Language of document : ECLI:EU:C:2020:187

DESPACHO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

10 de março de 2020 (*)

«Reenvio prejudicial — Artigo 53.°, n.° 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça — Inadmissibilidade manifesta — Transportes aéreos — Regulamento (CE) n.° 261/2004 — Artigo 5.°, n.° 3 — Indemnização dos passageiros em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos — Alcance — Dispensa da obrigação de indemnização — Conceito de “circunstâncias extraordinárias” — Avaria generalizada do sistema de reabastecimento de combustível de um aeroporto»

No processo C‑766/19,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Tribunal Judicial da Comarca dos Açores (Portugal), por Decisão de 8 de julho de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 18 de outubro de 2019, no processo

QE,

RD

contra

SATA International Serviços de Transportes Aéreos, SA,

sendo interveniente:

ANA Aeroportos de Portugal, SA,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: M. Vilaras, presidente de secção, S. Rodin, D. Šváby (relator), K. Jürimäe e N. Piçarra, juízes,

advogado‑geral: P. Pikamäe,

secretário: A. Calot Escobar,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de decidir por despacho fundamentado, nos termos do artigo 53.°, n.° 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça,

profere o presente

Despacho

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento (CE) n.° 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.° 295/91 (JO 2004, L 46, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe QE e RD à SATA International — Serviços de Transportes Aéreos, SA (a seguir «SATA»), uma transportadora aérea, a respeito da recusa desta última de indemnizar esses passageiros, que chegaram ao seu destino final com um atraso considerável.

 Quadro jurídico

3        Os considerandos 14 e 15 do Regulamento n.° 261/2004 enunciam:

«(14)      Tal como ao abrigo da Convenção [para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional (Convenção de Montreal) (JO 2001, L 194, p. 39)], as obrigações a que estão sujeitas as transportadoras aéreas operadoras deverão ser limitadas ou eliminadas nos casos em que a ocorrência tenha sido causada por circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis. Essas circunstâncias podem sobrevir, em especial, em caso de instabilidade política, condições meteorológicas incompatíveis com a realização do voo em causa, riscos de segurança, falhas inesperadas para a segurança do voo e greves que afetem o funcionamento da transportadora aérea.

(15)      Considerar‑se‑á que existem circunstâncias extraordinárias sempre que o impacto de uma decisão de gestão do tráfego aéreo, relativa a uma determinada aeronave num determinado dia provoque um atraso considerável, um atraso de uma noite ou o cancelamento de um ou mais voos dessa aeronave, não obstante a transportadora aérea em questão ter efetuado todos os esforços razoáveis para evitar atrasos ou cancelamentos.»

4        Sob a epígrafe «Cancelamento», o artigo 5.° deste regulamento dispõe:

«1.      Em caso de cancelamento de um voo, os passageiros em causa têm direito a:

[...]

c)      Receber da transportadora aérea operadora indemnização nos termos do artigo 7.° [...]

3.      A transportadora aérea operadora não é obrigada a pagar uma indemnização nos termos do artigo 7.°, se puder provar que o cancelamento se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis.

[...]»

5        Sob a epígrafe «Direito a indemnização», o artigo 7.° do referido regulamento prevê, no seu n.° 1:

«Em caso de remissão para o presente artigo, os passageiros devem receber uma indemnização no valor de:

a)      250 euros para todos os voos até 1500 quilómetros;

b)      400 euros para todos os voos intracomunitários com mais de 1500 quilómetros e para todos os outros voos entre 1500 e 3500 quilómetros;

c)      600 euros para todos os voos não abrangidos pelas alíneas a) ou b).

[...]»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

6        QE e RD efetuaram uma reserva na SATA para um voo a partir de Boston (Estados Unidos da América), com destino a Lisboa (Portugal), que se devia realizar em 10 de maio de 2017.

7        Nesse mesmo dia, uma falha generalizada e relevante no abastecimento de combustível do aeroporto de Lisboa impossibilitou o reabastecimento das aeronaves de combustível. Esta falha resultou da única avaria até hoje verificada no sistema de bombagem de combustível desse aeroporto, a qual impediu a trasfega do combustível para o sistema da placa, cuja responsabilidade incumbe às entidades gestoras da infraestrutura aeroportuária. Consequentemente, a continuidade do funcionamento e a operacionalidade do aeroporto de Lisboa ficaram prejudicadas. A ocorrência afetou 473 voos com partida de ou destino a este aeroporto, dos quais 12 foram divergidos, 98 cancelados e 363 sofreram atrasos, com prejuízo para mais de 41 000 passageiros.

8        QE e RD chegaram ao seu destino final com mais de três horas de atraso em relação à hora programada de chegada.

9        Pediram à SATA o pagamento da indemnização prevista no artigo 5.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento n.° 261/2004, em conjugação com o seu artigo 7.°, n.° 1.

10      Tendo a SATA recusado este pedido com o fundamento de que esse atraso era devido a uma «circunstância extraordinária», na aceção do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004, QE e RD intentaram uma ação no Tribunal Judicial da Comarca dos Açores (Portugal) para obter a indemnização solicitada.

11      Nestas circunstâncias, o Tribunal Judicial da Comarca dos Açores decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Um acontecimento como o ocorrido no dia 10 de maio de 2017 no aeroporto de Lisboa, em que ocorreu uma falha generalizada e relevante no abastecimento de combustível, que impossibilitou o reabastecimento das aeronaves por força de avaria no sistema de bombagem que impediu a transfega de combustível para o sistema da placa, sistema este que é da responsabilidade das entidades gestoras da infraestrutura aeroportuária, avaria que afetou a continuidade do funcionamento e a operacionalidade do referido aeroporto, motivando atrasos e cancelamentos de 473 voos, dos quais 12 foram divergidos, 98 cancelados e 363 sofreram atrasos, tendo sido afetados mais de 41.000 passageiros, deve ser qualificado de “circunstância extraordinária” na aceção do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento 261/2004 que dispensa a transportadora aérea da obrigação de indemnização?

2)      Uma companhia aérea que, face à impossibilidade de reabastecimento de combustível no aeroporto de Lisboa, por força do acima referido, decidiu efetuar o abastecimento de combustível num aeroporto alternativo próximo (Porto) e quando, por força do atraso motivado da saída tardia do aeroporto de Lisboa, bem como reabastecimento noutro aeroporto, a tripulação dessa aeronave deixou de dispor de tempo de serviço de voo disponível que, nos termos legais aplicáveis, permitisse realizar o voo que veio a sofrer o atraso, recorreu à contratação de outra companhia aérea, em regime de aluguer operacional (ACMI) para efetuar o referido voo, utilizou todos os meios e alternativas de que dispunha para limitar o atraso do voo?»

 Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

12      Nos termos do artigo 53.°, n.° 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, se um pedido de decisão prejudicial for manifestamente inadmissível, o Tribunal, ouvido o advogado‑geral, pode, a qualquer momento, decidir pronunciar‑se por despacho fundamentado, pondo assim termo à instância.

13      Há que aplicar esta disposição no presente processo.

14      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o processo instituído pelo artigo 267.° TFUE é um instrumento de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, graças ao qual o primeiro fornece aos segundos os elementos de interpretação do direito da União que lhes são necessários para a resolução do litígio que lhes cabe decidir (Despacho de 15 de maio de 2019, MC, C‑827/18, não publicado, EU:C:2019:416, n.° 32 e jurisprudência referida).

15      Ora, a necessidade de obter uma interpretação do direito da União que seja útil ao órgão jurisdicional nacional exige que este defina o quadro factual e regulamentar em que se inserem as questões que submete ou que, pelo menos, explique as hipóteses factuais em que essas questões assentam. Além disso, a decisão de reenvio deve indicar as razões precisas que levaram o juiz nacional a interrogar‑se sobre a interpretação do direito da União e a considerar necessário submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça (Despacho de 15 de maio de 2019, MC, C‑827/18, não publicado, EU:C:2019:416, n.° 33 e jurisprudência referida).

16      Estas exigências relativas ao conteúdo de um pedido de decisão prejudicial figuram expressamente no artigo 94.° do Regulamento de Processo, que é suposto o órgão jurisdicional de reenvio conhecer e respeitar escrupulosamente, no quadro da cooperação instituída no artigo 267.° TFUE (Despacho de 11 de julho de 2019, Jadransko osiguranje, C‑651/18, não publicado, EU:C:2019:613, n.° 12). As referidas exigências estão igualmente refletidas, designadamente, na última versão das Recomendações do Tribunal de Justiça da União Europeia à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (JO 2019, C 380, p. 1).

17      Com efeito, o Tribunal de Justiça apenas está habilitado a pronunciar‑se sobre a interpretação de um diploma do direito da União a partir dos factos que lhe são indicados pelo órgão jurisdicional nacional. Assim, um pedido de decisão prejudicial deve ser suficientemente completo e conter todas as informações pertinentes, de forma a permitir tanto ao Tribunal como aos interessados que têm o direito de apresentar observações compreender corretamente o quadro factual e regulamentar do processo principal (v., neste sentido, Despachos de 15 de maio de 2019, MC, C‑827/18, não publicado, EU:C:2019:416, n.° 27, e de 11 de julho de 2019, Jadransko osiguranje, C‑651/18, não publicado, EU:C:2019:613, n.° 12).

18      A este respeito, importa sublinhar que as informações contidas nas decisões de reenvio servem não só para permitir ao Tribunal de Justiça dar respostas úteis mas também para dar aos Governos dos Estados‑Membros, bem como aos demais interessados, a possibilidade de apresentarem observações nos termos do artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia. Incumbe ao Tribunal de Justiça garantir que essa possibilidade seja salvaguardada, tendo em conta o facto de que, por força desta disposição, apenas as decisões de reenvio são notificadas aos interessados (Despacho de 15 de maio de 2019, MC, C‑827/18, não publicado, EU:C:2019:416, n.° 35 e jurisprudência referida).

19      No caso em apreço, há que constatar que o pedido de decisão prejudicial não cumpre as exigências recordadas nos n.os 15 a 17 do presente despacho.

20      Com efeito, a decisão de reenvio não precisa suficientemente os factos que deram origem ao litígio no processo principal, no que respeita tanto ao nexo entre a falha no sistema de abastecimento de combustível do aeroporto de Lisboa e o atraso do voo com destino a Lisboa em que os demandantes no processo principal embarcaram como às medidas tomadas pela transportadora aérea para atenuar as consequências decorrentes destas circunstâncias. Assim, à exceção dos elementos que podem ser deduzidos do enunciado das questões submetidas, a decisão de reenvio não fornece uma exposição sumária do objeto do litígio nem dos factos pertinentes, conforme apurados pelo órgão jurisdicional de reenvio, nem uma exposição dos dados factuais em que as questões assentam. Por outro lado, este pedido também não contém uma exposição das razões que conduziram o órgão jurisdicional de reenvio a interrogar‑se sobre a interpretação de certas disposições do direito da União.

21      Além disso, os autos de que dispõe o Tribunal de Justiça não permitem estabelecer o nexo existente entre o atraso considerável de um voo a partir do aeroporto de Boston, com destino ao aeroporto de Lisboa, e a falha no sistema de reabastecimento de combustível deste último aeroporto.

22      Nestas condições, o pedido de decisão prejudicial não permite ao Tribunal de Justiça dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio para que este possa decidir o litígio no processo principal nem dá aos Governos dos Estados‑Membros nem aos demais interessados a possibilidade de apresentar observações nos termos do artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia.

23      Por conseguinte, não podendo o Tribunal de Justiça dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio, há que declarar, em aplicação do artigo 53.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, que o presente pedido de decisão prejudicial é manifestamente inadmissível.

24      Em qualquer caso, na hipótese de a interpretação do direito da União continuar a ser necessária para a resolução do litígio que lhe foi submetido, o órgão jurisdicional de reenvio conserva a possibilidade de apresentar um novo pedido de decisão prejudicial quando puder fornecer todos os elementos que permitam ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se (v., neste sentido, Despachos de 23 de maio de 2019, Trapeza Peiraios, C‑105/19, não publicado, EU:C:2019:452, n.° 17, e de 11 de julho de 2019, Jadransko osiguranje, C‑651/18, não publicado, EU:C:2019:613, n.° 31).

 Quanto às despesas

25      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

O pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal Judicial da Comarca dos Açores (Portugal), por Decisão de 8 de julho de 2019, é manifestamente inadmissível.

Assinaturas


*      Língua do processo: português.