Language of document : ECLI:EU:C:2016:1000

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

JULIANE KOKOTT

apresentadas em 21 de dezembro de 2016 (1)

Processo C‑646/15

Trustees of the P Panayi Accumulation & Maintenance Settlements

contra

Commissioners for Her Majesty’s Revenue and Customs

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo First‑tier Tribunal (Tax Chamber) (Tribunal de Primeira Instância, Secção Tributária, Reino Unido)]

«Direito fiscal — Impostos diretos — Tributação à saída — Aplicação das liberdades fundamentais a um “trust” sem personalidade jurídica própria — Proporcionalidade de uma tributação à saída apesar da subsistência de possibilidade de tributação — Impossibilidade de diferir o pagamento — Relevância de alterações posteriores de valor — Tomada em consideração de uma possibilidade de tributação posterior»






I –    Introdução

1.        No presente caso o Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar‑se, nomeadamente, acerca da questão de saber se um «trust» (um tipo de organização particularmente comum no Reino Unido, sob a forma de fundo fiduciário) pode invocar, em seu benefício, as liberdades fundamentais consagradas no TFUE. Até ao presente momento só o Tribunal da Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA) se pronunciou acerca desta questão, ainda que no quadro de um caso com configuração diferente (2).

2.        A presente questão suscita‑se a propósito da tributação das mais‑valias não realizadas (as chamadas reservas latentes) através de um tipo especial de tributação à saída. Esta opera quando a maioria dos administradores fiduciários do «trust» transfere a sua residência para o estrangeiro ou quando são nomeados maioritariamente administradores com residência no estrangeiro. Existe entretanto abundante jurisprudência a propósito da tributação à saída (3), que é, em regra, admissível. A emigração não pode implicar a renúncia do Estado‑Membro de origem ao seu direito de tributar uma mais‑valia surgida no domínio da sua competência fiscal, antes da referida transferência (4). O mesmo terá de aplicar‑se ao direito de corrigir um benefício fiscal concedido através de amortização, quando conduz igualmente à criação de reservas latentes. Contudo, ao longo do tempo a jurisprudência foi dirigindo uma série de exigências à tributação à saída. O legislador da União teve‑as devidamente em conta, quando, muito recentemente, optou mesmo por consagrar, no artigo 5.o da Diretiva (UE) 2016/1164 (5) ‑ que, porém, não se aplica ao caso em apreço ‑, a obrigação de tributação à saída em caso de emigração (6). Este facto é ilustrativo de uma alteração, ao longo do tempo, da consciência jurídica, que também pode ter implicações no âmbito de uma apreciação jurídica ex post (7).

3.        No presente caso compete ao Tribunal de Justiça decidir se existe direito à tributação quando, apesar da emigração, persiste uma certa possibilidade de tributação por parte do Estado de emigração. Tem, além disso, de ser decidido se a realização voluntária de reservas latentes, após a liquidação do imposto mas antes de o mesmo ser exigível, pode influenciar o resultado da apreciação.

II – Quadro jurídico

A –    Direito da União

4.        O quadro jurídico de direito da União é fornecido, neste caso, pelas liberdades fundamentais consagradas nos artigos 49.o, 56.o 63.o e 54.o TFUE (antes artigos 43.o, 49.o, 56.o e 48.o CE) (8). O artigo 54.o TFUE (em conjugação com o artigo 62.o TFUE) regula a aplicabilidade da liberdade de estabelecimento e da livre prestação de serviços a sociedades:

«As sociedades constituídas em conformidade com a legislação de um Estado‑Membro e que tenham a sua sede social, administração central ou estabelecimento principal na União são, para efeitos do disposto no presente capítulo, equiparadas às pessoas singulares, nacionais dos Estados‑Membros.

Por “sociedades”entendem‑se as sociedades de direito civil ou comercial, incluindo as sociedades cooperativas, e as outras pessoas coletivas de direito público ou privado, com exceção das que não prossigam fins lucrativos».

B –    Direito nacional

5.        Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a lei de 1992 relativa à tributação das mais‑valias (Taxation of Chargeable Gains Act 1992, a seguir «TCGA») é o diploma principal que regula a tributação das mais‑valias no Reino Unido. Por força da section 2(1) do TCGA (9), uma pessoa está sujeita ao imposto sobre as mais‑valias que incidia sobre as mais‑valias tributáveis por si realizadas ao longo de um ano fiscal durante o qual residiu em qualquer momento no Reino Unido ou durante o qual foi residente habitual no Reino Unido, por outras palavras, quando ali tenha residido habitualmente. Nos termos da section 69 do TCGA, na versão aplicável aos factos do processo principal, os «trustees» devem ser tratados como «um grupo único e permanente de pessoas», distinto das pessoas que possam pontualmente ser «trustees». Esta section dispõe ainda que «esse grupo deve ser considerado residente e residente habitual no Reino Unido, salvo se a administração geral dos “trusts”for efetuada fora do Reino Unido e os“trustees” ou a sua maioria não for residente nem residente habitual no Reino Unido».

6.        De acordo com a section 15(2) do TCGA, todos os ganhos ficam sujeitos ao imposto sobre as mais‑valias. Os ativos sujeitos ao imposto incluem todas as formas de propriedade incorpórea, incluindo as ações em empresas [section 21(1)].

7.        Nos termos da section 80 do TCGA, a lei presume que ocorreu uma alienação nos casos em que a maioria dos «trustees» de um «trust» deixou, em qualquer momento, de ser residente ou residente habitual no Reino Unido. Nestas circunstâncias, presume‑se que imediatamente antes desse momento esses «trustes» alienam e imediatamente readquirem determinados «ativos definidos» no «trust» ao valor de mercado. A data limite para proceder ao pagamento do imposto termina em 31 de janeiro do ano seguinte. Não está prevista a possibilidade de os «trustees» adiarem o pagamento do imposto ou de o pagarem de forma faseada.

8.        Ainda segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a section 87 do TCGA prevê que as mais‑valias realizadas por «trustees» que não sejam residentes ou que não residam habitualmente no Reino Unido devem ser imputadas aos beneficiários sempre que lhes sejam efetuados pagamentos de capital. Desta forma, as mais‑valias realizadas por «trustees» não residentes são contabilizadas como se os «trustees» fossem residentes no Reino Unido. A totalidade das mais‑valias é então imputada aos beneficiários que recebem os pagamentos de capital dos «trustees». Os beneficiários que sejam residentes no Reino Unido estão sujeitos, em relação às mais‑valias resultantes dos pagamentos de capital que lhes foram atribuídos, ao pagamento do imposto sobre as mais‑valias.

III – Litígio no processo principal

9.        O processo principal tem por objeto quatro «trusts» cujos «trustees» (administradores) originários residiam no Reino Unido, mas que foram posteriormente substituídos em parte por novos administradores, de modo que a maioria dos administradores passou a residir em Chipre. Os recorrentes são os atuais administradores ‑ residentes em Chipre ‑ dos quatro «trusts».

10.      P. Panayi (nascido em Chipre), criou em 1992 quatro «trusts» em benefício dos seus três filhos e de outros membros da sua família (a seguir «beneficiários»). P. Panayi não é beneficiário de nenhum dos «trusts», nem a sua mulher enquanto aquele estiver vivo. No entanto, detém o poder, enquanto «protetor», de designar novos ou mais «trustees» para os «trusts». Os beneficiários não têm poder para designar «trustees».

11.      No momento em que criou o[s] «trust[s]» em 1992, P. Panayi, a sua mulher e os seus filhos eram todos residentes no Reino Unido.

12.      Antes disso, P. Panayi tinha criado no Reino Unido uma empresa de sucesso (denominada «Cambos»). Ao estabelecer os «trusts», transferiu para eles 40% das ações da sociedade «holding» do seu grupo empresarial. Os «trustees» originários eram P. Panayi e uma sociedade «trust» do Reino Unido, a KSL Trustees Ltd. (a seguir «KSL»). O nome da mulher de P. Panayi foi acrescentado como «trustee» em 2003.

13.      No início de 2004, P. Payani e a mulher decidiram deixar o Reino Unido e regressar a Chipre de forma permanente. Embora tal não fosse exigido por lei, resignaram ambos à sua qualidade de «trustees» dos «trusts» em 19 de agosto de 2004. Nessa mesma data, P. Payani designou três novos «trustees», todos residentes em Chipre. Na sequência destas designações, a administração dos «trusts» passou para Chipre. Uma vez que a maioria dos «trustees» nos quatro «trusts» em causa deixou de ser residente no Reino Unido em 19 de agosto de 2004, presume‑se, nos termos da section 80, que a alienação ocorreu nesta data. Esta alienação deu origem à tributação em sede de imposto sobre as mais‑valias que incide sobre o aumento do valor dos ativos integrados no fundo de «trust» dos quatros «trusts» até 19 de agosto de 2004. Desta operação resultou para o ano fiscal de 2004/2005 uma mais‑valia tributável. A data‑limite para proceder ao pagamento do imposto terminou em 31 de janeiro de 2006. Como se viu já, os «trustees» não dispunham da possibilidade de adiarem o pagamento do imposto ou de o pagarem de forma faseada.

14.      Em 1 de setembro de 2004, a mulher de P. Panayi deixou o Reino Unido e mudou‑se para Chipre com o seu filho mais novo. Os dois filhos mais velhos, ambos beneficiários do «trust», continuaram inicialmente a residir no Reino Unido para completarem os seus estudos universitários. Só posteriormente é que passaram a residir em Chipre. P. Panayi seguiu‑os em 23 de março de 2005.

15.      Em 14 de dezembro de 2005, a KSL resignou como «trustee» dos quatro «trusts». Em 19 de dezembro de 2005, os «trustees» venderam as ações da Cambos detidas pelos «trusts». O total líquido da venda conjunta foi de aproximadamente 30 milhões de libras esterlinas.

16.      Em 11 de maio de 2006, P. Panayi e a mulher foram novamente designados «trustees» dos «trusts». Atualmente, todos os «trustees» residem em Chipre.

IV – Processo no Tribunal de Justiça

17.      O First‑tier Tribunal (Tax Chamber) do Reino Unido (Tribunal de Primeira Instância, Secção Tributária, Reino Unido), chamado a decidir o presente litígio, submeteu ao Tribunal de Justiça, em 3 de dezembro de 2015, ao abrigo do artigo 267.o TFUE, as seguintes questões para decisão a título prejudicial:

1.      É compatível com a liberdade de estabelecimento, com a livre circulação de capitais ou com a liberdade de prestação de serviços que um Estado‑Membro aprove e mantenha em vigor uma legislação, como a prevista na section 80 do Taxation of Chargeable Gains Act 1992 (Lei da tributação das mais‑valias de 1992), que institui um imposto que incide sobre as mais‑valias latentes sobre o valor dos ativos incluídos num «trust» se, em qualquer momento, os «trustees» de um «trust» deixarem de ser residentes ou deixarem de residir habitualmente nesse Estado‑Membro?

2.      Admitindo que tal imposto restringe o exercício da liberdade em causa, esse imposto, ao abrigo da repartição equilibrada do poder de tributação, é justificável e proporcionado quando a legislação não concede aos «trustees» a possibilidade de adiarem o pagamento do imposto ou de pagarem o imposto de forma faseada, nem toma em consideração as desvalorizações posteriores dos ativos do «trust»?

Mais concretamente, submetem‑se as seguintes questões:

3.      Alguma das liberdades fundamentais é posta em causa quando a legislação de um Estado‑Membro institui um imposto sobre as mais‑valias latentes que incidem sobre o aumento do valor dos ativos detidos pelos «trusts» na data em que a maioria dos «trustees» deixa de ser residente ou de residir habitualmente nesse Estado‑Membro?

4.      Justifica‑se uma restrição a essa liberdade causada por esse imposto de saída para preservar uma repartição equilibrada do poder de tributação, em circunstâncias nas quais era possível que o imposto sobre as mais‑valias ainda pudesse incidir sobre as mais‑valias realizadas, mas apenas no caso de no futuro surgirem circunstâncias específicas?

5.      A proporcionalidade deve ser determinada à luz dos factos do caso concreto? Em particular, a restrição causada pela aplicação desse imposto é proporcionada em situações:

a)      nas quais a legislação não prevê a possibilidade de adiar o pagamento do imposto ou de proceder ao seu pagamento de forma faseada, nem prevê a tomada em consideração de uma desvalorização posterior do valor dos ativos do «trust» depois da saída,

b)      sendo que, nas circunstâncias específicas da avaliação do imposto que é objeto da ação, os ativos foram vendidos antes de o imposto ser exigível e os ativos em causa não sofreram uma desvalorização entre o momento da deslocalização do «trust» e a data da venda?

18.      Os «trustees» dos quatro «trusts» constituídos por P. Panayi, a República da Áustria, o Órgão de Fiscalização da EFTA, o Governo norueguês, o Reino Unido e a Comissão apresentaram observações escritas acerca destas questões. Na audiência de 20 de outubro de 2016 participaram os «trustees» dos quatro «trusts» constituídos por P. Panayi, o Órgão de Fiscalização da EFTA, o Reino Unido e a Comissão.

V –    Apreciação jurídica

A –    Quanto à admissibilidade

19.      A República da Áustria alega que a questão 5, alínea a), relativa à tomada em consideração de desvalorizações posteriores, assume natureza hipotética, uma vez que no caso concreto uma grande parte dos bens económicos foi alienada e não foi alegado terem‑se entretanto verificado desvalorizações.

20.      Segundo jurisprudência constante, as questões prejudiciais submetidas pelo juiz nacional gozam de uma presunção de pertinência. Isto aplica‑se, em todo o caso, quando se trata de questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional num quadro jurídico e factual que este define sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não compete ao Tribunal de Justiça verificar (10). O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a interpretação solicitada do direito da União não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal. O mesmo aplica‑se quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para responder de forma útil às questões que lhe são submetidas (11).

21.      O órgão jurisdicional de reenvio, através da questão 5, alínea a), questiona a proporcionalidade da medida (tributação no momento da emigração) quando a lei em que se baseia a tributação não prevê a possibilidade de ter em conta desvalorizações posteriores. Contudo, a proporcionalidade da tributação no momento da liquidação do imposto pode ter de ser apreciada com referência a este momento e, portanto, de forma independente de circunstâncias posteriores verificadas no quadro da cobrança do imposto. Assim, a questão do órgão jurisdicional de reenvio não apresenta, pelo menos de forma ostensiva, natureza meramente hipotética.

B –    Quanto à apreciação material das questões prejudiciais

1.      Quanto à primeira e à terceira questões prejudiciais

a)      O «trust» como outra pessoa coletiva

22.      A primeira e a terceira questões prejudiciais, que importa apreciar conjuntamente, suscitam antes de mais o problema de saber se uma «organização» como um «trust» (constituído segundo o direito do Reino Unido) pode invocar uma liberdade fundamental, em seu benefício.

23.      A resposta a esta questão depende de saber se um «trust» constitui uma «outra pessoa coletiva», na aceção do artigo 54.o TFUE. O Tribunal de Justiça ainda não se pronunciou a este propósito. Contudo, o Tribunal da EFTA já confirmou a aplicabilidade das liberdades fundamentais a um «trust» constituído no Liechtenstein, cujos «participantes» eram tributados na Noruega (12).

24.      O ponto de partida da resposta à questão é fornecido pelo facto de o artigo 54.o TFUE alargar o âmbito de aplicação das liberdades fundamentais em causa a outros atores que não pessoas singulares. Nomeadamente, equiparam‑se às pessoas singulares as sociedades constituídas em conformidade com a legislação de um Estado‑Membro e que tenham a sua sede social, administração central ou estabelecimento principal na União.

25.      Desta forma, são potenciais beneficiários tanto as pessoas singulares que utilizam o «trust», na sua qualidade de cidadãos de um Estado‑Membro (originários), como também o próprio «trust». Contudo, este «trust» só será efetivamente beneficiário se puder ser considerado uma sociedade, na aceção do artigo 54.o, primeiro período, TFUE.

26.      Nos termos do artigo 54.o, segundo período, TFUE, entendem‑se por sociedades as sociedades de direito civil ou comercial, incluindo as sociedades cooperativas, e as outras pessoas coletivas de direito público ou privado. A especificidade de um «trust» consiste no facto de, nos termos da respetiva construção, ter «apenas» por objeto a administração fiduciária de património alheio, em benefício de um terceiro.

27.      A mera obrigação contratual de administração de património alheio (chamada administração fiduciária) não dá origem, em regra, a uma sociedade dissociável do próprio gestor (administrador fiduciário), na aceção do artigo 54.o TFUE. Acresce que o «trust» ora em causa, nos termos da lei nacional, não goza de personalidade jurídica própria, como foi unissonamente referido pelo órgão jurisdicional de reenvio, pela Comissão e pelo Governo da Noruega.

28.      Contudo, o artigo 54.o TFUE não exige personalidade jurídica própria. De outro modo, o legislador nacional poderia, através da atribuição ou retirada da personalidade jurídica, alargar ou reduzir a seu bel‑prazer o âmbito de aplicação das liberdades de estabelecimento e de prestação de serviços. Além disso, é praticamente impossível estabelecer a diferença entre a personalidade jurídica própria e a «mera» capacidade jurídica (13).

29.      Assim, a distinção a fazer no plano do direito nacional, entre estruturas organizativas com e sem personalidade jurídica, não pode — ao contrário do que foi alegado pelo Reino Unido em audiência — ser transportada para o plano do direito da União. Neste sentido, o Tribunal de Justiça já qualificou uma sociedade que, segundo o direito nacional, não tinha personalidade jurídica, como uma «pessoa coletiva de direito privado» (14).

30.      Além disso, o artigo 54.o TFUE e, por conseguinte, o conceito de «outras pessoas coletivas», não pode ser interpretado restritivamente (15). Com o alargamento das liberdades fundamentais a sociedades está‑se a ter em especial em conta o facto de os principais participantes no mercado se organizarem sob a forma societária. O que, por seu turno, serve o propósito do estabelecimento do mercado interno, na aceção do artigo 26.o, n.o 2, TFUE. Este objetivo milita a favor da inclusão de formas de organização como o «trust». É um facto que mesmo sem o artigo 54.o TFUE os próprios sócios de uma sociedade poderiam sempre invocar em seu benefício as liberdades fundamentais. Mas isso seria muito complicado e teria por consequência que uma sociedade poderia, em geral, atuar juridicamente de forma direta, mas só poderia invocar as liberdades fundamentais, em si mesmas, por intermédio dos seus sócios.

31.      Destarte, o artigo 54.o TFUE visa garantir que as pessoas singulares também podem prosseguir os seus interesses protegidos pelas liberdades fundamentais através da constituição ou aquisição de «outras pessoas coletivas». Esta forma de atuação segue o propósito da efetiva organização de uma atividade económica e facilita, desta forma, o exercício das liberdades fundamentais: não são as pessoas, que atuam por intermédio de uma sociedade ou de «outra pessoa coletiva», que têm de alegar uma violação, mas sim o ator no mercado económico, que é quem é por ela afetado, em primeira linha.

32.      Ao contrário do que defende a Noruega, o conceito de «outras pessoas coletivas», na aceção do artigo 54.o TFUE, deve ser interpretado autonomamente, à luz desse objetivo. Não remete apenas para sociedades com personalidade jurídica própria, a qual teria de ser apreciada à luz dos vários regimes jurídicos nacionais.

33.      Desta forma, o conceito de «outras pessoas coletivas», consagrado no direito da União, abrange todas as unidades organizativas através das quais os respetivos membros (ou seja, as pessoas que utilizam a estrutura) podem intervir no tráfego jurídico. Mas para que a unidade organizativa possa (em contraposição a cada um dos seus membros), ser afetada enquanto tal, tem de dispor de um certo nível de autonomia que lhe permita atuar, por si mesma, no tráfego jurídico. Tem, além disso, de dispor da capacidade de formar uma vontade própria e, por esta via, de se distinguir das pessoas que a utilizam.

34.      Contudo, para saber se tais atores no mercado se distinguem das pessoas que os utilizam, impõe‑se recorrer ao regime jurídico nacional que estiver concretamente em causa. Na medida em que a lei nacional reconheça direitos e imponha obrigações à estrutura em causa (neste caso, o «trust»), pode‑se afirmar que atua por si mesma no tráfego jurídico. Esta questão — como foi salientado pelo Reino Unido em audiência ‑ constitui uma questão prévia que, no estado atual do direito da União, apenas pode encontrar resposta no direito nacional aplicável e não através do Tribunal de Justiça, em relação a cada caso concreto (16). No presente caso existem contudo alguns aspetos — como foi também alegado pelos demandantes, pela Comissão e pela República da Áustria — que, nomeadamente à luz da formulação da section 69 do TCGA, indiciam que o «trust» atua por si mesmo (atribuição de uma residência à totalidade dos administradores), em vez de serem os administradores, enquanto pessoas singulares, a intervir no tráfego jurídico.

35.      Compete ao tribunal nacional decidir se, no presente caso, o «trust» atua por si mesmo ou se são apenas os administradores que atuam no tráfego jurídico munidos de direitos e obrigações próprios. Se o «trust» atua por si mesmo, então também é uma «outra pessoa coletiva», na aceção do artigo 54.o, segundo período, TFUE.

b)      Liberdade de estabelecimento

36.      Impõe‑se ainda decidir qual a liberdade fundamental que o «trust» ou os respetivos administradores podem invocar, numa situação em que a tributação de reservas latentes não realizadas só se verifica porque a sede da administração do «trust» (ou a residência ou a residência habitual da maioria dos administradores), por obra de uma ficção do direito nacional, foi transferida para outro Estado‑Membro. Os intervenientes invocam, a este propósito, a livre circulação de capitais, a liberdade de prestação de serviços e a liberdade de estabelecimento.

37.      Segundo o artigo 43.o CE (atual artigo 49.o TFUE), a liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado‑Membro no território de outro Estado‑Membro inclui o acesso às atividades por conta própria e o seu exercício (17). Embora, de acordo com a sua redação, as disposições do Tratado relativas à liberdade de estabelecimento visem assegurar o direito a um tratamento nacional no Estado‑Membro de acolhimento, aquelas disposições opõem‑se igualmente a que o Estado‑Membro de origem levante obstáculos ao estabelecimento de um dos seus nacionais ou de uma sociedade constituída em conformidade com a sua legislação noutro Estado‑Membro (18).

38.      A administração de património alheio através de um «trust» ou dos respetivos administradores constitui uma atividade independente. Também se verifica a participação na vida económica, tal como é exigida, pois para o efeito basta que se verifique uma administração ativa de património (19).

39.      Mesmo que a administração ativa de património alheio não caia no âmbito de aplicação do regime do IVA (20), constitui ainda assim uma atividade económica independente. Ao contrário do que alega o Governo norueguês, para apreciar se existe ou não uma atividade económica independente, como pressuposto da liberdade de estabelecimento, não se impõe chamar à colação os princípios do regime do IVA que regem a condição de sujeito passivo. Desde logo, porque as liberdades fundamentais, no que tange à eliminação dos obstáculos no mercado interno, e o regime do IVA, no que tange à tributação do consumidor final, prosseguem objetivos distintos. Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, uma sociedade «holding» pura (ou sociedade financeira) (21), não assume a qualidade de sujeito passivo na aceção do artigo 9.o da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006 (22), relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado. Pode, porém, no quadro da tributação dos rendimentos por transferência da sua sede, invocar a liberdade de estabelecimento(23).

40.      Contudo, a liberdade de estabelecimento implica a prossecução efetiva de uma atividade económica através de um estabelecimento fixo no Estado‑Membro de acolhimento por um período indefinido (24). No caso em apreço, o processo perante o Tribunal de Justiça não revelou elementos que façam crer que as atividades do «trust» ou dos administradores se desenvolvem apenas no Reino Unido e que em Chipre não sejam exercidas quaisquer atividades. Contudo, incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se assim é (25).

41.      Se efetivamente for exercida uma atividade económica em Chipre, não se afigura necessário apurar se também são aplicáveis a livre circulação de capitais, de que beneficia o «trust» ou os administradores afetados pela tributação, ou, ainda, outras liberdades fundamentais. O esclarecimento da relação concorrencial só influenciaria a decisão do litígio se o caso apresentasse ligação com países terceiros, o que tornaria relevante o âmbito de aplicação mais amplo da livre circulação de capitais. Em situações puramente intracomunitárias, como sucede no caso em apreço, não é necessário analisar a relação entre a liberdade de estabelecimento e a livre circulação de capitais, ou ainda a livre prestação de serviços, dado que os critérios de exame destas liberdades fundamentais são, em larga medida, idênticos (26).

c)      Restrição da liberdade de estabelecimento

42.      Se o «trust» (ou os administradores), por via da administração do património a favor dos beneficiários, exercer uma atividade económica em Chipre, impõe‑se apurar se a tributação de mais‑valias não realizadas (ou seja, a tributação das reservas latentes), relacionada com a transferência da sede, constitui uma restrição da liberdade de estabelecimento.

43.      Segundo jurisprudência constante, devem ser consideradas restrições à liberdade de estabelecimento todas as medidas que proíbam, dificultem, ou tornem menos atrativo o exercício dessa liberdade (27). O Tribunal de Justiça já constatou, por várias vezes, que a tributação das reservas latentes, em caso de transferência da sede, constitui uma restrição da liberdade de estabelecimento, sempre que uma tal tributação de mais‑valias não realizadas não se verifique também em situação comparável de natureza interna (ou seja, quando se verifica uma transferência dentro do território nacional) (28).

44.      A restrição da liberdade de estabelecimento verifica‑se logo no momento da liquidação do imposto, que tem lugar apesar de não existirem mais‑valias concretas, já realizadas. Pois por via da liquidação do imposto o sujeito passivo passa a ser devedor do imposto, ficando por ele onerado, mesmo que não seja ainda exigível. A cobrança do imposto é apenas a consumação da restrição.

45.      No processo principal, o «trust» (ou os administradores), que quer transferir a sua sede para fora do Reino Unido (ou cuja transferência é ficcionada pelo direito nacional quando a maioria dos administradores «emigra»), sofre, em comparação com outros atores em situação equiparável que mantêm a sua sede efetiva no Reino Unido, um prejuízo em termos de liquidez. Com efeito, segundo o regime nacional em discussão no processo principal, a transferência da sede do «trust» para outro Estado‑Membro implica a imediata tributação das mais‑valias não realizadas referentes a determinados valores patrimoniais (29). Diferentemente, tais mais‑valias não são tributadas se um «trust» transferir a sua sede dentro do Reino Unido. Neste caso, a tributação só tem lugar depois de as reservas latentes terem sido realizadas. Este tratamento diferente (tributação imediata das mais‑valias não realizadas no momento da emigração) pode demover um «trust» (ou os seus administradores) de transferir a sua sede para outro Estado‑Membro. A situação é a mesma ainda que o «trust» disponha de liquidez suficiente que lhe permita pagar o imposto mesmo sem realização das reservas latentes.

46.      Por conseguinte, impõe‑se responder à primeira e à terceira questões no sentido de que se verifica uma restrição à liberdade de estabelecimento se um «trust» (ou os seus administradores) for tributado no momento da transferência da sede para outro Estado‑Membro, mas já não o for em caso de transferência da sede dentro do território nacional.

2.      Quanto à segunda, à quarta e à quinta questões prejudiciais

a)      Causa de justificação

47.      Uma restrição da liberdade de estabelecimento só pode ser justificada por razões imperiosas de interesse geral. Além disso, tem de ser adequada para garantir a realização do objetivo em causa e não pode ultrapassar o que é necessário para atingir esse objetivo(30).

48.      O Tribunal de Justiça já decidiu, por diversas vezes, que um Estado‑Membro, em conformidade com o princípio da territorialidade fiscal, associado a um elemento temporal — ou seja, a residência fiscal do sujeito passivo no território nacional durante o período da verificação das mais‑valias não realizadas —, tem o direito de tributar estas mais‑valias no momento da emigração do sujeito passivo (31). Uma tal medida visa evitar situações suscetíveis de comprometer o direito do Estado‑Membro de origem de exercer a sua competência fiscal em relação às atividades realizadas no seu território e pode justificar‑se como forma de garantir a preservação da repartição do poder de tributação entre os Estados‑Membros (32).

49.      Contudo, constitui pressuposto que a emigração ponha efetivamente em perigo o poder de tributação do Estado de emigração. É certamente esse o caso quando o poder de tributação deixa de existir (33). Ora, os demandantes manifestam dúvidas acerca da perda do poder de tributação do Reino Unido, uma vez que, segundo o direito nacional, ainda se verifica tributação, na medida em que os beneficiários continuam a residir no território nacional e recebem pagamentos através do «trust» (ou dos administradores).

50.      A especificidade do poder de tributação remanescente do Reino Unido, após a transferência da sede do «trust», reside no facto de depender exclusivamente das decisões do «trust» e/ou dos beneficiários. Tanto a Comissão como o Reino Unido chamaram a atenção para este aspeto, em audiência. Se o «trust» não proceder a pagamentos aos beneficiários residentes no Reino Unido, ou se os beneficiários — como sucedeu no caso em apreço — emigrarem do Reino Unido, o seu poder de tributação deixa de ter substância. Neste sentido, o exercício do direito de tributação deixa de depender do próprio Estado‑Membro. Esta situação equipara‑se a uma situação em que, por via da transferência da sede, deixa de subsistir um direito de tributação independente, por parte do Estado‑Membro.

51.      Por conseguinte, impõe‑se responder ao órgão jurisdicional de reenvio, concretamente à primeira parte da questão 2 e à questão 4, que uma tributação à saída como a ora em causa é, em princípio, admissível, como forma de preservar a repartição do poder de tributação entre os Estados‑Membros, mesmo que em determinadas circunstâncias — que contudo não dependem dos Estados‑Membros — ainda seja possível uma tributação parcial.

52.      Não obstante, o facto de em determinadas circunstâncias poder ainda verificar‑se tributação pode relevar ao nível da proporcionalidade da tributação. De facto, existe um risco de dupla tributação, pelo Estado de emigração. As mais‑valias não realizadas são tributadas, pela totalidade, logo no momento da emigração, sendo que outras mais‑valias poderão ser tributadas no momento do pagamento aos destinatários. Isto embora, doravante ‑ a causa de justificação da tributação à saída é garantir a repartição do poder de tributação ‑, essas mais‑valias devam ser tributadas pelo Estado de imigração. Portanto, importaria ter em consideração a tributação à saída, no momento da incidência sobre os destinatários. Porém, esta questão não se coloca no caso em apreço, uma vez que as reservas latentes já tinham sido realizadas e os beneficiários já não residiam no Reino Unido.

b)      Proporcionalidade

53.      A quinta questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio prende‑se com a apreciação da proporcionalidade da presente tributação à saída. Está em causa, por um lado, a falta de possibilidade de adiamento do pagamento do imposto [alínea i), a propósito da questão 5, alínea a)] e, por outro lado, o facto de as reservas latentes terem sido realizadas sem desvalorização após a liquidação mas ainda antes de a dívida tributária ser exigível [alínea ii), a propósito da questão 5, alínea b)]. Está ainda em causa a falta de tomada em consideração de eventuais desvalorizações posteriores [alínea iii), a propósito da questão 5, alínea a)], no quadro da tributação à saída.

54.      A Administração Tributária do Reino Unido invoca neste contexto, em particular, o facto de o sujeito passivo ter efetivamente realizado, através de venda, o valor dos bens económicos, ainda antes de a dívida fiscal ser exigível. Uma vez que o lucro que daí resultou se revelou suficiente para pagar a dívida fiscal que emana da realização ficcionada, no presente caso concreto tem‑se de constatar que a tributação à saída é proporcionada.

i)      Impossibilidade de diferir o pagamento

55.      O Tribunal de Justiça já decidiu, por várias vezes, que se tem de deixar ao sujeito passivo, no momento da emigração, a escolha entre, por um lado, a tributação imediata e, por outro lado, o pagamento diferido do montante do imposto, acrescido, sendo esse o caso, de juros, segundo o regime nacional aplicável (34). O Tribunal de Justiça considerou, a este propósito, que uma cobrança parcelada do imposto relativo às mais‑valias latentes em cinco anuidades, em vez de uma cobrança imediata, constitui uma medida proporcionada (35). Porém, o direito nacional do Reino Unido não prevê qualquer possibilidade de diferir o pagamento. Por conseguinte, a dívida fiscal referente a reservas latentes não realizadas nasceu imediatamente. Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, uma situação deste tipo é desproporcionada.

ii)    Realização das reservas latentes após a liquidação mas antes da exigibilidade

56.      Mesmo que se entenda, como o faz a Administração Tributária do Reino Unido, que é de relevar o facto — essencialmente fortuito, para o Estado que procede à tributação — de a realização efetiva das reservas latentes ter ocorrido depois da liquidação mas antes de a dívida fiscal ser exigível, ainda assim a tributação no momento da emigração permanece desproporcionada. Efetivamente, mesmo nesta situação continua a existir uma diferença de tratamento em comparação com o que sucede no quadro de uma operação estritamente interna. De facto, sendo as mais‑valias realizadas sem emigração o mesmo imposto só é exigível mais tarde (o prazo é contado a partir do momento da realização: neste caso, o imposto é exigível exatamente um ano depois).

57.      Além disso, a apreciação da proporcionalidade da atuação do Estado, neste caso consubstanciada na liquidação e exigibilidade da dívida fiscal, não pode depender da decisão da pessoa afetada cujos direitos são, precisamente, alvo de ingerência. De outra forma, só o sujeito passivo que se recuse a pagar o imposto devido e, consequentemente, não aliene os bens económicos a que se referem as reservas latentes é que pode invocar a desproporcionalidade da restrição da liberdade de estabelecimento. Já a pessoa afetada que acate a ordem de pagamento do Estado e, para o efeito, realize as reservas latentes, fica impedida de invocar em seu benefício a desproporcionalidade da restrição das suas liberdades fundamentais.

58.      A tributação, no presente caso, permanece portanto desproporcionada, apesar da realização das reservas latentes antes da exigibilidade do imposto, porque no momento da liquidação não estava prevista a possibilidade de diferir o pagamento. Esta possibilidade de diferimento não tem necessariamente que assumir a duração referida na jurisprudência do Tribunal de Justiça (36), que é de cinco anos (37). Na verdade, o legislador do Reino Unido podia ter estabelecido uma conexão entre esta possibilidade de diferimento do pagamento e a realização das reservas latentes ainda antes do decurso do referido prazo [v., neste sentido, o artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva (UE) 2016/1164 (38)].

59.      Por conseguinte, impõe‑se responder à questão 5, alínea b), submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio, que a proporcionalidade de uma medida à luz dos factos do caso concreto deve ser apreciada no momento da liquidação operada por força da emigração. Isto é independente do facto de os bens económicos em causa terem sido alienados ainda antes da exigibilidade e sem desvalorização, sempre que sem emigração a dívida fiscal só fosse exigível em momento posterior e não exista a possibilidade de diferir o pagamento.

60.      Incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio apurar se a desproporcionalidade do regime pode eventualmente ser compensada através de uma interpretação conforme ao direito da União, de modo a reconhecer um direito ao diferimento do pagamento, nos termos do direito processual tributário nacional. Segundo o alegado em audiência pelo demandante no processo principal, parece que no Reino Unido existe a possibilidade de serem proferidas, a este propósito, decisões discricionárias.

iii) Falta de tomada em consideração de eventuais desvalorizações posteriores

61.      Segundo o princípio da territorialidade, que constitui bitola para a repartição do poder de tributação, são tomados em conta no cálculo da matéria coletável tanto os ganhos como as perdas provenientes das atividades no Estado em causa(39)Além disso, a tomada em consideração quer dos lucros, quer das perdas no país, está em harmonia com o princípio da simetria (40). Existem, porém, problemas administrativos de apuramento quer dos aumentos quer das perdas de valor quando nem o património nem a pessoa em questão se encontram ou residem no território em causa. Isto exclui, em princípio, que posteriores desvalorizações tenham necessariamente de ser consideradas no quadro da tributação, atenta a perda do direito de tributação (tributação à saída). A Diretiva (UE) 2016/1164 do Conselho, de 12 de julho de 2016, que estabelece regras contra as práticas de elisão fiscal que tenham incidência direta no funcionamento do mercado interno (41) que, contudo, não se aplica ao caso em apreço, também não prevê tal obrigação.

62.      De facto, a justificação da justa repartição do poder de tributação dos Estados‑Membros entre si assenta, ao fim e ao cabo, na tomada em consideração de aumentos e perdas de valor que se tenham verificado, por causa da proximidade territorial, até um determinado dia. Mas, neste caso, os aumentos e perdas de valor posteriores já não devem ser considerados no Estado de emigração, mas sim unicamente no de estabelecimento (ou seja, no Estado de imigração).

63.      O Tribunal de Justiça confirmou várias vezes este princípio — inexistência do dever de tomada em consideração das desvalorizações — em acórdãos mais recentes, a propósito da tributação à saída (42). A única exceção foi uma decisão a propósito da tributação à saída de uma pessoa singular, no que se referia ao seu património particular (sob a forma de participações substanciais). Neste caso, salientou‑se a necessidade de se tomar em consideração eventuais desvalorizações após a emigração (43). Mas em jurisprudência posterior, relacionada com a tributação à saída de sujeitos jurídicos economicamente ativos e do respetivo património empresarial, o Tribunal de Justiça (44) já não aplicou o mesmo princípio.

64.      Ainda que a jurisprudência mais recente tenha essencialmente por objeto unidades organizativas com capacidade jurídica, não convence proceder a uma distinção em função da forma jurídica do sujeito passivo. Este caso, no qual nos termos do direito nacional um «trust» tanto pode ser considerado uma «outra pessoa coletiva» como uma multiplicidade de pessoas singulares, evidencia‑o de forma particularmente clara. Mas, em boa verdade, o Tribunal de Justiça, no que toca à tomada em consideração da desvalorização, distinguiu menos entre pessoas singulares e pessoas coletivas e mais entre património particular e empresarial (45). Sempre que um «trust» prossiga uma atividade económica, a tributação dos seus ativos incide sobre o património empresarial. Assim, não se tem de apreciar se são ou não de manter as asserções contidas no acórdão N, a propósito da tomada em consideração das perdas (46).

65.      Apenas caso se conclua que a atividade do «trust» constitui uma administração passiva de património, e portanto não uma atividade económica, é que será necessário proferir decisão a esse propósito. Nesta hipótese, ter‑se‑á de ter em conta que para a causa de justificação ora em apreço, da preservação da repartição do poder de tributação entre os Estados‑Membros, é irrelevante que o património seja particular ou empresarial.

66.      Assim, impõe‑se responder à questão 5, alínea a), no sentido de o princípio da proporcionalidade aqui não obrigar o Estado de emigração a tomar em consideração desvalorizações posteriores.

VI – Proposta de decisão

67.      Por conseguinte, proponho ao Tribunal de Justiça que responda ao pedido de decisão prejudicial do First‑tier Tribunal (Tax Chamber) do Reino Unido nos termos seguintes:

1)      As questões 1 e 3 devem ser respondidas no sentido de que um «trust» pode invocar em seu benefício as liberdades fundamentais, nos termos do artigo 54.o TFUE, ainda que não disponha de personalidade jurídica segundo o direito nacional. É pressuposto que o «trust» possa, por si mesmo, atuar no tráfego comercial e, neste sentido, que a ordem jurídica nacional lhe atribua direitos e deveres próprios. A tributação das mais‑valias não realizadas de um «trust» (ou dos administradores), devido a uma transferência da sede para outro Estado‑Membro ficcionada pelo direito nacional, constitui uma restrição da liberdade de estabelecimento.

2)      As questões 2 e 4 devem ser respondidas no sentido de que esta restrição da liberdade de estabelecimento pode, em princípio, ser justificada através da preservação da repartição do poder de tributação entre os Estados‑Membros. Esta resposta permanece válida ainda que subsista alguma possibilidade de tributação por parte do Estado de emigração, desde que não esteja apenas na mão do Estado‑Membro e antes dependa essencialmente das decisões do sujeito passivo.

3)      As questões 2 e 5 devem ser respondidas no sentido de que a proporcionalidade da tributação das mais‑valias não realizadas deve ser apreciada à luz dos factos concretos no momento da liquidação do imposto. Esta liquidação é desproporcionada se, como sucede no caso em apreço, não estiverem previstas possibilidades de diferir o pagamento e, sem a emigração, a dívida fiscal só fosse exigível mais tarde. Esta resposta é independente da circunstância de os bens económicos em questão serem alienados ainda antes da exigibilidade e sem desvalorização. O princípio da proporcionalidade não impõe ao Estado de emigração a tomada em consideração de perdas posteriores de património empresarial.


1 —      Língua original: alemão.


2 —      Acórdão do Tribunal da EFTA de 9 de julho de 2014, Fred. Olsen (E‑3/13 e E‑20/13, EFTA Court Reports 2014, 400).


3 —      Acórdãos de 23 de janeiro de 2014, DMC (C‑164/12, EU:C:2014:20, n.o 53 e jurisprudência aí referida); de 29 de novembro de 2011, National Grid Indus (C‑371/10, EU:C:2011:785, n.o 49); de 21 de maio de 2015, Verder LabTec (C‑657/13, EU:C:2015:331, n.o 44 e seg.); e de 7 de setembro de 2006, N (C‑470/04, EU:C:2006:525, n.o 46).


4 —      Acórdão de 29 de novembro de 2011, National Grid Indus (C‑371/10, EU:C:2011:785, n.o 46).


5 —      Diretiva do Conselho, de 12 de julho de 2016, que estabelece regras contra as práticas de elisão fiscal que tenham incidência direta no funcionamento do mercado interno (JO 2016, L 193, p. 1).


6 —      O artigo 5.o da Diretiva (UE) 2016/1164 tem o seguinte teor: «Um contribuinte deve estar sujeito a imposto por um montante igual ao valor de mercado dos ativos transferidos, no momento da saída dos ativos, deduzido do seu valor para efeitos fiscais, em qualquer das seguintes circunstâncias: […] c) o contribuinte transfere a sua residência fiscal para outro Estado‑Membro […]».


7 —      Já neste sentido, Doehring, K. «Die Wirkung des Zeitablaufs auf den Bestand völkerrechtlicher Regeln», Jahrbuch der Max‑Planck‑Gesellschaft zur Förderung der Wissenschaften e.V., Generalverwaltung der Max‑Planck‑Gesellschaft, Munique, 1964, pp. 70 a 89.


8 —      De acordo com as regras da aplicação das leis no tempo aplicam‑se aqui as disposições dos Tratados CE. Porém, uma vez que o conteúdo das disposições é idêntico, passa‑se seguidamente, por facilidade, a fazer referência à numeração atual.


9 —      Na versão em vigor no momento em que ocorreram os factos do processo principal.


10 —      V., a título de mero exemplo: acórdão de 21 de maio de 2015, Verder LabTec (C‑657/13, EU:C:2015:331, n.o 29).


11 —      Acórdãos de 21 de maio de 2015, Verder LabTec (C‑657/13, EU:C:2015:331, n.o 29); de 22 de janeiro de 2015, Stanley International Betting e Stanleybet Malta (C‑463/13, EU:C:2015:25, n.o 26 e jurisprudência aí referida).


12 —      Acórdão do Tribunal da EFTA de 9 de julho de 2014, Fred. Olsen (E‑3/13 e E‑20/13, EFTA Court Reports 2014, 400).


13 —      V., por exemplo, acórdão do BGH de 29 de janeiro de 2001 ‑ II ZR 331/00, NJW 2001, 1056, a propósito da «subjetividade jurídica restrita» das sociedades de pessoas.


14 —      V. acórdão de 4 de junho de 2009, SALIX Grundstücks‑Vermietungsgesellschaft (C‑102/08, EU:C:2009:345, n.o 74).


15 —      V., também aqui, acórdão do Tribunal da EFTA de 9 de julho de 2014, Fred. Olsen (E‑3/13 e E‑20/13, EFTA Court Reports 2014, 400).


16 —      É o que sucede também com as sociedades: v. o acórdão de 29 de novembro de 2011, National Grid Indus (C‑371/10, EU:C:2011:785, n.o 26).


17 —      Acórdãos de 11 de março de 2004, de Lasteyrie du Saillant (C‑9/02, EU:C:2004:138, n.o 40 e jurisprudência aí referida), e de 21 de janeiro de 2010, SGI (C‑311/08, EU:C:2010:26, n.o 38).


18 —      Acórdãos de 21 de janeiro de 2010, SGI (C‑311/08, EU:C:2010:26, n.o 39), e de 13 de dezembro de 2005, Marks & Spencer (C‑446/03, EU:C:2005:763, n.o 31).


19 —      V., também, acórdão de 14 de setembro de 2006, Centro di Musicologia Walter Stauffer (C‑386/04, EU:C:2006:568, n.o 19).


20 —      Acórdão de 20 de junho de 1996, Wellcome Trust (C‑155/94, EU:C:1996:243, n.o 34 e segs.).


21 —      V., neste sentido: acórdãos de 20 de junho de 1991, Polysar Investments Netherlands (C‑60/90, EU:C:1991:268, n.o 13); de 14 de novembro de 2000, Floridienne e Berginvest (C‑142/99, EU:C:2000:623, n.o 17); de 27 de setembro de 2001, Cibo Participations (C‑16/00, EU:C:2001:495, n.o 19); e de 30 de maio de 2013, X (C‑651/11, EU:C:2013:346, n.o 35).


22 —      JO 2006, L 347, p. 1.


23 —      V., também, acórdão de 10 de janeiro de 2006, Cassa di Risparmio di Firenze e o. (C‑222/04, EU:C:2006:8, n.o 107 e segs.), acerca da atividade económica de uma sociedade «holding» no quadro do direito aplicável aos auxílios de Estado, que para efeitos de IVA podia eventualmente não ser considerada sujeito passivo.


24 —      Acórdão de 12 de setembro de 2006, Cadbury Schweppes e Cadbury Schweppes Overseas (C‑196/04, EU:C:2006:544, n.o 54 e jurisprudência aí referida).


25 —      Acórdão de 12 de julho de 2012, VALE (C‑378/10, EU:C:2012:440, n.o 35).


26 —      Conclusões apresentadas pela advogada‑geral J. Kokott no processo SGI (C‑311/08, EU:C:2009:545, n.o 37 e seg.); o TJUE só respondeu afirmativamente a propósito da liberdade de estabelecimento (acórdão C‑311/08, EU:C:2010:26, n.o 36).


27 —      Acórdãos de 21 de maio de 2015, Verder LabTec (C‑657/13, EU:C:2015:331, n.o 34), e de 16 de abril de 2015, Comissão/Alemanha (C‑591/13, EU:C:2015:230, n.o 56 e jurisprudência aí referida).


28 —      Acórdãos de 11 de março de 2004, de Lasteyrie du Saillant (C‑9/02, EU:C:2004:138, n.o 46); de 29 de novembro de 2011, National Grid Indus (C‑371/10, EU:C:2011:785, n.o 33); de 21 de maio de 2015, Verder LabTec (C‑657/13, EU:C:2015:331, n.o 35); e de 7 de setembro de 2006, N (C‑470/04, EU:C:2006:525, n.o 35).


29 —      Ao contrário do que pretende o Reino Unido, o facto de nesse país este imposto só ser exigível no dia 31 de janeiro do ano seguinte em nada altera a apreciação feita, uma vez que o referido prazo de pagamento é o mesmo que se aplica na tributação das reservas latentes realizadas (ou seja, em situação comparável de natureza interna), de modo que a tomada em conta da falta de liquidez só não se verifica quando há transferência para o estrangeiro.


30 —      Acórdãos de 29 de novembro de 2011, National Grid Indus (C‑371/10, EU:C:2011:785, n.o 42); de 12 de setembro de 2006, Cadbury Schweppes e Cadbury Schweppes Overseas (C‑196/04, EU:C:2006:544, n.o 47); e de 13 de dezembro de 2005, Marks & Spencer (C‑446/03, EU:C:2005:763, n.o 35).


31 —      Acórdãos de 23 de janeiro de 2014, DMC (C‑164/12, EU:C:2014:20, n.o 53 e jurisprudência aí referida), de 29 de novembro de 2011, National Grid Indus (C‑371/10, EU:C:2011:785, n.o 49); de 21 de maio de 2015, Verder LabTec (C‑657/13, EU:C:2015:331, n.o 44 e seg.); e de 7 de setembro de 2006, N (C‑470/04, EU:C:2006:525, n.o 46).


32 —      Acórdãos de 13 de dezembro de 2005, Marks & Spencer (C‑446/03, EU:C:2005:763, n.o 45 e seg.); de 29 de novembro de 2011, National Grid Indus (C‑371/10, EU:C:2011:785, n.o 48); de 21 de maio de 2015, Verder LabTec (C‑657/13, EU:C:2015:331, n.o 47); e de 21 de janeiro de 2010, SGI (C‑311/08, EU:C:2010:26, n.o 60).


33 —      Neste sentido, expressamente: acórdãos de 21 de maio de 2015, Verder LabTec (C‑657/13, EU:C:2015:331, n.o 48); de 25 de abril de 2013, Comissão/Espanha (C‑64/11, não publicado, EU:C:2013:264, n.o 31); e de 23 de janeiro de 2014, DMC (C‑164/12, EU:C:2014:20, n.o 60 e jurisprudência aí referida).


34 —      Acórdãos de 21 de maio de 2015, Verder LabTec (C‑657/13, EU:C:2015:331, n.o 49); de 29 de novembro de 2011, National Grid Indus (C‑371/10, EU:C:2011:785, n.os 56 a 58 e 62); e de 16 de abril de 2015, Comissão/Alemanha (C‑591/13, EU:C:2015:230, n.o 67 e jurisprudência aí referida).


35 —      Acórdãos de 23 de janeiro de 2014, DMC (C‑164/12, EU:C:2014:20, n.o 64), e de 21 de maio de 2015, Verder LabTec (C‑657/13, EU:C:2015:331, n.o 52).


36 —      Acórdãos de 23 de janeiro de 2014, DMC (C‑164/12, EU:C:2014:20, n.o 64), e de 21 de maio de 2015, Verder LabTec (C‑657/13, EU:C:2015:331, n.o 52).


37 —      V., também, a este propósito, o artigo 5.o, n.o 2, da Diretiva (UE) 2016/1164 – JO 2016, L 193, p. 1.


38 —      JO 2016, L 193, p. 1.


39 —      Acórdãos de 15 de fevereiro de 2007, Centro Equestre (C‑345/04, EU:C:2007:1425, n.o 22); de 13 de dezembro de 2005, Marks & Spencer (C‑446/03, EU:C:2005:763, n.o 39); e de 15 de maio de 1997, Futura (C‑250/95, EU:C:1997:2471, n.o 21 e seg.).


40 —      Acórdão de 29 de novembro de 2011, National Grid Indus (C‑371/10, EU:C:2011:785, n.os 56 a 58 e 62).


41 —      JO 2016, L 193, p. 1.


42 —      Acórdãos de 21 de maio de 2015, Verder LabTec (C‑657/13, EU:C:2015:331, n.o 43 e segs.), e de 29 de novembro de 2011, National Grid Indus (C‑371/10, EU:C:2011:785, n.o 56 e segs.).


43 —      Acórdão de 7 de setembro de 2006, N (C‑470/04, EU:C:2006:525, n.o 51 e segs.).


44 —      Acórdãos de 21 de maio de 2015, Verder LabTec (C‑657/13, EU:C:2015:331, n.o 43 e segs.); de 29 de novembro de 2011, National Grid Indus (C‑371/10, EU:C:2011:785, n.o 56 e segs.); e de 23 de janeiro de 2014, DMC (C‑164/12, EU:C:2014:20, n.o 45 e segs.).


45 —      Apontam neste sentido as afirmações do Tribunal de Justiça no acórdão de 29 de novembro de 2011, National Grid Indus (C‑371/10, EU:C:2011:785, n.o 57).


46 —      Acórdão de 7 de setembro de 2006, N (C‑470/04, EU:C:2006:525, n.o 54).