Language of document : ECLI:EU:C:2014:346

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PAOLO MENGOZZI

apresentadas em 21 de maio de 2014 (1)

Processo C‑575/12

AS Air Baltic Corporation

contra

Valsts robežsardze

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Administratīvā apgabaltiesa (Letónia)]

«Espaço de liberdade, segurança e justiça — Controlo nas fronteiras, asilo e imigração — Regulamento (CE) n.° 562/2006 — Artigo 5.°, n.° 1 — Passagem da fronteira — Exigência de um visto válido aposto num documento de viagem válido — Regulamento (CE) n.° 810/2009 — Incidência da anulação do documento de viagem sobre a validade do visto aposto no mesmo»





1.        Quando um nacional de um país terceiro, sujeito à obrigação de visto, se apresenta na fronteira externa munido de um visto válido aposto num documento de viagem inválido e de um documento de viagem válido, mas sem visto, pode ser admitida a sua entrada no território da União Europeia? É isto que está em jogo no presente reenvio prejudicial.

I –    Quadro jurídico

A –    Direito da União

1.      Código das Fronteiras Schengen

2.        Nos termos do seu artigo 1.°, o Regulamento (CE) n.° 562/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março de 2006, que estabelece o código comunitário relativo ao regime de passagem de pessoas nas fronteiras (Código das Fronteiras Schengen) (2), tem como objeto estabelecer «as normas aplicáveis ao controlo de pessoas na passagem das fronteiras externas dos Estados‑Membros da União Europeia».

3.        O artigo 5.°, n.° 1, do Código das Fronteiras Schengen enumera as condições de entrada para os nacionais de países terceiros, do seguinte modo:

«Para uma estada que não exceda três meses num período de seis meses, são as seguintes as condições de entrada para os nacionais de países terceiros:

a)      Estar na posse de um documento ou documentos de viagem válidos que permitam a passagem da fronteira;

b)      Estar na posse de um visto válido, se tal for exigido [...];

[...]»

4.        O artigo 5.°, n.° 4, alínea b), do Código das Fronteiras Schengen prevê:

«[n]ão obstante o n.° 1:

[...]

b)      O nacional de país terceiro que preencha as condições estabelecidas no n.° 1, com exceção da estabelecida na alínea b), e que se apresente na fronteira pode ser autorizado a entrar no território dos Estados‑Membros se lhe for concedido um visto na fronteira [...].

[...]

Se não for possível apor um visto no documento, a vinheta é excecionalmente aposta num impresso separado inserido no documento. [...]».

5.        O artigo 7.°, n.° 3, do Código das Fronteiras Schengen tem a seguinte redação:

«À entrada e à saída, os nacionais de países terceiros são submetidos a um controlo pormenorizado.

a)      À entrada, o controlo pormenorizado compreende a verificação das condições de entrada fixadas no n.° 1 do artigo 5.°, e, se for caso disso, dos documentos que autorizam a residência e o exercício de uma atividade profissional. Esta verificação inclui uma análise pormenorizada, que compreende os seguintes aspetos:

i)      verificação de que o nacional de país terceiro está na posse de um documento não caducado e válido para a passagem da fronteira, e de que o documento está acompanhado, se for caso disso, do visto ou título de residência exigido,

ii)      análise detalhada do documento de viagem apresentado, para detetar indícios de falsificação ou de contrafação,

iii)      análise dos carimbos de entrada e de saída apostos no documento de viagem do nacional de país terceiro, a fim de verificar, por comparação das datas de entrada e de saída, que a pessoa não excedeu ainda o período máximo autorizado para a sua estada no território dos Estados‑Membros,

[...]»

6.        O artigo 10.°, n.° 1, alínea b), do Código das Fronteiras Schengen prevê que «[o]s documentos de viagem dos nacionais de países terceiros são objeto de aposição sistemática de carimbo de entrada e de saída. Um carimbo de entrada ou de saída é aposto nomeadamente [...] [n]os documentos que permitem a passagem da fronteira pelos nacionais de países terceiros para os quais um Estado‑Membro emitiu um visto na fronteira».

7.        O artigo 13.°, n.° 1, do Código das Fronteiras Schengen enuncia que «[a] entrada nos territórios dos Estados‑Membros é recusada a qualquer nacional de país terceiro que não preencha todas as condições de entrada, tal como definidas no n.° 1 do artigo 5.°».

2.      Código de Vistos

8.        Nos termos do seu artigo 1.°, n.° 1, o Regulamento (CE) n.° 810/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece o Código Comunitário de Vistos (Código de Vistos) (3), tem como objeto estabelecer «os procedimentos e condições para a emissão de vistos de trânsito ou de estada prevista no território dos Estados‑Membros não superior a três meses por cada período de seis meses».

9.        O artigo 12.° do Código de Vistos, consagrado ao documento de viagem, tem a seguinte redação:

«O requerente deve apresentar um documento de viagem válido que cumpra as seguintes condições:

a)      Ser válido pelo menos para os três meses seguintes à data prevista de partida do território dos Estados‑Membros ou, no caso de várias visitas, após a última data de partida prevista do território dos Estados‑Membros. [...]

b)      Conter pelo menos duas páginas em branco;

c)      Ter sido emitido há menos de dez anos.»

10.      O artigo 21.°, n.° 3, do Código de Vistos precisa que, «[a]o verificar se o requerente preenche as condições de entrada, o consulado verifica [...] [s]e o documento de viagem [...] não é falso, contrafeito ou falsificado».

11.      O artigo 34.° do Código de Vistos tem o seguinte teor:

«1.      O visto é anulado se for manifesto que, no momento em que foi emitido, não estavam preenchidas as condições para a sua emissão [...]. Em princípio, o visto é anulado pelas autoridades competentes do Estado‑Membro emitente. O visto pode ser anulado pelas autoridades competentes de outro Estado‑Membro, devendo, nesse caso, as autoridades competentes do Estado‑Membro emitente ser informadas da anulação.

2.      O visto é revogado se for manifesto que deixaram de estar preenchidas as condições que justificaram a sua emissão. Em princípio, o visto é revogado pelas autoridades competentes do Estado‑Membro emitente. O visto pode ser revogado pelas autoridades competentes de outro Estado‑Membro, devendo, nesse caso, as autoridades competentes do Estado‑Membro emitente ser informadas da revogação.

[...]

5.      Quando é anulado ou revogado, o visto deve ser carimbado com a menção ‘ANULADO’ ou ‘REVOGADO’ [...].

6.      A decisão de anulação ou revogação de um visto com os respetivos fundamentos é notificada ao requerente por meio do modelo de formulário constante do anexo VI.

7.      Os titulares cujo visto for anulado ou revogado têm direito de recurso [...]»

B –    Direito letão

12.      O artigo 4.°, n.° 1, pontos 1 e 2, da lei da imigração (Imigrācijas likums) tem o seguinte teor:

«(1.)      Para ter direito a entrar e permanecer no território da República da Letónia, o estrangeiro tem que possuir simultaneamente:

1)      um documento de viagem válido [...]

2)      um visto válido aposto num documento de viagem válido [...]» (4).

13.      O artigo 21.°, n.° 1, da lei da imigração obriga o transportador a assegurar‑se de que o estrangeiro que transporta está em posse dos documentos necessários para a entrada no território da República da Letónia. A violação desta obrigação é punida com a aplicação de uma coima.

II – Litígio no processo principal e questões prejudiciais

14.      Por ocasião de um voo realizado em 8 de outubro de 2010, entre Moscovo (Rússia) e Riga (Letónia), a companhia aérea AS Air Baltic Corporation (a seguir «Air Baltic Corporation») transportou um nacional da Índia que, no controlo fronteiriço efetuado à chegada, exibiu um passaporte indiano válido sem visto Schengen, bem como um passaporte indiano anulado com um visto Schengen de entradas múltiplas da categoria «C», emitido pela República Italiana e válido de 25 de maio de 2009 a 25 de maio de 2014. O passaporte anulado continha a seguinte inscrição: «Passaporte anulado. Os vistos válidos do passaporte não foram anulados».

15.      As autoridades letãs responsáveis por controlar o preenchimento por parte dos nacionais de países terceiros das condições de entrada no território da União recusaram a entrada ao nacional indiano, por este não dispor de um visto válido aposto num documento de viagem válido.

16.      Além disso, os guardas de fronteira da Letónia consideraram que a companhia aérea tinha infringido a legislação nacional em matéria de imigração, ao transportar para a Letónia um viajante sem os documentos de viagem necessários para a sua entrada em território da Letónia. Em consequência, mediante decisão de 14 de outubro de 2010, aplicaram à referida companhia uma coima de um montante de 2000 lats letões (LVL).

17.      A Air Baltic Corporation apresentou uma reclamação administrativa ao diretor do serviço dos guardas de fronteira nacionais, que, por decisão de 9 de dezembro de 2010, confirmou a coima. A Air Baltic Corporation intentou, então, uma primeira ação judicial, que foi julgada improcedente, por decisão de 12 de agosto de 2011.

18.      Em seguida, a Air Baltic Corporation interpôs recurso perante o Administratīvā apgabaltiesa (Letónia) e pretende obter a anulação da decisão que aplicou a coima em causa.

19.      Ora, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, embora a lei da Letónia exija, de facto, a apresentação, na fronteira, de um visto válido aposto num documento de viagem válido, não resulta claramente do direito da União que o mesmo exija que os nacionais de países terceiros sujeitos à obrigação de visto (5), aquando da passagem das fronteiras externas da União, possuam um visto válido aposto num documento de viagem também válido, nem que a anulação do documento de viagem que contém o visto tenha qualquer incidência sobre a validade deste. Por conseguinte, o mesmo interroga‑se sobre a questão de saber se o nacional da Índia podia, efetivamente, ser considerado, pelos guardas de fronteira, como não possuindo os documentos de viagem necessários para a passagem das fronteiras. Por último, o mesmo salienta que, como destacaram as partes no processo perante si, a prática difere nos casos decididos pelas administrações dos Estados‑Membros em que os nacionais de países terceiros se apresentam nas fronteiras externas na posse, tanto de um visto válido aposto num documento de viagem inválido, como de um documento de viagem válido diferente mas desprovido de visto.

20.      Assim, confrontado com uma dificuldade relacionada com a interpretação do direito da União, o administratīvā apgabaltiesa decidiu suspender a instância e, por decisão de reenvio que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 7 de dezembro de 2012, submeter a este último, com fundamento no artigo 267.° TFUE, as três questões prejudiciais seguintes:

«1)       Deve o artigo 5.° do [Código das Fronteiras Schengen], ser interpretado no sentido de que a existência de um visto válido aposto num documento de viagem válido constitui um requisito prévio obrigatório para a entrada dos nacionais de países terceiros?

2)       Nos termos das normas do [Código de Vistos], a anulação do documento de viagem no qual foi aposta a vinheta de visto implica que também seja inválido o visto emitido à pessoa [em causa]?

3)       As normas nacionais que impõem a existência de um visto válido aposto num documento de viagem válido como requisito prévio obrigatório para a entrada dos nacionais de país[es] terceiros são compatíveis com o disposto no [Código das Fronteiras Schengen] e no [Código de Vistos]?»

III – Tramitação processual no Tribunal de Justiça

21.      Apresentaram observações escritas perante o Tribunal de Justiça a Air Baltic Corporation, os Governos letão, italiano e finlandês, a Confederação Suíça (6) e a Comissão Europeia.

22.      Na audiência, realizada em 19 de março de 2014, a Air Baltic Corporation, os Governos letão e finlandês e a Comissão apresentaram observações orais.

IV – Análise jurídica

23.      Caso a invalidade do documento de viagem no qual o visto foi aposto afetasse a validade do próprio visto, não se colocaria a questão de saber se pode ser autorizada a entrada no território da União a um nacional de um país terceiro que esteja na posse de um documento de viagem inválido que contém o visto e de um documento de viagem válido.

24.      Portanto, há que reorganizar um pouco as questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, de forma a começar pela análise da segunda questão. Em seguida, examinarei a questão de saber se o Código das Fronteiras Schengen impõe que o visto válido esteja aposto num documento de viagem válido aquando da passagem da fronteira externa da União. Por último, em caso de resposta negativa, será necessário averiguar se, no contexto do Código das Fronteiras Schengen e do Código de Vistos, os Estados‑Membros estão habilitados a impor uma condição de entrada adicional relativamente às previstas nos referidos códigos.

A –    Quanto à eventual incidência da perda de validade do documento de viagem no qual foi aposto o visto, sobre a validade do próprio visto

25.      Antes de mais, saliento que o artigo 34.° do Código de Vistos regula as condições em que o visto é anulado ou revogado. Assim, o visto é anulado quando for manifesto que, no momento em que foi emitido, não estavam preenchidas as condições para a sua emissão (7) ou revogado quando for manifesto que deixaram de estar preenchidas as condições que justificaram a sua emissão (8).

26.      Em ambos os casos, o Código de Vistos precisa que a decisão sobre a anulação ou a revogação do visto compete, quer às autoridades competentes que o emitiram, quer às autoridades competentes de outro Estado‑Membro (9). Por conseguinte, a competência para decidir sobre a validade do visto pertence exclusivamente às autoridades dos Estados‑Membros.

27.      A revogação ou a anulação são assinaladas através da aposição de uma menção sobre o próprio visto (10). O titular do visto deve ser notificado da decisão de anulação ou de revogação do visto, bem como da sua fundamentação, através de um formulário harmonizado (11).

28.      Resulta deste formulário que a perda de validade do documento de viagem apresentado no momento do pedido de visto não faz parte dos fundamentos suscetíveis de justificar a anulação ou a revogação do visto. De acordo com o que resulta do formulário, o único fundamento que diz diretamente respeito ao documento de viagem é relativo ao caráter «falso, contrafeito ou falsificado» do documento de viagem apresentado.

29.      Dado que é pacífico que o nacional da Índia em causa no âmbito do litígio no processo principal, no momento em que o pedido para a obtenção do visto foi formulado, preenchia as condições para a emissão do mesmo, a questão que se coloca é a de saber se a perda de validade do passaporte no qual o visto foi aposto teria podido conduzir à revogação do referido visto.

30.      Ora, é certo que, no momento da apresentação do pedido de visto, a pessoa em causa é obrigada a apresentar um documento de viagem válido. Por conseguinte, resulta do artigo 34.° em conjugação com o anexo VI do Código de Vistos que a perda de validade deste documento, depois de o visto ter sido emitido, não tem como consequência que se ponha em causa o preenchimento das condições de emissão do visto, pelo menos se a referida pessoa estiver em condições de apresentar um novo documento de viagem válido.

31.      Há igualmente que sublinhar que o Código de Vistos garante um direito de recurso às pessoas cujo visto tenha sido revogado. Este recurso é dirigido contra o Estado‑Membro que decidiu a revogação, devendo as referidas pessoas ser informadas sobre o procedimento a seguir em caso de recurso. Por último, a revogação deve ser assinalada e inserida no Sistema de Informação sobre Vistos (VIS) (12). Este direito à informação e ao recurso não poderia ser assegurado na hipótese de se fazer depender a validade do visto Schengen de uma decisão das autoridades de um país terceiro.

32.      O regime jurídico da anulação e da revogação, conforme estabelecido no Código de Vistos, revela‑se, assim, assente no postulado segundo o qual são as autoridades dos Estados‑Membros que decidem sobre a anulação ou a revogação. Neste sentido, é respeitado um certo paralelismo quanto às formas, uma vez que são, igualmente, estas autoridades que emitem os vistos (13).

33.      Com efeito, o visto emitido produz os seus efeitos relativamente a todos os Estados‑Membros. Importa que a competência para a emissão ou para recusa dessa emissão não seja contornada por efeito de decisões tomadas pelas autoridades de países terceiros. Dito de outra forma, o princípio do reconhecimento mútuo deve primar até que, se for esse o caso, os guardas de fronteira da União detetem uma evolução significativa na situação do nacional de um país terceiro em causa, evolução essa suscetível de justificar que a apreciação feita pela autoridade emitente do visto seja posta em causa.

34.      Não posso, pois, partilhar da posição expressa na audiência pelo Governo letão, segundo a qual, uma vez que o passaporte no qual foi aposto o visto se torna inválido, o passaporte, na sua totalidade — ou seja, incluindo o visto Schengen que o mesmo contém —, não tem mais valor do que uma simples folha de papel.

35.      Por todas as razões precedentes, cabe concluir que uma decisão que declare a invalidade do visto Schengen só pode ser adotada nas condições descritas no artigo 34.° do Código de Vistos e que, em todo o caso, a mesma é da exclusiva competência das autoridades dos Estados‑Membros. Por conseguinte, a perda de validade do documento de viagem no qual foi aposto o visto Schengen não pode, por si só, afetar a validade do próprio visto, como, aliás, foi reconhecido pelas autoridades emitentes do passaporte em causa quando apuseram a menção segundo a qual, embora o passaporte tenha sido anulado, tal não era o caso dos vistos válidos que o mesmo continha.

B –    Quanto à alegada existência de uma obrigação de apresentação de um visto válido aposto num documento de viagem válido

36.      Se é certo que a entrada do nacional da Índia no território da União não podia ser recusada unicamente com fundamento no facto de o passaporte que continha o visto Schengen ter sido anulado, uma vez que a invalidade do passaporte, por si só, não tem incidência sobre a validade do visto, falta ainda determinar se o Código das Fronteiras Schengen impõe, como condição de entrada, a posse de um visto válido aposto num documento de viagem válido.

37.      Para isso, começarei por demonstrar a insuficiência da interpretação literal, devido às divergências linguísticas, e a necessidade de recorrer à análise sistemática. Em seguida, verificarei que a interpretação teleológica corrobora as conclusões extraídas daquela análise, antes de formular algumas observações conclusivas.

1.      Insuficiência da interpretação literal e divergências linguísticas

38.      O artigo 5.°, n.° 1, do Código das Fronteiras Schengen enumera as condições que os nacionais de países terceiros devem preencher para que seja autorizada a sua entrada no território da União. Enumera cinco condições cumulativas. A alínea a) exige que o nacional de um país terceiro esteja «na posse de um documento ou documentos de viagem válidos que permitam a passagem da fronteira» e a alínea b), por sua vez, indica que o referido nacional deve estar «na posse de um visto válido», quando tal for exigido.

39.      Uma interpretação literal estrita deste artigo 5.°, n.° 1, revela desde logo que, por um lado, a condição de possuir um documento de viagem válido foi distinguida da relativa à posse de um visto e que, por outro, não foi feita pelo legislador qualquer especificação quanto às condições de apresentação «física» destes dois documentos.

40.      No entanto, à luz do que foi salientado pelo Governo finlandês, entendo que o artigo 5.°, n.° 1, do Código das Fronteiras Schengen, embora não preveja expressamente qualquer obrigação de apresentação de um visto válido aposto num documento de viagem válido aquando da passagem das fronteiras externas da União, e tendo em conta o sistema no qual se inscreve, não pode ser considerado de forma isolada. O artigo 5.°, n.° 1, do Código das Fronteiras Schengen deve, pois, ser lido, não apenas em conjunto com as outras disposições do Código das Fronteiras Schengen, mas também em conjugação com as disposições pertinentes do Código de Vistos, com o qual o Código das Fronteiras Schengen tem uma estreita relação (14).

41.      Propõe‑se, portanto, que, de forma perfeitamente clássica, a análise literal seja completada por uma análise sistemática e teleológica. Isto é tanto mais necessário quanto é certo que as partes interessadas que intervieram no presente processo, para discutir a questão de saber se, sim ou não, na aceção do artigo 5.°, n.° 1, do Código das Fronteiras Schengen, assim como na aceção do Código de Vistos, o visto válido deve estar aposto num documento de viagem válido, fizeram referência ao artigo 7.°, n.° 3, alínea a), i), do Código das Fronteiras Schengen. Para o Governo finlandês, na medida em que o artigo 7.°, n.° 3, alínea a), i), do Código das Fronteiras Schengen prevê expressamente que o documento de viagem está «acompanhado» do visto válido, isto significaria que só um documento de viagem válido que contenha o visto pode ser apresentado nas fronteiras.

42.      A este respeito, a recorrente no processo principal observa que, enquanto a versão letã do artigo 7.°, n.° 3, alínea a), i), do Código das Fronteiras Schengen enuncia expressamente que o documento de viagem válido tem de ter o visto, esse não seria o caso das outras versões linguísticas. As versões dinamarquesa, inglesa, francesa e sueca limitar‑se‑iam a exigir que o documento de viagem esteja «acompanhado» do visto, o que não implica necessariamente uma aposição física do visto no documento de viagem válido.

43.      Ainda que a questão submetida vise a interpretação do artigo 5.° do Código das Fronteiras Schengen, a propósito do qual não foi invocada nenhuma divergência nas versões linguísticas, há que reconhecer que o artigo 7.° do mesmo código constitui uma disposição fundamental para a gestão comum das fronteiras externas da União e que o mesmo pode ser útil para clarificar a interpretação a dar ao referido artigo 5.°

44.      A este respeito, deve recordar‑se que a necessidade de uma aplicação e de uma interpretação uniformes de um ato da União impede que esse ato seja considerado isoladamente numa das suas versões, antes exigindo que seja interpretado em função quer da vontade efetiva do seu autor quer do fim por ele prosseguido, à luz, nomeadamente, das versões em todas as línguas (15). A formulação utilizada numa das versões linguísticas de uma disposição não pode servir de base única para a interpretação dessa disposição, nem poderá ser‑lhe atribuído caráter prioritário em relação a outras versões linguísticas, uma vez que tal abordagem se revelaria incompatível com a exigência de aplicação uniforme do direito da União (16).

45.      Tanto a necessidade de confirmar a primeira conclusão extraída da interpretação literal do artigo 5.°, n.° 1, do Código das Fronteiras Schengen, como a de ultrapassar a dificuldade de interpretação relacionada com as diferentes versões linguísticas do artigo 7.°, n.° 3, alínea a), i), do referido código, exigem que o raciocínio seja completado por uma análise sistemática e teleológica.

2.      Análise sistemática

46.      Dado que a emissão de vistos está a montante dos controlos efetuados nas fronteiras externas da União, começarei pela análise do Código de Vistos.

47.      Assim, e no essencial, o nacional de um país terceiro deve apresentar o seu pedido de visto ao consulado competente, nos três meses anteriores ao início da visita (17). Em especial, deve apresentar um formulário de pedido harmonizado (18) e um documento de viagem (19), que deve ser válido pelo menos para os três meses seguintes à última data de partida prevista do território dos Estados‑Membros (20), conter pelo menos duas páginas em branco e ter sido emitido há menos de dez anos (21). Além disso, nas casas 12 a 16 do formulário de pedido harmonizado devem ser indicados o tipo de documento de viagem apresentado pelo requerente, o seu número, as suas datas de emissão e de caducidade, bem como a autoridade que o emitiu.

48.      Tendo o pedido de visto sido completado e apresentado à autoridade competente, esta deve verificar «se o requerente preenche as condições de entrada constantes das alíneas a), c), d) e e) do n.° 1 do artigo 5.° do Código de Fronteiras Schengen» (22) e, em especial, se «o documento de viagem apresentado não é falso, contrafeito ou falsificado» (23). Os vistos de entradas múltiplas, como o que foi emitido no litígio no processo principal, são emitidos com um prazo de validade compreendido entre seis meses e cinco anos (24).

49.      Em seguida, é preenchida a vinheta de visto, de acordo com as condições estabelecidas no artigo 27.° e no anexo VII do Código de Vistos. A mesma contém as informações relativas à duração da estada do titular autorizada no visto, ao número do documento de viagem em que é aposta a vinheta do visto, exceto se o visto tiver sido aposto em impresso separado (25). Em seguida, a mesma é aposta de acordo com as regras estabelecidas no artigo 29.° e no anexo VIII do Código de Vistos. Em princípio, esta aposição deve ser feita «na primeira página do documento de viagem que não contenha inscrições nem carimbos» (26), exceto se o visto tiver sido aposto em impresso separado (27).

50.      O momento em que o visto é emitido não coincide com o momento da passagem da fronteira externa da União (28), e isto tanto mais que, como vimos, os vistos de entradas múltiplas podem ser válidos por um período de entre seis meses e cinco anos. Ora, o Código de Vistos limita‑se a exigir que o documento de viagem apresentado no momento do pedido de visto seja válido pelo menos para os três meses seguintes à última data de partida prevista do território da União (29). Em todo o caso, reitero que esta precisão só é válida relativamente às condições que devem estar reunidas aquando do pedido de visto, não tendo as autoridades consulares, seja como for, qualquer influência sobre o que pode acontecer ao documento de viagem entre o momento em que o pedido de visto é apresentado e o momento efetivo da passagem das fronteiras externas da União.

51.      Assim, uma vez emitido o visto, depois de as autoridades consulares terem verificado, em especial, a validade do documento de viagem apresentado, os controlos nas fronteiras constituem uma outra etapa (30).

52.      Faço notar, antes de mais, que o Código das Fronteiras Schengen tem como objeto estabelecer «as normas aplicáveis ao controlo de pessoas na passagem das fronteiras externas dos Estados‑Membros» (31). É fundamental que estas normas sejam aplicadas de maneira uniforme, e, a este respeito, partilho das preocupações expressas pela recorrente no processo principal, quando fez referência a práticas nacionais divergentes.

53.      Como já foi recordado, as condições de entrada estabelecidas no artigo 5.° do Código das Fronteiras Schengen fazem referência, em especial, a uma obrigação de estar na posse de um documento ou documentos de viagem válidos que permitam a passagem da fronteira e a uma obrigação de estar na posse de um visto válido, quando tal for exigido. Há que observar que, nessa lista das condições de entrada, não figura nenhuma relativa à obrigação de apresentar o documento de viagem válido que contém o visto válido.

54.      No momento da sua passagem na fronteira, o nacional de um país terceiro é submetido a um controlo pormenorizado, que consiste na verificação das condições de entrada fixadas no n.° 1 do artigo 5.° do Código das Fronteiras Schengen e numa análise pormenorizada do facto de o nacional de um país terceiro em causa estar na posse de um documento de viagem «não caducado e válido para a passagem da fronteira» e de esse documento estar «acompanhado» do visto exigido (32). Os carimbos de entrada e de saída «apostos no documento de viagem» são também analisados, a fim de verificar, por comparação das datas, se o referido nacional de um país terceiro ainda não excedeu o período máximo autorizado para a sua estada na União.

55.      Na fase do controlo pormenorizado previsto no artigo 7.°, n.° 3, do Código das Fronteiras Schengen, cabe distinguir duas etapas, a saber, num primeiro momento, a verificação da simples posse — se o nacional de um país terceiro dispõe, realmente, de um documento de viagem válido e se o nacional de um país terceiro dispõe, realmente, de visto — antes de, num segundo momento, a análise propriamente dita, ou seja, uma verificação mais aprofundada — deteção de indícios de falsificação ou de contrafação, comparação das datas de entrada e de saída, verificação de que o nacional de país terceiro dispõe de meios suficientes para o regresso, etc. (33).

56.      A falta de conexão entre a exigência de apresentação de documento de viagem válido e a de apresentação de um visto válido, que se presumia da leitura do artigo 5.°, n.° 1, do Código das Fronteiras Schengen, encontra, assim, confirmação.

57.      Uma vez realizados estes controlos, a entrada pode ser autorizada. Neste caso, os documentos de viagem apresentados pelos nacionais de países terceiros são objeto de aposição sistemática, pelas autoridades, de carimbo de entrada e de saída (34), documentos estes «com visto válido que permitem a passagem da fronteira por nacionais de países terceiros» (35). A condição da validade é expressa apenas no que diz respeito ao visto, e não ao documento de viagem.

58.      Ou, no caso contrário, quando o nacional de um país terceiro não preenche todas as condições previstas no artigo 5.°, n.° 1, do Código das Fronteiras Schengen, a entrada é recusada por decisão fundamentada e notificada através do formulário harmonizado (36). Entre os motivos de recusa que figuram nesse formulário, estão, por um lado, a falta de documento(s) de viagem válido(s) (37) e, por outro, a falta de visto válido (38).

59.      Resulta da análise precedente que o legislador não estabeleceu expressamente a obrigação de o visto válido figurar num documento de viagem válido. Não só estas duas condições de entrada são consideradas de forma distinta no artigo 5.°, n.° 1, do Código das Fronteiras Schengen, como esta distinção resulta também da economia de outras disposições (39).

60.      Assim, tanto do ponto de vista literal como sistemático, nada obsta a uma interpretação deste artigo 5.° no sentido de que, para que a sua entrada no território da União seja autorizada, não é exigido que um nacional de um país terceiro sujeito à obrigação de visto esteja na posse de um visto válido aposto num documento de viagem válido.

61.      No entanto, falta verificar se tal interpretação não põe em risco os objetivos prosseguidos pelo Código de Vistos e pelo Código das Fronteiras Schengen.

3.      Interpretação teleológica

62.      O Código das Fronteiras Schengen instituiu um sistema de vigilância de fronteiras que visa impedir a passagem não autorizada das referidas fronteiras, lutar contra a criminalidade transfronteiriça, tomar medidas contra pessoas que tenham atravessado ilegalmente a fronteira e deter essas pessoas (40). Além disso, o considerando 6 do Código das Fronteiras Schengen prevê que o controlo fronteiriço «não é efetuado exclusivamente no interesse do Estado‑Membro em cujas fronteiras externas se exerce, mas no interesse de todos os Estados‑Membros que suprimiram o controlo nas suas fronteiras internas» e que deve contribuir «para a luta contra a imigração clandestina e o tráfico de seres humanos, bem como para a prevenção de qualquer ameaça para a segurança interna, a ordem pública, a saúde pública e as relações internacionais dos Estados‑Membros» (41).

63.      Segundo o Tribunal de Justiça, o Código das Fronteiras Schengen «insere‑se no âmbito mais geral de um espaço de liberdade, segurança e justiça sem fronteiras internas, em que seja assegurada a livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas adequadas em matéria de controlos nas fronteiras externas, de asilo e imigração, bem como de prevenção da criminalidade e combate a este fenómeno [...]. O dispositivo instituído pelo acordo de Schengen baseia‑se, consequentemente, no respeito pelas normas harmonizadas de controlo das fronteiras externas e, neste caso, no estrito respeito pelas condições de entrada dos nacionais de países terceiros no território dos Estados que são parte no referido acordo, estabelecidas pelo [Código das Fronteiras Schengen]. Cada Estado‑Membro cujo território faz parte do espaço Schengen deve, efetivamente, assegurar‑se da eficácia e do rigor dos controlos efetuados por qualquer outro Estado neste espaço» (42). Ainda segundo o Tribunal de Justiça, «os controlos de fronteira têm por objetivo, por um lado, assegurar que as pessoas podem ser autorizadas a entrar no território do Estado‑Membro ou a abandoná‑lo e, por outro, impedir as pessoas de se subtraírem a essas inspeções» (43).

64.      Por seu lado, a adoção do Código de Vistos inscreve‑se igualmente no objetivo global de instaurar progressivamente um espaço de liberdade, de segurança e de justiça e o próprio Código de Vistos prossegue o duplo objetivo de criar um sistema multifacetado destinado a facilitar as deslocações legítimas e a combater a imigração ilegal através de uma maior harmonização das legislações nacionais e das práticas de emissão de vistos (44). Ao interpretar o Código de Vistos, o Tribunal de Justiça vela, assim, por que nem o objetivo da facilitação das deslocações nem o objetivo de evitar um tratamento desigual dos requerentes sejam comprometidos (45).

65.      O Governo finlandês alega que a realização dos objetivos de segurança, de fluidez da passagem nas fronteiras, de prevenção de ameaças à ordem, à segurança ou à saúde públicas, de luta contra a criminalidade transfronteiriça, contra a imigração clandestina e o tráfico de seres humanos é facilitada quando o visto válido está aposto num documento de viagem igualmente válido.

66.      Esta apreciação não deve ser sobrestimada e, de qualquer forma, não tem valor determinante.

67.      Quando acima descrevi o sistema instituído pela conjugação do Código das Fronteiras Schengen com o Código de Vistos, destaquei um certo número de elementos que, ao garantirem a eficácia do controlo fronteiriço, não permitem sustentar a tese do Governo finlandês. No quadro do litígio no processo principal, foram apresentados às autoridades responsáveis pelo controlo nas fronteiras externas tanto o documento de viagem com base no qual o visto foi emitido, como o «novo» documento de viagem. Deste modo, puderam assegurar‑se da «correspondência» entre o documento apresentado no momento do pedido de visto — e efetivamente analisado pelas autoridades consulares competentes — e o documento no qual o visto válido foi aposto, apresentado aquando da passagem nas fronteiras externas da União. Além disso, a apresentação do documento de viagem válido permitia‑lhes confirmar a identidade do nacional de um país terceiro em causa e verificar que a primeira das condições de entrada estava preenchida. Por último, a apresentação simultânea dos dois documentos de viagem que se sucediam no tempo permitiu um controlo suficiente dos carimbos de entrada e de saída, com base nos quais as autoridades verificam que não foi excedido o período máximo de estada autorizado.

68.      Embora reconhecendo a importância fundamental que um controlo efetivo e eficaz nas fronteiras externas da União tem para os Estados‑Membros em causa e admitindo que a apresentação de dois documentos de viagem diferentes, um válido e o outro inválido, complica — talvez — um pouco a tarefa das autoridades responsáveis pelo controlo fronteiriço (46), não foi demonstrado, contudo, que o caso em apreço tivesse posto ou pusesse especialmente em risco o objetivo de segurança prosseguido pelo Código das Fronteiras Schengen.

69.      A este respeito, assinalo uma diferença significativa entre o caso que ora nos ocupa e as dificuldades práticas recorrentes, invocadas pelo Governo finlandês, aquando do controlo fronteiriço, relacionadas com o facto de alguns nacionais de países terceiros se apresentarem nas fronteiras munidos de muito mais do que dois documentos de viagem, válidos e inválidos.

4.      Observações conclusivas

70.      Por último, autorizar a entrada de um nacional de um país terceiro que apresenta, aquando do controlo nas fronteiras externas da União, um documento de viagem não válido que contém o visto necessário para a sua entrada no território da União, bem como um documento de viagem válido, afigura‑se conforme com as normas internacionais. A Air Baltic Corporation e Governo letão salientaram, eles próprios, sem que fosse contestado, que o ponto 3.53 do anexo 9 da Convenção sobre Aviação Civil Internacional, assinada em Chicago em 7 de dezembro de 1944, recomenda que, na hipótese de o documento de viagem que contém o visto ter caducado, o visto continue a ser considerado válido até à sua data de caducidade, desde que seja acompanhado de um documento de viagem válido.

71.      Contudo, o Governo letão duvida que isto possa ser transposto para o contexto do Código das Fronteiras Schengen, dado que a referida convenção recomenda esta prática num contexto no qual o visto apenas permite a entrada do nacional de um país terceiro no território do Estado que o emitiu. No entanto, há que observar que a União, embora não seja parte na referida convenção, de alguma forma, já adotou parcialmente esta norma internacional, uma vez que uma alteração ao Manual relativo ao tratamento dos pedidos de visto e à alteração dos vistos emitidos (47), introduzida pela a Decisão de execução da Comissão C(2011) 5501 final, de 4 de agosto de 2011, procedeu ao aditamento de um número novo no ponto 4.1.1, nos termos do qual «[e]m princípio, um viajante deve estar na posse de um visto válido aposto num documento de viagem válido. No entanto, quando todas as páginas em branco do documento de viagem do titular do visto Schengen foram utilizadas para a aposição de vistos ou de carimbos de entrada e de saída, este pode viajar munido do documento de viagem ‘completo’, mas invalidado, que contém o visto válido, e de um documento de viagem novo» (48).

72.      Ao fazê‑lo, a Comissão considerou, pois, que a apresentação de dois documentos de viagem diferentes, um invalidado, mas contendo o visto válido, e outro válido, mas sem visto, não comprometeria a eficácia dos controlos nas fronteiras externas da União. Por seu lado, na audiência, o Governo letão precisou que tinha implementado esta recomendação aquando de uma reforma legislativa nacional.

73.      É certo que o ponto 4.1.1 do Manual relativo ao tratamento dos pedidos de visto e à alteração dos vistos emitidos apenas visa o caso preciso de o documento que contém o visto se encontrar invalidado por não dispor de páginas em branco e que, além disso, o mesmo só tem valor de recomendação. Todavia, importa garantir a realização de todos os objetivos do Código de Vistos, incluindo o de evitar o «visa shopping» e o tratamento desigual dos requerentes de visto (49).

74.      A este respeito, a divergência nas práticas nacionais, sublinhada pelo órgão jurisdicional de reenvio, pela recorrente no processo principal, bem como pelo Governo letão, revela‑se preocupante, uma vez que tem por consequência tornar as fronteiras externas da União mais ou menos permeáveis. Existe, pois, um risco real, salientado pela Air Baltic Corporation, de o espaço de manobra de que dispõem as autoridades nacionais para autorizar ou recusar a entrada no território da União, na hipótese de serem apresentados dois documentos de viagem, um inválido contendo o visto e outro válido, mas sem visto, se torne num critério de seleção do Estado‑Membro através do qual o nacional de um país terceiro procura entrar no território da União. Revela‑se, pois, necessário harmonizar as práticas dos guardas de fronteira para além do caso particular de o documento de viagem não dispor de páginas em branco.

75.      Além disso, as razões que levam a autoridade do país terceiro que emitiu o documento de viagem a invalidá‑lo, escapam, na maior parte dos casos, às autoridades dos Estados‑Membros responsáveis pelo controlo nas fronteiras externas. No quadro do litígio no processo principal, estas razões permanecem desconhecidas. Contudo, em meu entender, na medida em que a invalidade seja «corrigida» pela apresentação de um documento de viagem cuja validade abranja o período máximo autorizado para a estada na União, e depois de se ter procedido às verificações necessárias da autenticidade do novo documento apresentado, não há qualquer razão para que a entrada de um nacional de um país terceiro que apresente um documento de viagem inválido e um documento de viagem válido seja limitada apenas à hipótese de a invalidade decorrer da falta de páginas em branco disponíveis.

76.      De qualquer modo, se, neste último caso, a Comissão e os Estados‑Membros que seguiram a sua recomendação não consideraram que o controlo do período de estada se tornava mais difícil devido à apresentação de documentos de viagem diferentes, custa‑me entender por que motivo deveria ser esse o caso na presente situação. Com efeito, e como já sublinhei, a continuidade cronológica assegurada entre os dois documentos de viagem apresentados pelo nacional da Índia permitia que os guardas de fronteira se assegurassem de que o número de dias de presença no território da União autorizados não tinha sido excedido. Por último, preciso que esta possibilidade não prejudica a aplicação do artigo 11.° do Código das Fronteiras Schengen, que prevê que «[s]e o documento de viagem de um nacional de um país terceiro não ostentar o carimbo de entrada, as autoridades nacionais competentes podem presumir que o titular não preenche ou deixou de preencher as condições de duração da estada aplicáveis no Estado‑Membro em questão», presunção esta que é ilidível.

77.      Por todas as considerações precedentes, considero que o artigo 5.°, n.° 1, do Código das Fronteiras Schengen deve ser interpretado no sentido de que o visto válido, exigido aos nacionais de um país terceiro sujeitos a tal obrigação aquando da passagem das fronteiras externas da União, não deve necessariamente estar aposto num documento de viagem válido e de que as condições de entrada previstas no artigo 5.°, n.° 1, alíneas a) e b), do referido código podem ser consideradas de forma separada, desde que, no momento da passagem das fronteiras externas, o nacional de um país terceiro em causa apresente um documento de viagem autêntico cuja validade abranja o período máximo de estada autorizado pelo visto Schengen, ele próprio aposto num documento de viagem que se tornou inválido.

C –    Quanto à terceira questão prejudicial

78.      Caso o Código das Fronteiras Schengen e o Código de Vistos não imponham que o nacional de um país terceiro sujeito a obrigação de visto o apresente aposto num documento de viagem válido, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se os Estados‑Membros estão habilitados a acrescentar novas condições de entrada às já estabelecidas nos dois códigos acima referidos.

79.      Embora as condições de entrada sejam enumeradas no artigo 5.° do Código das Fronteiras Schengen, este artigo deve necessariamente ser lido em conjugação com o artigo 13.° do mesmo código, que diz respeito aos casos em que a entrada é recusada.

80.      Assim, a entrada «é recusada a qualquer nacional de país terceiro que não preencha todas as condições de entrada, tal como definidas no n.° 1 do artigo 5.°». Da decisão de recusa de entrada é dado conhecimento ao nacional de um país terceiro através de um formulário harmonizado (50). Este formulário prevê nove motivos de recusa de entrada. Oito deles correspondem às condições de entrada constantes do artigo 5.°, n.° 1, do Código das Fronteiras Schengen (51).

81.      Apenas um dos motivos de recusa não tem relação direta com o referido artigo 5.°, concretamente, o relativo à ultrapassagem do período máximo autorizado para a estada.

82.      Em todo o caso, o formulário harmonizado não prevê a possibilidade de os guardas de fronteira acrescentarem outro motivo de recusa à lista contida no mesmo.

83.      À luz do que o Tribunal de Justiça decidiu no acórdão Koushkaki (52), a respeito do artigo 32.° do Código de Vistos, o facto de o artigo 13.° do Código das Fronteiras Schengen estabelecer, mediante remissão para o artigo 5.° do mesmo código, uma lista de motivos, com base nos quais será decidida uma recusa de entrada, prevendo que o motivo deverá ser notificado ao requerente precisamente através do modelo de formulário constante do anexo V do Código das Fronteiras Schengen «constitui um elemento a favor da interpretação segundo a qual a lista dos motivos de recusa [...] é exaustiva».

84.      Além disso, o objetivo da facilitação das deslocações legítimas, prosseguido pelo Código de Vistos e recordado pelo Tribunal de Justiça, no n.° 52 do acórdão Koushkaki, já referido, ficaria comprometido se as autoridades de um Estado‑Membro pudessem recusar a entrada a um nacional de um país terceiro apesar de este preencher todas as condições de entrada enumeradas no artigo 5.° do Código das Fronteiras Schengen e de não ter excedido o período máximo autorizado para a sua estada.

85.      Além disso, a luta contra o «visa shopping» impõe que seja garantida uma aplicação harmonizada das condições de entrada, bem como o seu corolário, ou seja, uma aplicação harmonizada dos motivos de recusa de entrada (53).

86.      Acrescento ainda que, ao contrário do processo Koushkaki, já referido, a condição adicional que o legislador nacional introduziu não é comparável às avaliações complexas de situações individuais suscetíveis de serem abrangidas pela margem de apreciação que, segundo o Tribunal de Justiça, o legislador da União deixou intencionalmente aos Estados‑Membros no que diz respeito à apreciação in concreto de determinados motivos de recusa de emissão de vistos (54).

87.      Como a Comissão corretamente fez notar na audiência, a margem de apreciação reconhecida no acórdão Koushkaki, já referido, não pode ser transposta para as duas primeiras condições de entrada, de ordem essencialmente técnica, enumeradas no artigo 5.°, n.° 1, do Código das Fronteiras Schengen. Logo, não só o legislador nacional não está habilitado a acrescentar uma condição adicional às referidas condições, como não se pode, tão pouco, defender que, no caso em apreço, o referido legislador fez uso da sua margem de apreciação para interpretar as duas primeiras condições interligando‑as de tal forma que a primeira só podia ser preenchida de forma concomitante com a outra.

88.      Assim, o artigo 5.°, n.° 1, do Código das Fronteiras Schengen, em conjugação com o artigo 13.° do mesmo código, deve ser interpretado no sentido de que os Estados‑Membros não podem impor aos nacionais de países terceiros condições adicionais para autorizarem a sua entrada no território da União.

V –    Conclusão

89.      Tendo em conta todas as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões submetidas pelo administratīvā apgabaltiesa, tal como as reorganizei, do seguinte modo:

1)      A decisão que declare a invalidade de um visto Schengen só pode ser adotada nas condições descritas no artigo 34.° do Regulamento (CE) n.° 810/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece o Código Comunitário de Vistos (Código de Vistos) sendo, em todo caso, da exclusiva competência das autoridades dos Estados‑Membros. Por conseguinte, a perda de validade do documento de viagem no qual o visto Schengen foi aposto não pode, por si só, afetar a validade do próprio visto.

2)      O Regulamento (CE) n.° 562/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março de 2006, que estabelece o código comunitário relativo ao regime de passagem de pessoas nas fronteiras (Código das Fronteiras Schengen), deve ser interpretado no sentido de que um nacional de um país terceiro sujeito à obrigação de visto, que se apresenta nas fronteiras externas da União Europeia munido de um documento de viagem inválido, mas no qual está aposto um visto válido, e de um documento de viagem válido sem visto, preenche as condições de entrada fixadas no artigo 5, n.° 1, alíneas a) e b), do mesmo código, desde que a validade do novo documento de viagem abranja efetivamente o período máximo de estada autorizado pelo visto Schengen.

3)      O artigo 5.°, n.° 1, do Código das Fronteiras Schengen, em conjugação com o artigo 13.° do mesmo código, deve ser interpretado no sentido de que os Estados‑Membros não podem impor aos nacionais de países terceiros condições adicionais para autorizarem a sua entrada no território da União Europeia.


1 —      Língua original: francês.


2 —      JO L 105, p. 1.


3 —      JO L 243, p. 1.


4 —      Esta disposição deve ser entendida no sentido de que, para ser autorizado a entrar, o nacional de um país terceiro sujeito à obrigação de visto deve apresentar um documento de viagem válido, no qual esteja aposto um visto válido.


5 —      V. Regulamento (CE) n.° 539/2001 do Conselho, de 15 de março de 2001, que fixa a lista dos países terceiros cujos nacionais estão sujeitos à obrigação de visto para transporem as fronteiras externas e a lista dos países terceiros cujos nacionais estão isentos dessa obrigação (JO L 81, p. 1), e os diferentes atos que o alteraram.


6 —      Nos termos do artigo 8.°, n.° 2, do Acordo entre a União Europeia, a Comunidade Europeia e a Confederação Suíça relativo à associação da Confederação Suíça à execução, à aplicação e ao desenvolvimento do acervo de Schengen (JO 2008, L 53, p. 52).


7 —      Artigo 34.°, n.° 1, do Código de Vistos. V., igualmente, ponto 2 da parte A do anexo V do Código das Fronteiras Schengen.


8 —      Artigo 34.°, n.° 2, do Código de Vistos.


9 —      Quanto à hipótese de as autoridades competentes de um Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro emitente poderem decidir anular o visto, v. acórdão Vo (C‑83/12 PPU, EU:C:2012:202, n.° 39). Quando as autoridades de outro Estado‑Membro, diferente daquele que emitiu o visto, o anulam ou revogam, são obrigadas a informar desse facto as autoridades do Estado‑Membro emitente (v. artigo 34.°, n.os 1 e 2, in fine, do Código de Vistos).


10 —      Artigo 34.°, n.° 5, do Código de Vistos.


11 —      Artigo 34.°, n.° 6, e anexo VI do Código de Vistos.


12 —      Artigo 34.°, n.os 6 a 8, do Código de Vistos.


13 —      Assim, é possível conceber que, unicamente com base na invalidade do passaporte apresentado, a recorrente no processo principal não pudesse antecipar o tratamento que os guardas de fronteira da União reservariam ao visto e que, desde a fase de embarque em Moscovo, a mesma não pudesse recusar o passageiro em causa, tendo em conta o facto de, em primeiro lugar, o passaporte indicar expressamente que os vistos apostos continuavam a ser válidos e de, em segundo, o Código de Vistos reservar, em todo o caso, às autoridades competentes dos Estados‑Membros o poder de revogar o visto. Se a companhia tivesse agido de forma diferente, se tivesse considerado o visto inválido pelo mero facto de o passaporte ter perdido a validade e, em consequência, tivesse recusado o embarque em Moscovo, as garantias previstas no artigo 34.° do Código de Vistos teriam sido privadas de efeito útil.


14—      V., por exemplo, artigo 21.°, n.° 1, do Código de Vistos.


15 —      Acórdão Zurita García e Choque Cabrera (C‑261/08 e C‑348/08, EU:C:2009:648, n.° 54 e jurisprudência aí referida).


16 —      Acórdão Zurita García e Choque Cabrera (EU:C:2009:648, n.° 55 e jurisprudência aí referida).


17 —      Artigo 9.°, n.° 1, do Código de Vistos.


18 —      Artigo 10.°, n.° 3, alínea a), e anexo I do Código de Vistos.


19 —      Artigo 10.°, n.° 3, alínea b), do Código de Vistos.


20 —      Na hipótese de várias visitas, ou seja, a que está em causa no âmbito do litígio no processo principal, v. artigo 12.°, alínea a), do Código de Vistos.


21 —      Artigo 12.°, alíneas b) e c), do Código de Vistos, respetivamente.


22 —      Artigo 21.° do Código de Vistos.


23 —      Artigo 21.º, n.° 3, alínea a), do Código de Vistos.


24 —      Artigo 24.º, n.° 2, do Código de Vistos.


25 —      V. ponto 6 do anexo VII do Código de Vistos.


26 —      Ponto 1 do anexo VIII do Código de Vistos.


27 —      V. artigo 29.°, n.os 2, 3 e 5, do Código de Vistos.


28 —      Salvo em casos excecionais, v. capítulo VI do Código de Vistos.


29 —      Artigo 12.°, alínea a), do Código de Vistos.


30 —      No seu artigo 30.°, o Código de Vistos precisa que a mera posse de um visto não confere um direito de entrada automático.


31 —      Artigo 1.° do Código das Fronteiras Schengen.


32 —      Artigo 7.°, n.° 3, alínea a), i), do Código das Fronteiras Schengen. O sublinhado é meu.


33 —      Artigo 7.°, n.° 3, alínea a), ii) a vi), do Código das Fronteiras Schengen. No que diz respeito ao momento da saída do nacional de um país terceiro do território nacional, o texto do Código das Fronteiras Schengen faz, novamente, uma certa distinção, ao prever que, à saída, o controlo pormenorizado compreende a verificação de que o referido nacional de país terceiro está na posse de um documento válido para passar a fronteira [artigo 7.°, n.° 3, alínea b), i), do Código das Fronteiras Schengen] e «pode ainda compreender [...] [uma] verificação de que a pessoa possui um visto válido, se tal for exigido» [artigo 7.°, n.° 3, alínea c), i), do referido código].


34 —      Artigo 10.°, n.° 1, do Código das Fronteiras Schengen.


35 —      Artigo 10.°, n.° 1, alínea a), do Código das Fronteiras Schengen. O sublinhado é meu.


36 —      V. artigo 13.°, n.° 2, do Código das Fronteiras Schengen.


37 —      V. ponto A do formulário anexado na parte B do anexo V do Código das Fronteiras Schengen.


38 —      V. ponto C do formulário anexado na parte B do anexo V do Código das Fronteiras Schengen.


39 —      Esta conclusão é, aliás, corroborada pelo ponto 6.1 do Manual prático para os guardas de fronteira (Manual Schengen), estabelecido pela Comissão [C(2006) 5186 final de 6 de novembro de 2006].


40 —      Artigo 12.°, n.° 1, do Código das Fronteiras Schengen e acórdão Parlamento/Conselho (C‑355/10, EU:C:2012:516, n.° 70).


41 —      Acórdãos Parlamento/Conselho (EU:C:2012:516, n.° 70) e ANAFE (C‑606/10, EU:C:2012:348, n.° 24).


42 —      Acórdão ANAFE (EU:C:2012:348, n.os 25 e 26).


43 —      Acórdão Adil (C‑278/12 PPU, EU:C:2012:508, n.° 61 e jurisprudência aí referida).


44 —      V. considerando 3 do Código de Vistos e acórdão Vo (EU:C:2012:202 n.os 34 e 35).


45 —      Acórdão Koushkaki (C‑84/12, EU:C:2013:862, n.os 52 e 54).


46 —      Em todo o caso, a tarefa não se torna mais árdua do que na hipótese excecional prevista no artigo 10.°, n.° 3, segundo parágrafo, do Código das Fronteiras Schengen, nos termos do qual, a pedido do nacional de um país terceiro em causa, se pode dispensar a aposição do carimbo de entrada ou de saída, devendo ser, então, a entrada ou saída comprovada numa folha separada contendo diversas menções e entregue ao referido nacional de país terceiro. Em tal caso, para controlar o respeito do período máximo autorizado para a estada, as autoridades têm de verificar, também, o conteúdo de, pelo menos, dois documentos diferentes, ou seja a folha separada, por um lado, e o documento de viagem que contém o visto válido, se for esse o caso, por outro. Em determinadas condições, a vinheta de visto pode também ser aposta num impresso separado (v. artigo 29.°, n.os 2, 3 e 5, do Código de Vistos).


47 —      Decisão C(2010) 1620 final, de 19 de março de 2010.


48 —      O Manual Schengen já previa que a falta de páginas disponíveis num passaporte, por si só, não era uma razão válida e suficiente para recusar a entrada a uma pessoa (v. ponto 4.5 do referido manual).


49 —      V. considerando 18 do Código de Vistos. Ora, segundo as observações do Governo letão, o nacional da Índia que deu origem ao litígio no processo principal parece ter sido autorizado a entrar no território da União quando se apresentou, nas mesmas condições, nas fronteiras de outros Estados‑Membros diferentes da República da Letónia.


50 —      Parte B do anexo V do Código das Fronteiras Schengen.


51 —      Os motivos de recusa A e B estão relacionados com o artigo 5.°, n.° 1, alínea a), do Código das Fronteiras Schengen. Os motivos de recusa C e D estão relacionados com o artigo 5.°, n.° 1, alínea b), do referido código. Os motivos de recusa E e G estão relacionados com o artigo 5.°, n.° 1, alínea c), do referido código. O motivo de recusa H está relacionado com o artigo 5.°, n.° 1, alíneas d) e e), do mesmo código, ao passo que o motivo de recusa I também está relacionados com o artigo 5.°, n.° 1, alínea e), do referido código.


52 —      EU:C:2013:862, n.° 38.


53 —      Por analogia, v. acórdão Koushkaki (EU:C:2013:862, n.° 53).


54 —      V. n.os 56 e segs. do acórdão Koushkaki (EU:C:2013:862).