CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
NILS WAHL
apresentadas em 8 de maio de 2018(1)
Processo C‑33/17
Čepelnik d.o.o.
contra
Michael Vavti
[pedido de decisão prejudicial submetido pelo Bezirksgericht Bleiburg/Okrajno sodišče Pliberk (Tribunal de Primeira Instância de Bleiburg, Áustria)]
«Liberdade de prestação de serviços — Legislação nacional que impõe a um destinatário de serviços a prestação de uma garantia financeira para assegurar o pagamento de uma eventual coima aplicada a um prestador de serviços com sede noutro Estado‑Membro — Artigos 16.o e 19.o da Diretiva 2006/123/CE — Exceção da legislação laboral — Justificação — Artigo 56.o TFUE — Proporcionalidade — Direito de defesa — Direito a uma proteção jurisdicional efetiva — Diretiva 2014/67/UE»
1. No presente processo — um pedido de decisão prejudicial submetido pelo Bezirksgericht Bleiburg (Tribunal de Primeira Instância de Bleiburg, Áustria) — é requerido ao Tribunal de Justiça que se pronuncie sobre a questão de saber se o direito da União Europeia impede um Estado‑Membro de impor a um destinatário de serviços prestados por trabalhadores destacados por uma empresa com sede noutro Estado‑Membro, a prestação de uma garantia financeira e a suspensão dos pagamentos a essa empresa. Nos termos das disposições relevantes do direito nacional, a remuneração em dívida por tais serviços deve ser paga à Administração do Estado‑Membro de acolhimento para assegurar a execução de uma eventual coima que, no futuro, possa ser aplicada ao prestador de serviços por violação de determinadas disposições da legislação laboral nacional.
2. Para determinar se a medida nacional em causa é contrária ao direito da União Europeia, o Tribunal de Justiça deverá apreciar a interação entre as regras da União Europeia relativas à liberdade de prestação de serviços estabelecidas no artigo 56.o TFUE, na Diretiva 2006/123/CE (2) e na Diretiva 2014/67/UE (3), por um lado, e as regras nacionais que, segundo o Estado‑Membro em causa, fazem parte da sua legislação laboral, por outro.
I. Quadro jurídico
A. Direito da União Europeia
3. O artigo 1.o, n.o 6, da Diretiva Serviços, sob a epígrafe «Objeto», estabelece:
«A presente diretiva não afeta a legislação laboral, ou seja quaisquer disposições legais ou contratuais em matéria de condições de emprego, de condições de trabalho, incluindo a saúde e a segurança no trabalho, e da relação entre o empregador e o trabalhador, que os Estados‑Membros aplicam em conformidade com o respetivo direito nacional no respeito do direito [da União]. A presente diretiva também não afeta a legislação de segurança social dos Estados‑Membros.»
4. O artigo 3.o, n.o 3, da mesma diretiva, sob a epígrafe «Relação com outras disposições do direito [da União]», prevê:
«Os Estados‑Membros aplicam as disposições da presente diretiva no respeito das regras do Tratado que regem o direito de estabelecimento e a livre circulação de serviços.»
5. O artigo 16.o, sob a epígrafe «Liberdade de prestação de serviços», estabelece:
«1. Os Estados‑Membros devem respeitar o direito de os prestadores prestarem serviços num Estado‑Membro diferente daquele em que se encontram estabelecidos.
O Estado‑Membro em que o serviço é prestado deve assegurar o livre acesso e exercício da atividade no setor dos serviços no seu território.
Os Estados‑Membros não devem condicionar o acesso ou o exercício de atividades no setor dos serviços no seu território ao cumprimento de qualquer requisito que não respeite os seguintes princípios:
(a) Não discriminação: o requisito não pode ser direta ou indiretamente discriminatório em razão da nacionalidade ou, no que respeita às pessoas coletivas, em razão do Estado‑Membro em que estão estabelecidas;
(b) Necessidade: o requisito tem que ser justificado por razões de ordem pública, de segurança pública, de saúde pública ou de proteção do ambiente;
(c) Proporcionalidade: o requisito tem que ser adequado para garantir a consecução do objetivo prosseguido, não podendo ir além do necessário para o atingir.
2. Os Estados‑Membros não podem restringir a liberdade de prestar serviços de um prestador estabelecido noutro Estado‑Membro através da imposição de algum dos seguintes requisitos:
(a) Obrigação de o prestador ter um estabelecimento no respetivo território;
(b) Obrigação de o prestador obter uma autorização das respetivas autoridades competentes, incluindo a inscrição num registo ou numa ordem ou associação profissional no respetivo território, exceto nos casos previstos na presente diretiva ou noutros instrumentos de direito [da União];
(c) Proibição de o prestador se dotar, no respetivo território, de uma determinada forma ou tipo de infraestrutura, incluindo um escritório ou um gabinete, necessária ao cumprimento das prestações em causa;
(d) Aplicação de um regime contratual específico entre o prestador e o destinatário que impeça ou limite a prestação de serviços por conta própria;
(e) Obrigação de o prestador possuir um documento de identidade especificamente destinado ao exercício de uma atividade de serviços emitido pelas respetivas autoridades competentes;
(f) Requisitos que afetem a utilização de equipamento e material que façam parte integrante do serviço prestado, salvo se forem necessários para a proteção da saúde e da segurança no trabalho;
(g) Restrições à liberdade de prestação de serviços referidas no artigo 19.o
3. O Estado‑Membro para onde o prestador se desloca não está impedido de impor requisitos para o exercício de uma atividade de serviços quando esses requisitos sejam justificados por razões de ordem pública, de segurança pública, de saúde pública ou de proteção do ambiente, em conformidade com o n.o 1. O Estado‑Membro em questão também não está impedido de aplicar, em conformidade com o direito comunitário, as suas regras em matéria de condições de emprego, incluindo as estabelecidas em convenções coletivas.
[…]»
6. O artigo 17.o da Diretiva Serviços estabelece uma lista de «[e]xceções adicionais à liberdade de prestação de serviços». Nos termos do n.o 2 desta lista, «[o] artigo 16.o não é aplicável […] às matérias abrangidas pela Diretiva 96/71/CE».
7. A secção 2 do capítulo IV da Diretiva Serviços é relativa aos «[d]ireitos dos destinatários dos serviços». Nos termos do artigo 19.o:
«Os Estados‑Membros não podem impor ao destinatário requisitos que restrinjam a utilização de um serviço fornecido por um prestador estabelecido noutro Estado‑Membro, nomeadamente os seguintes requisitos:
(a) Obrigação de obter uma autorização das suas autoridades competentes ou de lhes apresentar uma declaração;
(b) Limites discriminatórios no que respeita à concessão de auxílios financeiros pelo facto de o prestador estar estabelecido noutro Estado‑Membro ou em razão da situação do lugar em que o serviço deve ser prestado.
[…]»
B. Direito austríaco
8. O § 7m da Arbeitsvertragsrechts‑Anpassungsgesetz (Lei relativa aos contratos de trabalho) de 1993 (BGBl., 459/1993, a seguir «AVRAG») estabelece o seguinte:
«1. No caso de suspeita razoável de infração administrativa nos termos dos § 7b, n.o 8, § 7i ou § 7k, n.o 4, e no caso de ser necessário, em função de determinadas circunstâncias, assumir que a ação penal ou a execução das sanções será impossível ou substancialmente mais difícil por motivos relacionados com a entidade patronal (prestador) ou com a empresa que fornece mão‑de‑obra, os órgãos das autoridades tributárias, em conjugação com investigações nos termos do § 7f, bem como o Fundo para Férias Remuneradas e Despedimentos de Trabalhadores da Construção Civil, pode impor por escrito à entidade patronal, no caso de fornecimento de mão‑de‑obra, o não pagamento do preço da obra ainda devido ou a remuneração pela prestação do trabalho ainda devida ou parte da mesma (suspensão do pagamento). […]. Os órgãos das autoridades tributárias e o Fundo para Férias Remuneradas e Despedimentos de Trabalhadores da Construção Civil podem impor a suspensão do pagamento apenas quando não tiver sido possível fixar ou cobrar uma garantia provisória nos termos do § 7l.
[…]
3. No caso de suspeita razoável de infração administrativa nos termos do § 7b, n.o 8, do § 7i ou do §7k, n.o 4, e no caso de ser necessário, em função de determinadas circunstâncias, assumir que a ação penal ou a execução das sanções será impossível ou substancialmente mais difícil por motivos relacionados com a entidade patronal (prestador) ou com a empresa que fornece mão‑de‑obra, a autoridade administrativa regional pode decidir impor ao cliente ou à entidade patronal, no caso de fornecimento de mão‑de‑obra à entidade patronal, o pagamento do preço da obra ainda devido ou a remuneração pelo fornecimento ainda devida ou parte da mesma como garantia num prazo razoável […]
[…]
5. O pagamento previsto no n.o 3 terá o efeito de reduzir a dívida do cliente ou da entidade patronal ao prestador ou à empresa que fornece mão‑de‑obra.
[…]»
9. Os n.os 3 e 8 do § 7b da AVRAG estabelecem:
«3. As entidades patronais na aceção do n.o 1 devem declarar o emprego dos trabalhadores colocados à sua disposição na Áustria para aí trabalharem o mais tardar uma semana após o início do trabalho ao Serviço Central de Fiscalização do Emprego Ilegal nos termos da Lei relativa ao Emprego dos Cidadãos Estrangeiros (Ausländerbeschäftigungsgesetz) e da Lei relativa à Adaptação do Direito dos Contratos de Trabalho (Arbeitsvertragsrechts‑Anpassungsgesetz) do Ministério Federal das Finanças […]
[…]
8. Quem, enquanto entidade patronal na aceção do n.o 1:
1. não apresentar, ou não apresentar de forma atempada ou completa, em violação do n.o 3, a declaração inicial ou a declaração relativa às alterações ex‑post (declaração de alteração) […].
[…]
comete uma infração administrativa, devendo a autoridade administrativa regional aplicar‑lhe uma coima respeitante a cada trabalhador num montante de 500 a 5 000 euros e, no caso de uma segunda ou subsequente infração, de 1 000 a 10 000 euros. […]».
10. O § 7i, n.o 4, da AVRAG tem a seguinte redação:
«Quem:
1. enquanto entidade patronal na aceção dos § 7, § 7a, n.o 1, ou § 7b, n.os 1 e 9, não disponibilizar as folhas de vencimento em violação do § 7d.
[…]
comete uma infração administrativa, devendo a autoridade administrativa regional aplicar‑lhe uma coima respeitante a cada trabalhador em causa num montante de 1 000 a 10 000 euros, no caso de reincidência no montante de 2 000 a 20 000 euros, se estiverem envolvidos mais do que três trabalhadores, relativamente a cada trabalhador, num montante de 2 000 a 20 000 euros e, no caso de a reincidência, num montante de 4 000 a 50 000 euros».
11. do disposto no § 7b, n.o 3, no § 7b, n.o 8, no § 7i, n.o 4 e no § 7m da AVRAG correspondem à situação jurídica em vigor até 31 de dezembro de 2016. Em 1 de janeiro de 2017, foram substituídas pelos n.os 19, 26, 27, 28 e 34 da Lohn‑und Sozialdumpingbekämpfungsgesetz (Lei relativa ao combate ao dumping salarial e social), cujo conteúdo é idêntico.
II. Factos, tramitação processual e questões prejudiciais
12. O presente processo tem origem num litígio entre a Čepelnik d.o.o. (a seguir «Čepelnik») e Michael Vavti, relativo ao pagamento da remuneração em dívida por serviços de construção.
13. A Čepelnik é uma sociedade de responsabilidade limitada com sede na Eslovénia. Prestou serviços no setor da construção a M. Vavti no montante de 12 200 euros. Os serviços foram realizados numa casa de M. Vavti, situada na Áustria, perto da fronteira com a Eslovénia, através de trabalhadores destacados. M. Vavti efetuou um pagamento antecipado no valor de 7 000 euros à Čepelnik.
14. Em 16 de março de 2016, a polícia financeira austríaca procedeu à fiscalização da obra e acusou a Čepelnik de duas infrações administrativas. Em primeiro lugar, no que respeita a dois trabalhadores destacados, a Čepelnik não declarou corretamente o início dos trabalhos nos termos do § 7b, n.o 8, ponto 1, em conjugação com o § 7b, n.o 3, da AVRAG. Em segundo lugar, a Čepelnik não dispunha das folhas de vencimento em língua alemã relativas a quatro trabalhadores, violando assim o § 7i, n.o 4, 1, em conjugação com os dois primeiros períodos do § 7d, n.o 1, da AVRAG.
15. Imediatamente após a fiscalização, a polícia financeira exigiu a suspensão dos pagamentos a M. Vavti e requereu à autoridade administrativa competente, a Bezirksmannschaft Völkermarkt (autoridade administrativa de Völkermarkt, «BHM Völkermarkt», Áustria) que impusesse a M. Vavti a prestação de uma garantia financeira. Esta garantia financeira tinha por objetivo assegurar o pagamento de uma eventual coima que pudesse resultar de processos intentados contra a Čepelnik nos termos da AVRAG com base no resultado da fiscalização. Em conformidade com o § 7m, n.o 4, da AVRAG, a polícia financeira requereu que a garantia financeira fosse fixada num montante igual ao da remuneração em dívida, concretamente 5 200 euros. Por decisão de 17 de março de 2016, a BHM Völkermarkt ordenou a garantia financeira requerida, com o fundamento de que «considerando que a sede do […] prestador de serviços se situa na Eslovénia […], é de presumir que a ação penal e a execução de uma sentença se tornam muito difíceis, ou mesmo impossíveis». M. Vavti não interpôs recurso desta decisão e constituiu a garantia financeira em 20 de abril de 2016.
16. Foi instaurado um processo contra a Čepelnik relativamente às alegadas infrações administrativas. Por decisão de 11 de outubro de 2016, a Čepelnik foi condenada ao pagamento de uma coima de 1 000 euros por alegadamente ter violado o § 7b, n.o 8, ponto 1, da AVRAG ao não ter registado junto do organismo competente na Áustria dois trabalhadores antes de estes terem iniciado o seu trabalho na obra. Por decisão de 12 de outubro de 2016, a Čepelnik foi ainda condenada ao pagamento de uma coima de 8 000 euros por alegadamente ter violado o § 7i, n.o 4, ponto 1, da AVRAG ao não dispor das folhas de vencimento em língua alemã relativas a quatro trabalhadores. A Čepelnik interpôs recurso destas decisões em 2 de novembro de 2016. O órgão jurisdicional de reenvio acrescenta que os recursos ainda estavam pendentes quando foi submetido o pedido de decisão prejudicial.
17. Após a finalização dos trabalhos, a Čepelnik faturou a M. Vavti 5 000 euros relativos à remuneração em dívida. Este recusou pagar, alegando que pagou a remuneração em dívida à BHM Völkermarkt, em conformidade com a decisão administrativa desta autoridade. Afirmou que, nos termos do § 7m, n.o 5, da AVRAG, a prestação de uma garantia financeira à autoridade administrativa extinguiu a sua dívida à Čepelnik. Em seguida, esta última intentou uma ação contra M. Vavti, no Bezirksgericht Bleiburg/Okrajno sodišče Pliberk (Tribunal de Primeira Instância, Bleiburg) a fim de recuperar a remuneração em dívida.
18. Tendo dúvidas sobre a correta interpretação de determinadas disposições do direito da União Europeia e sobre a compatibilidade das regras nacionais em causa com essas disposições, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu suspender a instância e submeter as seguintes questões ao Tribunal de Justiça:
«O artigo 56.o TFUE e a [Diretiva 2014/67] devem ser interpretados no sentido de que proíbem um Estado‑Membro de impor a um cliente nacional a suspensão dos pagamentos e a prestação de uma garantia financeira no valor da remuneração em dívida, caso a suspensão dos pagamentos e a prestação de uma garantia financeira apenas vise assegurar o pagamento de uma eventual coima, que só será aplicada num processo separado a um prestador de serviços com sede noutro Estado‑Membro?
Em caso de resposta negativa a esta questão:
a) Devem o artigo 56.o TFUE e a [Diretiva 2014/67] ser interpretados no sentido de que proíbem um Estado‑Membro de impor ao cliente nacional a suspensão dos pagamentos e a prestação de uma garantia financeira no valor da remuneração em dívida, caso o prestador de serviços com sede noutro Estado‑Membro da UE, a quem deve ser aplicada uma coima, não disponha de um meio de ação contra a imposição de uma garantia financeira no respetivo processo e a reclamação apresentada pelo cliente nacional contra esta decisão não tenha efeito suspensivo?
b) Devem o artigo 56.o TFUE e a [Diretiva 2014/67] ser interpretados no sentido de que proíbem um Estado‑Membro de impor ao cliente nacional a suspensão dos pagamentos e a prestação de uma garantia financeira no valor da remuneração em dívida apenas devido ao facto de o prestador de serviços ter a sua sede noutro Estado‑Membro da UE?
c) Devem o artigo 56.o TFUE e a [Diretiva 2014/67] ser interpretados no sentido de que proíbem um Estado‑Membro de impor ao cliente nacional a suspensão dos pagamentos e a prestação de uma garantia financeira no valor da remuneração em dívida, apesar de a mesma ainda não ser exigível e de o valor da remuneração definitiva ainda não estar determinado devido à existência de contrapretensões e direitos de retenção?»
19. A Čepelnik, os Governos checo, húngaro, eslovaco, esloveno, austríaco e polaco, assim como a Comissão apresentaram observações escritas. Por carta de 15 de dezembro de 2017, o Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 61.o, n.o 1, do seu Regulamento de Processo, convidou as partes e os interessados referidos no artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça a responderem por escrito às seguintes questões antes da audiência:
«1) A [Diretiva Serviços] é aplicável a decisões como as que estão em causa no processo principal? A este respeito, chama‑se a atenção das partes interessadas para o artigo 1.o, n.o 6, da mesma diretiva.
2) Em caso de resposta afirmativa, deve a [Diretiva Serviços] ser interpretada no sentido de que impede a adoção de decisões como as que estão em causa no processo principal?»
20. A Čepelnik, os Governos checo, francês, eslovaco, esloveno e austríaco, assim como a Comissão responderam às questões por escrito. A Čepelnik, os Governos checo, húngaro, esloveno e austríaco, assim como a Comissão também apresentaram alegações orais na audiência de 26 de janeiro de 2018.
III. Análise
21. Com as suas questões, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, ao Tribunal de Justiça se o direito da União Europeia impede um Estado‑Membro de impor a um destinatário de serviços a suspensão dos pagamentos e a prestação de uma garantia financeira igual à remuneração em dívida (a seguir «medida em causa») relativamente a um serviço prestado, através de trabalhadores destacados, por um prestador com sede noutro Estado‑Membro, quando a medida em causa visa assegurar o pagamento de uma eventual coima que pode ser posteriormente aplicada ao prestador pelo Estado‑Membro de acolhimento por violação da sua legislação laboral.
22. Em particular, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o direito da União Europeia impede a medida em causa quando o prestador de serviços não dispõe de um meio de recurso contra a mesma, e/ou a medida é imposta apenas por este prestador ter sede noutro Estado‑Membro, e/ou a medida é imposta apesar de o montante a pagar nos termos do contrato ainda não ser integralmente exigível e de o valor em dívida desta remuneração ainda não estar determinado devido à existência de contrapretensões e direitos de retenção.
23. No entanto, antes de apreciar o mérito do processo, é necessário, em primeiro lugar, abordar a exceção processual suscitada pelo Governo austríaco e, em seguida, resumir brevemente as características principais da medida em causa para determinar as disposições do direito da União Europeia aplicáveis neste contexto.
A. Competência do Tribunal de Justiça
24. Nas suas observações, o Governo austríaco contesta a competência do Tribunal de Justiça, com o fundamento de que não é necessário responder às questões prejudiciais para resolver o litígio em causa no processo principal. Este Governo alega que, uma vez que a decisão que adota a medida em causa tem natureza administrativa, a sua legalidade só pode ser apreciada por um tribunal administrativo. Contudo, o órgão jurisdicional de reenvio não é um tribunal administrativo e apenas é chamado a apreciar um litígio em matéria civil entre a Čepelnik e M. Vavti. Por conseguinte, este tribunal não tem competência para anular ou alterar a referida decisão.
25. Não obstante, segundo jurisprudência constante, as questões relativas à interpretação do direito da União Europeia submetidas por um órgão jurisdicional nacional gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar responder a uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (4).
26. A este respeito, decorre da informação prestada pelo órgão jurisdicional de reenvio que existe um nexo evidente entre a decisão administrativa que impõe a medida em causa a M. Vavti, por um lado, e a ação cível para cobrança da remuneração em dívida intentada pela Čepelnik contra M. Vavti, por outro. O órgão jurisdicional de reenvio salienta que, nos termos do § 7m, n.o 5, da AVRAG, a prestação de uma garantia financeira à autoridade administrativa extinguiu a dívida de M. Vavti à Čepelnik. Assim, as questões relativas à legalidade da garantia financeira não se afiguram irrelevantes para efeitos da competência do órgão jurisdicional de reenvio para conhecer do processo principal.
27. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça é competente para responder às questões prejudiciais submetidas.
B. Medida em causa
28. Com as suas questões, o órgão jurisdicional de reenvio pretende determinar a compatibilidade com o direito da União Europeia de uma medida nacional como a que está em causa. No seu pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional nacional refere, em particular, o artigo 56.o TFUE e as disposições da Diretiva 2014/67. Além disso, algumas partes que apresentaram observações neste processo também alegaram que a Diretiva Serviços é aplicável no caso em apreço — o que levou o Tribunal de Justiça a pedir especificamente às partes para se pronunciarem por escrito sobre o assunto.
29. Por conseguinte, em primeiro lugar, há que determinar quais são as disposições do direito da União Europeia aplicáveis ao processo principal, à luz das características específicas da medida em causa.
30. Esta medida consiste numa decisão tomada pela Administração que ordena ao destinatário de serviços a suspensão do pagamento e a prestação de uma garantia financeira, devido a um possível incumprimento, pelo prestador dos serviços, das obrigações resultantes da legislação laboral nacional. A parte da remuneração fixada por contrato que ainda é devida pelo destinatário ao prestador quando a medida em causa é adotada deve ser paga à Administração, que a retém para assegurar o pagamento de sanções que podem posteriormente ser aplicadas a este prestador. Com efeito, no momento da adoção da medida ainda não foi imposta qualquer sanção ao prestador.
31. Nesta fase, devo salientar que não é possível determinar em definitivo se a medida em causa é (direta ou indiretamente) discriminatória. A este respeito, o Governo austríaco alega que o § 7m da AVRAG se afigura uma disposição não discriminatória, uma vez que é aplicável quer aos prestadores de serviços com sede na Áustria quer aos prestadores de serviços com sede noutros Estados‑Membros.
32. No entanto, não vislumbro fundamento para esse argumento nos autos. Com efeito, todas as infrações administrativas que, nos termos do § 7m da AVRAG, podem conduzir à adoção da medida em causa (as infrações previstas no § 7b, n.o 8, no § 7i e no § 7k, n.o 4, da mesma lei) têm por objeto situações relativas a trabalhadores destacados. Assim, afigura‑se que a medida em causa visa apenas prestadores de serviços estrangeiros.
33. Questionado na audiência sobre se, no direito austríaco, também era aplicável uma medida semelhante a situações puramente internas ou a infrações que são mais frequentemente cometidas por prestadores de serviços nacionais, o Governo austríaco começou por responder afirmativamente. Todavia, quando lhe foi pedido para ser mais específico e fornecer exemplos concretos, este Governo teve dificuldade em indicar as disposições legais relevantes ou em referir casos nos quais foi aplicada uma medida semelhante numa situação onde não existia qualquer elemento transfronteiriço. Não encontrei nenhuma disposição da AVRAG, em vigor à época, que previsse uma medida equivalente em casos de violações de regras distintas das previstas no § 7m da mesma lei. Neste contexto, é possível questionar se havia efetivamente alguma necessidade de uma disposição tão ampla quando a situação é puramente interna.
34. Em qualquer caso, se não for diretamente discriminatória, a medida em causa afigura‑se, no mínimo, indiretamente discriminatória. Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que, no caso em apreço, o requisito para a sua aplicação foi considerado preenchido pelo simples facto de o prestador de serviços ser uma empresa eslovena. Assim, esta disposição é efetivamente aplicada de forma discriminatória: os prestadores de serviços estrangeiros e os prestadores de serviços nacionais são tratados de modo diferente apenas com base no local onde têm a sua sede. Contudo, na audiência, o Governo austríaco alegou que, no caso em apreço, pode ter simplesmente ocorrido uma aplicação errada do § 7m da AVRAG. Em sua opinião, o facto de um prestador de serviços ter sede no estrangeiro não deve ser determinante para efeitos da adoção da medida em causa.
35. À luz do exposto, e apesar das reservas que ainda tenho em relação a este ponto, irei prosseguir a análise jurídica com base no pressuposto de que a medida em causa não é discriminatória.
36. Em quaisquer circunstâncias, conforme o órgão jurisdicional de reenvio salientou de forma correta, independentemente do seu caráter discriminatório ou não discriminatório, tal medida, pela sua própria natureza, pode, por um lado, desincentivar os clientes austríacos de recorrerem aos serviços de prestadores com sede no estrangeiro e, por outro, desincentivar os prestadores com sede noutros Estados‑Membros de prestarem, temporariamente, os seus serviços na Áustria.
37. No que respeita ao primeiro ponto, uma medida como a que está em causa pode evidentemente produzir vários efeitos adversos em relação a clientes que decidam adquirir serviços de prestadores estrangeiros. Em particular, assim que a medida em causa é adotada, o cliente tem de pagar adiantadamente a remuneração em dívida à Administração, ao invés de poder aguardar até que o prestador conclua o serviço. Além disso, o cliente perde a possibilidade de reter parte da remuneração devida, como compensação em caso de conclusão defeituosa ou de atraso da obra, ou de danos causados no decurso da obra. O próprio cliente expõe‑se igualmente ao risco de interrupção ou atraso na obra assim que o prestador tiver conhecimento da aplicação da medida.
38. No que respeita ao segundo ponto, a medida em causa torna menos atrativa para empresas com sede no estrangeiro a prestação, a título temporário, dos seus serviços na Áustria. Com efeito, basta que as autoridades austríacas tenham uma «suspeita razoável» de que um prestador cometeu uma infração nos termos de determinadas disposições da AVRAG para que este perca o direito de exigir ao seu cliente a remuneração em dívida pelo serviço prestado. Assim, a medida em causa pode, no mínimo, expor os prestadores de serviços a riscos acrescidos de atrasos no pagamento dos montantes que, na maior parte dos casos, constituem uma parte significativa da remuneração total acordada. A medida em causa pode também originar algumas consequências financeiras desfavoráveis, mesmo que não tenha sido cometida uma infração, uma vez que a garantia financeira se mantém ao longo de todo o processo de aplicação da sanção (que pode durar vários anos) na conta da Administração austríaca, onde — se o meu entendimento está correto — não gera juros.
39. Tendo em consideração o exposto, afigura‑se evidente que, em princípio, uma medida como a em causa se encontra abrangida pelo âmbito das regras do Tratado relativas à liberdade de prestação de serviços. Além disso, à primeira vista, a Diretiva Serviços aparentemente também é relevante: este diploma introduziu um quadro jurídico geral destinado a eliminar, nomeadamente, entraves à livre circulação de serviços entre Estados‑Membros (5).
40. Em contrapartida, outros diplomas legais igualmente referidos pelo órgão jurisdicional de reenvio ou por algumas partes que apresentaram observações não se afiguram relevantes ou aplicáveis. Em primeiro lugar, apesar de o litígio em causa no processo principal ter origem numa situação de trabalhadores destacados, nenhuma disposição da Diretiva 96/71/CE relativa ao destacamento de trabalhadores (6) é diretamente relevante. Esta diretiva visa coordenar as disposições nacionais materiais relativas às condições de trabalho e emprego dos trabalhadores destacados, independentemente das regras administrativas acessórias destinadas a permitir a verificação do cumprimento das referidas condições. Por conseguinte, estas medidas podem ser determinadas livremente pelos Estados‑Membros, em conformidade com o Tratado e com os princípios gerais do direito da União Europeia (7).
41. Em seguida, a Diretiva 2014/67, respeitante à execução da Diretiva 96/71/CE, relativa ao destacamento de trabalhadores — que, em princípio, teria sido relevante devido ao seu objeto (8) — não é aplicável ratione temporis ao litígio controvertido (9). Com efeito, o período de transposição da diretiva apenas expirava em 18 de junho de 2016, ao passo que os factos controvertidos no processo principal ocorreram em março de 2016. Se bem entendi, a Áustria considera que a Diretiva 2014/67 foi transposta pela Lei relativa ao combate ao dumping salarial e social de 13 de junho de 2016, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2017, uma vez que esta foi a lei notificada à Comissão como medida de transposição da diretiva.
42. Por conseguinte, a questão essencial neste contexto consiste em determinar se a compatibilidade com o direito da União Europeia de uma medida como a que está em causa deve ser apreciada ao abrigo das disposições do Tratado relativas ao mercado interno ou à luz das disposições da Diretiva Serviços.
C. Artigo 56.o TFUE ou Diretiva Serviços?
43. Começando com o Acórdão Rina Services (10), o Tribunal de Justiça tem aplicado reiteradamente as regras estabelecidas na Diretiva Serviços enquanto quadro jurídico para determinar a compatibilidade de medidas nacionais com a livre circulação de serviços quando estas medidas estão abrangidas pelo âmbito de aplicação ratione materiae de tal diploma legal, sem apreciar as medidas à luz dos artigos 49.o TFUE e/ou 56.o TFUE.
44. Assim, neste momento, a questão essencial consiste em saber se uma medida como a que está em causa está, ou não, abrangida pelo âmbito de aplicação da Diretiva Serviços.
45. A Diretiva Serviços é aplicável, em princípio, a todos os tipos de atividade de prestação de serviços (11) e a todos os tipos de medidas nacionais que podem restringir a livre circulação de serviços (12), exceto às atividades e aos tipos de medida nacional que estão expressamente excluídos do seu âmbito (13). Concretamente, os serviços de construção — atividade em causa no processo principal — são expressamente referidos no considerando 33 da Diretiva Serviços na lista de exemplos de atividades abrangidas por esta diretiva.
46. A Diretiva Serviços também elenca, no artigo 1.o, determinados domínios que «não tem por objeto» ou que «não afeta».
47. Mediante referência a esta disposição, o Governo austríaco alegou que a Diretiva Serviços não é aplicável ao processo principal: a medida em causa é parte da sua legislação laboral nacional que, nos termos do artigo 1.o, n.o 6, da diretiva, não está abrangida pelo âmbito de aplicação da mesma diretiva.
48. Por conseguinte, importa apreciar se este argumento pode ser julgado procedente. Para o efeito, afigura‑se útil explicar qual é, em meu entender, o significado do artigo 1.o, n.o 6, da Diretiva Serviços.
1. Exceção da legislação laboral
49. Nos termos do seu artigo 1.o, n.o 6, a Diretiva Serviços «não afeta a legislação laboral, ou seja quaisquer disposições legais ou contratuais em matéria de condições de emprego, de condições de trabalho, incluindo a saúde e a segurança no trabalho, e da relação entre o empregador e o trabalhador, que os Estados‑Membros aplicam em conformidade com o respetivo direito nacional no respeito do direito [da União Europeia]» (14). Esta disposição deve ser lida à luz do considerando 14 da diretiva, que estabelece que a mesma diretiva «não afeta as condições de trabalho e de emprego, designadamente no que toca aos períodos máximos de trabalho e períodos mínimos de descanso, à duração mínima das férias anuais remuneradas, às remunerações mínimas, bem como à saúde, segurança e higiene no trabalho, aplicadas pelos Estados‑Membros em conformidade com o direito [da União Europeia], nem afeta as relações entre os parceiros sociais, incluindo o direito de negociar e celebrar convenções coletivas, o direito à greve e à ação coletiva, em conformidade com o direito e as práticas nacionais que respeitem o direito [da União Europeia]».
50. Importa salientar que estas disposições não estabelecem que o domínio da legislação laboral está, como um todo, excluído do âmbito de aplicação da Diretiva Serviços. Com efeito, conforme referido, os domínios do direito (por exemplo, fiscalidade) ou as atividades económicas (tais como os serviços de cuidados de saúde) que estão, na íntegra, excluídos do âmbito de aplicação da diretiva constam do artigo 2.o, que tem efetivamente por epígrafe «Âmbito de aplicação» e que prevê expressamente que a Diretiva Serviços «não se aplica» aos domínios e atividades aí elencadas (15).
51. O artigo 1.o da Diretiva Serviços, por outro lado, é relativo ao «objeto» da diretiva, estabelecendo, nomeadamente, domínios do direito que «não são afetados» por este diploma. Em minha opinião, este requisito deve ser entendido no sentido de que as disposições da Diretiva Serviços devem ser interpretadas e aplicadas de forma a não limitarem os direitos, liberdades ou poderes atribuídos quer a indivíduos (por exemplo, o exercício de direitos fundamentais) quer aos Estados‑Membros (por exemplo, o poder de definirem o que consideram serviços de interesse económico geral ou de regularem os domínios do direito criminal ou do legislação laboral) referidos no seu artigo 1.o (16)
52. Com efeito, decorre da génese da Diretiva Serviços que a legislação da União Europeia pretendia evitar que este diploma pudesse provocar uma concorrência em matéria regulamentar que incentivasse um nivelamento por baixo das normas sociais e laborais. (17) Assim, dito muito simplesmente, a Diretiva Serviços não impede os Estados‑Membros de aplicarem as suas regras em matéria laboral a situações que, caso estas regras não existissem, estariam de outro modo abrangidas pelo mesmo diploma.
53. Contudo, a diretiva sujeita esse poder ao cumprimento de um requisito. Conforme expressamente referido quer no artigo 1.o, n.o 6, quer no considerando 14 da Diretiva Serviços, a não afetação da legislação laboral dos Estados‑Membros apenas é reconhecida se a legislação nacional relevante for aplicada «no respeito do direito [da União]». Assim, longe de conceder carta branca aos Estados‑Membros para aplicarem a sua legislação laboral independentemente do possível impacto no mercado interno, a Diretiva Serviços estabelece apenas uma exceção limitada. Outros princípios e regras relativos ao mercado interno — incluídos em atos de direito primário ou noutros atos de direito derivado — continuam a ser aplicáveis à legislação laboral dos Estados‑Membros.
54. Dito isto, importa abordar a questão de saber se uma medida como a que está em causa se encontra abrangida pela exceção «legislação laboral» prevista na Diretiva Serviços.
2. Natureza da medida em causa
55. Nesta fase, devo salientar que, em minha opinião, o conceito de «legislação laboral» não pode ser um conceito do direito da União. Caso contrário, o alcance da diretiva variaria segundo os Estados‑Membros, dependendo da definição formal de legislação laboral adotada por cada um deles.
56. Esta posição é igualmente confirmada por um elemento textual. O artigo 1.o, n.o 6, da Diretiva Serviços inclui uma explicação sobre o que está abrangido por este conceito: «quaisquer disposições legais ou contratuais em matéria de condições de emprego, de condições de trabalho, incluindo a saúde e a segurança no trabalho, e da relação entre o empregador e o trabalhador». Conforme consta do considerando 14, as condições de emprego e de trabalho incluem matérias relativas aos «períodos máximos de trabalho e períodos mínimos de descanso, à duração mínima das férias anuais remuneradas, às remunerações mínimas». O mesmo considerando refere igualmente que a expressão «relação entre o empregador e o trabalhador» abrange as «relações entre os parceiros sociais», que incluem matérias como «o direito de negociar e celebrar convenções coletivas, o direito à greve e à ação coletiva».
57. A redação do artigo 1.o, n.o 6, da Diretiva Serviços, especialmente quando lido nas diferentes versões linguísticas da diretiva (18) também sugere que a lista de aspetos aí incluída é exaustiva.Em minha opinião, isto é ainda mais adequado, uma vez que a definição incluída no artigo 1.o, n.o 6, e no considerando 14 se afigura suficientemente ampla para abranger a maioria dos aspetos, se não todos, comummente considerados como constituindo a legislação laboral a nível da União Europeia ou a nível internacional (19).
58. No entanto, daqui não decorre — conforme alegado por determinadas partes que apresentaram observações no presente processo — que apenas as regras substantivas da legislação laboral (entendida como as regras que estabelecem direitos e obrigações) estão abrangidas por este conceito. Considero que o conceito de «legislação laboral» deve igualmente abranger as regras relativas às sanções e procedimentos específicos desse domínio. A capacidade de um Estado‑Membro aplicar a sua legislação laboral a situações que, em princípio, seriam reguladas pela Diretiva Serviços deve necessariamente incluir o poder de aplicar regras cujo objetivo específico é tornar a conformidade com as regras substantivas em matéria laboral efetiva, verificável e obrigatória.
59. Contudo, não se afigura ser esse o caso do § 7m da AVRAG, apesar de a AVRAG ser, genericamente, um diploma que faz parte da legislação laboral da Áustria.
60. Em minha opinião, não é possível considerar que a medida em causa está abrangida pela exceção «legislação laboral» prevista na Diretiva Serviços. A medida aí estabelecida é imposta mesmo que ainda não tenha sido constatada qualquer infração da legislação laboral e, mais importante, não é imposta ao alegado infrator mas ao seu parceiro contratual. A posição jurídica deste, que é direta e imediatamente afetado pela medida em causa, normalmente não é regulada pelas regras da legislação laboral, uma vez que, pelo menos no que respeita a esta situação, não é nem empregador nem empregado. Além disso, os montantes cobrados através da medida em causa não são utilizados para a proteção de trabalhadores ou para qualquer outro objetivo social.
61. Como muitas partes que apresentaram observações no presente processo salientaram, o objetivo estatutário da medida em causa consiste em assegurar, em benefício da fazenda pública, o pagamento efetivo de sanções que as autoridades públicas podem no futuro impor a um prestador de serviços. Ao imporem esta medida, as autoridades austríacas aplicam os seus poderes em matéria de polícia e em matéria administrativa. Conforme referido, os efeitos da medida em causa, longe de apenas incentivarem os prestadores de serviços a respeitar a legislação laboral nacional, vão muito além disso, por realmente desincentivarem a prestação de serviços transfronteiriços.
62. Por conseguinte, tal medida não pode ser considerada parte da «legislação laboral» de um Estado‑Membro para efeitos da Diretiva Serviços. Esta conclusão afigura‑se indiretamente confirmada pelo entendimento do Tribunal de Justiça no Acórdão De Clercq, no qual declarou que o conceito de «condições de trabalho e emprego» de trabalhadores destacados para efeitos da Diretiva 96/71 não pode ser alargado para abranger igualmente as regras administrativas que visam permitir às autoridades verificar o respeito das disposições relativas às condições de trabalho e emprego de trabalhadores destacados (20).
63. Tendo em consideração o exposto, apreciarei a compatibilidade de uma medida como a que está em causa principalmente com base nas disposições da Diretiva Serviços. Não obstante, caso o Tribunal de Justiça não partilhe da minha opinião sobre a aplicabilidade desta diretiva ao processo principal, irei também apreciar posteriormente a medida em causa ao abrigo do artigo 56.o TFUE.
D. Compatibilidade da medida em causa com o direito da União Europeia
1. Artigos 16.o e 19.o da Diretiva Serviços
64. Os artigos 16.o e 19.o da Diretiva Serviços estão incluídos no capítulo IV, que tem por epígrafe «Livre circulação de serviços». O artigo 16.o estabelece os princípios fundamentais nesta matéria e respeita, mais particularmente, às restrições que podem afetar os prestadores de serviços, ao passo que o artigo 19.o é relativo às restrições que podem afetar os destinatários dos serviços.
65. Considero que ambas as disposições são aplicáveis à medida em causa. Conforme explicado nos n.os 36 a 38, supra, afigura‑se que tal medida, pela sua própria natureza, pode, por um lado, desincentivar os clientes austríacos de obterem serviços de prestadores com sede no estrangeiro e, por outro lado, desincentivar os prestadores com sede noutros Estados‑Membros de prestarem, temporariamente, os seus serviços na Áustria.
66. Por conseguinte, a medida em causa constitui uma restrição que, em princípio, é proibida pelos artigos 16.o e 19.o da Diretiva Serviços. A questão que agora se impõe consiste em saber se tal medida pode, não obstante, ser justificada. Para responder a essa questão, afigura‑se‑me necessário esclarecer o significado e alcance dos artigos 16.o e 19.o da Diretiva Serviços. Devo começar por apreciar o primeiro que, por sua vez, permitirá apreciar o segundo.
a) Interpretação dos artigos 16.o e 19.o
67. O artigo 16.o é provavelmente a disposição mais controversa que consta da Diretiva Serviços e certamente uma das que tem um significado particularmente opaco (21). No essencial, isso deve‑se ao facto de, na sua forma final, o artigo 16.o ter alterado de modo significativo a disposição que estava originalmente incluída na primeira proposta da Comissão. Com efeito, a proposta de 2004 (22) incluía no projeto de artigo 16.o o «princípio do país de origem» e uma lista de derrogações. Contudo, a inclusão deste princípio no projeto de diretiva provocou um debate na Europa e foi criticada por alguns grupos de interesses por alegadamente «abrir a porta» ao dumping social (23). Por este motivo, a proposta alterada da Comissão, apresentada em 2006 (24), eliminou o princípio do país de origem e reformulou amplamente o artigo 16.o
68. O artigo 16.o da Diretiva Serviços, na sua forma final, suscita várias questões de interpretação. Porém, para efeitos do processo principal, apenas é necessário apreciar a questão de saber se a medida abrangida pelo artigo 16.o pode ser justificada e, em caso afirmativo, com que fundamentos e em que condições.
69. A este respeito, há que salientar que o artigo 16.o, n.o 1, da Diretiva Serviços estabelece os princípios gerais relativos à liberdade de prestação de serviços, aprofundando e desenvolvendo a regra fundamental consagrada no artigo 56.o TFUE. Em particular, exige que os Estados‑Membros respeitem o direito de os prestadores prestarem serviços num Estado‑Membro distinto daquele onde têm a sua sede. Assim, o Estado‑Membro de acolhimento deve garantir o livre acesso e o livre exercício de uma atividade de prestação de serviços no seu território. Apenas os requisitos nacionais que respeitem os princípios da não discriminação, necessidade e proporcionalidade podem ser justificados.
70. Por sua vez, o artigo 16.o, n.o 3, da Diretiva Serviços limita a quatro os fundamentos justificativos, nomeadamente, os que constam do artigo 52.o TFUE e a proteção do ambiente. Este número inclui igualmente uma exceção para «regras em matéria de condições de emprego», em aplicação da exceção de alcance mais geral estabelecida no artigo 1.o, n.o 6, da Diretiva Serviços.
71. Uma questão delicada consiste em saber se o artigo 16.o, n.o 2, da Diretiva Serviços inclui uma «lista negra» de requisitos nacionais — o que significa que estes requisitos nunca podem ser justificados — ou simplesmente listas de exemplos de requisitos particularmente suspeitos que, não obstante, podem ainda justificar‑se em circunstâncias excecionais, quando os requisitos estabelecidos no artigo 16.o, n.os 1 e 3 estão preenchidos (25). Em processos anteriores, dois advogados‑gerais tiveram posições distintas sobre este ponto (26) e na doutrina aparentemente também existem divisões (27).
72. É compreensível. Existem efetivamente argumentos a favor de ambas as leituras da disposição.
73. Por um lado, a estrutura do artigo 16.o da Diretiva Serviços sugere que os requisitos referidos no n.o 2 do mesmo não podem ser proibidos per se. Com efeito, pode parecer uma escolha estranha do legislador incluir uma lista negra num número específico (n.o 2) que se encontra entre dois números (n.os 1 e 3) que estabelecem as condições em que os requisitos nacionais podem justificar‑se. Seria expectável encontrar tal lista no início ou no fim do artigo 16.o ou, melhor ainda, numa disposição distinta e específica. Com efeito, é o que sucede no que respeita aos requisitos nacionais que afetam a liberdade de estabelecimento; constam de duas disposições distintas, concretamente, as que figuram na «lista negra» prevista no artigo 14.o, e as que estão sujeitas a um mecanismo de avaliação e a uma regra de justificação prevista no artigo 15.o O artigo 16.o, n.o 2, também não refere explicitamente que é aplicável «por derrogação» ao estabelecido no número anterior.
74. Por outro lado, contudo, a estrutura invulgar do artigo 16.o da Diretiva Serviços pode ser explicada pela sua (já referida) conturbada génese (28). Além disso, considero que existem argumentos mais persuasivos para apoiar a perspetiva de que os requisitos previstos no n.o 2 do mesmo artigo são per se proibidos. Em primeiro lugar, a redação do artigo 16.o, n.o 2, é bastante clara ao declarar que os «Estados‑Membros não podem restringir a liberdade de prestar serviços de um prestador estabelecido noutro Estado‑Membro através da imposição de algum dos seguintes requisitos […]» (29). Assim, o artigo 16.o, n.o 2, retoma a redação do artigo 14.o da mesma diretiva relativamente à qual o Tribunal de Justiça declarou que os requisitos «não podem ser justificados». (30)
75. Além disso, caso o legislador pretendesse apenas elencar exemplos de requisitos nacionais que, tais como os abrangidos pelas regras gerais estabelecidas nos n.os 1 e 3 do artigo 16.o, são, em princípio, proibidos mas podem ser justificados, teria provavelmente introduzido no proémio do artigo 16.o, n.o 2, da Diretiva Serviços expressões como «em particular» ou «inter alia», tal como fez noutras disposições da mesma diretiva (31). Por conseguinte, a natureza «fechada» da lista referida no artigo 16.o, n.o 2, sugere uma enumeração de requisitos injustificados que, assim, são diferentes dos requisitos sujeitos às regras (gerais) dos n.os 1 e 3.
76. Além disso, afigura‑se que os requisitos elencados no artigo 16.o, n.o 2, da Diretiva Serviços se baseiam na jurisprudência do Tribunal de Justiça na qual foram considerados particularmente prejudiciais para a liberdade de prestação de serviços (32). Com efeito, não é fácil prever situações em que um Estado‑Membro pode legitimamente alegar que tinha que aplicar este tipo de requisitos.
77. Por último, mais importante ainda, os requisitos que, nos termos do artigo 16.o, n.o 2, da Diretiva Serviços, não podem ser impostos incluem, na alínea g), «[r]estrições à liberdade de prestação de serviços referidas no artigo 19.o» da mesma diretiva. Esta disposição, conforme referido no n.o 64, supra, é relativa aos requisitos nacionais que restringem o direito de os destinatários receberem serviços de prestadores com sede no estrangeiro. Afigura‑se que o raciocínio seguido pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Rina Serviços para concluir que os requisitos elencados no artigo 14.o da Diretiva Serviços não podem, em caso algum, justificar‑se, deve aplicar‑se igualmente ao artigo 19.o da mesma diretiva. Com efeito, tal como a disposição anterior, esta disposição tem a epígrafe «Restrições proibidas» e nada na sua letra indica que os Estados‑Membros têm a possibilidade de justificar tais restrições (33).
78. É certo que o artigo 19.o da Diretiva Serviços apenas elenca duas categorias de requisitos e qualifica claramente esta lista como sendo não exaustiva. A natureza aberta desta disposição pode, assim, ser considerada indicativa de que as restrições referidas não são per se proibidas. Contudo, em minha opinião, esta consideração não é suficiente para pôr em causa o facto de o artigo 19.o ter por objeto proibir totalmente qualquer restrição imposta por um Estado‑Membro aos destinatários dos serviços. Importa ter em conta que é raro a legislação de um Estado‑Membro restringir a capacidade dos clientes nacionais receberem serviços de prestadores com sede no estrangeiro. Por conseguinte, o âmbito do artigo 19.o é bastante limitado.
79. Assim, se o artigo 19.o da Diretiva Serviços constitui uma lista negra, o artigo 16.o, n.o 2, da mesma diretiva, que expressamente lhe faz referência, também deve ser uma disposição da mesma natureza.
80. Atendendo ao exposto, considero que as medidas nacionais que restringem os direitos dos prestadores de serviços, em princípio, apenas podem ser justificadas pelos motivos e segundo os requisitos estabelecidos no artigo 16.o, n.os 1 e 3, da Diretiva Serviços, ou «salvas» pelas derrogações previstas nos artigos 17.o e 18.o da mesma diretiva (34). No entanto, as medidas nacionais que correspondem às medidas elencadas no artigo 16.o, n.o 2, da Diretiva Serviços só podem ser introduzidas ou mantidas se estiverem abrangidas pelos artigos 17.o e 18.o desta diretiva. Em contrapartida, nos termos do artigo 19.o da Diretiva Serviços, as medidas nacionais que restringem o direito dos destinatários de serviços não podem, em princípio, ser justificadas.
b) Conclusões
81. Atendendo ao exposto, considero que uma medida como a que está em causa é incompatível com os artigos 16.o e 19.o da Diretiva Serviços.
82. Com efeito, pelos motivos referidos nos n.os 36 e 37, supra, a medida em causa constitui igualmente uma restrição relativa ao destinatário de serviços e, por conseguinte, está abrangida pela proibição estabelecida no artigo 16.o, n.o 2, alínea g), e no artigo 19.o da Diretiva Serviços. No entanto, também salientei que, à luz dos requisitos referidos nestas disposições, em princípio não é admissível qualquer justificação.
83. Com base no que precede, concluo que se deve responder às questões prejudiciais que os artigos 16.o e 19.o da Diretiva Serviços impedem um Estado‑Membro de impor a um destinatário de serviços a suspensão de pagamentos e a prestação de uma garantia financeira de montante igual à remuneração em dívida por um serviço prestado, através de trabalhadores destacados por um prestador com sede noutro Estado‑Membro, quando a medida em causa visa assegurar o pagamento de uma eventual coima que, posteriormente, pode ser imposta ao prestador pelo Estado‑Membro de acolhimento, por violação da legislação laboral deste.
2. Artigo 56.o TFUE
84. Em minha opinião, a resposta às questões prejudiciais não é distinta mesmo que o Tribunal de Justiça considere que as disposições da Diretiva Serviços não são aplicáveis ao processo principal e, por conseguinte, aprecie a compatibilidade com o artigo 56.o TFUE de uma medida como a que está em causa.
a) Existência de uma restrição
85. Segundo jurisprudência constante, o artigo 56.o TFUE exige não só a eliminação de qualquer discriminação contra o prestador de serviços estabelecido noutro Estado‑Membro em razão da sua nacionalidade, mas também a supressão de qualquer restrição à livre prestação de serviços, ainda que esta restrição seja indistintamente aplicada a prestadores nacionais e de outros Estados‑Membros, quando seja suscetível de impedir, colocar entraves ou tornar menos atrativas as atividades do prestador estabelecido noutro Estado‑Membro, onde preste legalmente serviços análogos (35).
86. Conforme referido nos n.os 36 a 38, supra, a medida em causa é suscetível de restringir os direitos dos prestadores de serviços e dos destinatários de serviços resultantes do artigo 56.o TFUE.
87. Por conseguinte, importa ainda apreciar se a restrição pode ser justificada.
b) Justificação possível
88. A este respeito, há que recordar que, na medida em que a livre prestação de serviços constitui um princípio fundamental da União, só é admissível uma restrição a esta liberdade se prosseguir um objetivo legítimo, compatível com o Tratado, e se se justificar por razões imperiosas de interesse geral, na medida em que, nesse caso, seja adequada a garantir a realização do objetivo prosseguido e não ultrapasse o que é necessário para o alcançar (36).
89. A este respeito, saliento, em primeiro lugar, que o objetivo de permitir às autoridades nacionais verificarem e garantirem a conformidade com a legislação laboral nacional destinada a proteger os trabalhadores e evitar concorrência desleal e dumping social — que é a justificação invocada pelo Governo austríaco — constitui um motivo imperioso de interesse geral que pode justificar uma restrição à liberdade de prestação de serviços (37).
90. Quanto à adequação de uma medida como a que está em causa para alcançar tal objetivo, observo o seguinte. É verdade que, ao tornar mais difícil a possibilidade de os empresários escaparem ao pagamento das sanções que lhes podem ser aplicadas por violação de determinadas regras em matéria laboral, a medida em causa é suscetível de promover o respeito de tais regras.
91. No entanto, é possível questionar se a medida em causa prossegue efetiva e coerentemente o objetivo invocado pelo Governo austríaco. Com efeito, a medida em causa é imposta para assegurar o pagamento de sanções por violações que podem muito bem ser puramente formais e cujas consequências prejudiciais podem ser bastante limitadas, uma vez que não é aplicável (se o meu entendimento é correto) a violações da legislação laboral que têm consequências mais gravosas para os trabalhadores: por exemplo, o desrespeito dos direitos a baixa por doença ou a licença de maternidade, a férias remuneradas, a períodos mínimos de repouso ou a remunerações mínimas, ou o cumprimento das normas exigidas relativas à saúde, segurança e higiene no local de trabalho.
92. Não obstante, independentemente desse aspeto, considero que a medida em causa é, em todo o caso, desproporcionada, uma vez que excede o necessário para alcançar o objetivo definido. O meu entendimento assenta em vários motivos.
c) Proporcionalidade
93. Em primeiro lugar, há que ter conta que, segundo jurisprudência constante, no caso de algum Estado‑Membro invocar razões imperiosas de interesse geral para justificar uma regulamentação suscetível de entravar o exercício da livre prestação de serviços, essa justificação, prevista pelo direito da União, deve ser interpretada à luz dos princípios gerais de direito, nomeadamente, dos direitos fundamentais doravante garantidos pela Carta. Assim, a legislação nacional em causa só poderá beneficiar das exceções previstas se se conformar aos direitos fundamentais cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça (38).
94. No processo principal, entendo que duas disposições da Carta são especialmente relevantes: o artigo 47.o («Direito à ação e a um tribunal imparcial») e o artigo 48.o («Presunção de inocência e direitos de defesa»). A medida em causa afigura‑se problemática à luz de ambas.
95. Por um lado, nos termos do artigo 48.o da Carta, quando as autoridades nacionais atuam no domínio do direito da União Europeia, o destinatário de uma decisão negativa deve ter a possibilidade de apresentar observações antes de a decisão ser adotada, de modo a permitir à autoridade administrativa competente ter efetivamente em conta toda a informação relevante. Em particular, o destinatário deve poder corrigir qualquer erro cometido pela autoridade ou apresentar informações que possa invocar em prol da adoção, ou da não adoção, da decisão, ou em prol de um conteúdo específico desta decisão. Tal direito deve ser assegurado mesmo quando a legislação nacional aplicável não estabelece expressamente nenhum requisito processual específico para o efeito (39).
96. No caso em apreço, o destinatário formal da medida em causa era M. Vavti. Contudo, é inquestionável que a medida também afetava direta e imediatamente a posição jurídica da Čepelnik, restringindo severamente os direitos decorrentes do contrato com M. Vavti. Não obstante, a Čepelnik nunca foi ouvida antes da adoção da medida em causa.
97. Por outro lado, a medida em causa também se afigura contrária aos requisitos resultantes do artigo 47.o da Carta, nos termos do qual qualquer decisão adotada pelas autoridades administrativas deve poder ser impugnada perante um órgão jurisdicional que pode pronunciar‑se sobre as questões de facto e de direito invocadas por um requerente. Em particular, qualquer indivíduo deve ter o direito de intentar ações nos órgãos jurisdicionais nacionais a fim de contestar a legalidade de qualquer decisão ou outra medida nacional relativa ao facto de lhe serem aplicadas as regras da União Europeia (40).
98. A este respeito, observo que não é claro se uma empresa que se encontra na posição da Čepelnik tem o direito de intentar, num órgão jurisdicional austríaco, uma ação de anulação da medida em causa. A decisão de reenvio sugere que isso não é possível, posição também partilhada pela Čepelnik, ao passo que o Governo austríaco alega que é (41). Assim, a situação é, no mínimo, ambígua. Em todo o caso, não vejo de que modo é que o direito à tutela jurisdicional efetiva pode ser exercido de forma útil quando — como sucede no caso da Čepelnik — o prestador de serviços nem foi atempadamente informado pela Administração austríaca da adoção da medida em causa.
99. Obviamente, também não é satisfatório que a medida em causa possa ser contestada pelo destinatário dos serviços. Com efeito, uma vez que a prestação de uma garantia financeira extingue a sua dívida em relação ao prestador de serviços, um cliente pode muitas vezes não ter interesse em intentar uma ação, o que também lhe custaria dinheiro, tempo e energia.
100. Em segundo lugar, há que salientar que, de acordo com o órgão jurisdicional de reenvio, a medida em causa foi imposta apenas com base no facto de a Čepelnik não ter sede na Áustria e, por conseguinte, a Administração assumiu que a sanção que poderia no futuro impor a essa empresa seria impossível ou excessivamente difícil de aplicar.
101. Assim — pelo menos no caso em apreço — a posição predefinida das autoridades austríacas era de que o simples facto de uma empresa ter sede no estrangeiro justifica a adoção da medida em causa. No entanto, não vejo como é que a adoção de uma medida restritiva numa basegeral e a título preventivo contra (potencialmente) qualquer prestador de serviços sem sede na Áustria pode ser justificada. (42). A sua aplicação automática e incondicional não permite considerar adequadamente as circunstâncias individuais de cada prestador, apesar do facto óbvio de que nem todos os prestadores registados no estrangeiro se encontram numa situação semelhante. Em particular, não é possível presumir que todos podem tentar beneficiar das barreiras administrativas resultantes da execução transfronteiriça da sanção para a evitar (43). Existem certamente empresas estrangeiras que, devido à sua dimensão, reputação, situação financeira e, não menos importante, carteira de clientes na Áustria, preferirão pagar qualquer sanção que lhes seja aplicada em vez de tentar contornar a lei austríaca. Não pode competir ao prestador de serviços refutar a presunção estabelecida pelas autoridades nacionais, especialmente porque nem sequer é informado da adoção da medida em causa e, em qualquer caso, não é claro se e quando pode comparecer perante as autoridades administrativas e/ou o órgão jurisdicional nacional competente na matéria.
102. Também não se pode presumir que, caso surja a necessidade de aplicar a sanção transfronteiriça, as autoridades eslovenas não estão dispostas a prestar a assistência necessária aos seus colegas austríacos.
103. Isso é tanto mais assim se considerarmos que apenas três meses após a aplicação da medida em causa no processo principal o período de transposição da Diretiva 2014/67 expirou e as infrações administrativas, devido às quais foi aplicada uma coima à Čepelnik, se afiguram abrangidas pelo âmbito de aplicação material desta diretiva. Com efeito, nos termos do artigo 9.o, n.o 1, da Diretiva 2014/67, os requisitos administrativos e medidas de controlo necessários para garantir o controlo efetivo do cumprimento das obrigações estabelecidas na referida diretiva e na Diretiva 96/71 que os Estados‑Membros podem impor — desde que sejam justificados e proporcionados nos termos do direito da União — incluem a obrigação de o prestador de serviços declarar o início da prestação de serviços e conservar os recibos de retribuição numa das línguas oficiais do Estado‑Membro de acolhimento ou noutras línguas aceites pelo Estado‑Membro de acolhimento.
104. Por conseguinte, as autoridades austríacas deveriam ter podido recorrer aos procedimentos e mecanismos previstos na Diretiva 2014/67 para aplicarem uma sanção que ‑ importa salientar novamente ‑ no momento em que a garantia financeira foi prestada ainda não tinha sido aplicada. Em particular, os artigos 13.o a 19.o da Diretiva 2014/67 (capítulo VI, relativo à «execução transfronteiriça de sanções pecuniárias de caráter administrativo e/ou coimas») exigem que os Estados‑Membros prestem assistência mútua na execução das normas nacionais adotadas em aplicação da diretiva, o que implica a obrigação de reconhecimento mútuo das coimas e de assistência mútua na cobrança de sanções administrativas e/ou coimas. Estes artigos também estabelecem algumas disposições específicas para o efeito.
105. Além disso, importa salientar que a medida em causa foi mantida mesmo após a expiração do prazo de transposição da Diretiva 2014/67 e de a Áustria ter notificado à Comissão a transposição desta diretiva.
106. Em minha opinião, tal facto torna desnecessário determinar se os procedimentos estabelecidos na Decisão‑Quadro 2005/214/JAI do Conselho de 24 de fevereiro de 2005, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sanções pecuniárias (44) podem ser aplicáveis ao caso em apreço, como alegam algumas das partes que apresentaram observações no presente processo. Afigura‑se que o Tribunal de Justiça não dispõe de informações adequadas sobre esta matéria. Em particular, não é claro se a decisão através da qual a Administração austríaca aplica sanções financeiras por violações da AVRAG semelhantes àquelas de que a Čepelnik é acusada foi adotada por uma das autoridades referidas na alínea a) do artigo 1.o da Decisão‑Quadro 2005/214/JAI.
107. Em terceiro e último lugar, observo que as sanções cuja cobrança deve ser assegurada pela medida em causa são particularmente severas, em especial no que respeita a violações que se afiguram bastante formais (como a mera falta de folhas de vencimento na língua do Estado‑Membro de acolhimento(45)). Isso também é evidenciado pelo facto de — como refere o órgão jurisdicional de reenvio — a eventual sanção à Čepelnik poder ascender a 90 000 euros. Trata‑se de um montante muito significativo, atendendo à dimensão e ao volume de negócios da Čepelnik, bem como ao valor total das obras realizadas por esta empresa na Áustria.
108. A este respeito, há que ter em conta que, segundo jurisprudência constante, na ausência de regras comuns numa matéria específica, os Estados‑Membros permanecem competentes para aplicar sanções por violação das obrigações resultantes da legislação nacional. No entanto, os Estados‑Membros não podem prever uma sanção desproporcionada que crie um entrave às liberdades consagradas nos Tratados (46).
109. No caso em apreço, afigura‑se que a combinação de sanções severas com uma garantia financeira como a que está em causa prejudica substancialmente o gozo da liberdade de prestação de serviços garantida pelos Tratados. Em particular, consideradas em conjunto, estas medidas alteram, de forma significativa, o delicado equilíbrio entre interesses diferentes (e, às vezes, concorrentes) prosseguidos pela Diretiva 96/71: promover a prestação transnacional de serviços assegurando uma concorrência leal e garantindo o respeito pelos direitos dos trabalhadores tanto no Estado‑Membro de acolhimento como no Estado‑Membro de origem (47).
110. Atendendo ao exposto, considero que uma medida como uma que está em causa constitui uma restrição nos termos do artigo 56.o TFUE que não pode ser justificada, uma vez que excede o necessário para alcançar o objetivo prosseguido pela legislação nacional.
IV. Conclusão
111. Concluindo, proponho que o Tribunal de Justiça responda o seguinte às questões prejudiciais submetidas pelo Bezirksgericht Bleiburg/Okrajno sodišče Pliberk (Tribunal de Primeira Instância, Bleiburg, Áustria):
Os artigos 16.o e 19.o da Diretiva 2006/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2006, relativa aos serviços no mercado interno, impede um Estado‑Membro de impor a um destinatário de serviços a suspensão de pagamentos e a prestação de uma garantia financeira de montante igual à remuneração em dívida por um serviço prestado, através de trabalhadores destacados por um prestador com sede noutro Estado‑Membro, quando a medida em causa visa assegurar o pagamento de uma eventual coima que, posteriormente, pode ser imposta ao prestador pelo Estado‑Membro de acolhimento, por violação da legislação laboral deste.