bélgica.

20.      Em 16 de dezembro 2008, PI foi interditado do exercício da sua função por apropriação indevida dos fundos que lhe tinham sido confiados. Posteriormente, foi condenado a pena de prisão pelos mesmos factos.

21.      Em 23 de junho 2009, a PI BV foi declarada insolvente. Em 2 de março de 2010, o próprio PI foi declarado insolvente. As duas insolvências foram agregadas. NK é o administrador da insolvência em ambas as insolvências.

22.      O administrador da insolvência instaurou uma ação no Rechtbank Maastricht (Tribunal de Primeira Instância de Maastricht, Países Baixos, a seguir «tribunal de primeira instância»), na qual pediu a condenação do Fortis no pagamento de 550 000 euros. Alegou que o Fortis tinha agido ilicitamente em relação ao conjunto dos credores da PI BV e de PI ao autorizar, sem qualquer oposição e violando assim as obrigações legais que lhe incumbiam, os levantamentos em numerário efetuados por PI. Segundo o administrador da insolvência, devido aos atos do Fortis, os credores das duas insolvências foram prejudicados.

23.      Por decisão interlocutória, o tribunal de primeira instância declarou‑se competente para conhecer do pedido do administrador da insolvência. O Gerechtshof ’s‑Hertogenbosch (Tribunal de Recurso de Haia, Países Baixos, a seguir «tribunal de segunda instância») confirmou a referida sentença, por decisão interlocutória de 4 de junho de 2013, por considerar que a ação instaurada pelo administrador da insolvência se baseava exclusivamente nas insolvências de PI e da PI BV e, portanto, estava abrangida pelo âmbito do Regulamento da Insolvência.

24.      Por sentença final, o tribunal de primeira instância deferiu o pedido do administrador da insolvência e condenou o Fortis a pagar‑lhe 550 000 euros.

25.      Em sede do recurso dessa sentença final, o tribunal de segunda instância considerou, em decisão interlocutória de 16 de fevereiro de 2016, que, visto já se ter pronunciado sobre a competência judicial na sua decisão interlocutória de 4 de junho de 2013, não poderia (em princípio) voltar a fazê‑lo. No entanto, observou que os posteriores Acórdãos do Tribunal de Justiça de 4 de setembro de 2014, Nickel & Goeldner Spedition (7), e de 11 de junho de 2015, Comité d’enterprise de Nortel Networks e o. (8), militavam a favor da alegação do Fortis de que a decisão interlocutória de 4 de junho 2013 era incorreta. Por conseguinte, o tribunal de segunda instância decidiu autorizar a interposição de um recurso de cassação sobre esta questão.

26.      O tribunal de segunda instância também considerou que uma atuação ilícita, ocorrida antes da entrada em vigor do Regulamento Roma II, em 11 de janeiro de 2009, está sujeita à Wet Conflictenrecht Onrechtmatige Daad (Lei sobre conflitos em matéria de atos ilícitos), de 11 de abril de 2001 (a seguir «WCOD»). Nos termos do artigo 3.o da WCOD, a ação deve ser decidida à luz do direito belga, uma vez que a atuação do Fortis teve lugar na Bélgica.

27.      O tribunal de segunda instância considerou ainda que a questão de saber se um administrador da insolvência é competente para instaurar um tipo de ação específico, como a ação «Peeters/Gatzen», deve ser respondida de acordo com o direito que regula a insolvência [artigo 4.o, n.o 2, alínea c), do Regulamento da Insolvência]. No presente processo é o direito dos Países Baixos, nos termos do qual um administrador da insolvência é competente para instaurar uma ação «Peeters/Gatzen».

28.      O administrador da insolvência interpôs recurso de cassação da decisão interlocutória do tribunal de segunda instância de 16 de fevereiro de 2016 no órgão jurisdicional de reenvio. Alegou que, nos termos do artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento da Insolvência, o tribunal de segunda instância deveria ter concluído que a ação «Peeters/Gatzen» é um «efeito do processo de insolvência» e, por conseguinte, lhe era aplicável a lex fori concursus (ou seja, o direito holandês).

29.      O Fortis interpôs recurso subordinado das decisões interlocutórias do tribunal de segunda instância de 4 de junho de 2013 e 16 de fevereiro de 2016. Alegou que esse tribunal não teve em conta que a ação instaurada pelo administrador da insolvência é regulada pelo Regulamento Bruxelas I, e não pelo Regulamento da Insolvência. A ação «Peeters/Gatzen» não está abrangida pela exceção do artigo 1.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento Bruxelas I, já que tem a sua base jurídica nas regras comuns do direito civil e, portanto, não decorre diretamente das normas derrogatórias específicas dos processos de insolvência.

30.      No despacho de reenvio, o Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal, Países Baixos) refere que a ação «Peeters/Gatzen» tem por objeto o direito de ação dos credores e a responsabilidade do terceiro face aos credores, e que este direito de ação e esta responsabilidade decorrem das normas comuns do direito civil. Contudo, também salienta que a competência do administrador da insolvência para instaurar tal ação decorre das normas relativas à insolvência e que os ganhos obtidos com a ação pertencem à massa insolvente, e não aos credores individuais.

31.      O órgão jurisdicional de reenvio tem igualmente dúvidas quanto à determinação da lei aplicável à ação. O tribunal de segunda instância estabeleceu uma distinção entre o direito aplicável à competência do administrador da insolvência para instaurar a ação «Peeters/Gatzen» (ius agendi, regulada pelo direito dos Países Baixos) e o direito substantivo aplicável a esta ação (direito belga). No entanto, caso seja aplicável o Regulamento da Insolvência, o órgão jurisdicional de reenvio também pergunta se o direito aplicável a esta ação nos termos do artigo 4.o, n.o 2, do Regulamento da Insolvência (direito dos Países Baixos) a regula integralmente, ou seja, tanto no que se refere à competência para a instaurar como no que se refere ao direito substantivo que lhe é aplicável. Além disso, se for esse o caso, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se, não obstante, o direito belga deveria ser tido em conta para apreciar a responsabilidade do Fortis.

32.      Nestas circunstâncias, o Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal, Países Baixos) decidiu suspender a instância e submeter as seguintes questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça:

«1.      A ação de indemnização intentada pelo administrador da insolvência, no desempenho da […] função [que lhe é conferida pelo artigo 68.o, n.o 1, da (Lei da Insolvência)], de gestão e liquidação da massa insolvente, em nome do conjunto dos credores do insolvente contra um terceiro, com o fundamento de que este terceiro agiu ilicitamente contra esses credores, e [cujos ganhos], em caso de procedência da ação, [revertem para] a massa insolvente, está abrangida pela exceção prevista no artigo 1.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento [Bruxelas I]?

2.      Em caso de resposta afirmativa à [primeira] questão […] e, portanto, no caso de a ação em causa estar abrangida pelo Regulamento [da Insolvência], a ação é regulada pelo direito do Estado‑Membro onde foi aberto o processo de insolvência, nos termos do artigo 4.o, n.o 1, do referido regulamento, tanto no que se refere à competência do administrador da insolvência para a [propositura] da ação como no que se refere ao direito substantivo aplicável a esta ação?

3.      Em caso de resposta afirmativa à [segunda] questão […], deve o órgão jurisdicional do Estado‑Membro onde foi aberto o processo de insolvência ter em conta, eventualmente por analogia:

a)      o disposto no artigo 13.o do Regulamento [da Insolvência], no sentido de que [o demandado se] pode defender numa ação instaurada pelo administrador da insolvência em nome do conjunto dos credores demonstrando que não seria responsabilizad[o] pelo seu comportamento se este fosse apreciado à luz do direito […] aplicável se a ação não fosse intentada pelo administrador da insolvência mas por um credor individual com fundamento em responsabilidade extracontratual por facto ilícito;

b)      o disposto no artigo 17.o do Regulamento [Roma II], em conjugação com o artigo 13.o do Regulamento [da Insolvência], ou seja, as regras de segurança e de conduta em vigor no lugar em que ocorre o suposto facto ilícito, tais como regras de comportamento financeiro aplicáveis aos bancos?»

33.      O administrador da insolvência, o Fortis, o Governo português e a Comissão Europeia apresentaram observações. O administrador da insolvência, o Fortis e a Comissão apresentaram alegações na audiência realizada em 5 de julho de 2018.

IV.    Apreciação

34.      As presentes conclusões estão estruturadas da seguinte forma: em primeiro lugar, revisitarei os critérios de delimitação entre o Regulamento Bruxelas I e o Regulamento da Insolvência. A aplicação destes critérios à ação «Peeters/Gatzen» conduzirá à conclusão de que esta ação está abrangida ratione materiae pelo âmbito de aplicação do Regulamento Bruxelas I (A). Por conseguinte, considero que não é necessário responder à segunda e terceira questões colocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio. No entanto, de modo a prestar todo o apoio ao Tribunal de Justiça, caso este decida responder de forma diferente à primeira questão, abordarei brevemente a questão de saber se, ao abrigo do Regulamento da Insolvência, a lex fori concursus, geralmente aplicável, pode ser limitada a apenas alguns elementos de uma ação (B), e, por fim, abordarei a potencial aplicabilidade do Regulamento Roma II ratione temporis ao processo principal (C).

A.      Primeira questão: âmbito de aplicação do Regulamento Bruxelas I e do Regulamento da Insolvência

35.      Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, qual é o regulamento (o Regulamento Bruxelas I ou o Regulamento da Insolvência) aplicável a uma ação de indemnização instaurada contra um terceiro por um administrador da insolvência no cumprimento da obrigação, que lhe é imposta pela lei nacional em matéria de insolvência, de gerir e liquidar a massa insolvente em nome do conjunto dos credores, quando esta ação é instaurada com o fundamento de que esse terceiro agiu ilicitamente contra os credores e quando os ganhos obtidos com a ação, no caso de esta ser julgada procedente, beneficia a massa insolvente.

36.      Para responder a esta questão, é necessário determinar se tal ação está abrangida pela exceção estabelecida no artigo 1.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento Bruxelas I, que dispõe que este regulamento não se aplica «[às] falências, [às] concordatas e [aos] processos análogos». O Regulamento da Insolvência apenas é aplicável no caso de se considerar que a referida ação está abrangida por esta exceção.

1.      Relação entre o Regulamento Bruxelas I e o Regulamento da Insolvência

37.      É jurisprudência constante (9) que o Regulamento Bruxelas I e o Regulamento da Insolvência devem ser interpretados de forma a evitar qualquer sobreposição entre as normas jurídicas que estes diplomas enunciam, por um lado, e um vazio jurídico, por outro. Assim, nos termos do artigo 1.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento Bruxelas I, as ações excluídas do âmbito deste regulamento estão abrangidas pelo âmbito do Regulamento da Insolvência. Em contrapartida, as ações que não estão abrangidas pelo âmbito do Regulamento da Insolvência devem estar abrangidas pelo âmbito do Regulamento Bruxelas I.

38.      O Tribunal de Justiça declarou igualmente, tendo em conta os considerandos do Regulamento Bruxelas I, em particular o considerando 7, que a intenção do legislador da União foi adotar uma conceção ampla do conceito de «matéria civil e comercial» constante do artigo 1.o, n.o 1, deste regulamento (10). Em contrapartida, o âmbito do Regulamento da Insolvência deve ser interpretado de forma estrita (11).

39.      Assim, a relação entre ambos os regulamentos deve ser de complementaridade. O Tribunal de Justiça já declarou que os processos de insolvência e outros processos semelhantes estavam excluídos do âmbito de aplicação do antecessor jurídico do Regulamento Bruxelas I, ou seja, a Convenção de Bruxelas (12), devido tanto à especificidade da matéria em causa, que necessita de regras especiais, como às profundas divergências entre as legislações dos Estados contratantes (13). No entanto, também é inquestionável (14) que esta exclusão se ficou a dever ao facto de que no momento da adoção da Convenção de Bruxelas estava paralelamente a ser elaborada uma convenção relativa à insolvência, às concordatas e aos procedimentos análogos, que estabelecia as regras especiais acima referidas. Ambas as convenções deveriam ser complementares, no sentido de que os processos abrangidos pelo âmbito da Convenção da Insolvência estariam excluídos do âmbito da Convenção de Bruxelas (15). Apesar de a Convenção relativa aos processos de insolvência (16) nunca ter entrado em vigor, constituiu a base para a posterior adoção do Regulamento da Insolvência, que reproduz, em termos idênticos, as disposições dessa convenção (17).

2.      Exclusão: ações «diretamente decorrentes» e/ou «estreitamente relacionadas» com um processo de insolvência

40.      Quanto à delimitação do âmbito do Regulamento Bruxelas I e do Regulamento da Insolvência, o Tribunal de Justiça declarou, relativamente à exclusão prevista no artigo 1.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento Bruxelas I, que apenas as ações diretamente decorrentes do processo de insolvência e que com este se encontrem estreitamente relacionadas (18) estão excluídas do âmbito do Regulamento Bruxelas I (19). Por conseguinte, apenas estas ações estão abrangidas pelo âmbito do Regulamento da Insolvência (20).

41.      O Tribunal de Justiça utilizou esta formulação pela primeira vez no Acórdão Gourdain (21). Conforme o Tribunal de Justiça declarou em várias ocasiões (22), a mesma formulação consta igualmente do considerando 6 do Regulamento da Insolvência para definir o objeto deste regulamento. Igual redação é também utilizada no segundo parágrafo do n.o 1 do artigo 25.o do Regulamento da Insolvência. O primeiro parágrafo deste artigo institui uma obrigação de reconhecimento das decisões proferidas por um órgão jurisdicional competente por força do artigo 3.o, n.o 1, do regulamento (23). Nos termos do segundo parágrafo do mesmo artigo, o primeiro parágrafo é igualmente aplicável «às decisões diretamente decorrentes do processo de insolvência e que com este se encontrem estreitamente relacionadas». Além disso, no Acórdão Seagon, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento da Insolvência «atribui […] competência internacional a um Estado‑Membro em cujo território foi iniciado o processo de insolvência para conhecer ações decorrentes diretamente desse processo e com ele estreitamente relacionadas» (24).

42.      Assim, esta formulação é citada como o teste que deve ser utilizado para determinar se uma ação (como a ação «Peeters/Gatzen» no presente processo) está abrangida pelo âmbito do Regulamento Bruxelas I ou do Regulamento da Insolvência.

3.      Teste aplicado: dois critérios ou apenas um critério?

43.      No entanto, há que admitir que resulta de uma apreciação mais detalhada da jurisprudência que o teste aplicável a casos individuais não é totalmente claro, em particular no que respeita i) à definição do conteúdo exato de cada um dos dois critérios e ii) à sua relação mútua.

44.      A incerteza começa logo quanto ao conteúdo de cada um dos critérios. O significado de «diretamente decorrentes» parece passar de uma avaliação de uma relação direta (ficando, assim, efetiva e perigosamente perto de se fundir com a segunda condição) para uma análise do fundamento jurídico da ação (no sentido da causa subjacente à ação). Estar «estreitamente relacionado» com um processo de insolvência aponta para um certo tipo de teste de proximidade, embora não seja inteiramente claro quais as circunstâncias que devem ser tomadas em consideração para apreciar se tal relação estreita existe num determinado caso.

45.      Esta incerteza é ainda reforçada pela falta de clareza da relação lógica entre esses dois critérios, o que suscita dúvidas quanto à efetiva existência de duas condições distintas. A utilização de «e» como conjunção coordenativa também sugere um nexo lógico: qualquer premissa apenas será verdadeira se ambas as premissas individuais forem respeitadas. Por conseguinte, existem dois critérios cumulativos.

46.      No entanto, a jurisprudência não corresponde inteiramente a este cenário.

47.      Em alguns processos, o Tribunal de Justiça declarou que, na falta de um dos critérios, não é necessário apreciar o outro. Por exemplo, no Acórdão F‑Tex, o Tribunal de Justiça considerou que, uma vez que a ação em causa não se encontrava estreitamente relacionada com o processo de insolvência (segunda condição), não era necessário apreciar se decorria diretamente da insolvência (primeira condição) (25). No Acórdão Nickel & Goeldner Spedition, o Tribunal de Justiça declarou que a ação em causa não tinha um nexo direto com o processo de insolvência (primeira condição), pelo que não era necessário apreciar se estava estreitamente relacionada com esse processo (segunda condição) (26).

48.      Noutros processos, o facto de um dos dois critérios do teste não estar preenchido não impediu o Tribunal de Justiça de apreciar o outro. Foi o que sucedeu no Acórdão Tünkers France e Tünkers Maschinenbau, no qual, após declarar que a ação em causa não decorria diretamente do processo de insolvência (primeira condição), o Tribunal de Justiça apreciou se a ação estava estreitamente relacionada com esse processo (segunda condição) (27). Não obstante, o Tribunal de Justiça concluiu que a segunda condição também não estava satisfeita. Por conseguinte, é verdade que não se pode deduzir desse processo que uma das duas condições é mais relevante que a outra. No entanto, a necessidade de apreciar ambos os critérios suscita dúvidas sobre a sua natureza cumulativa: se ambos os critérios têm de ser observados, é bastante fútil apreciar os dois quando for evidente que um não está preenchido.

49.      Além disso, também existem processos em que o Tribunal de Justiça destacou um critério que considerou determinante e declarou que prevalecia sobre o outro.

50.      No Acórdão SCT Industri, o Tribunal de Justiça, após recordar que no Acórdão Gourdain havia declarado que «uma ação está ligada a um processo de falência quando resulta diretamente da falência e está estreitamente relacionada com [o processo de falência]», concluiu que «é portanto a intensidade do nexo existente, na aceção da jurisprudência Gourdain, já referida, entre uma ação judicial […] e o processo de insolvência que é determinante para aferir se a exclusão enunciada no artigo 1.o, n.o 2, alínea b), do [Regulamento Bruxelas I] é aplicável» (28).

51.      Em contrapartida, no Acórdão Nickel & Goeldner Spedition, o Tribunal de Justiça declarou que «o critério determinante […] para identificar o domínio onde se integra uma ação não é o contexto processual em que essa ação se inscreve, mas o fundamento jurídico desta última». O Tribunal de Justiça acrescentou que, segundo esta abordagem, há que aferir se o direito ou a obrigação que está na base da ação tem a sua origem nas regras comuns do direito civil e comercial ou nas normas derrogatórias específicas dos processos de insolvência (29).

52.      Assim, contrariamente à abordagem seguida no Acórdão SCT Industri, que sublinhou a segunda condição do teste, o critério do fundamento jurídico da ação parece estar relacionado com a primeira das duas condições do teste, nomeadamente, com o facto de a ação decorrer diretamente do processo de insolvência. Com efeito, no Acórdão Nickel & Goeldner Spedition, o Tribunal de Justiça apreciou a ação em causa à luz deste critério e concluiu que não apresentava um nexo direto com o processo de insolvência, conclusão esta que implicava não ser necessário apreciar se essa ação estava estreitamente relacionada com o referido processo (30).

53.      Mais recentemente, o Tribunal de Justiça declarou que tanto o fundamento jurídico como a intensidade do nexo constituem o critério determinante: o primeiro é relativo à análise da primeira condição (saber se a ação decorre diretamente do processo de insolvência) e a última é relativa à apreciação da segunda condição (saber se a ação está estreitamente relacionada com esse processo) (31).

54.      Assim, há que reconhecer que pode não ser fácil determinar o conteúdo exato do teste e como deve ser aplicado. A aplicação do teste oscila entre duas condições cumulativas (que, no entanto, têm contornos bastante indistintos), fundindo por vezes ambas as condições numa única, ou até substituindo, de facto, ambas as condições por um critério com uma redação diferente.

55.      É evidente que não se pode negar que a interpretação e a aplicação das regras da União Europeia em matéria de direito internacional privado serão sempre, como sucede com todas as regras de conflitos de leis, profundamente dependentes da matéria de facto e do contexto, caracterizadas por uma abordagem caso a caso. Deste modo, discutir subtilezas taxonómicas numa área do direito que será sempre inerentemente casuística parece não ser realmente necessário: é no contexto processual geral de cada caso individual que a proximidade da ação em causa ao processo de insolvência pode ser mais bem apreciada, permitindo assim ter em conta uma série de elementos diferentes (mas presumivelmente ainda relevantes).

56.      Por muito tentadora que esta tese possa ser in abstrato, os argumentos apresentados pelas partes interessadas no presente processo demonstram nitidamente os limites de tal abordagem. Na falta de clareza acerca da(s) condiç(ões) exata(s) e das suas relações, a proximidade global e/ou a abordagem de apreciação do contexto processual faz com que cada uma das partes (bem como, para o efeito, os órgãos jurisdicionais nacionais) se concentre num aspeto distinto de uma ação e, nessa base, aprecie se, em seu entender, a ação em causa está ou não estreitamente relacionada com o processo de insolvência em curso. Escusado será dizer que, na medida em que diferentes elementos são considerados como o ponto de partida da apreciação, cada uma destas abordagens conduz a resultados muito diferentes, particularmente quando existe uma ação híbrida como a que está em causa no processo principal.

4.      Teste: fundamento jurídico da ação (exceto se intrinsecamente relacionada com o processo de insolvência)

57.      Por conseguinte, proponho que o Tribunal de Justiça reafirme o teste adotado, no essencial, desde o Acórdão Nickel & Goeldner Spedition: a determinação do direito ou da obrigação que está na base da ação tem a sua origem nas regras comuns do direito civil e do direito comercial ou nas normas derrogatórias específicas dos processos de insolvência? Deste modo, o critério determinante está relacionado com a primeira parte do teste, ou seja, verificar se o fundamento jurídico da ação decorre diretamente das regras da insolvência (32). A segunda condição do teste constitui, ao invés, uma ferramenta de verificação para o resultado alcançado com base na primeira parte, mas não um critério de pleno direito por si só.

58.      A fim de apreciar o fundamento jurídico da ação, é necessário apreciar a natureza do pedido na aceção da causa da ação: trata‑se de uma ação baseada em regras comuns (por exemplo, regras sobre responsabilidade extracontratual, contratual, sobre enriquecimento sem causa) ou, antes, em regras específicas da insolvência?

59.      Quando se considera qual é o fundamento jurídico da ação, o objetivo consiste em identificar a origem e a natureza da ação em termos da (principal) análise substantiva que o caso exige. Assim, por exemplo, uma ação para cumprimento de uma obrigação contratual tem fundamento jurídico nas regras comuns do direito dos contratos mesmo que seja instaurada por um administrador da insolvência no interesse dos credores (33), o que implica que os (potenciais) ganhos reverterão para a massa insolvente. O mesmo se aplica a uma ação baseada, por exemplo, nas regras do enriquecimento sem causa ou, como parece suceder no processo principal, nas regras da responsabilidade extracontratual por facto ilícito.

60.      Nesses processos, a natureza subjacente do pedido permanece a mesma independentemente de quem instaura a ação. Assim, a circunstância de uma ação ser instaurada por (ou contra) um administrador da insolvência simplesmente como consequência do facto de ser intentada enquanto o processo de insolvência está em curso não alterará a natureza (principal ou subjacente) do pedido. O seu fundamento jurídico permanece inalterável (34). O mesmo pode ser dito acerca do facto de os ganhos obtidos com a ação pertencerem à massa insolvente: se isso for apenas o resultado de a ação ter sido instaurada enquanto decorre o processo de insolvência, não tem qualquer influência na natureza da ação.

61.      Ambas as alterações à «entrada» da ação (quem instaura a ação ou contra quem esta é instaurada) ou à sua «saída» (qual será o desfecho do processo) são consequências naturais e necessárias da existência de um processo de insolvência em curso mas não alteram, em si mesmas, a natureza da ação instaurada pelo administrador da insolvência. Caso pudessem desencadear a não aplicabilidade do Regulamento Bruxelas I a favor do Regulamento da Insolvência então, na prática, qualquer facto que ocorresse enquanto o processo de insolvência estivesse em curso desencadearia a exceção. Abrir‑se‑ia um «buraco negro de insolvência», pois, dado que o ato jurídico seria praticado por um administrador da insolvência, que atuaria em conformidade com regras específicas relativas à insolvência, e o dinheiro proviria ou reverteria para a massa insolvente, o que também se devia a regras específicas em matéria de insolvência, todo e qualquer facto que ocorresse entre estes dois parâmetros estaria efetivamente abrangido pelo âmbito de aplicação do Regulamento da Insolvência.

62.      Assim, por exemplo, um administrador da insolvência que assina um contrato para o fornecimento de material de escritório de que necessita para exercer as suas funções profissionais é parte neste contrato em virtude das tarefas que lhe são atribuídas pelas regras especiais em matéria de insolvência, e fá‑lo no interesse do conjunto dos credores. Além disso, o preço de compra será (em última instância) pago pelo remanescente da massa insolvente. No entanto, isso seguramente não significa que, caso tenha de ser instaurada uma ação devido a um litígio relativo à execução desse contrato, esta ação tenha fundamento nas normas derrogatórias específicas dos processos de insolvência. A principal ação subjacente relativa a esta transação continua a ser claramente contratual.

63.      Além disso, o que importa apreciar é o fundamento jurídico da ação (as regras que serão aplicáveis na decisão do mérito do processo), e não a razão económica ou financeira subjacente à transação (por exemplo, o motivo pelo qual foi celebrado um contrato ou pelo qual um determinado comportamento lesivo foi adotado em primeiro lugar), nem, no âmbito específico da responsabilidade extracontratual por facto ilícito, a questão de saber quais as regras que (alegadamente) foram violadas.

64.      Assim, para fornecer outro exemplo, é possível imaginar um administrador da insolvência que provoca um acidente de automóvel enquanto se dirige a um encontro com credores (por estar concentrado no processo de insolvência em curso, e não na estrada). Se um lesado do acidente pretender processar o administrador da insolvência, a natureza da ação é claramente extracontratual, independentemente de, em certa medida, se poder considerar que o administrador da insolvência teve o acidente por causa e no exercício das funções que lhe tinham sido atribuídas pelas regras especiais da insolvência.

65.      Partindo desta perspetiva, torna‑se claro que a segunda parte da formulação utilizada pelo Tribunal de Justiça, nomeadamente, saber se a ação está estreitamente relacionada com o processo de insolvência, não é realmente um critério autónomo, mas antes um elemento adicional de verificação do critério essencial, isto é, o fundamento jurídico. Assim, o critério da conexão estreita permite determinar se a apreciação baseada no fundamento jurídico está correta, permitindo que sejam tidos em consideração outros elementos contextuais que podem potencialmente apontar, em casos bastante específicos, para uma solução distinta da alcançada ao abrigo do critério do fundamento jurídico.

66.      Na maioria dos casos, a existência de uma conexão estreita com o processo de insolvência pode ser demonstrada através da resposta a uma questão bastante simples: é possível instaurar a mesma ação — isto é, uma ação com a mesma natureza jurídica mas, evidentemente, não idêntica em todos os aspetos — à margem do processo de insolvência em curso? Em caso de resposta afirmativa, não é provável que haja uma conexão estreita suscetível de alterar a apreciação realizada ao abrigo da primeira parte do teste, tendo em conta a natureza jurídica da ação.

67.      Deste ponto de vista, a conexão estreita significa antes estar intrinsecamente relacionado. Corresponde a um teste de «caso contrário»: se uma ação semelhante (embora, repito, não idêntica em todos os seus elementos processuais mas apenas em termos da sua natureza jurídica) puder ser instaurada paralelamente ao processo de insolvência, ou independentemente dele, então confirma‑se que essa ação não está intrinsecamente relacionada com esse processo.

68.      Este teste permite uma confirmação adicional da irrelevância dos elementos de «entrada» ou «saída» de uma ação acima referidos, na medida em que apenas se devem à existência de um processo de insolvência em curso. Em contrapartida, a resposta pode ser diferente se uma ação específica não puder ser instaurada por uma pessoa ou contra uma pessoa distinta do administrador da insolvência ou se exigir a abertura prévia de um processo de insolvência.

69.      Por último, não é possível excluir totalmente que, em casos verdadeiramente excecionais, a verificação baseada na conexão estreita possa prevalecer sobre o resultado do teste do fundamento jurídico. Isto pode acontecer se determinada ação, em princípio baseada em regras comuns, se caracterizar por um número tão elevado de normas derrogatórias específicas (por exemplo relativas ao objeto da ação, ao ónus da prova ou ao prazo de prescrição), tão diferentes do regime geral que correspondam, na prática, a um regime distinto e específico, o que, por conseguinte, poderia conduzir essa ação para o domínio da insolvência. Metaforicamente falando, acrescentar cada vez mais elementos específicos a um desenho de um cavalo significará inevitavelmente que, a certa altura, o próprio animal retratado se transformará num camelo, num elefante ou noutra coisa qualquer.

70.      No entanto, na aplicação do teste, em particular na segunda fase de verificação que acabei de referir, a abordagem geral concentra‑se, efetivamente, na necessidade, reiteradamente manifestada, de uma interpretação estrita da exceção de insolvência prevista no Regulamento Bruxelas I (35). Isto é ainda reforçado pelo facto de ser provável que a aplicação desta exceção não só resulte numa decisão relativa à competência internacional mas também afete a determinação da lei aplicável, como se verá adiante na minha resposta às outras questões do órgão jurisdicional de reenvio.

5.      Ação «Peeters/Gatzen»

71.      Regressando especificamente à ação «Peeters/Gatzen» em causa no processo principal, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio, com o seu conhecimento das complexas regras processuais nacionais, aplicar as considerações que propus a esse instrumento processual e, assim, determinar qual dos dois regulamentos em causa é aplicável à ação controvertida.

72.      No entanto, tendo em conta as suas características principais, conforme apresentadas no despacho de reenvio, e a apreciação da sua natureza jurídica no sentido que acabo de descrever, considero que a ação «Peeters/Gatzen» é uma ação de responsabilidade extracontratual por facto ilícito. Por conseguinte, entendo que não está abrangida pela exceção estabelecida no artigo 1.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento Bruxelas I. Deste modo, a referida ação continua abrangida pelo âmbito do Regulamento Bruxelas I.

73.      O despacho de reenvio descreve a ação «Peeters/Gatzen» como tendo origem nas regras comuns do direito civil, nomeadamente nas regras em matéria de responsabilidade extracontratual por facto ilícito. Indica que resulta de um acórdão do órgão jurisdicional de reenvio de 24 de abril de 2009 (36) que a ação «Peeters/Gatzen» se baseia no prejuízo causado aos credores pelos comportamentos do insolvente e do terceiro. Essa ação é relativa ao direito de ação dos credores e à responsabilidade do terceiro face aos credores. Assim, embora apresente algumas características específicas da insolvência, tal ação resulta, na verdade, de um facto ilícito.

74.      Por conseguinte, a natureza jurídica da ação instaurada pelo administrador da insolvência contra o Fortis parece ser extracontratual: baseia‑se no alegado incumprimento, por parte do banco, dos seus deveres estatutários em termos de supervisão e proibição de levantamentos em numerário, que aparentemente causou prejuízo aos credores (primeira parte do teste). Nenhuma das características específicas da ação «Peeters/Gatzen» apresentadas é suficiente para justificar a conclusão de que uma ação como a que foi instaurada no âmbito do processo principal está, com efeito, tão estreitamente relacionada com os processos de insolvência que prevalece sobre o facto de a sua natureza jurídica ser extracontratual (segunda parte do teste).

75.      O órgão jurisdicional de reenvio refere três destas características específicas na redação da primeira questão.

76.      Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio observa que a ação «Peeters/Gatzen» é instaurada por um administrador da insolvência no desempenho da função que lhe é atribuída pela legislação nacional relativa à insolvência, ou seja, gerir e liquidar a massa insolvente em nome e no interesse do conjunto dos credores. Por si só, isto não é determinante, uma vez que praticamente todas as ações instauradas por um administrador da insolvência têm por base as tarefas impostas pelas regras da insolvência e visam a gestão e a liquidação da massa insolvente em nome e no interesse do conjunto dos credores. Conforme referido nos n.os 61 a 64 das presentes conclusões, se isto fosse um elemento definidor, então qualquer ação, independentemente da sua natureza jurídica, instaurada por um administrador da insolvência no exercício das suas funções oficiais estaria abrangida pelo âmbito do Regulamento da Insolvência.

77.      Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio refere que ,numa ação «Peeters/Gatzen», o administrador da insolvência instaura a ação com fundamento no facto de que o terceiro agiu ilicitamente contra os credores. Não considero que este elemento é suscetível de justificar uma conexão estreita deste tipo de ação com o processo de insolvência. Ao invés, sublinha, em meu entender, a verdadeira natureza extracontratual da ação «Peeters/Gatzen».

78.      Em terceiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio salienta igualmente que os ganhos da ação revertem para a massa insolvente. Uma vez mais cabe referir, conforme foi explicado nos n.os 61 a 64 das presentes conclusões, que este elemento não é determinante, uma vez que tornaria o Regulamento da Insolvência aplicável a praticamente todas as ações instauradas por um administrador da insolvência. De facto, os ganhos destas ações pertencem normalmente à massa insolvente, uma vez que os credores com direito aos ganhos obtidos através de uma ação específica são a exceção, e não a regra, em matéria de insolvência.

79.      Além destes elementos, referidos na redação da primeira questão, o despacho de reenvio menciona igualmente dois outros elementos característicos deste tipo de ação e que também foram discutidos na audiência.

80.      O primeiro elemento adicional resulta de um Acórdão de 21 de dezembro de 2001 (37), no qual o órgão jurisdicional de reenvio declarou que, embora a ação «Peeters/Gatzen» não impeça que credores individuais instaurem uma ação em nome próprio, se um credor individual instaurar essa ação, o interesse numa liquidação adequada da insolvência pode implicar que a ação «Peeters/Gatzen» seja decidida em primeiro lugar.

81.      Tal elemento demonstra uma conexão entre este tipo específico de ação e o processo de insolvência, na medida em que o (potencial) tratamento preferencial da ação «Peeters/Gatzen» se baseia na existência desse processo. No entanto, em meu entender, esta conexão não é estreita a ponto de prevalecer sobre a apreciação efetuada com base na natureza da ação, uma vez que o tratamento preferencial não parece ser automaticamente conferido: como o órgão jurisdicional de reenvio observa, quando há ações individuais paralelas, «pode» ser necessário decidir a ação «Peeters/Gatzen» em primeiro lugar.

82.      O segundo elemento adicional salientado pelo despacho de reenvio consiste no facto de que, em conformidade com o Acórdão do órgão jurisdicional de reenvio de 23 de dezembro de 1994 (38), a posição dos credores numa ação «Peeters/Gatzen» é apreciada em conjunto com vista à reparação do prejuízo que sofreram conjuntamente. Por conseguinte, o terceiro não pode invocar todos os elementos de defesa que poderia ter utilizado contra credores individuais.

83.      Em meu entender, esta característica resulta mais da natureza coletiva da ação «Peeters/Gatzen» do que da sua conexão com o processo de insolvência (39). Contudo, é verdade que se pode considerar que esta limitação dos elementos de defesa suscetíveis de ser invocados é, em última instância, do interesse do processo de insolvência, na medida em que reforça a eficiência de uma ação que, se for procedente, aumentará os ativos da massa insolvente. No entanto, afigura‑se que uma característica tão incidental ou acessória da ação «Peeters/Gatzen» não estabelece uma conexão estreita suficiente entre esta ação e o processo de insolvência, suscetível de alterar a conclusão geral baseada na apreciação da natureza desta ação.

84.      Tendo em consideração o exposto, entendo que uma ação de indemnização resultante das regras comuns de direito civil, instaurada contra um terceiro por um administrador da insolvência no cumprimento da obrigação, que lhe é imposta pela lei nacional em matéria de insolvência, de gerir e liquidar a massa insolvente em nome do conjunto dos credores, com o fundamento de que este terceiro agiu ilicitamente contra os credores, e cujos ganhos revertem para a massa insolvente, está abrangida ratione materiae pelo âmbito do Regulamento Bruxelas I.

B.      Segunda questão e primeira parte da terceira questão: âmbito de aplicação da lex fori concursus nos termos do Regulamento da Insolvência

85.      A segunda e terceira questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio apenas precisam de ser respondidas se o Tribunal de Justiça concluir que a ação «Peeters/Gatzen» está abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento da Insolvência. Tendo em conta a resposta negativa que proponho dar a esta questão, não considero necessário apreciar a segunda e terceira questões. No entanto, de modo a prestar todo o apoio ao Tribunal de Justiça caso este chegue a uma conclusão diferente sobre a primeira questão, apreciarei brevemente estas questões na parte final das presentes conclusões.

86.      Com a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, caso esteja abrangida pelo Regulamento da Insolvência, a ação «Peeters/Gatzen» deve ser regulada, nos termos do artigo 4.o, n.o 1, deste regulamento, pelo direito do Estado‑Membro onde os processos de insolvência foram abertos, tanto no que se refere à competência do administrador da insolvência para instaurar esta ação como no que se refere ao direito substantivo aplicável à mesma.

87.      Esta questão pretende determinar se é possível seguir a abordagem do tribunal de segunda instância no processo principal e, assim, separar a lei que regula a competência do administrador da insolvência (ius agendi) da lei aplicável ao mérito da ação. Se tal abordagem for seguida, a competência do administrador da insolvência reger‑se‑á pela lex fori concursus (nomeadamente, o direito dos Países Baixos), nos termos do artigo 4.o, n.o 2, alínea c), do Regulamento da Insolvência. Este artigo estabelece que «[a] lei do Estado de abertura do processo […] determina, nomeadamente […] [o]s poderes respetivos do devedor e do síndico». No entanto, o mérito da ação deverá ser apreciado à luz da lei aplicável em conformidade com as regras gerais de conflitos de leis (e não à luz das normas relativas à insolvência). No presente processo, isto conduziria à aplicação das regras de conflitos de leis dos Países Baixos, uma vez que o Regulamento Roma II não é aplicável ratione temporis (v. secção C das presentes conclusões).Nesse caso, segundo o despacho de reenvio, a regra aplicável é o artigo 3.o da WCOD, nos termos do qual a ação deve ser apreciada à luz do direito belga, uma vez que os comportamentos do Fortis tiveram lugar na Bélgica.

88.      Esta separação da lei aplicável a cada elemento da ação parece‑me problemática (40).

89.      Em primeiro lugar, conforme o Tribunal de Justiça salientou (41), o considerando 23 do Regulamento da Insolvência enuncia que este regulamento «deve estabelecer, quanto às matérias por ele abrangidas, normas uniformes sobre o conflito de leis que substituam, dentro do respetivo âmbito de aplicação, as normas internas de direito internacional privado». Este considerando acrescenta que «[a] lex concursus determina todos os efeitos processuais e materiais dos processos de insolvência sobre as pessoas e relações jurídicas em causa» (42). Por conseguinte, caso a ação «Peeters/Gatzen» estivesse abrangida pelo Regulamento da Insolvência, todos os seus elementos seriam exclusivamente regulados pelas regras dos conflitos de leis deste regulamento.

90.      Em segundo lugar, é evidente que as disposições conjugadas dos artigos 3.o e 4.o do Regulamento da Insolvência visam, como regra geral, uma identidade entre forum e ius, ou seja, uma correspondência entre os órgãos jurisdicionais que têm competência internacional e a lei aplicável aos processos de insolvência. De facto, conforme estabelecido no artigo 4.o, n.o 1, «[s]alvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado‑Membro em cujo território é aberto o processo» (43). Em meu entender, o regulamento não prevê exceções suscetíveis de justificar a aplicação de uma lei distinta da lex fori concursus ao mérito de uma ação como a ação «Peeters/Gatzen», caso tal ação seja regulada pelo Regulamento da Insolvência.

91.      Se a separação da lei aplicável à ação não for possível, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, com a primeira parte da terceira questão, se o direito belga pode ser tido em consideração de outra forma. Pergunta se os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro onde os processos de insolvência foram instaurados podem ter em conta o disposto no artigo 13.o do Regulamento da Insolvência, no sentido de que o demandado se possa defender numa ação «Peeters/Gatzen» demonstrando que não teria sido responsabilizado pelo seu comportamento se este tivesse sido apreciado à luz do direito aplicável, caso a ação não tivesse sido instaurada pelo administrador da insolvência mas por um credor individual com fundamento em responsabilidade extracontratual por facto ilícito (nomeadamente, o direito belga).

92.      Nos termos do artigo 4.o, n.o 2, alínea m), do Regulamento da Insolvência, «[a] lei do Estado de abertura do processo […] determina, nomeadamente […] [a]s regras referentes à nulidade, à anulação ou à impugnação dos atos prejudiciais aos credores».

93.      Por sua vez, o artigo 13.o prevê uma exceção à aplicação do artigo 4.o, n.o 2, alínea m), estabelecendo que este «não é aplicável se quem tiver beneficiado de um ato prejudicial a todos os credores fizer prova de que: i) esse ato se rege pela lei de um Estado‑Membro que não o Estado de abertura do processo, e ii) no caso em apreço, essa mesma lei não permite a impugnação do ato por nenhum meio». Por conseguinte, o artigo 13.o apenas pode ser aplicado quando o próprio artigo 4.o, n.o 2, alínea m), é aplicável.

94.      É difícil entender de que forma a ação «Peeters/Gatzen» em causa no processo principal pode ser qualificada de regra «referente[…] à nulidade, à anulação ou à impugnação dos atos prejudiciais aos credores», na aceção do artigo 4.o, n.o 2, alínea m), do Regulamento da Insolvência. O objetivo de tal ação não é a declaração de nulidade, a anulação ou a impugnação de um ato de terceiro mas a indemnização de prejuízos decorrentes de uma atuação ilícita deste terceiro contra os credores. Por conseguinte, uma vez que o artigo 4.o, n.o 2, alínea m), do regulamento não é aplicável ao processo principal, a exceção prevista no artigo 13.o também não é aplicável.

95.      Um obstáculo adicional à aplicabilidade do artigo 13.o do Regulamento da Insolvência parece resultar da sua redação e do seu objetivo. No que respeita à redação, esta disposição refere «quem tiver beneficiado de um ato prejudicial a todos os credores» (o sublinhado é meu). No que respeita ao objetivo, o Tribunal de Justiça declarou que a exceção estabelecida no artigo 13.o, que deve ser interpretada em sentido estrito (44), «visa proteger a confiança legítima de quem beneficiou de um ato prejudicial a todos os credores, ao prever que esse ato continuará a ser regido, mesmo após a abertura de um processo de insolvência, pelo direito que lhe era aplicável na data em que foi realizado […]» (45).

96.      No presente processo, não vejo nenhum ato de que o Fortis tenha beneficiado e que deva ser mantido para proteger a sua confiança legítima. Por conseguinte, não se pode considerar que a exceção do artigo 13.o do Regulamento da Insolvência, sujeita a uma obrigação de interpretação estrita, é aplicável ao processo principal.

97.      Concluindo, caso se considere que está abrangida pelo âmbito do Regulamento da Insolvência, a ação «Peeters/Gatzen» é exclusivamente regulada pela lex fori concursus. Além disso, o artigo 13.o do referido regulamento não pode ser invocado para que outra lei seja tida em consideração.

98.      A título de posfácio, pode acrescentar‑se que, em meu entender, a discussão nesta secção parece confirmar ainda mais que a resposta correta à primeira questão é que a ação «Peeters/Gatzen» não se rege pelo Regulamento da Insolvência. De facto, se essa ação estivesse abrangida pelo âmbito deste regulamento, isto significaria que o direito aplicável ao alegado facto ilícito não era o direito belga (o direito do local onde ocorreu o alegado facto ilícito), mas o direito dos Países Baixos (o direito do local onde foram instaurados os processos de insolvência posteriores contra a pessoa que teria alegadamente beneficiado do facto ilícito). Esta circunstância conduziria, conforme demonstrado na análise efetuada na presente secção, à necessidade prática de uma construção jurídica bastante artificial ou pesada a fim de inverter o funcionamento das regras gerais do Regulamento da Insolvência, o que certamente suscita a questão de saber a razão pela qual estas regras deveriam ser aplicáveis em primeiro lugar. Tais esforços confirmam que, efetivamente, não existe nenhuma conexão estreita e necessária entre essa ação e os processos de insolvência.

C.      Segunda parte da terceira questão: Regulamento Roma II

99.      Com a segunda parte da terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, caso a ação «Peeters/Gatzen» esteja exclusivamente sujeita à lex fori concursus, é possível ter em conta, diretamente ou, pelo menos, por analogia, e com base no artigo 17.o do Regulamento Roma II conjugado com o artigo 13.o do Regulamento da Insolvência, as regras de segurança e os códigos de conduta em vigor no lugar em que ocorreu o suposto facto ilícito (isto é, na Bélgica), tais como as regras de comportamento financeiro aplicáveis aos bancos.

100. Segundo tenho conhecimento, o artigo 17.o do Regulamento Roma II nunca foi interpretado pelo Tribunal de Justiça. Ao avaliar o comportamento da pessoa cuja responsabilidade é invocada, esta disposição permite que sejam tidas em conta (em vez de aplicar), a título de matéria de facto (em vez de regra jurídica) e na medida em que for apropriado (aqui, sem dúvida, deixando alguma margem de manobra para o juiz), as regras de segurança e de conduta em vigor no lugar e no momento em que ocorreu o facto que dá origem à responsabilidade.

101. Para aplicar o artigo 17.o do Regulamento Roma II no processo principal, este regulamento teria de ser aplicável ratione temporis. É verdade que a determinação do âmbito ratione temporis do Regulamento Roma II, conforme estabelecido nos artigos 31.o e 32.o do mesmo regulamento, não é evidente. No entanto, no Acórdão Homawoo, o Tribunal de Justiça esclareceu que estas disposições devem ser interpretadas no sentido de que um órgão jurisdicional nacional deve aplicar este regulamento unicamente aos factos geradores de danos ocorridos a partirde 11 de janeiro de 2009. A data de propositura da ação de indemnização não é relevante para efeitos da definição do âmbito de aplicação ratione temporis do regulamento (46).

102. Por conseguinte, à luz do Acórdão Homawoo, e sem que seja necessário verificar se as regras financeiras de conduta dos bancos estão abrangidas pelo conceito de «regras de segurança e de conduta», considero que o artigo 17.o do Regulamento Roma II não é aplicável ao processo principal.

103. Por último, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 17.o do Regulamento Roma II (bem como, o artigo 13.o do Regulamento da Insolvência) pode ser tido em conta por analogia no presente processo. É verdade que qualquer regra jurídica ou princípio da União Europeia, em vigor ou não, quer produza efeitos jurídicos vinculativos ou não, pode potencialmente ser tido em consideração, por analogia, por um órgão jurisdicional nacional, na medida em que as regras nacionais de interpretação e aplicação o permitam (47) e na medida em que o órgão jurisdicional nacional considere que essa inspiração facultativa resultante do direito da União Europeia é útil para efeitos da resolução do caso em apreço.

104. No entanto, em meu entender, a questão mais relevante consiste, repito (48), em saber se é realmente necessário recorrer a uma construção jurídica complexa, neste caso a aplicação de regras por analogia, à margem do seu âmbito material e temporal, para chegar a uma solução (a aplicação do direito belga) que resolva um problema (a aplicabilidade do direito dos Países Baixos nos termos do Regulamento da Insolvência) que nunca deveria ter sido criado (uma vez que a ação «Peeters/Gatzen» em causa deve estar abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento Bruxelas I). Em todo caso, considero, também a este respeito, que as referidas questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio confirmam que não há uma conexão estreita entre a referida ação e os processos de insolvência.

V.      Conclusão

105. Tendo em consideração o exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda o seguinte às questões submetidas pelo Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal, Países Baixos):

Uma ação de indemnização resultante das regras comuns de direito civil, como a que está em causa no processo principal, instaurada contra um terceiro por um administrador da insolvência no cumprimento da obrigação, que lhe é imposta pela lei nacional em matéria de insolvência, de gerir e liquidar a massa insolvente em nome do conjunto dos credores, com o fundamento de que esse terceiro agiu ilicitamente contra esses credores, e cujos ganhos revertem para a massa insolvente, está abrangida ratione materiae pelo âmbito do Regulamento (CE) n. o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.


1      Língua original: inglês.


2      JO 2000, L 160, p. 1.


3      JO 2001, L 12, p. 1.


4      JO 2007, L 199, p. 40.


5      NL:HR:1983:AG4521, NJ 1983/597.


6      O órgão jurisdicional de reenvio refere os seus Acórdãos de 23 de dezembro de 1994, NL:HR:1994:ZC1590, NJ 1996/628; de 21 de dezembro de 2001, NL:HR:2001:AD2684, NJ 2005/95; de 16 de setembro de 2005, NL:HR:2005:AT7797, NJ 2006/311; e de 24 de abril de 2009, NL:HR:2009:BF3917, NJ 2009/416.


7      C‑157/13, EU:C:2014:2145.


8      C‑649/13, EU:C:2015:384.


9      V. Acórdãos de 4 de setembro de 2014, Nickel & Goeldner Spedition (C‑157/13, EU:C:2014:2145, n.o 21); de 11 de junho de 2015, Comité d’entreprise de Nortel Networks e o. (C‑649/13, EU:C:2015:384, n.o 26); e de 9 de novembro de 2017, Tünkers France e Tünkers Maschinenbau (C‑641/16, EU:C:2017:847, n.o 17). V., igualmente, quanto ao Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1; a seguir «Regulamento Bruxelas I A»), Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Valach e o. (C‑649/16, EU:C:2017:986, n.o 24).


10      V. Acórdãos de 10 de setembro de 2009, German Graphics Graphische Maschinen (C‑292/08, EU:C:2009:544, n.os 22 e 23), e de 4 de setembro de 2014, Nickel & Goeldner Spedition (C‑157/13, EU:C:2014:2145, n.o 22). V., igualmente, Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Valach e o. (C‑649/16, EU:C:2017:986, n.o 25).


11      V. Acórdãos de 10 de setembro de 2009, German Graphics Graphische Maschinen (C‑292/08, EU:C:2009:544, n.o 25), e de 4 de setembro de 2014, Nickel & Goeldner Spedition (C‑157/13, EU:C:2014:2145, n.o 22). V., igualmente, Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Valach e o. (C‑649/16, EU:C:2017:986, n.o 25).


12      Convenção de 27 de setembro de 1968, relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1978, L 304, p. 36).


13      Acórdãos de 22 de fevereiro de 1979, Gourdain (133/78, EU:C:1979:49, n.o 3), e de 2 de julho de 2009, SCT Industri (C‑111/08, EU:C:2009:419, n.o 20).


14      V. Acórdão de 19 de abril 2012, F‑Tex (C‑213/10, EU:C:2012:215, n.o 21).


15      V. Relatório sobre a Convenção relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial, elaborado por P. Jenard (JO 1979, C 59, p. 1, pontos 11 e 12). V., igualmente, Relatório sobre a Convenção relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte à Convenção relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial, bem como ao Protocolo relativo à sua interpretação pelo Tribunal de Justiça, elaborado por P. Schlosser (JO 1979, C 59, p. 71, n.o 53).


16      Aberta à assinatura pelos Estados‑Membros em 23 de novembro de 1995.


17      Acórdão de 19 de abril de 2012, F‑Tex (C‑213/10, EU:C:2012:215, n.o 24).


18      Estas ações são qualificadas de «ações anexas» no Acórdão de 11 de junho de 2015, Comité d’entreprise de Nortel Networks e o. (C‑649/13, EU:C:2015:384).


19      Quanto à disposição equivalente da Convenção de Bruxelas, nomeadamente o n.o 2 do segundo parágrafo do artigo 1.o, v. Acórdãos de 22 de fevereiro de 1979, Gourdain (133/78, EU:C:1979:49, n.o 4), e de 12 de fevereiro de 2009, Seagon (C‑339/07, EU:C:2009:83, n.o 19). Quanto ao Regulamento Bruxelas I, v. Acórdãos de 19 de abril de 2012, F‑Tex (C‑213/10, EU:C:2012:215, n.o 29); de 4 de setembro de 2014, Nickel & Goeldner Spedition (C‑157/13, EU:C:2014:2145, n.o 23); e de 11 de junho de 2015, Comité d’entreprise de Nortel Networks e o. (C‑649/13, EU:C:2015:384, n.o 27). Quanto ao Regulamento Bruxelas I A, v. Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Valach e o. (C‑649/16, EU:C:2017:986, n.o 26).


20      Acórdãos de 19 de abril de 2012, F‑Tex (C‑213/10, EU:C:2012:215, n.o 29); de 4 de setembro de 2014, Nickel & Goeldner Spedition (C‑157/13, EU:C:2014:2145, n.o 23); de 11 de junho de 2015, Comité d’entreprise de Nortel Networks e o. (C‑649/13, EU:C:2015:384, n.o 27); e de 20 de dezembro de 2017, Valach e o. (C‑649/16, EU:C:2017:986, n.o 26 e jurisprudência referida).


21      Acórdão de 22 de fevereiro de 1979, Gourdain (133/78, EU:C:1979:49, n.o 4).


22      Acórdãos de 12 de fevereiro de 2009, Seagon (C‑339/07, EU:C:2009:83, n.o 20); de 9 de novembro de 2017, Tünkers France e Tünkers Maschinenbau (C‑641/16, EU:C:2017:847, n.o 20); e de 20 de dezembro de 2017, Valach e o. (C‑649/16, EU:C:2017:986, n.o 27).


23      V. Acórdão de 12 de fevereiro de 2009, Seagon (C‑339/07, EU:C:2009:83, n.o 25).


24      Acórdão de 12 de fevereiro de 2009, Seagon (C‑339/07, EU:C:2009:83, n.o 21). Esta norma foi posteriormente codificada no artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência (JO 2015, L 141, p. 19), que revogou o Regulamento da Insolvência mas que não é aplicável ratione temporis ao caso em apreço. Segundo esta disposição «[o]s órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em cujo território for aberto o processo de insolvência nos termos do artigo 3.o são competentes para apreciar as ações que decorram diretamente do processo de insolvência e que com este se encontrem estreitamente relacionadas, como as ações de impugnação pauliana».


25      V. Acórdão de 19 de abril de 2012, F‑Tex (C‑213/10, EU:C:2012:215, n.os 47 e 48).


26      V. Acórdão de 4 de setembro de 2014, Nickel & Goeldner Spedition (C‑157/13, EU:C:2014:2145, n.os 30 e 31).


27      V. Acórdão de 9 de novembro de 2017, Tünkers France e Tünkers Maschinenbau (C‑641/16, EU:C:2017:847, n.os 22, 27 e 28).


28      Acórdão de 2 de julho de 2009, SCT Industri (C‑111/08, EU:C:2009:419, n.os 21 e 25) (o sublinhado é meu). V., igualmente, Acórdão de 10 de setembro de 2009, German Graphics Graphische Maschinen (C‑292/08, EU:C:2009:544, n.o 29).


29      V. Acórdão de 4 de setembro de 2014, Nickel & Goeldner Spedition (C‑157/13, EU:C:2014:2145, n.o 27) (o sublinhado é meu). V., igualmente, Acórdãos de 11 de junho de 2015, Comité d’entreprise de Nortel Networks e o. (C‑649/13, EU:C:2015:384, n.o 28), e, mais recentemente, de 20 de dezembro de 2017, Valach e o. (C‑649/16, EU:C:2017:986, n.o 29 e jurisprudência referida).


30      Acórdão de 4 de setembro de 2014, Nickel & Goeldner Spedition (C‑157/13, EU:C:2014:2145, n.os 30 e 31). A este respeito, é interessante observar que o conceito de «fundamento jurídico» já foi referido no Acórdão Gourdain, apesar de nesse processo tal conceito se referir a ambas as partes do teste [N. do T.: embora na versão inglesa desses acórdãos sejam utilizadas expressões distintas («legal basis» e «legal foundation», respetivamente), a versão portuguesa dos acórdãos referidos utiliza apenas a expressão «fundamento jurídico»]: v. Acórdão Gourdain, de 22 de fevereiro de 1979 (133/78, EU:C:1979:49, n.o 4).


31      V. Acórdãos de 9 de novembro de 2017, Tünkers France e Tünkers Maschinenbau (C‑641/16, EU:C:2017:847, n.os 22 e 28), e de 20 de dezembro de 2017, Valach e o. (C‑649/16, EU:C:2017:986, n.os 29 e 37).


32      Quanto à importância do teste do fundamento jurídico, v., igualmente, Virgós, M. e Schmit, E., Relatório explicativo sobre a Convenção relativa aos Processos de Insolvência de 3 de maio de 1996 [Documento do Conselho da União Europeia n.o 6500/96, DRS 8 (CFC)], ponto 196.


33      Acórdão de 4 de setembro de 2014, Nickel & Goeldner Spedition (C‑157/13, EU:C:2014:2145, n.o 29).


34      V., neste sentido, Acórdão de 10 de setembro de 2009, German Graphics Graphische Maschinen (C‑292/08, EU:C:2009:544, n.os 32 e 33).


35      V. notas 10 e 11.


36      NL:HR:2009:BF3917, NJ 2009/416.


37      NL:HR:2001:AD2684, NJ 2005/95.


38      NL:HR:1994:ZC1590, NJ 1996/628.


39      O tratamento eficaz das ações coletivas impede, regra geral, uma apreciação individual da situação de cada demandante face ao demandado: v., por exemplo, quanto às ações coletivas neerlandesas, Bosters, T., Collective Redress and Private International Law in the EU, T.M.C. Asser Press, Haia, 2017, pp. 38 e 39.


40      Conforme sugerido pelo órgão jurisdicional de reenvio, ou seja, se o Regulamento da Insolvência fosse aplicável à ação de indemnização contra o Fortis mas não «a todos os elementos» dessa ação. Gostaria de esclarecer, contudo, que o facto de o Regulamento da Insolvência não ser aplicável a essa ação não significa, naturalmente, que não seja relevante para a determinação das competências do administrador da insolvência no processo de insolvência em curso, incluindo a questão da legitimidade para instaurar uma ação (de responsabilidade extracontratual por facto ilícito) noutro Estado‑Membro.


41      Acórdão de 8 de junho de 2017, Vinyls Italia (C‑54/16, EU:C:2017:433, n.o 47).


42      Acórdão de 9 de novembro de 2016, ENEFI (C‑212/15, EU:C:2016:841, n.o 17). O sublinhado é meu.


43      Quanto à relação entre os artigos 3.o e 4.o do Regulamento da Insolvência, v. Acórdão de 10 de dezembro de 2015, Kornhaas (C‑594/14, EU:C:2015:806, n.o 17).


44      Acórdão de 15 de outubro de 2015, Nike European Operations Netherlands (C‑310/14, EU:C:2015:690, n.o 18).


45      Acórdão de 15 de outubro de 2015, Nike European Operations Netherlands (C‑310/14, EU:C:2015:690, n.o 19). V., igualmente, Acórdão de 8 de junho de 2017, Vinyls Italia (C‑54/16, EU:C:2017:433, n.o 30).


46      Acórdão de 17 de novembro de 2011, Homawoo (C‑412/10, EU:C:2011:747, n.o 37).


47      V., relativamente ao recurso à analogia no direito da União Europeia, Acórdão de 12 de dezembro de 1985, Krohn (165/84, EU:C:1985:507, n.o 14 e jurisprudência referida).


48      N.o 98 das presentes conclusões.