CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
HENRIK SAUGMANDSGAARD ØE
apresentadas em 19 de outubro de 2017 (1)
Processo C‑395/16
DOCERAM GmbH
contra
CeramTec GmbH
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberlandesgericht Düsseldorf (Tribunal Regional Superior de Dusseldórfia, Alemanha)]
«Reenvio prejudicial — Propriedade intelectual e industrial — Desenhos ou modelos comunitários — Regulamento (CE) n.o 6/2002 — Artigo 8.o, n.o 1 — Características da aparência de um produto determinadas exclusivamente pela sua função técnica — Contornos deste conceito — Critérios de apreciação»
I. Introdução
1. O pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberlandesgericht Düsseldorf (Tribunal Regional Superior de Dusseldórfia, Alemanha) tem por objeto a interpretação do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 6/2002 do Conselho, de 12 de dezembro de 2001, relativo aos desenhos ou modelos comunitários (2). Esta disposição, que nunca foi objeto de interpretação pelo Tribunal de Justiça, prevê que as características da aparência de um produto determinadas exclusivamente pela sua função técnica estão excluídas da proteção conferida pelo referido regulamento.
2. A decisão de reenvio insere‑se no âmbito de um litígio que opõe duas sociedades, uma que é titular de vários desenhos ou modelos comunitários registados e outra que fabrica produtos análogos aos que estão protegidos pelos respetivos títulos. A primeira intentou uma ação inibitória contra a segunda e esta reconvencionou, alegando a nulidade dos títulos cuja violação fora invocada pela recorrente no processo principal. Para defesa do seu pedido reconvencional, invocou a exclusão prevista no referido artigo 8.o, n.o 1.
3. As questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio visam, por um lado, que o Tribunal de Justiça defina o conceito de «características da aparência de um produto determinadas exclusivamente pela sua função técnica» na aceção desta disposição e, por outro lado, que determine o critério a observar para apreciar se os referidos desenhos ou modelos possuem essas características.
II. Quadro jurídico
4. Nos termos do considerando 10 do Regulamento n.o 6/2002, «[a] inovação tecnológica não pode ser entravada pela concessão de proteção de desenhos ou modelos, com características ditadas unicamente por uma função técnica, entendendo‑se que daí não resulta que um desenho ou modelo tenha de possuir qualidade estética. De igual modo, a interoperabilidade de produtos de fabrico diferente não pode ser entravada pela extensão da proteção aos desenhos ou modelos dos acessórios mecânicos. Assim sendo, as características do desenho ou modelo que são excluídas da proteção por estes motivos não podem ser tomadas em consideração para se apreciar outras características do desenho ou modelo que preenchem os requisitos para a obtenção da proteção».
5. O artigo 4.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Requisitos da proteção», tem a seguinte redação:
«1. Um desenho ou modelo será protegido enquanto desenho ou modelo comunitário na medida em que seja novo e possua caráter singular.
2. Um desenho ou modelo aplicado ou incorporado num produto que constitua um componente de um produto complexo só é considerado novo e possuidor de caráter singular:
a) Se o componente, depois de incorporado no produto complexo, continuar visível durante a utilização normal deste último, e
b) Se as características visíveis do componente satisfizerem, enquanto tal, os requisitos de novidade e singularidade.
[…]»
6. O artigo 5.o do Regulamento n.o 6/2002, sob a epígrafe «Novidade», enuncia, no seu n.o 1, que «[u]m desenho ou modelo será considerado novo se nenhum desenho ou modelo idêntico tiver sido divulgado ao público».
7. O artigo 6.o deste regulamento, sob a epígrafe «Caráter singular», dispõe:
«1. Considera‑se que um desenho ou modelo possui caráter singular se a impressão global que suscita no utilizador informado diferir da impressão global suscitada nesse utilizador por qualquer desenho ou modelo divulgado ao público […].
2. Na apreciação do caráter singular, será tido em consideração o grau de liberdade de que o criador dispôs na realização do desenho ou modelo.»
8. O artigo 8.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Desenhos ou modelos ditados pela sua função técnica e desenhos ou modelos de interconexões», prevê, no seu n.o 1, que «[a]s características da aparência de um produto determinadas exclusivamente pela sua função técnica não são suscetíveis de proteção como desenhos ou modelos comunitários».
III. Litígio no processo principal, questões prejudiciais e tramitação do processo no Tribunal de Justiça
9. A DOCERAM GmbH é uma sociedade de direito alemão que produz componentes de engenharia cerâmica. A recorrente é fornecedora de clientes da indústria automóvel, têxtil e de engenharia mecânica. É titular de vários desenhos ou modelos comunitários registados que protegem pinos de centragem para operações de soldadura em três dimensões geométricas distintas, sendo cada uma delas produzida em seis tipos diferentes.
10. A CeramTec GmbH é também uma sociedade de direito alemão, que fabrica e comercializa pinos de centragem em cerâmica nas mesmas variantes das protegidas pelos desenhos ou modelos de que a DOCERAM é titular.
11. Esta última interpôs no Landgericht Düsseldorf (Tribunal Regional de Dusseldórfia) uma ação contra a CeramTec para fazer cessar a violação dos seus títulos de proteção. A demandada no processo principal reconvencionou pedindo a declaração de nulidade dos títulos, alegando que as características da aparência dos produtos em causa eram determinadas exclusivamente pela sua função técnica, nos termos do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002.
12. O Landgericht Düsseldorf (Tribunal Regional de Dusseldórfia) julgou improcedente a ação intentada pela DOCERAM e declarou nulos os desenhos ou modelos controvertidos por considerar que os mesmos estavam excluídos da proteção do referido regulamento, conforme o disposto no seu artigo 8.o, n.o 1, pelo facto de a escolha do design ter sido ditada unicamente por razões de funcionalidade técnica.
13. A DOCERAM recorreu desta decisão para o Oberlandesgericht Düsseldorf (Tribunal Regional Superior de Dusseldórfia). Este órgão jurisdicional considerou que para a solução do litígio no processo principal seria pertinente saber se, para aplicar a exclusão prevista no artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002, é necessário — como entende alguma doutrina e jurisprudência, designadamente na Alemanha — constatar que não existem designs alternativos que desempenhem a mesma função técnica, ou se — como se entendeu na decisão recorrida — é necessário determinar de forma objetiva se a funcionalidade pretendida foi o único elemento que determinou as características do produto em causa.
14. Por decisão de 7 de julho de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça a 15 de julho de 2016, o Oberlandesgericht Düsseldorf (Tribunal Regional Superior de Dusseldórfia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça da União Europeia as seguintes questões prejudiciais:
«1 Deve considerar‑se que existe uma característica da aparência de um produto determinada exclusivamente pela função técnica, o que exclui a proteção na aceção do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento [n.o 6/2002], também no caso de o efeito estético não ter qualquer relevância para o design do produto, sendo a funcionalidade (técnica) o único fator que determina o design?
2) Em caso de resposta afirmativa do Tribunal de Justiça à primeira questão: [d]e que ponto de vista cabe apreciar se as diferentes características estéticas de um produto foram escolhidas apenas por questões de funcionalidade [?] Deve recorrer‑se ao critério de um “observador objetivo” e, em caso afirmativo, como deve este ser definido?»
15. A DOCERAM, a CeramTec, os Governos grego e do Reino Unido, bem como a Comissão Europeia apresentaram observações escritas no Tribunal de Justiça. Na audiência de 29 de junho de 2017, apresentaram também observações orais.
IV. Análise
A. Quanto ao conceito de «características da aparência de um produto determinadas exclusivamente pela sua função técnica» na aceção do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 (primeira questão)
1. Quanto ao teor da primeira questão e às teses em presença
16. O órgão jurisdicional de reenvio considera que os desenhos ou modelos em causa no processo principal são simultaneamente novos e singulares de acordo com os requisitos, respetivamente, dos artigos 5.o e 6.o do Regulamento n.o 6/2002 (3). No entanto, tem dúvidas a respeito da questão de saber se a proteção deveria ser excluída ao abrigo do artigo 8.o, n.o 1, do mesmo regulamento, o qual prevê que «[a]s características da aparência de um produto determinadas exclusivamente pela sua função técnica não são suscetíveis de proteção como desenhos ou modelos comunitários», tendo em conta, no caso em apreço, a existência de desenhos que qualifica como «alternativos», por serem suscetíveis de chegar ao mesmo resultado técnico que o produzido por esses desenhos ou modelos.
17. Face aos elementos contidos na decisão de reenvio e ao contexto em que esta se insere, verifica‑se que, no essencial, a primeira questão prejudicial convida o Tribunal de Justiça a verificar se o mero facto de existirem os referidos desenhos alternativos permite concluir que os desenhos ou modelos controvertidos não são unicamente determinados pela função técnica dos produtos em causa e, consequentemente, não estão abrangidos pela exclusão prevista no referido artigo 8.o, n.o 1, ou se o critério determinante para o efeito é o de saber se as«considerações estéticas» ou «oefeito estético» destes produtos (4) levaram o seu criador a escolher um desenho específico (5). Na hipótese de ser este último o critério utilizado pelo Tribunal de Justiça, o órgão jurisdicional de reenvio submete uma segunda questão, quanto ao modo como deve ser apreciada a questão de saber se as diversas características da aparência de um produto foram ou não determinadas exclusivamente por razões de natureza técnica.
18. O órgão jurisdicional de reenvio sublinha que a questão colocada suscita uma dúvida séria, tendo em conta as posições divergentes que até agora foram adotadas, tanto na doutrina como na prática decisória dos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros e do Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO) [anteriormente Instituto de Harmonização no Mercado Interno (marcas, desenhos e modelos) (IHMI)], quanto à forma de interpretar o artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002. Sobre este assunto existem duas teorias jurídicas que podem conduzir a resultados práticos diametralmente opostos.
19. Segundo uma primeira teoria, a exclusão constante nesta disposição só deveria aplicar‑se quando se verifica que nenhum design alternativo permite realizar a mesma função técnica que determinado desenho ou modelo, porque a existência dessas alternativas demonstraria que a escolha da forma em causa não foi determinada exclusivamente pela sua função técnica nos termos do referido artigo 8.o, n.o 1. Esta interpretação baseia‑se no critério normalmente designado de «multiplicidade das formas», segundo o qual se existem outras formas possíveis de um produto realizar a mesma função técnica, o design deste pode beneficiar de uma proteção porque este acervo de formas demonstraria que o criador do produto não estava condicionado pela referida função, mas era livre de optar por qualquer destas formas na conceção do desenho ou modelo (6). Interpretada assim, esta disposição seria aplicável nos casos, relativamente raros, em que o design em causa é o único capaz de garantir a obtenção do resultado técnico pretendido.
20. De acordo com a decisão de reenvio, o Oberlandesgericht Düsseldorf (Tribunal Regional Superior de Dusseldórfia), indica que a aplicação desta primeira tese, que sei ser defendida por uma parte da doutrina, nomeadamente, na Alemanha (7), na Bélgica (8) ou em França (9), está bem consolidada, não apenas pela jurisprudência nacional, tanto da Alemanha como de outros Estados‑Membros (10), mas também pela prática do EUIPO (11). Resulta das observações apresentadas perante o Tribunal de Justiça que a DOCERAM é a única parte que defende esta posição no presente processo.
21. Segundo uma teoria concorrente, a exclusão prevista no artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 deve aplicar‑se quando as características do desenho em causa são determinadas unicamente pela necessidade de desenvolver uma solução técnica, sem que considerações estéticas tenham tido qualquer influência, por não ter ocorrido nenhuma atividade criativa digna de proteção no âmbito do direito dos desenhos ou modelos. Esta teoria, que se baseia no critério denominado «da causalidade», requer que seja identificada a razão pela qual o criador do produto adotou a característica controvertida (12). Interpretado desta forma, o referido artigo 8.o, n.o 1, é aplicável nos casos em que a necessidade de desempenho de determinada função técnica foi a única circunstância que esteve na origem do design em causa, sem influência da sua fisionomia ou da sua qualidade estética, e em que a eventual existência de desenhos alternativos capazes de desempenhar a mesma função não foi determinante.
22. Embora o Tribunal de Justiça não esteja, obviamente, vinculado por estas posições anteriores, sublinho que o EUIPO já se inclinou no passado para a teoria da multiplicidade das formas, tendo, no entanto, optado pela teoria da causalidade na sua prática decisória mais recente (13), por considerar que o artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 não admite a proteção das características da aparência de um produto que tenham sido determinadas exclusivamente pelo objetivo de permitir a esse produto cumprir a sua função técnica, por oposição às características que foram escolhidas, pelo menos em parte, com o objetivo de melhorar o aspeto visual do produto, características essas que, por seu turno, são protegidas (14). A jurisprudência parece ter tido uma evolução semelhante, nomeadamente em França(15) e no Reino Unido (16). No presente processo, tanto aCeramTec como os Governos grego e do Reino Unido, bem como a Comissão (17), pronunciaram‑se a favor desta última teoria. Este é também o meu ponto de vista pelas razões que se seguem.
2. Quanto aos fundamentos da interpretação proposta
23. Antes de mais, verifica‑se que, ao contrário do que a DOCERAM defende, a redação das disposições do Regulamento n.o 6/2002 não dá indicações diretamente úteis para responder à primeira questão prejudicial, dado que, no conceito de «características da aparência de um produto exclusivamente determinadas pela sua função técnica» que figura no artigo 8.o, n.o 1, não é dada qualquer definição nem indicação de um critério de apreciação. Em particular, não é feita qualquer referência ao critério da inexistência de designs alternativos ao produto em causa, que é defendido pelos adeptos da teoria da multiplicidade das formas.
24. De acordo com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, decorre da exigência de uma aplicação uniforme do direito da União que, quando um ato da União não remeta a definição de um conceito específico para o direito dos Estados‑Membros, como sucede neste caso, esse conceito deve ser interpretado de forma autónoma, que o Tribunal de Justiça determinará tendo em conta a sistemática geral, os objetivos e a génese da regulamentação em causa (18).
25. Quanto à sistemática do Regulamento n.o 6/2002, saliento que o seu considerando 10 contém um esclarecimento interessante, embora limitado, acerca do sentido a dar ao seu artigo 8.o, n.o 1, ao afirmar que «[a] inovação tecnológica não pode ser entravada pela concessão de proteção de desenhos ou modelos, com características ditadas unicamente por uma função técnica, entendendo‑se que daí não resulta que um desenho ou modelo tenha de possuir qualidade estética».
26. Referir‑me‑ei, mais tarde, às implicações da primeira parte desta frase do considerando em causa, no âmbito das finalidades visadas pelo artigo 8.o, n.o 1 (19). No que respeita à segunda parte desta frase (20), o órgão jurisdicional de reenviorefere que os opositores à teoria da causalidade defendem que esta, que tende a dissociar as características do produto de natureza puramente técnica das de natureza ornamental, entraria em contradição com a fórmula segundo a qual não é exigível que um desenho ou modelo possua qualidade estética para poder ser protegido.
27. É certo que uma exigência desta natureza não está expressa nos artigos 4.o a 6.o do Regulamento n.o 6/2002, que preveem os requisitos da proteção dos desenhos ou modelos comunitários. Nesta mesma linha, a primeira frase in fine do considerando 10 deste regulamento esclarece que não deve concluir‑se do fundamento de recusa previsto no artigo 8.o, n.o 1, que apenas as formas que possuam qualidade estética podem beneficiar da proteção como desenhos ou modelos. A expressão «daí não resulta que um desenho ou modelo tenha de possuir qualidade estética» significa apenas, em minha opinião, não ser indispensável que a aparência do produto em causa tenha aspeto estético para poder ser protegido.
28. À semelhança da CeramTec e dos Governos grego e do Reino Unido, considero que, mesmo se as qualidades estéticas do produto em causa não constituem um critério de apreciação essencial para a concessão desta proteção, seria errado concluir‑se que não é a aparência visual dos produtos que o desenho ou modelo comunitário visa proteger. Com efeito, como o IHMI, atual EUIPO, salientou (21), resulta claramente, por um lado, da definição do conceito de «desenho ou modelo» constante do artigo 3.o, alínea a), do Regulamento n.o 6/2002, que se refere expressamente à «aparência» do produto (22), e, por outro lado, das exigências relativas à visibilidade, que estão enunciadas tanto no artigo 4.o, n.o 2 (23) como no considerando 12 (24), que a análise da aparência exterior, independentemente do seu mérito (25), é decisiva para a obtenção dos direitos de proteção de um desenho ou modelo comunitário (26). Acresce que a relevância do aspeto visual também é acentuada no artigo 10.o, n.o 1, deste regulamento, que exige que o produto em questão seja diferenciável de criações anteriores objeto de proteção (27).
29. Por conseguinte, na minha opinião, é compatível com a redação do considerando 10 do Regulamento n.o 6/2002 a interpretação do artigo 8.o, n.o 1, no sentido de que visa, não os casos em que as características em causa constituem o único meio para desempenhar a função técnica de um produto, mas os casos em que a necessidade de realizar essa função é a única razão que determina a escolha dessas características. Por outras palavras, entendo que deve considerar‑se que as características da aparência do produto são exclusivamente impostas pelo objetivo de atingir uma dada solução técnica e, portanto, são abrangidas pela exclusão prevista no artigo 8.o, n.o 1, quando se verifica que considerações de outra natureza, em especial visual, não desempenham qualquer papel na adoção do desenho ou modelo em causa. A questão crucial é a de saber onde acabam os condicionalismos de forma, ligados à função técnica do produto, e onde começa o livre arbítrio do criador (28).
30. A constatação de que esta disposição tem natureza derrogatória, pelo que, segundo aquele órgão jurisdicional, deveria ser objeto de uma interpretação estrita, não põe em causa a minha análise. Com efeito, esta constatação não é por si só suficiente para levar à adoção de um critério, concretamente, o da multiplicidade de formas, que, apesar de restringir os casos em que a exclusão é aplicável (29), não tem, no entanto, fundamento jurídico evidente nem no próprio texto do Regulamento n.o 6/2002, nem nas suas origens ou objetivos, como definidos pelo legislador da União.
31. No meu entender, a interpretação que proponho é reforçada pelo estudo da génese do Regulamento n.o 6/2002 e, em especial, do seu artigo 8.o, n.o 1.
32. A CeramTec defende que não deve aplicar‑se o critério da multiplicidade de formas porque a proposta de introdução deste último na regulamentação comunitária não foi aceite. O Governo grego retira também uma série de argumentos dos trabalhos preparatórios deste regulamento.
33. A este propósito, sublinho que, no Livro Verde sobre a Proteção dos Desenhos e Modelos de 1991, a Comissão defendia que a proteção excluísse as características determinadas exclusivamente pela função técnica do produto em causa, norma preexistente na grande maioria dos Estados‑Membros (30), através de observações cujo teor me parece oscilar entre a teoria da multiplicidade das formas e a teoria da causalidade, e que, em minha opinião, estão, respetivamente, relacionadas com a inexistência de desenhos alternativos em termos da forma final do produto e com a ausência de contributo criativo do criador na sua obra (31).
34. Na proposta inicial da Comissão, de 1993, que conduziu à aprovação do Regulamento n.o 6/2002, o artigo 9.o, n.o 1 (que passou a artigo 8.o, n.o 1, deste regulamento), tinha como epígrafe «Desenhos e modelos técnicos não arbitrários […]» e a sua redação era a seguinte: «[u]m desenho ou modelo não será protegido, enquanto desenho ou modelo comunitário, na medida em que a realização de uma função técnica excluir toda a liberdade no que diz respeito às características arbitrárias da aparência» (32).
35. Na exposição de motivos desta proposta de regulamento (33), bem como no comentário ao artigo 9.o, n.o 1 (34), esclarece‑se, desde logo, que o aspeto estético do produto não é, por si só, determinante, uma vez que tanto os desenhos ou modelos que visam algum caráter estético como os que respondem a determinada funcionalidade estão protegidos da mesma maneira. Estes textos enfatizam, sobretudo, que a proteção como desenhos ou modelos comunitários é recusada nos casos raros em que «a forma é adaptada à função, sem que haja qualquer possibilidade de variação», porque o criador não goza de qualquer liberdade na criação do produto sendo que «[,por isso,] não pode pretender que o resultado se deve à criatividade pessoal» e que este desenho ou modelo possui um «caráter individual» (35).
36. Por outro lado, da proposta alterada de 1999 (36) conclui‑se que a redação atual do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 foi alinhada pela do artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 98/71/CE, relativa à proteção legal dos desenhos ou modelos (37), que visa harmonizar as legislações dos Estados‑Membros aplicáveis a esta matéria (38). Ora, os trabalhos preparatórios da Diretiva 98/71 confirmam que a falta de livre arbítrio do criador aquando da conceção do produto e a circunstância de a forma escolhida ser ditada exclusivamente pela função técnica foram consideradas, desde o início, como sendo os fatores determinantes da recusa de proteção, tanto na proposta inicial desta diretiva de 1993 (39) como na proposta alterada de 1996 (40).
37. Parece‑me que nos projetos de textos acima mencionados não se optou por nenhum critério equivalente ao da existência de desenhos alternativos, ou ao da multiplicidade das formas, e que foi preferido o critério da causalidade. Com efeito, não é de forma alguma exigido que a característica em causa seja o único meio através do qual se possa conseguir a função técnica pretendida. A exclusão, tal como prevista no artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002, é fundamentada essencialmente na ausência de uma ação criativa do criador sobre a aparência do produto, sendo que apenas uma mais‑valia resultante de um esforço intelectual independente da referida função justifica uma proteção dos desenhos ou modelos. Ultimamente, nas suas decisões, o EUIPO parece manifestar uma tendência para privilegiar a questão de saber se o criador dispunha ou não de uma margem de liberdade na realização do produto em causa (41).
38. Tratando‑se dos objetivos prosseguidos pelo referido regulamento e, em especial, pelo artigo 8.o, n.o 1, é pacífico entre as partes e, para mim, inquestionável que esta disposição procura essencialmente impedir que as características de natureza exclusivamente técnica de um produto possam ser «monopoliza[das]» (42) através da proteção destas enquanto desenho ou modelo comunitário (43), bem como evitar que «a inovação tecnológica [seja] prejudicada» (44) devido ao facto de esta proteção diminuir a disponibilidade das soluções técnicas para os outros operadores económicos (45). A procura de um equilíbrio entre a proteção da inovação e da criatividade, por um lado, e, por outro, a defesa de uma concorrência equitativa e benéfica para o conjunto das empresas comunitárias, constituíram na realidade uma das preocupações do legislador (46).
39. Além disso, dos trabalhos preparatórios do Regulamento n.o 6/2002 resulta que o artigo 8.o, n.o 1, tem outro objetivo, que é o de estabelecer a fronteira entre as regulamentações relativas às patentes e as relativas aos desenhos ou modelos (47). Com efeito, a eventual proteção das inovações técnicas deve decorrer destas primeiras regulamentações(48), desde que estejam reunidas as condições de patenteabilidade. Como sublinha a CeramTec, pode revelar‑se mais difícil obter uma patente em certos casos porque este título de propriedade exige a demonstração da existência de uma criação que responda a exigências estritas (49) e, ainda mais, porque a duração da proteção pode ser inferior à que é garantida para os desenhos ou modelos (50). Conviria, portanto, prevenir o risco de que as disposições aplicáveis em matéria de patentes pudessem ser contornadas, proibindo que soluções de natureza técnica sejam suscetíveis de ser protegidas como desenhos ou modelos.
40. Ora, o facto de se optar por um critério que, tal como o da multiplicidade das formas, limite fortemente o âmbito de aplicação da exclusão prevista no artigo 8.o, n.o 1 (51), poderia, em minha opinião, privar esta disposição do seu pleno efeito útil e, consequentemente, impedir a realização dos objetivos acima mencionados, por permitir a apropriação de formas com vocação puramente técnica, mas para as quais existem variantes (52).
41. De facto, à semelhança da CeramTec e do Governo do Reino Unido, considero que quase sempre é possível modificar a aparência das características de um produto de forma mínima mas suficiente (53), sem prejudicar a função técnica desejada. Assim, poderia suceder que várias formas concebíveis para uma solução técnica, leia‑se todas elas, se encontrassem monopolizadas através da proteção dos desenhos ou modelos, o que prejudicaria a inovação tecnológica que o Regulamento n.o 6/2002 tende a favorecer. Se o critério defendido pela DOCERAM fosse seguido, um só operador económico teria possibilidade de obter vários registos, como desenho ou modelo comunitário, de diferentes formas de um produto e desse modo beneficiar de uma proteção exclusiva, que, na prática, equivaleria à oferecida a uma patente, mas sem estar sujeita às restrições ligadas a esta proteção, por estas poderem ser contornadas.
42. A CeramTec afirma, a este respeito, que, no âmbito do litígio no processo principal, ao proteger 17 variantes da forma de um pino de centragem em três modelos‑base diferentes, a DOCERAM não teria deixado aos outros operadores no mercado qualquer possibilidade de utilizarem as formas alternativas desses produtos, porque não existiriam outras formas tecnicamente válidas no âmbito da soldadura por projeção suscetíveis de conferir uma outra impressão global do produto, conforme o disposto no artigo 6.o, n.o 1, do regulamento.
43. Por último, sublinho que a interpretação aqui preconizada tem a vantagem de ser coerente com a jurisprudência que tem sido proferida pelo Tribunal de Justiça no domínio das marcas (54). Mas, contrariamente ao que a CeramTec parece sustentar, esta jurisprudência não poderia, em minha opinião, ser transposta tal e qual para o presente processo devido às diferenças que existem entre o sistema jurídico da União relativo à proteção das marcas e o sistema relativo à proteção dos desenhos ou modelos (55). Porém, tendo em conta que existem disposições semelhantes às do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 no primeiro daqueles sistemas (56), embora a respetiva redação não seja perfeitamente idêntica (57), e tendo também em conta os laços de parentesco existentes entre estas duas categorias de disposições (58), considero ser possível e oportuno a apreciação à luz dessa jurisprudência e, eventualmente, uma decisão por analogia no caso em apreço.
44. Recordo que, em relação à proteção das marcas, o Tribunal de Justiça considerou que as referidas disposições do direito da União, que correspondem, no essencial, à do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002, têm como objetivo evitar que essa proteção leve a conferir ao seu titular um monopólio sobre soluções técnicas ou características utilitárias de um produto, soluções essas que poderiam ser procuradas pelo utilizador nos produtos dos concorrentes (59). Como já referi anteriormente (60), parece‑me ser essa, também, a razão da exclusão da proteção de desenhos e modelos comunitários nas circunstâncias previstas no artigo 8.o, n.o 1.
45. Ora, decorre de diversos acórdãos do Tribunal de Justiça em matéria de marcas «que um sinal constituído exclusivamente pela forma de um produto não é suscetível de registo por força [das disposições que objeto de interpretação] se se demonstrar que as características funcionais essenciais desta forma são apenas atribuíveis ao resultado técnico». O Tribunal de Justiça precisou que «a demonstração da existência de outras formas que permitam obter o mesmo resultado técnico não é suscetível de afastar o motivo de recusa […] do registo», enquanto marca, da «forma do produto necessária para obter um resultado técnico», tal como enunciado nas referidas disposições. O Tribunal de Justiça fundamentou esta recusa, quanto a mim implícita mas clara, na teoria da multiplicidade das formas, nomeadamente, na constatação de que a recusa de registo não está sujeita à condição de que a forma em questão seja a única que permite obter o resultado técnico pretendido, bem como na circunstância de a existência de um grande número de formas alternativas poder gerar o risco de as tornar inúteis para os concorrentes do titular da marca, caso esse critério fosse julgado decisivo (61).
46. Considero que estas considerações são igualmente pertinentes no presente processo, dado que não poderia admitir‑se, também nesta matéria, que os desenhos ou modelos comunitários fossem desviados do respetivo objetivo para conferir proteção às características meramente técnicas de um produto (62).
47. Consequentemente, penso que poderá responder‑se afirmativamente à primeira questão prejudicial e, portanto, afastar a tese que defende o critério da «multiplicidade das formas». Mais precisamente, sou de opinião que o artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 deve ser interpretado no sentido de considerar que para se determinar se as características da aparência de um produto são exclusivamente determinadas pela sua função técnica, é conveniente não ter apenas por base a inexistência de formas alternativas que desempenhem essa mesma função, mas demonstrar que a procura de determinada funcionalidade técnica é o único fator que determinou a escolha do desenho ou modelo em causa e que, por essa razão, o seu criador não teve qualquer papel criativo.
48. Em correlação com a interpretação assim proposta, o órgão jurisdicional de reenvio coloca outras questões relativamente à aplicação concreta da norma do artigo 8.o, n.o 1, questões essas que constituem o objeto da segunda questão prejudicial.
B. Quanto aos elementos de apreciação pertinentes para a aplicação do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 (segunda questão)
49. A segunda questão prejudicial é colocada a título subsidiário para a hipótese de, como defendo, o Tribunal de Justiça responder à primeira questão que o método pertinente para a aplicação da exclusão prevista no artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 consiste em verificar se as características da aparência do produto em causa são atribuíveis apenas à função técnica pretendida, e não em constatar a inexistência de desenhos alternativos que possam também desempenhar a mesma funcionalidade.
50. Com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em primeiro lugar, qual é o ponto de vista aconselhável para avaliar se as diversas características da aparência de um produto foram determinadas exclusivamente por razões de funcionalidade técnica e, em segundo lugar, caso seja necessário colocarmo‑nos na posição de «observador objetivo», como deve ser definido este último conceito.
51. O referido órgão jurisdicional afirma que, na decisão recorrida, o Landgericht Düsseldorf (Tribunal Regional de Dusseldórfia) considerou que devia proceder objetivamente à referida avaliação e que a vontade pessoal do criador do desenho ou modelo não é relevante, salvo eventualmente como indício para determinar se um observador objetivo poderia chegar, no termo de uma avaliação razoável, à conclusão de que apenas imperativos de funcionalidade técnica tinham determinado a escolha do design (63). Contudo, os que se opõem a este entendimento consideram que é difícil apreciar caso a caso o ponto de vista de tal «observador objetivo», ou seja, de um terceiro cuja existência é apenas teórica.
52. Quanto ao caráter objetivo ou subjetivo da análisea realizar para efeitos da aplicação do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002, as partes no processo principal e os interessados que apresentaram observações no Tribunal de Justiça estão de acordo em considerar que a intenção subjetiva do criador, quando concebeu o desenho ou modelo em causa, não pode ser o fator‑chave que permite determinar se o desenho ou modelo foi escolhido exclusivamente em razão de considerações puramente técnicas. Partilho também desta opinião.
53. Com efeito, uma abordagem objetiva da análise em questão facilita uma aplicação uniforme desta disposição no conjunto dos Estados‑Membros, bem como em todos os seus órgãos jurisdicionais, e assegura maior previsibilidade, o que reforça a segurança jurídica dos operadores económicos. Como a DOCERAM e a CeramTec alegam, no essencial, se a suposta intenção do criador constituísse o único critério pertinente, as declarações deste seriam por si só decisivas para determinar se o desenho ou modelo em causa poderia ou não ser protegido e, em caso de litígio, o criador poderia ser tentado a afirmar que tinha escolhido aquele design por preocupações estéticas, a fim de conseguir que a exclusão prevista no artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 não se aplicasse em detrimento da sua criação. Quanto a mim, é essencial que as autoridades competentes possam pronunciar‑se com base em elementos de apreciação não subjetivos, mas sim neutros e destituídos de qualquer risco de parcialidade.
54. Pelo contrário, relativamente às metodologias a seguir para realizar uma apreciação objetiva com vista a saber se a aparência de um produto é exclusivamente determinada pela sua função técnica na aceção do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002, as posições defendidas no Tribunal de Justiça não são concordantes.
55. Quanto a mim, a primeira problemática suscitada pela questão tal como foi colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio, que evoca a eventual tomada em consideração do «ponto de vista de um «observador objetivo», é a de saber se é aconselhável ou não raciocinar em relação a umapessoa fictícia cuja alegada apreciação serviria de arquétipo.
56. A CeramTec sublinha, desde logo, a este propósito, que a expressão «observador objetivo», que figura tanto na decisão impugnada perante o órgão jurisdicional de reenvio como na segunda questão prejudicial, é inspirada em formulações semelhantes adotadas, com variantes, na prática decisória do EUIPO (64) e na doutrina (65).
57. A CeramTec defende, a seguir, que, para determinar a aplicabilidade do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002, seria necessário aplicar, por analogia, o conceito de «utilizador informado» usado nos artigos 6.o, n.o 1 e 10.o, n.o 1, bem como no considerando 14 deste regulamento (66), conceito esse definido na jurisprudência do Tribunal de Justiça e do Tribunal Geral(67). De acordo com esta posição, ainda que a verificação deva ser realizada, como neste caso, na situação específica em que todos os utilizadores dos produtos em causa são profissionais, o «utilizador informado» corresponderia na prática ao «profissional», que possui conhecimento técnico para apreciar o caráter inventivo da patente.
58. Considero que seria incorreto seguir esta posição. Sublinho que, contrariamente ao que pretende a CeramTec, o critério pertinente para determinar a existência de elementos factuais no âmbito do Regulamento n.o 6/2002 não é «sempre o do “utilizador informado”». Em especial, já foi decidido que este não está necessariamente preparado para distinguir, para além da experiência acumulada devido à utilização do produto em causa, os aspetos da aparência do produto que são impostos pela sua função técnica daqueles que são arbitrários (68). A aplicação do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 requer, efetivamente, que se proceda a uma avaliação de ordem técnica, o que exige competências específicas de que nem sempre dispõe um utilizador, ainda que «informado». Por isso, em minha opinião, a perspetiva do «utilizador informado» não deveria constituir o critério de apreciação objetiva que é desejado para este fim.
59. À semelhança do Governo do Reino Unido e da Comissão, considero que, se os autores do Regulamento n.o 6/2002 quisessem adotar um instrumento jurídico como o «observador objetivo», da forma que a segunda questão prejudicial dá a entender, tê‑lo‑iam referido no artigo 8.o, n.o 1, como fizeram expressamente em relação ao «utilizador informado», nos n.os 1 dos artigos 6.o e 10.o (69). Para além disso, saliento que o artigo 8.o também não faz referência à perceção de outras categorias de pessoas fictícias, como o «potencial comprador médio», critério que a DOCERAM sugere, antes de o afastar(70), ou o «consumidor médio», fator de apreciação que a Comissão refere ter sido considerado, só por si, não decisivo para avaliar o caráter estritamente técnico de uma forma em matéria de marcas(71).
60. O Governo do Reino Unido sublinha, em minha opinião com razão, que os n.os 2 dos artigos 6.o e 10.o do Regulamento n.o 6/2002 não se referem ao conceito teórico de «utilizador informado» com a finalidade de apreciar o «grau de liberdade do criador na realização do desenho ou modelo» (72) e que convém adotar a mesma perspetiva — não fictícia — no âmbito do artigo 8.o, n.o 1, dado que o órgão jurisdicional chamado a conhecer do litígio tem também a obrigação de avaliar objetivamente o que releva da função técnica do produto, elemento não suscetível de ser protegido, e onde é que interveio a liberdade do criador, cuja obra criativa pode ser objeto de proteção (73). Essa avaliação casuística já é realizada, parece‑me, sem dificuldades de maior, pelas jurisdições nacionais (74) e pelos membros do IHMI, agora EUIPO (75).
61. Além disso, se o critério do «observador objetivo» fosse aceite, causaria uma série de dificuldades suplementares para definir esta categoria, criada ad hoc, bem como no que respeita ao modo como a mesma deveria ser usada. Quanto mais não seja, no que respeita à questão de saber que tipo e que nível de competências essa pessoa deveria possuir.
62. A segunda problemática submetida ao Tribunal de Justiça é a que consiste em identificar os elementos que devem ser objeto de exame, a realizar, quanto a mim de forma simultaneamente objetiva e casuística, pela jurisdição chamada a conhecer de uma impugnação baseada no artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002.
63. Partilho da opinião maioritariamente expressa nas observações apresentadas no Tribunal de Justiça, segundo as quais compete ao tribunal nacional a quem foi submetido o litígio apreciar objetivamente e face a todas as circunstâncias concretas de cada caso concreto se as diferentes características da aparência de um produto respondem unicamente a considerações relativas à funcionalidade.
64. A este propósito, segundo a Comissão, a decisão do referido tribunal deveria ter em conta critérios de apreciação definidos pelo Tribunal de Justiça em matéria de marcas, capazes de fazer presumir um valor da forma não meramente técnico, tais como «a perceção […] pelo consumidor médio [(76)],[a] natureza da categoria dos produtos, [o] valor artístico da forma, [a] especificidade dessa forma relativamente a outras formas geralmente presentes no mercado em causa, [a] diferença notável de preço comparativamente a produtos semelhantes ou [a] existência de uma estratégia promocional que incida principalmente nas características estéticas do produto em causa» (77). A Comissão considera que a jurisdição competente deveria ter também em consideração a existência de formas alternativas que desempenhem igualmente a função técnica em causa, porque a referida existência indicaria, em princípio, que o criador dispunha de liberdade na realização das características da aparência do produto e que esta não foi determinada unicamente por razões de funcionalidade.
65. Nesta mesma linha, a DOCERAM apresenta também uma lista não exaustiva de critérios que poderiam ser pertinentes, a saber, «as circunstâncias ligadas ao processo de design, à publicidade, à utilização, etc.». Por seu turno, a CeramTec defende que o ponto de vista do «utilizador informado», que — quanto a mim erradamente (78) — propõe seja escolhido como critério de apreciação objetiva, deve ser determinado «tendo em consideração, de forma exaustiva, todas as circunstâncias do caso concreto» (79), nomeadamente, «o objetivo específico do fabricante no momento da conceção, a existência de uma publicidade ao produto que privilegie o design, eventuais especificidades ou o particular renome do criador, bem como a vontade do criador no momento da criação do produto» (80).
66. A este propósito, preciso que, quanto a mim, a apreciação em causa deve ser realizada pelo órgão jurisdicional chamado a conhecer do litígio, relativamente não apenas ao desenho ou modelo em si, mas também em relação a todas as circunstâncias que determinaram a escolha das características da sua aparência, tendo em conta os elementos de prova fornecidos pelas partes, independentemente do objetivo ou da natureza desses elementos (81), e ainda tendo em conta eventuais indicações dadas por este órgão jurisdicional.
67. Não é de excluir que critérios como a intenção subjetiva do criador ou a existência de formas alternativas (82), que, no meu entender, não permitem por si só demonstrar que as características da aparência de um produto foram exclusivamente determinadas pela sua função técnica nos termos do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 possam, ainda assim, ser incluídos no conjunto de indícios concretos que os juízes chamados a conhecer do processo devem ter em conta na formação da sua própria opinião em relação à aplicação desta disposição.
68. Considero que não há que elaborar uma lista, ainda que não exaustiva, dos critérios relevantes a este respeito, dado que o legislador da União não previu o recurso a esse procedimento e porque me parece que o Tribunal de Justiça não o considerou útil para efeitos da apreciação, também de ordem factual, à qual também importa proceder em aplicação dos artigos 4.o a 6.o deste regulamento.
69. Pelo contrário, à semelhança do Governo grego, parece‑me útil insistir no facto de o órgão jurisdicional chamado a decidir poder, se necessário, realizar a avaliação exigida recorrendo aos esclarecimentos de um perito independente à sua escolha. Refiro, a este propósito, que os juízes nacionais não possuem necessariamente as qualificações, por vezes altamente técnicas, exigidas para este fim e que é frequente ordenarem peritagens quando são confrontados com questões complexas desta natureza.
70. Consequentemente, considero que deve responder‑se à segunda questão prejudicial no sentido de que, para avaliar se as diferentes características da aparência de um produto respondem apenas a considerações de funcionalidade técnica, com vista à aplicação do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002, incumbe ao órgão jurisdicional chamado conhecer do litígio proceder a uma apreciação objetiva, colocando‑se não apenas no ponto de vista — teórico — de um «observador objetivo», mas tendo em conta — de forma concreta — todas as circunstâncias relevantes do caso concreto.
V. Conclusão
71. Tendo em conta o que precede, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais colocadas pelo Oberlandesgericht Düsseldorf (Tribunal Regional Superior de Dusseldórfia, Alemanha) do seguinte modo:
1) O artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 6/2002 do Conselho, de 12 de dezembro de 2001, relativo aos desenhos ou modelos comunitários, deve ser interpretado no sentido de que a proteção garantida por esse regulamento é excluída sempre que as características da aparência do produto em causa tenham sido escolhidas unicamente com o objetivo de lhe permitir desempenhar uma determinada função técnica, e, portanto, sem qualquer contributo criativo do seu criador, não sendo por si só determinante a este respeito que eventualmente existam outras formas que permitam obter o mesmo resultado técnico.
2) Para determinar se as características da aparência de um produto foram adotadas por considerações exclusivamente ligadas à função técnica de um produto, na aceção do referido artigo 8.o, n.o 1, é necessário que o órgão jurisdicional chamado a conhecer do litígio se pronuncie de forma objetiva, fazendo uso do seu próprio poder de apreciação, tendo em conta todas as circunstâncias pertinentes do caso concreto.