Language of document : ECLI:EU:C:2020:925

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 12 de novembro de 2020 (1)

Processos apensos C354/20 PPU e C412/20 PPU

L. e P.,

sendo interveniente:

Openbaar Ministerie

[pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão, Países Baixos)]

«Reenvio prejudicial — Tramitação prejudicial urgente — Cooperação judiciária em matéria penal — Mandado de detenção europeu — Decisão‑Quadro 2002/584/JAI — Entrega do detido à autoridade judiciária de emissão — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 47.o — Direito de acesso a um tribunal independente e imparcial — Falhas sistémicas e generalizadas relativas à independência do poder judicial do Estado‑Membro de emissão»






1.        O Tribunal de Justiça já decidiu quando pode a autoridade judiciária de execução de um mandado de detenção europeu (a seguir «MDE») instruído em conformidade com a Decisão‑Quadro 2002/584/JAI (2) suspender a entrega do procurado, se estiver demonstrado um risco real de violação dos seus direitos fundamentais.

2.        Em formação de Grande Secção, o Tribunal de Justiça aceitou que, de entre as violações desses direitos suscetíveis de justificar a não entrega do procurado, consta a relativa a um processo equitativo (artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a seguir «Carta»). Tal podia ser o caso quando as falhas sistémicas ou generalizadas relativas à independência dos órgãos jurisdicionais do Estado de emissão do MDE punham em causa esse direito fundamental (3).

3.        Para concluir deste modo, o Tribunal de Justiça adotou, no Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), o mesmo método que tinha utilizado anteriormente na presença de falhas sistémicas ou generalizadas que afetavam não a independência dos órgãos jurisdicionais, mas a situação das prisões, potencialmente atentatória da dignidade da pessoa cuja entrega era decidida no âmbito de um MDE (4).

4.        Segundo este método, a autoridade judiciária de execução de um MDE deve verificar, de modo concreto e preciso, se, além das falhas sistémicas e generalizadas que condicionam a independência dos órgãos jurisdicionais do Estado de emissão, existem motivos sérios e comprovados para crer que a pessoa procurada corre o risco de sofrer uma violação do direito que lhe confere o artigo 47.o da Carta, em caso de entrega.

5.        O rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão, Países Baixos) pergunta se, perante um agravamento das falhas generalizadas na administração da justiça polaca, posterior ao Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), pode recusar a entrega pedida por um órgão jurisdicional desse país, sem que seja necessário examinar em pormenor as circunstâncias concretas do MDE.

6.        Pelas razões que exporei a seguir, proporei ao Tribunal de Justiça que confirme a jurisprudência decorrente do Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário). Por conseguinte, partilho da posição defendida neste processo pelo Openbaar Ministerie (Ministério Público, Países Baixos), pelos Governos belga e irlandês, bem como  pela Comissão (5).

I.      Quadro jurídico

A.      Direito da União

1.      Tratado da União Europeia

7.        O artigo 7.o prevê:

«1. Sob proposta fundamentada de um terço dos Estados‑Membros, do Parlamento Europeu ou da Comissão Europeia, o Conselho, deliberando por maioria qualificada de quatro quintos dos seus membros, e após aprovação do Parlamento Europeu, pode verificar a existência de um risco manifesto de violação grave dos valores referidos no artigo 2.o por parte de um Estado‑Membro. Antes de proceder a essa constatação, o Conselho deve ouvir o Estado‑Membro em questão e pode dirigir‑lhe recomendações, deliberando segundo o mesmo processo.

O Conselho verificará regularmente se continuam válidos os motivos que conduziram a essa constatação.

2. O Conselho Europeu, deliberando por unanimidade, sob proposta de um terço dos Estados‑Membros ou da Comissão Europeia, e após aprovação do Parlamento Europeu, pode verificar a existência de uma violação grave e persistente, por parte de um Estado‑Membro, dos valores referidos no artigo 2.o, após ter convidado esse Estado‑Membro a apresentar as suas observações sobre a questão.

3. Se tiver sido verificada a existência da violação a que se refere o n.o 2, o Conselho, deliberando por maioria qualificada, pode decidir suspender alguns dos direitos decorrentes da aplicação dos Tratados ao Estado‑Membro em causa, incluindo o direito de voto do representante do Governo desse Estado‑Membro no Conselho. Ao fazê‑lo, o Conselho terá em conta as eventuais consequências dessa suspensão nos direitos e obrigações das pessoas singulares e coletivas.

O Estado‑Membro em questão continuará, de qualquer modo, vinculado às obrigações que lhe incumbem por força dos Tratados.

[…]»

2.      Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

8.        O artigo 47.o («Direito à ação e a um tribunal imparcial») dispõe:

«Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal nos termos previstos no presente artigo.

Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei. Toda a pessoa tem a possibilidade de se fazer aconselhar, defender e representar em juízo.

[…]»

3.      DecisãoQuadro 2002/584

9.        O considerando 10 declara:

«O mecanismo do [MDE] é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados‑Membros. A execução desse mecanismo só poderá ser suspensa no caso de violação grave e persistente, por parte de um Estado‑Membro, dos princípios enunciados no n.o 1 do artigo 6.o do [TUE], verificada pelo Conselho nos termos do n.o 1 do artigo 7.o do mesmo Tratado e com as consequências previstas no n.o 2 do mesmo artigo.»

10.      O artigo 1.o («Definição de mandado de detenção europeu e obrigação de o executar») prevê:

«1. O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2. Os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.

3. A presente decisão‑quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.o [TUE].»

11.      O artigo 6.o («Determinação das autoridades judiciárias competentes») dispõe:

«1. A autoridade judiciária de emissão é a autoridade judiciária do Estado‑Membro de emissão competente para emitir um mandado de detenção europeu nos termos do direito desse Estado.

2. A autoridade judiciária de execução é a autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução competente para executar o mandado de detenção europeu nos termos do direito desse Estado.

3. Cada Estado‑Membro informa o Secretariado‑Geral do Conselho da autoridade judiciária competente nos termos do respetivo direito nacional.»

12.      Os artigos 3.o, 4.o e 4.o‑A enumeram os motivos de não execução obrigatória e facultativa do MDE.

13.      O artigo 15.o («Decisão sobre a entrega») dispõe:

«1. A autoridade judiciária de execução decide da entrega da pessoa nos prazos e nas condições definidos na presente decisão‑quadro.

2. Se a autoridade judiciária de execução considerar que as informações comunicadas pelo Estado‑Membro de emissão são insuficientes para que possa decidir da entrega, solicita que lhe sejam comunicadas com urgência as informações complementares necessárias, em especial, em conexão com os artigos 3.o a 5.o e o artigo 8.o, podendo fixar um prazo para a sua receção, tendo em conta a necessidade de respeitar os prazos fixados no artigo 17.o

3. A autoridade judiciária de emissão pode, a qualquer momento, transmitir todas as informações suplementares úteis à autoridade judiciária de execução.»

B.      Direito nacional

14.      A decisão‑quadro foi transposta para o direito neerlandês pela Wet tot implementatie van het kaderbesluit van de Raad van de Europese Unie betreffende het Europees aanhoudingsbevel en de procedures van overlevering tussen de lidstaten van de Europese Unie (6), de 29 de abril de 2004 (7), conforme alterada pela Lei de 22 de fevereiro de 2017 (8).

II.    Litígios e questões prejudiciais

A.      Processo C354/20 PPU

15.      Em 7 de fevereiro de 2020, o officier van justitie (magistrado do Ministério Público, Países Baixos) apresentou no tribunal de reenvio um pedido de execução de um MDE emitido, em 31 de agosto de 2015, pelo Sąd Rejonowy w Poznaniu (Tribunal de Primeira Instância de Poznań, Polónia) para a detenção e entrega de um nacional polaco sem domicílio nem residência nos Países Baixos, para efeitos de exercício da ação penal por tráfico de estupefacientes e posse de bilhete de identidade falso.

16.      Em 24 de março de 2020, o rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão) suspendeu a instrução do processo para que o procurado e o Ministério Público apresentassem os seus argumentos sobre os acontecimentos mais recentes ocorridos na Polónia relativamente ao Estado de direito, bem como sobre as suas eventuais consequências sobre a entrega deste, nos termos do Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário).

17.      Em 12 de junho de 2020, após a apresentação desses argumentos, o rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão) pediu ao Ministério Público que submetesse determinadas questões ao tribunal de emissão. Este respondeu às questões submetidas, com exceção das destinadas ao Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal, Polónia), para cuja resposta convidou o tribunal de reenvio a dirigir‑se diretamente ao próprio Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal).

18.      O Ministério Público submeteu as questões que lhe diziam respeito ao Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal), não tendo obtido resposta.

19.      Neste contexto, o rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão) submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões:

«1) A [d]ecisão‑[q]uadro […], o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, [TUE] e/ou o artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta opõem‑se efetivamente a que a autoridade judiciária de execução execute um MDE emitido por um órgão jurisdicional quando a legislação nacional do Estado‑Membro de emissão tenha sido alterada, após a emissão do MDE, de tal forma que o referido órgão jurisdicional já não cumpre as exigências da tutela jurisdicional efetiva, pelo facto de essa legislação já não garantir a independência daquele órgão jurisdicional?

2) A [d]ecisão‑[q]uadro […] e o artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta opõem‑se efetivamente a que a autoridade judiciária de execução execute um MDE quando tenha constatado que, no Estado‑Membro de emissão, existe um risco real de violação do direito fundamental a um tribunal independente para qualquer suspeito — incluindo para a pessoa procurada —, independentemente de saber quais são os órgãos jurisdicionais competentes desse Estado‑Membro para conhecer dos processos a que a pessoa procurada será sujeita e independentemente da sua situação pessoal, da natureza da infração pela qual é exercida a ação penal contra ela e do contexto factual que está na base do MDE, estando esse risco real associado à falta de independência dos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro de emissão, devido a falhas sistémicas e generalizadas?

3) A [d]ecisão‑[q]uadro […] e o artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta opõem‑se efetivamente a que a autoridade judiciária de execução execute um MDE quando tenha constatado que:

— no Estado‑Membro de emissão existe um risco real de violação do direito fundamental a um processo equitativo para qualquer suspeito, estando esse risco real associado a falhas sistémicas e generalizadas no tocante à independência dos órgãos jurisdicionais daquele Estado‑Membro,

— as falhas sistemáticas e generalizadas não só podem ter como efetivamente têm um impacto negativo nos órgãos jurisdicionais competentes desse Estado‑Membro para conhecer dos processos a que a pessoa procurada será sujeita, e

— existem motivos sérios e comprovados para acreditar que a pessoa procurada corre um risco real de que seja violado o seu direito fundamental a um tribunal independente e, portanto, de que seja afetado o conteúdo essencial do seu direito fundamental a um processo equitativo,

ainda que, para além daquelas falhas sistémicas e generalizadas, a pessoa procurada não tenha manifestado preocupações específicas e a situação pessoal da pessoa procurada, a natureza da infração pela qual é exercida a ação penal contra ela e o contexto factual que está na base do MDE não suscitem o receio de que o poder legislativo e/ou executivo exerça uma pressão concreta ou uma influência no processo penal instaurado contra ela?»

B.      Processo C412/20 PPU

20.      Em 23 de junho de 2020, o officier van justitie (magistrado do Ministério Público, Países Baixos) apresentou no tribunal de reenvio um pedido de execução de um MDE emitido, em 26 de maio de 2015, pelo Sąd okręgowy w Sieradzu (Tribunal Regional de Sieradz, Polónia), para a detenção e entrega de uma pessoa condenada por outro tribunal polaco a uma pena privativa de liberdade (9).

21.      A pessoa procurada requereu a esse tribunal, em 17 de agosto de 2020, que aguardasse pela resposta do Tribunal de Justiça à questão prejudicial submetida no processo C‑354/20 PPU, ao que o Ministério Público não se opôs.

22.      Na sequência de audiência realizada em 20 de agosto de 2020, o rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão) decidiu acrescentar uma questão prejudicial às apresentadas no processo C‑354/20 PPU, com a seguinte redação:

«A [d]ecisão‑[q]uadro […], o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, [TUE] e/ou o artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta […] opõem‑se a que a autoridade judiciária de execução execute um [MDE] emitido por um órgão jurisdicional quando este não cumpre as exigências da tutela jurisdicional efetiva e já não as cumprir quando emitiu o [MDE], pelo facto de a legislação do Estado‑Membro [de emissão] não garantir a independência daquele órgão jurisdicional e de já não a garantir no momento em que o [MDE] foi emitido?»

III. Tramitação dos processos no Tribunal de Justiça

23.      Os pedidos de decisão prejudicial foram registados na Secretaria do Tribunal de Justiça em 31 de julho de 2020 (processo C‑354/20 PPU) e 3 de setembro de 2020 (processo C‑412/20 PPU).

24.      O Tribunal de Justiça aceitou submeter os reenvios prejudiciais à tramitação urgente e apensou‑os.

25.      Foram apresentadas observações escritas pelos representantes das pessoas procuradas, pelo Ministério Público, pelos Governos dos Países Baixos e da Polónia, bem como pela Comissão. Todos compareceram na audiência pública, realizada em 12 de outubro de 2020, na qual participaram igualmente os Governos belga e irlandês.

IV.    Análise

A.      Considerações preliminares

1.      Disposição aplicável da decisãoquadro

26.      Tanto o dispositivo como os fundamentos dos despachos de reenvio se referem de maneira geral à decisão‑quadro, sem especificar o artigo cuja interpretação é pedida.

27.      No entanto, como no processo que deu origem ao Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), resulta destes despachos que o tribunal de reenvio se refere à regra do artigo 1.o, n.o 3, da decisão‑quadro.

2.      Justificação dos reenvios prejudiciais

28.      No despacho de reenvio no processo C‑354/20 PPU, o rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão) afirma que não vê razões para recusar a execução do MDE por qualquer dos fundamentos previstos nos artigos 3.o a 5.o da decisão‑quadro (10). Embora o despacho de reenvio no processo C‑412/20 PPU não contenha uma observação no mesmo sentido, presume‑se que o mesmo acontece nesse processo.

29.      No entanto, considera que os «recentes desenvolvimentos na legislação da República da Polónia em relação à independência do poder judicial polaco» (11) poderiam constituir fundamento suficiente para recusar a execução do MDE. Interroga‑se sobre a questão de saber se essas reformas legislativas condicionam, por si só, a execução do MDE, dado o risco de violação do direito da pessoa procurada a um processo equitativo num tribunal independente, garantido no artigo 47.o da Carta.

30.      Como se explica no despacho de reenvio no processo C‑354/20 PPU, antes dessas reformas, e após a prolação do Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), o tribunal de reenvio pressupunha que existe, na Polónia, um risco real de violação deste direito, devido a falhas sistémicas ou generalizadas que afetam a independência do poder judicial desse Estado‑Membro.

31.      Partindo dessa premissa, o rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão) tinha por hábito analisar os MDE emitidos pelos órgãos jurisdicionais polacos sob o duplo ângulo estabelecido no Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário). Este método implicava determinar: a) se tais falhas podiam ter um impacto negativo ao nível dos órgãos jurisdicionais competentes para conhecer dos processos a que a pessoa procurada seria sujeita; e b) em caso afirmativo, se existiam motivos sérios e comprovados para acreditar que a referida pessoa correria um risco real de violação do seu direito fundamental a um tribunal independente.

32.      Segundo o tribunal de reenvio, essa metodologia poderia ter perdido a sua atualidade, tendo em conta as reformas legais aprovadas na Polónia durante os últimos meses. Essas alterações implicariam que as falhas sistémicas e generalizadas ao nível da independência dos órgãos jurisdicionais polacos fossem de tal ordem que o direito a um tribunal independente já não seria garantido para nenhum suspeito nesses tribunais, independentemente da sua situação pessoal, da natureza da infração pela qual é perseguida e do contexto factual que está na base do MDE.

33.      Neste novo contexto, seria possível recusar a execução do MDE, sem que fosse necessário averiguar mais especificamente se as falhas sistémicas têm um impacto negativo para os órgãos jurisdicionais concretos que irão julgar a pessoa procurada e se essa pessoa, atendendo à sua situação pessoal, corre um risco real de que seja violado o seu direito a um processo equitativo (12).

34.      Além disso, no despacho de reenvio no processo C‑412/20 PPU, sublinha‑se que, diferentemente do processo C‑354/20 PPU, o MDE: a) foi emitido para a execução de uma pena privativa de liberdade; e b) foi emitido em 26 de maio de 2020, ou seja, posteriormente aos acontecimentos cuja evolução demonstraria uma pressão acrescida sobre a independência dos órgãos jurisdicionais polacos.

B.      Quanto ao mérito

35.      As questões do tribunal de reenvio que, genericamente, se revestem de maior importância são as que dizem respeito à possibilidade de se recusar a execução de um MDE na falta de órgãos jurisdicionais independentes no Estado‑Membro de emissão, devido a falhas sistémicas ou generalizadas que afetem a sua independência (segunda questão no processo C‑354/20 PPU e questão única no processo C‑412/20 PPU).

36.      Caso ocorra a situação generalizada descrita, há que determinar seguidamente se a execução de um MDE pode ser recusada, ainda que «a pessoa procurada não tenha manifestado preocupações específicas e a situação pessoal da pessoa procurada, a natureza da infração pela qual é exercida a ação penal contra ela e o contexto factual que está na base do MDE não suscitem o receio de que o poder legislativo e/ou executivo exerça uma pressão concreta ou uma influência no processo penal instaurado contra ela» (terceira questão do processo C‑354/20 PPU).

37.      A resposta a essas questões deve ser completada determinando qual o momento pertinente para verificar se o tribunal de emissão de um MDE é independente (primeira questão no processo C‑354/20 PPU e questão única no processo C‑412/20 PPU).

38.      Na minha opinião, a resposta à segunda e terceira questões no processo C‑354/20 PPU deve, logicamente, preceder a primeira: só depois de se admitir que a autoridade judiciária de execução de um MDE pode recusar executá‑lo devido a falhas sistémicas ou generalizadas que afetem a independência do poder judicial do Estado‑Membro de emissão é que se há de colocar a questão de saber se essa rejeição é também aplicável aos MDE emitidos antes ou depois de essas falhas atingirem a situação crítica descrita pelo tribunal de reenvio.

1.      Impacto na execução de um MDE das falhas sistémicas ou generalizadas no que diz respeito à independência dos tribunais do EstadoMembro de emissão

39.      O Tribunal de Justiça admitiu que, além das hipóteses expressamente visadas pela decisão‑quadro (artigos 3.o a 5.o), a execução de um MDE pode igualmente ser recusada «em circunstâncias excecionais» que, dada a sua própria gravidade, imponham a limitação dos princípios do reconhecimento e da confiança mútua entre os Estados‑Membros, sobre os quais se estruturou a cooperação judiciária em matéria penal.

40.      Entre estas «circunstâncias excecionais» figuram as que podem implicar o risco de a pessoa procurada ser sujeita a um trato desumano ou degradante, na aceção do artigo 4.o da Carta (13). E também as que evidenciem um risco real de violação do direito fundamental da pessoa procurada a um tribunal independente e, por conseguinte, a um processo equitativo, reconhecido no artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta (14).

41.      Nas duas situações referidas — as duas sobre as quais o Tribunal de Justiça se pronunciou até ao momento —, as «circunstâncias excecionais» implicam a verificação da existência de «falhas sistémicas ou generalizadas» no Estado‑Membro de emissão, quer no que respeita à independência dos seus tribunais, quer afetem determinados grupos de pessoas ou ainda determinados centros de detenção.

42.      A constatação da existência de tais «circunstâncias excecionais» cabe à autoridade judiciária de execução, que deve dispor, para esse efeito, de «elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados» (15) que confirmem essas falhas sistémicas ou generalizadas.

43.      Entre estes elementos de apreciação, o Tribunal de Justiça referiu‑se, em especial, aos «elementos [que] figuram numa proposta fundamentada da Comissão, adotada em aplicação do artigo 7.o, n.o 1, TUE, que parecem demonstrar a existência de um risco real de violação do direito fundamental a um processo equitativo […] em razão de falhas sistémicas ou generalizadas no que respeita à independência do poder judicial» (16).

44.      Perante a ocorrência de «circunstâncias excecionais» dessa natureza, o Tribunal de Justiça declarou que a autoridade judiciária de execução pode pôr termo ao processo de entrega previsto pela decisão‑quadro. Por conseguinte, constitui uma resposta a título excecional no contexto da decisão‑quadro, que, repito, não visa outros motivos de não execução além dos previstos nos seus artigos 3.o a 5.o Por conseguinte, à excecionalidade das circunstâncias constatadas num Estado‑Membro, o direito da União reage igualmente a título excecional (17).

45.      Ora, essa resposta a título excecional conhece os seus limites, sujeitos ao preenchimento de determinadas condições. A excecionalidade não vai ao ponto de impor a não execução automática de todos os MDE emitidos pela autoridade judiciária do Estado‑Membro que apresente falhas sistémicas ou generalizadas. A reação do direito da União, embora grave, é mais contida, uma vez que se traduz na obrigação de a autoridade judiciária de execução verificar se, nas circunstâncias do caso sobre a qual é chamada a pronunciar‑se, essas falhas são suscetíveis de se materializar na violação real e efetiva dos direitos fundamentais da pessoa procurada.

46.      Se as falhas sistémicas ou generalizadas estiverem relacionadas com a independência do poder judicial, a autoridade judiciária de execução, após constatar que implicam um risco real de violação do direito a um processo equitativo, «deve, num segundo momento, apreciar, de modo concreto e preciso, se, nas circunstâncias do caso concreto, existem motivos sérios e comprovados para acreditar que, na sequência da sua entrega ao Estado‑Membro de emissão, a pessoa procurada correrá esse risco» (18).

47.      Em suma, a possibilidade de recusar a execução de um MDE por motivos diferentes dos referidos nos artigos 3.o a 5.o da decisão‑quadro implica um exame rigoroso, da responsabilidade da autoridade judiciária de execução, que se articula em duas fases:

— Na primeira, deve avaliar o risco real de violação dos direitos fundamentais, tendo em conta a situação geral do Estado‑Membro requerente.

— Na segunda, constatada a situação referida, deve verificar, «de modo concreto e preciso», se, nas circunstâncias do caso concreto, a pessoa procurada corre o risco de o seu direito fundamental ser violado.

48.      O que o tribunal de reenvio pretende agora é saber se o agravamento das falhas sistémicas ou generalizadas no Estado‑Membro de emissão pode levá‑lo a prescindir da segunda fase desse duplo exame.

49.      Em caso afirmativo, a autoridade judiciária de execução não tem de examinar as circunstâncias do caso: pode simplesmente pôr termo ao processo de entrega quando as falhas forem de tal gravidade que correspondam à inexistência, no Estado‑Membro de emissão, de uma autoridade judiciária digna desse nome.

50.      A solução proposta pelo tribunal de reenvio, por mais sugestiva que possa parecer (19), não é conforme com a já apresentada pelo Tribunal de Justiça. Além disso, como salienta a Comissão nas suas observações escritas, a recusa (20) da execução de todos os MDE emitidos por um Estado‑Membro conduziria provavelmente à impunidade de bastantes infrações penais (21).

51.      Também o Governo dos Países Baixos se refere à obrigação de prevenir a impunidade. Além disso, na audiência, o Governo belga sublinhou que a solução preconizada pelo tribunal de reenvio poderia violar os direitos das vítimas das infrações cuja prática é imputada à pessoa visada por um MDE (22).

52.      Sob outro ponto de vista, seguir a tese do tribunal de reenvio poderia ser entendido como uma desautorização do labor profissional de todos os juízes da República da Polónia que, em matérias tão delicadas como as do direito penal, se esforçam por recorrer aos mecanismos de cooperação judiciária estabelecidos na decisão‑quadro. Ao risco que comportam, para a sua independência, as falhas sistémicas ou generalizadas acima referidas, acresceria a impossibilidade de participarem, enquanto autoridades de emissão ou de execução, nesses mecanismos de cooperação intraeuropeus.

53.      No Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), o Tribunal de Justiça reconheceu que a existência de uma proposta fundamentada da Comissão, adotada ao abrigo do artigo 7.o, n.o 1, TUE, para que o Conselho declarasse a existência de um risco manifesto de violação grave, por parte da República da Polónia, dos valores referidos no artigo 2.o TUE, podia constituir, em conjugação com outros elementos, um fundamento suficiente para demonstrar a existência de falhas sistémicas ou generalizadas nesse Estado‑Membro, relativas à independência dos seus tribunais (23).

54.      Sendo graves as falhas então encontradas, o Tribunal de Justiça afastou a possibilidade de a autoridade judiciária de execução recusar de modo automático e indiscriminado a execução de qualquer MDE emitido pelos órgãos jurisdicionais da República da Polónia.

55.      Isto porque essa solução global está reservada para quando o Conselho Europeu verifique, formalmente, que o Estado‑Membro de emissão viola os valores referidos no artigo 2.o TUE.

56.      Segundo o Tribunal de Justiça, «resulta do considerando 10 da [d]ecisão‑[q]uadro […] que a execução do mecanismo do [MDE] só poderá ser suspensa no caso de violação grave e persistente, por parte de um dos Estados‑Membros, dos princípios enunciados no artigo 2.o TUE, verificada pelo Conselho Europeu nos termos do artigo 7.o, n.o 2, TUE, com as consequências previstas no n.o 3 do mesmo artigo» (24).

57.      Posso concordar com o tribunal de reenvio na medida em que, embora as circunstâncias presentes no momento da prolação do Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário) já fossem preocupantes, os dados posteriores parecem indicar o seu agravamento (25).

58.      Com efeito, além das reformas legislativas mencionadas no despacho de reenvio no processo C‑354/20 PPU, as decisões mais recentes do Tribunal de Justiça, às quais este despacho também faz referência (26), realçam que as falhas sistémicas ou generalizadas, apreciáveis quanto à independência dos órgãos jurisdicionais da República da Polónia, são suscetíveis de ameaçar os direitos fundamentais das pessoas sujeitas à sua jurisdição.

59.      Em todo o caso, cabe ao tribunal de reenvio determinar, com as fontes à sua disposição, se aumentaram as falhas sistémicas ou generalizadas que, em 2018, levaram o Tribunal de Justiça a admitir, a título excecional e sob determinadas condições, que a autoridade de execução de um MDE o recusasse por fundamentos diferentes dos expressamente previstos na decisão‑quadro.

60.      Ora, mesmo que a ameaça à independência dos órgãos jurisdicionais polacos se tenha podido deteriorar nestes termos, uma suspensão automática e indiferenciada da aplicação da decisão‑quadro relativamente a qualquer dos MDE por eles emitidos não é possível sem mais.

61.      Essa solução extrema depende mais da qualidade do órgão a quem incumbe proceder a essa declaração e agir em conformidade do que do número e da importância dos indícios que permitam constatar a existência de um risco real de violação dos direitos do procurado.

62.      Em conformidade com o Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), a autoridade judiciária de execução do MDE, após verificação das falhas sistémicas ou generalizadas no Estado‑Membro de emissão, pode recusar a entrega do procurado, se, tendo em conta a sua situação pessoal, a natureza da infração que lhe é imputada e o contexto factual que motivou a emissão do MDE, tiver adquirido a convicção de que essa pessoa pode efetivamente sofrer a violação do direito fundamental que lhe é garantido pelo artigo 47.o da Carta (27).

63.      Nesta hipótese, o órgão jurisdicional de execução aplicará a decisão‑quadro da forma como deve ser interpretada, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a fim de conciliar o mecanismo do MDE com o respeito dos direitos fundamentais da União.

64.      Esta interpretação mantém o princípio da entrega, mas corrigido, a título excecional, pela sua recusa quando, tendo em conta as circunstâncias específicas do caso concreto, exista um risco real de violação dos direitos da pessoa procurada.

65.      Pelo contrário, recusar automaticamente qualquer execução dos MDE, uma vez verificada a gravidade das falhas sistémicas ou generalizadas no Estado‑Membro de emissão, representa a inaplicação pura e simples da própria decisão‑quadro.

66.      Como já recordei, o considerando 10 da decisão‑quadro e a jurisprudência do Tribunal de Justiça não permitem, nestes casos, a inaplicação pura e simples dos MDE. Para tal é exigido um ato jurídico específico: a verificação, pelo Conselho Europeu, nos termos do artigo 7.o, n.o 2, TUE, da violação grave e persistente, por parte do Estado‑Membro de emissão, dos valores do Estado de direito referidos no artigo 2.o TUE.

67.      Enquanto a apreciação das falhas sistémicas ou generalizadas pode justificar a inexecução ad casum de um MDE, só a verificação formal, pelo Conselho Europeu, de uma violação grave e persistente dos valores referidos no artigo 2.o TUE é suscetível de justificar a inaplicação, de modo indiscriminado, da decisão‑quadro e, por conseguinte, a inexecução de todos os MDE emitidos pelos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro correspondente.

68.      As duas hipóteses assentam em ordens conceptuais diferentes.

69.      Na primeira (decisão da autoridade judiciária de execução), as falhas traduzem‑se num risco cujo alcance deve ser verificado no caso concreto; daí a necessidade de o tribunal de execução ter em conta as circunstâncias específicas do processo que lhe foi submetido.

70.      Na segunda (intervenção do Conselho Europeu), não se trata já do risco, mas sim da violação consumada dos valores referidos no artigo 2.o TUE, cuja consequência consiste na inaplicação, de modo geral, da decisão‑quadro.

71.      Não se trata apenas de que num caso esteja em causa o risco da violação de direitos e no outro a violação dos princípios enunciados no artigo 2.o TUE. Mais precisamente, no primeiro caso, trata‑se de falhas sistémicas ou generalizadas constatadas num sistema de garantia de direitos que, devido a essas falhas, não funciona do modo pretendido pela própria ordem jurídica. Em contrapartida, no segundo, o que ocorre é o próprio desaparecimento das condições em que um sistema judiciário é suscetível de proteger os princípios do Estado de direito enunciados no artigo 2.o TUE.

72.      Em meu entender, as falhas sistémicas ou generalizadas que se possam constatar relativamente à independência dos tribunais polacos não os privam do seu caráter de órgãos jurisdicionais. Conservam esse caráter (28), mesmo que a independência do poder judicial, entendido como um conjunto de órgãos que exercem a função jurisdicional, esteja ameaçado por estruturas governamentais (ou até mesmo pelo exercício anormal das funções disciplinares). A verificação dessas falhas, por mais graves que sejam, não pode destituí‑los desse caráter jurisdicional (29).

73.      É certo que tais falhas sistémicas ou generalizadas podem ter uma gravidade tal que seja inevitável que se suscitem sérias dúvidas quanto ao respeito dos direitos fundamentais no Estado‑Membro de emissão. Poderá ser esse o caso se o regime disciplinar dos magistrados polacos for utilizado, em detrimento da sua independência, como uma ameaça permanente para obter a sua submissão ao poder executivo, quer confiando a sua aplicação a órgãos, mesmo que jurisdicionais, sem as garantias devidas (30), quer utilizando a via disciplinar para punir atuações jurisdicionais perfeitamente legítimas (31).

74.      No entanto, a competência do juiz de execução é estritamente limitada ao MDE sobre o qual é chamado a pronunciar‑se e a sua apreciação sobre as falhas sistémicas ou generalizadas deve dizer respeito à sua eventual incidência sobre o MDE. Por conseguinte, a sua decisão só poderia dizer respeito à execução do referido MDE.

75.      Em contrapartida, a apreciação relativa à observância dos valores referidos no artigo 2.o TUE reflete‑se sobre a situação geral do Estado‑Membro em causa e é da exclusiva competência do Conselho Europeu, cuja verificação formal da violação desta disposição incide, portanto, na aplicação in toto da decisão‑quadro relativamente a esse Estado‑Membro.

76.      Por conseguinte, perante um agravamento das falhas sistémicas ou generalizadas, e na falta da verificação formal do Conselho Europeu, o rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão) deverá examinar com rigor acrescido as circunstâncias do MDE cuja execução lhe é pedida (32), mas não está dispensado da obrigação de proceder a essa análise em particular.

77.      Quanto a este ponto, importa salientar que as informações pedidas à autoridade judiciária de emissão nos termos do artigo 15.o, n.o 2, da decisão‑quadro devem não só ser as pertinentes para essa apreciação em particular mas também limitar‑se àquelas que a autoridade judiciária de emissão esteja, razoavelmente, em condições de fornecer (33).

78.      Por conseguinte, e em conformidade com a jurisprudência resultante do Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), enquanto o Conselho Europeu não tiver declarado formalmente uma violação grave e persistente no Estado‑Membro de emissão dos princípios enunciados no artigo 2.o TUE, «a autoridade judiciária de execução só pode, com fundamento no artigo 1.o, n.o 3, da [d]ecisão‑[q]uadro […], não dar seguimento a um [MDE] em circunstâncias excecionais em que a referida autoridade constate, no termo de uma apreciação concreta e precisa do caso em apreço, que existem motivos sérios e comprovados para acreditar que a pessoa contra quem foi dirigido esse [MDE] correrá, na sequência da sua entrega à autoridade judiciária de emissão, um risco real de violação do seu direito fundamental a um tribunal independente e, portanto, do conteúdo essencial do seu direito fundamental a um processo equitativo» (34).

79.      Resulta dos despachos de reenvio que o órgão jurisdicional a quo não encontra nos motivos referidos na decisão‑quadro qualquer razão para recusar a entrega das duas pessoas procuradas no âmbito desses processos. Além disso, tendo em conta a sua situação pessoal, a natureza das infrações que lhes são imputadas e o contexto que está na base dos MDE, exclui o risco de uma ingerência indevida no âmbito dos seus processos penais.

80.      Se for esse o caso, o agravamento que possam ter sofrido as falhas sistémicas ou generalizadas do regime de independência dos órgãos jurisdicionais polacos não habilita o tribunal de reenvio a recusar, sem mais, a execução dos MDE em causa.

2.      Momento relevante para a apreciação do caráter de órgão jurisdicional independente da autoridade de emissão de um MDE

81.      Se, como preconizo, o órgão jurisdicional de execução não pode pôr termo ao processo de entrega após a verificação de graves falhas sistémicas ou generalizadas na independência dos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro de emissão, sem examinar a eventual incidência real e efetiva dessas falhas nas circunstâncias de cada MDE em particular, parece‑me indiferente que o agravamento dessas falhas tenha ocorrido antes ou depois da emissão do MDE.

82.      Tenha o agravamento dessas falhas ocorrido antes ou depois da emissão do MDE, o que é determinante é que o órgão jurisdicional de emissão (chamado a decidir sobre o destino do procurado, uma vez efetuada a sua entrega) conserve a sua independência para se pronunciar, sem intervenção externa, ameaças ou pressões, sobre a situação dessa pessoa.

83.      A natureza judicial do processo da decisão‑quadro não termina, no que diz respeito à autoridade que pede a entrega da pessoa procurada, com a emissão do MDE.

84.      Como resulta do artigo 15.o da decisão‑quadro, a autoridade judiciária de execução deve poder dispor, a qualquer momento, de um interlocutor judiciário no Estado‑Membro de emissão, para que se possa pronunciar sobre a entrega com base em informações suficientes e fiáveis, fornecidas diretamente pela autoridade judiciária de emissão.

85.      Com efeito, tendo em conta a grave violação da liberdade que implica o prosseguimento do processo de entrega (35), pode revelar‑se indispensável recolher informações complementares que permitam à autoridade judiciária de execução determinar quais são exatamente as circunstâncias na origem da emissão do MDE e, em especial, as condições em que a pessoa procurada se encontrará após a sua entrega.

86.      O elevado grau de confiança que a autoridade judiciária de execução deve ter quando decide se a entrega é pertinente só pode ser assegurado por uma autoridade de emissão que, entretanto, não tenha perdido a sua qualidade de órgão jurisdicional independente.

87.      A autoridade judiciária de execução deve então verificar se, nas circunstâncias de cada um dos MDE, em concreto, que lhe foram enviados, o direito da pessoa procurada a um processo equitativo pode ser séria e efetivamente posto em causa. Isto tanto se as falhas já fossem sistémicas ou generalizadas quando o MDE foi emitido como se tiverem ocorrido posteriormente e ainda se mantenham no momento da eventual entrega da pessoa procurada.

88.      No primeiro caso, o tribunal de execução pode legitimamente ter dúvidas quanto à regularidade da emissão do MDE. No segundo, será possível duvidar do tratamento que poderá ser conferido ao procurado após a sua entrega ao órgão jurisdicional de emissão.

89.      O que importa, nas duas situações, é que o órgão jurisdicional de execução pondere em que medida uma ou outra circunstância podem constituir um risco real para os direitos da pessoa procurada, se a sua entrega se realizar.

90.      No entanto, é verdade que o risco concreto de violação do artigo 47.o da Carta, em razão da falta de independência da autoridade judiciária de emissão, é consideravelmente reduzido se esta última for independente quando emite o MDE, ainda que (teoricamente) tenha deixado de o ser posteriormente.

91.      Esse risco também se reduz se o MDE for emitido em execução de uma condenação a uma pena privativa de liberdade aplicada à pessoa procurada num momento em que não havia dúvidas sobre o caráter independente do tribunal penal que proferiu a decisão.

V.      Conclusão

92.      Atendendo ao exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda ao rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão, Países Baixos) nos seguintes termos:

«O artigo 1.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, deve ser interpretado no sentido de que:

Na falta de declaração formal, por parte do Conselho Europeu, nos termos do artigo 7.o, n.o 2, TUE, de uma violação grave e persistente, por parte do Estado‑Membro de emissão, dos valores referidos no artigo 2.o TUE, a autoridade judiciária de execução só pode recusar a execução de um mandado de detenção europeu após apreciar, de modo concreto e preciso, se, tendo em conta a situação da pessoa procurada, a natureza da infração pela qual é exercida a ação penal contra ela e o contexto factual que está na base desse mandado de detenção europeu, existem motivos sérios e comprovados para acreditar que essa pessoa, sendo entregue, correrá um risco real de violação do direito fundamental a um processo equitativo, garantido pelo artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Esse risco pode surgir tanto se as falhas sistémicas ou generalizadas tiverem ocorrido no momento da emissão do mandado de detenção europeu como se tiverem ocorrido posteriormente e ainda se mantenham no momento da entrega eventual da pessoa procurada.»


1      Língua original: espanhol.


2      Decisão‑Quadro do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24) (a seguir «decisão‑quadro»).


3      Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário) (C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586), a seguir «Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário)».


4      Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, a seguir «Acórdão Aranyosi e Căldăraru»).


5      O Governo da Polónia contesta a premissa mais importante da argumentação contida no despacho de reenvio, mas sustenta que a resposta às questões aí colocadas resulta simplesmente do Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário).


6      Lei que Aplica a Decisão‑Quadro do Conselho da União Europeia relativa ao Mandado de Detenção Europeu e aos Processos de Entrega entre os Estados‑Membros.


7      Stb. 2004, 195.


8      Stb. 2017, 82.


9      Concretamente, para cumprir os sete meses restantes de uma pena privativa de liberdade de um ano, proferida por Sentença de 18 de julho de 2019 do Sąd Rejonowy w Wieluniu (Tribunal de Primeira Instância de Wielun, Polónia), por crimes de ameaça e de violência.


10      N.o 4 do despacho de reenvio no processo C‑354/20 PPU.


11      Ibidem.


12      Esta tese vai ao encontro da proposta da High Court (Tribunal Superior, Irlanda) no processo C‑216/18 PPU, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), mas não foi retomada pelo Tribunal de Justiça. O advogado‑geral E. Tanchev, ao apresentar as suas Conclusões nesse processo (EU:C:2018:517), afirmava que «[o] juiz de reenvio entende que, no caso de as deficiências do sistema judiciário do Estado‑Membro de emissão serem particularmente graves, ou seja, no caso de esse Estado‑Membro deixar de respeitar o Estado de direito, deve recusar a entrega sem ter de verificar se a pessoa em causa ficará exposta a tal risco» (n.o 98).


13      Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, a seguir «Acórdão Aranyosi e Căldăraru», n.o 104).


14      Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), n.o 59.


15      Acórdão Aranyosi e Căldăraru, n.o 104.


16      Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), n.o 79.


17      De acordo com o Tribunal de Justiça, esta reação excecional fundamenta‑se «por um lado, no artigo 1.o, n.o 3, desta [decisão‑quadro], que prevê que esta não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelos artigos 2.o e 6.o TUE, e, por outro, no caráter absoluto do direito fundamental garantido pelo artigo 4.o da Carta» [Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), n.o 45]. Ainda segundo este acórdão, a esses fundamentos acresce o previsto no artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, na medida em que reconhece o direito a um tribunal independente e, portanto, a um processo equitativo [Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), n.o 59].


18      Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), n.o 68; o sublinhado é meu.


19      No entanto, ainda que apelativa, não deixa de evidenciar alguma radicalidade. No processo C‑216/18 PPU, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), a posição da Comissão sobre este ponto, conforme transcrita pelo advogado‑geral E. Tanchev nas suas conclusões (EU:C:2018:517), consistia em que, «mesmo que tenha sido constatado que o Estado de direito no Estado‑Membro de emissão está gravemente ameaçado […], não pode excluir‑se que possa haver contextos em que a capacidade dos órgãos jurisdicionais para conduzir um processo com a independência necessária para garantir o respeito do direito fundamental consagrado no artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta está preservada» (n.o 108). A Comissão aprova esta mesma posição, ainda que por outras palavras, no n.o 27 das suas observações escritas no processo C‑354/20 PPU.


20      No despacho de reenvio no processo C‑354/20 PPU, o órgão jurisdicional a quo reconhece que uma resposta afirmativa às suas questões implicaria, «de facto, a suspensão do fluxo de entrega para a Polónia, até que a legislação polaca garanta de novo a independência dos órgãos jurisdicionais de emissão» (n.o 19).


21      N.o 30 das suas observações escritas. O Ministério Público salienta igualmente que essa generalização poderia conduzir a tornar irrealizável, no seu conjunto, o sistema de entrega dentro da União (número final das suas observações escritas).


22      O Governo belga invocou o Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) de 9 de julho de 2019, Romeo Castaño c. Bélgica (CE:ECHR:2019:0709JUD000835117), relativo à violação do direito garantido pelo artigo 2.o da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), nos casos em que os Estados não cumprem a sua obrigação de cooperar entre si, através do mecanismo do MDE, a fim de colocar o presumível autor de um homicídio e outros delitos à disposição da justiça.


23      Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), n.o 69.


24      Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), n.o 70.


25      No seu relatório, datado de setembro de 2020, sobre a situação do Estado de direito na União, a Comissão constata que, na Polónia, «[t]he reforms, impacting the Constitutional Tribunal, the Supreme Court, ordinary courts, the National Council for the Judiciary and the prosecution service, have increased the influence of the executive and legislative powers over the justice system and therefore weakened judicial independence». Commission Staff Working Document, 2020 Rule of Law Report, Country Chapter on the rule of law situation in Poland [SWD(2020) 320 final].


26      Em especial, os Acórdãos de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal) (C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982), e de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz e Prokurator Generalny (C‑558/18 e C‑563/18, EU:C:2020:234). Também o Despacho de 8 de abril de 2020, Comissão/Polónia (C‑791/19 R, EU:C:2020:277).


27      O advogado‑geral E. Tanchev, nas suas Conclusões no processo C‑216/18, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário) (EU:C:2018:517), n.o 113, estava inclinado a adotar a proposta da Comissão, que tinha sugerido, «que se verifique se a pessoa que é objeto do [MDE] é um opositor político ou se pertence a um grupo social ou étnico que é objeto de discriminações. A Comissão propõe igualmente que se aprecie, nomeadamente, se a infração pela qual a pessoa em causa é acusada é de natureza política ou se o poder em funções fez declarações públicas relativamente a essa infração ou à sua punição». Esse tipo de conotações parece não existir nas situações dos MDE em causa.


28      Se assim não fosse, as repercussões poderiam eventualmente atingir outros domínios da atividade jurisdicional, como os que dizem respeito à cooperação judiciária civil, ou à legitimidade para submeter questões prejudiciais (artigo 267.o TFUE), reservada a órgãos jurisdicionais em sentido próprio.


29      Por conseguinte, a aplicação da jurisprudência estabelecida pelo Tribunal de Justiça a propósito da natureza judiciária do Ministério Público para efeitos da emissão de um MDE é despropositada. De forma genérica, Acórdão de 27 de maio de 2019, OG e PI (Ministérios Públicos de Lübeck e de Zwickau) (C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456). A falta de independência de um Ministério Público que pode receber instruções nos termos do direito interno não constitui uma falha sistémica ou generalizada do seu regime institucional, mas sim uma característica própria do referido regime, que o impossibilita de emitir um MDE, mas não de agir na qualidade de Ministério Público. Em contrapartida, a falta generalizada de independência dos órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro só pode resultar de uma falha do sistema judiciário, uma vez que a União não consentiu na adesão de Estados que não dispõem de órgãos jurisdicionais independentes.


30      No Acórdão de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal) (C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.o 171), o Tribunal de Justiça declarou que incumbia ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se, após a entrada em vigor, em 3 de abril de 2018, da ustawa o Sądzie Najwyższym (Lei sobre o Supremo Tribunal), a Secção Disciplinar do Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal) podia ser qualificada de independente e imparcial, para cujos efeitos tinha de verificar se as «condições objetivas em que foi criada a instância em causa e as suas características, assim como a maneira como os seus membros foram nomeados são suscetíveis de suscitar dúvidas legítimas, no espírito dos particulares, quanto à impermeabilidade dessa instância em relação a elementos externos, em especial, influências diretas ou indiretas dos poderes legislativo e executivo, e quanto à sua neutralidade em relação aos interesses concorrentes e, por conseguinte, são suscetíveis de ter como consequência que a referida instância não tenha a aparência de independência ou imparcialidade, situação que pode afetar a confiança que a justiça deve inspirar nos referidos particulares numa sociedade democrática». No Despacho de 8 de abril de 2020, Comissão/Polónia (C‑791/19 R, EU:C:2020:277), o Tribunal de Justiça suspendeu provisoriamente a aplicação de determinadas disposições da legislação polaca que constituem o fundamento da competência da Secção Disciplinar do Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal) para conhecer dos processos disciplinares relativos aos juízes.


31      No Acórdão de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz e Prokurator Generalny (C‑558/18 e C‑563/18, EU:C:2020:234), o Tribunal de Justiça, chamado a pronunciar‑se sobre a existência de processos disciplinares contra juízes polacos que formularam questões prejudiciais, declarou que as «disposições nacionais das quais decorra que os juízes nacionais podem ser alvo de processos disciplinares pelo facto de terem submetido um reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça são inaceitáveis» (n.o 58).


32      Em particular, como já referi, deve ter em conta tanto a situação pessoal da pessoa procurada como a natureza da infração pela qual é perseguido e o contexto factual que estão na base do MDE [Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), n.o 75].


33      Duas das questões submetidas à autoridade judiciária de emissão no processo C‑354/20 PPU poderiam ser dirigidas ao Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal). V. n.o 17 das presentes conclusões.


34      Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), n.o 73. Segundo o Governo dos Países Baixos, esta abordagem corresponde à do TEDH, que presta especial atenção à análise das circunstâncias específicas, a fim de determinar se existe um risco concreto de que a falta de independência se traduza numa denegação de justiça flagrante [Acórdãos de 17 de janeiro de 2012, Othman (Abu Qatada) c. Reino Unido (CE:ECHR:2012:0117JUD000813909, §§ 258 a 262), e de 9 de julho de 2019, Kislov c. Rússia (CE:ECHR:2019:0709JUD000359810, § 109)]. O advogado‑geral E. Tanchev também se referia a essa jurisprudência nas suas Conclusões no processo C‑216/18 (EU:C:2018:517, n.o 109), sublinhando que, «para verificar se há um risco real de denegação de justiça flagrante, o [TEDH] toma em conta, na prática, não apenas a situação no país de destino mas também as circunstâncias pessoais do interessado», e invocando o Acórdão do TEDH de 17 de janeiro de 2012, Othman (Abu Qatada) c. Reino Unido (CE:ECHR:2012:0117JUD000813909, §§ 272 e 277 a 279).


35      Que pode incluir privações de liberdade até 120 dias, como indiquei nas minhas Conclusões nos processos OG e PI (Ministérios Públicos de Lübeck e de Zwickau) (C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:337, n.o 58).