Language of document : ECLI:EU:C:2019:577

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

10 de julho de 2019 (*)

«Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Regulamento (UE) n.o 1215/2012 — Competência judiciária em matéria civil e comercial — Competências exclusivas — Artigo 24.o, pontos 1 e 5 — Litígios em matéria de direitos reais sobre imóveis e de execução de decisões — Procedimento de adjudicação judicial de um imóvel — Ação de oposição ao estado de repartição do produto dessa adjudicação»

No processo C‑722/17,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Bezirksgericht Villach (Tribunal de Primeira Instância de Villach, Áustria), por Decisão de 19 de dezembro de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 27 de dezembro de 2017, no processo

Norbert Reitbauer,

Dolinschek GmbH,

B.T.S. Trendfloor RaumausstattungsGmbH,

Elektrounnehmen K. Maschke GmbH,

Klaus Egger,

Architekt DI Klaus Egger Ziviltechniker GmbH

contra

Enrico Casamassima,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: J.‑C. Bonichot, presidente de secção, C. Toader (relatora), A. Rosas, L. Bay Larsen e M. Safjan, juízes,

advogado‑geral: E. Tanchev,

secretário: D. Dittert, chefe de unidade,

vistos os autos e após a audiência de 16 de janeiro de 2019,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da N. Reitbauer, da Dolinschek GmbH, da B.T.S. Trendfloor Raumausstattungs‑GmbH, da Elektrounternehmen K. Maschke GmbH, de K. Egger e da Architekt DI Klaus Egger Ziviltechniker GmbH, por G. Götz, Rechtsanwalt,

–        em representação de E. Casamassima, por H. Walder, Rechtsanwalt,

–        em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, M. Figueiredo e P. Lacerda, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo suíço, por M. Schöll, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por M. Heller e M. Wilderspin, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 3 de abril de 2019,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 24.o, pontos 1 e 5, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe Norbert Reitbauer, a Dolinschek GmbH, a B.T.S. Trendfloor Raumausstattungs‑GmbH, a Elektrounternehmen K. Maschke GmbH, Klaus Egger e a Architekt DI Klaus Egger Ziviltechniker GmbH (a seguir «Reitbauer e o.») a Enrico Casamassima, com domicílio em Itália, a respeito de uma ação de oposição ao estado de repartição do produto de uma adjudicação judicial de um imóvel, situado na Áustria.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Os considerandos 15, 21 e 34 do Regulamento n.o 1215/2012 têm a seguinte redação:

«(15)      As regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar‑se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido. Os tribunais deverão estar sempre disponíveis nesta base, exceto nalgumas situações bem definidas em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam um critério de conexão diferente. No respeitante às pessoas coletivas, o domicílio deve ser definido de forma autónoma, de modo a aumentar a transparência das regras comuns e evitar os conflitos de jurisdição.

[…]

(21)      O funcionamento harmonioso da justiça obriga a minimizar a possibilidade de intentar processos concorrentes e a evitar que sejam proferidas decisões inconciliáveis em Estados‑Membros diferentes. Importa prever um mecanismo claro e eficaz para resolver os casos de litispendência e de conexão e para obviar aos problemas resultantes das divergências nacionais quanto à determinação do momento a partir do qual os processos são considerados pendentes. Para efeitos do presente regulamento, é conveniente fixar esta data de forma autónoma.

[…]

(34)      Para assegurar a continuidade entre a Convenção [de 27 de setembro de 1968, relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186)], o Regulamento (CE) n.o 44/2001 [do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1),] e o presente regulamento, há que prever disposições transitórias. A mesma continuidade deverá ser assegurada no que diz respeito à interpretação, pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, da Convenção de Bruxelas de 1968 e dos regulamentos que a substituem.»

4        O capítulo II deste regulamento, intitulado «Competência», contém, nomeadamente, uma secção 1, «Disposições gerais», e uma secção 2, «Competências especiais». O artigo 4.o, n.o 1, que figura nesta secção 1, dispõe:

«Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado‑Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado‑Membro.»

5        O artigo 7.o do referido regulamento tem a seguinte redação:

«As pessoas domiciliadas num Estado‑Membro podem ser demandadas noutro Estado‑Membro:

1)      a)      Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;

b)      Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:

–        no caso da venda de bens, o lugar num Estado‑Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,

–        no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado‑Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados,

[…]»

6        Nos termos do artigo 24.o, pontos 1 e 5, do mesmo regulamento:

«Têm competência exclusiva os seguintes tribunais de um Estado‑Membro, independentemente do domicílio das partes:

1)      Em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis, os tribunais do Estado‑Membro onde se situa o imóvel.

[…]

5)      Em matéria de execução de decisões, os tribunais do Estado‑Membro do lugar da execução.»

 Direito austríaco

 EO

7        Resulta dos artigos 209.o a 212.o do Exekutionsordnung (Código de Processo Executivo, a seguir «EO») que a repartição do produto da venda coerciva de um bem deve ser negociada oralmente. Para o efeito, os credores são convidados a declarar os seus créditos sobre o produto a repartir e a comprová‑los mediante prova documental. Na audiência, é verificada a exatidão e a graduação dos créditos.

8        No âmbito do processo de repartição do produto da venda coerciva, os credores e o devedor podem opor‑se, nos termos do artigo 213.o do EO, a que sejam tidos em conta determinados créditos. A oposição pode ter por objeto a existência, a graduação ou o montante de um crédito declarado.

9        Nos termos do artigo 231.o, n.o 1, do EO, o juiz pronuncia‑se sobre as questões de direito suscitadas pela oposição mediante despacho de repartição. Quando a decisão sobre a oposição depende do apuramento dos factos controvertidos, o demandante é convidado, no despacho de repartição, a intentar uma ação de oposição ao estado de repartição.

10      Segundo o artigo 232.o do EO, o órgão jurisdicional de execução tem competência para conhecer da ação de oposição ao estado de repartição.

 AnfO

11      Nos termos do artigo 1.o da Anfetungsordnung (Lei relativa à Ação Pauliana, a seguir «AnfO»), mediante a ação pauliana, os atos jurídicos realizados em prejuízo do património do devedor são declarados inoponíveis unicamente em relação ao credor que os impugna. Esta ação pode ser intentada quando a execução do património do devedor não permitiu ou não vai permitir satisfazer integralmente o direito do credor e, através dessa ação, seja possível obter tal satisfação.

12      Resulta dos artigos 2.o e 3.o da AnfO que a ação pauliana pode ser intentada quando haja intenção de fraude ou de delapidação do património, incluindo atos de disposição a título gratuito.

13      Em conformidade com o artigo 6.o da AnfO, o facto de o ato controvertido ter sido realizado ao abrigo de um título executivo ou em execução de uma decisão judicial não obsta à ação pauliana.

14      Como resulta do artigo 10.o da Anfo, a ação pauliana pode ser intentada no âmbito do processo de repartição do produto da venda coerciva.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

15      E. Casamassima e C., com domicílio em Roma (Itália), viveram maritalmente, pelo menos, até à primavera de 2014. Em 2010, compraram uma casa em Villach (Áustria). No registo predial, só C. estava inscrita como proprietária.

16      Em seguida, foram encomendadas a Reitbauer e o. obras de renovação do imóvel. Uma vez que os pagamentos por esses trabalhos não foram integralmente cumpridos, Reitbauer e o. intentaram uma ação de indemnização contra C. O pedido foi julgado procedente por uma série de sentenças, entre as quais a primeira, não transitada em julgado, proferida no início de 2014.

17      Em 7 de maio de 2014, C. reconheceu, perante um tribunal de Roma, que tinha uma dívida para com E. Casamassima relativa a um mútuo, no valor de 349 772,95 euros, cujas condições de reembolso em cinco anos tinham sido acordadas no âmbito de uma transação judicial. Além disso, comprometeu‑se a registar uma hipoteca sobre o bem imóvel situado em Villach para garantir esse crédito.

18      Por ato notarial de 13 de junho de 2014, outorgado em Viena (Áustria), C. procedeu a um novo reconhecimento da referida dívida. Em 18 de junho de 2014, foi inscrita no registo predial uma garantia real sobre o imóvel em causa a favor de E. Casamassima.

19      A primeira sentença proferida a favor de Reitbauer e o., no início de 2014 na sequência da ação de indemnização, só se tornou executória após a inscrição da garantia real a favor de E. Casamassima, pelo que as garantias de Reitbauer e o. sobre o bem de C. decorrentes da execução dessa sentença eram de grau inferior à garantia de E. Casamassima.

20      Em 3 de setembro de 2015, o tribunal de Roma homologou a transação judicial celebrada entre C. e E. Casamassima como título executivo europeu, em conformidade com as disposições do Regulamento (CE) n.o 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de abril de 2004, que cria o título executivo europeu para créditos não contestados (JO 2004, L 143, p. 15).

21      Em fevereiro de 2016, E. Casamassima pediu junto do Bezirksgericht Villach (Tribunal de Primeira Instância de Villach, Áustria), o órgão jurisdicional de reenvio, a venda coerciva do imóvel em causa. Resulta da ordem de classificação dos credores, que figura no registo predial, que o preço de 280 000 euros, pelo qual o imóvel foi adjudicado no outono de 2016, era atribuído quase na totalidade a E. Casamassima, com base na garantia real inscrita nesse registo a seu favor.

22      A fim de evitar tal repartição do produto da adjudicação judicial, Reitbauer e o. encetaram várias diligências judiciais.

23      Assim, por um lado, em junho de 2016, Reitbauer e o. intentaram no Landesgericht Klagenfurt (Tribunal Regional de Klagenfurt, Áustria) uma ação pauliana contra E. Casamassima e C. Por Despacho transitado em julgado em julho de 2017, esse órgão jurisdicional, declinando a sua competência internacional tendo em conta o domicílio de E. Casamassima e C. fora da Áustria, julgaram essa ação improcedente.

24      Por outro lado, na audiência realizada em 10 de maio de 2017, perante o órgão jurisdicional de reenvio, em conformidade com os artigos 209.o a 212.o do EO, para efeitos da repartição do produto da adjudicação judicial entre diferentes credores, Reitbauer e o. deduziram oposição, ao abrigo do artigo 213.o do EO, quanto à repartição em relação a E. Casamassima.

25      Após ter deduzido essa oposição, Reitbauer e o. intentaram no órgão jurisdicional de reenvio uma ação de oposição ao estado de repartição, em aplicação do artigo 232.o do EO, no âmbito da qual invocaram dois fundamentos de oposição. O primeiro fundamento visa a declaração de que a atribuição do produto da adjudicação judicial a E. Casamassina foi decidida erradamente, porquanto o crédito deste último estava extinto por compensação com a indemnização de que era devedor em relação a C. pelo facto de ter encomendado obras de renovação a Reitbauer e o. sem o consentimento desta. O segundo fundamento, que o órgão jurisdicional de reenvio equipara a uma ação pauliana, diz respeito ao reconhecimento da dívida de 13 de junho de 2014 que, segundo Reitbauer e o., foi outorgado por ato notarial com o único objetivo de impedir que se apoderassem do imóvel em causa.

26      Para justificar a competência internacional do Bezirksgericht Villach (Tribunal de Primeira Instância de Villach) para conhecer dessa ação, Reitbauer e o. invocaram o artigo 24.o, ponto 5, do Regulamento n.o 1215/2012. Em contrapartida, E. Casamassima suscitou uma exceção de incompetência internacional desse órgão jurisdicional, alegando que a ação no processo principal tem, em substância, uma natureza análoga a uma ação pauliana, a qual, como o Tribunal de Justiça já decidiu, no Acórdão de 26 de março de 1992, Reichert e Kockler (C‑261/90, EU:C:1992:149), não está abrangida por esta regra de competência exclusiva.

27      O órgão jurisdicional de reenvio precisa que, segundo o direito austríaco, na audiência realizada para debater a repartição do produto da adjudicação judicial, pode proceder‑se, em caso de oposição deduzida nos termos do artigo 213.o do EO, à verificação da existência e da graduação dos créditos. Se a decisão sobre a oposição depender do apuramento de factos controvertidos, as partes são convidadas a intentar, no prazo de um mês, uma ação distinta, a saber, a ação de oposição ao estado de repartição.

28      Essa ação suspende a execução da decisão que determina a repartição, no que se refere à parte controvertida.

29      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a ação de oposição ao estado de repartição permite, nomeadamente, proceder à fiscalização da oponibilidade de uma garantia real, como Reitbauer e o. pretendem obter desse órgão jurisdicional com o seu segundo fundamento de oposição. O referido órgão jurisdicional considera que esta possibilidade confere à ação de oposição ao estado de repartição a natureza de uma ação pauliana.

30      No que diz respeito à competência internacional para conhecer de uma ação de oposição ao estado de repartição, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se as regras de competência devem ser examinadas à luz de tal ação apreciada de forma global e abstrata, ou à luz de cada fundamento de oposição suscitado em concreto.

31      Segundo esse órgão jurisdicional, as características deste processo, considerado no seu todo, revelam um nexo estreito com o tribunal do lugar da execução coerciva ou do lugar do bem que constitui a garantia real.

32      Assim, no que se refere às regras de competência exclusiva a favor dos tribunais do Estado‑Membro do lugar de execução, previstas no artigo 24.o, ponto 5, do Regulamento n.o 1215/2012, o órgão jurisdicional de reenvio alega que, segundo o EO, a ação de oposição ao estado de repartição é da competência obrigatória do juiz de execução. Embora seja verdade que a ação ao abrigo do artigo 232.o do EO não visa principalmente opor‑se à execução, uma vez que o devedor já perdeu a propriedade do imóvel no procedimento de adjudicação judicial, o imóvel em causa é substituído, nesta fase, pelo produto da venda, de modo que a repartição deste produto por parte do juiz se enquadra também nas atividades da autoridade de execução.

33      No que diz respeito às regras de competência exclusiva a favor dos tribunais do Estado‑Membro do lugar onde se situa o imóvel, previstas no artigo 24.o, ponto 1, do Regulamento n.o 1215/2012, o órgão jurisdicional de reenvio alega que a ação de oposição ao estado de repartição também está abrangida pelo âmbito de aplicação desta disposição, uma vez que essa ação constitui uma etapa da execução de uma garantia real, que termina com a repartição do produto da venda do bem que constitui a garantia real.

34      Nestas condições, o Bezirksgericht Villach (Tribunal de Primeira Instância de Villach) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 24.o, ponto 5, do [Regulamento n.o 1215/2012] ser interpretado no sentido de que está abrangida pelo âmbito de aplicação desta disposição a ação de oposição prevista no [artigo 232.o do EO], em caso de desacordo sobre a repartição do produto obtido numa venda judicial,

mesmo quando a ação intentada por um credor [com garantia real] contra outro credor [com garantia real]

a)      se baseie na alegação de que o [crédito deste último] relativo a um mútuo com garantia real deixou de existir em razão de um pedido de compensação indemnizatória apresentado pelo devedor, e[,]

b)      além disso, se baseie (à semelhança de uma impugnação pauliana) na alegação de que a constituição da garantia real [para] o mútuo é ineficaz porque favorece [um] credor?

2)      [Em caso de resposta negativa à primeira questão]: [d]eve o artigo 24.o, ponto 1, do [Regulamento n.o 1215/2012] ser interpretado no sentido de que está abrangida pelo âmbito de aplicação desta disposição a ação de oposição prevista no [artigo 232.o do EO], em caso de desacordo sobre a repartição do produto obtido numa venda judicial,

mesmo quando a ação intentada por um credor [com garantia real] contra outro credor [com garantia real]

a)      se baseie na alegação de que o [crédito deste último] relativo a um mútuo com [garantia real] deixou de existir em razão de um pedido de compensação indemnizatória apresentado pelo devedor, e[,]

b)      além disso, se baseie (à semelhança de uma impugnação pauliana) na alegação de que a constituição da garantia real [para] o mútuo é ineficaz porque favorece [um] credor?»

 Quanto às questões prejudiciais

35      Com as suas duas questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 24.o, pontos 1 e 5, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que a ação de oposição ao estado de repartição do produto de uma adjudicação judicial de um imóvel, intentada por um credor, que visa, por um lado, a declaração de extinção por compensação de um crédito concorrente e, por outro, a inoponibilidade da garantia real que garante a execução deste último crédito, é da competência exclusiva dos tribunais do Estado‑Membro onde se situa o imóvel ou dos tribunais do lugar da execução coerciva.

36      A título preliminar, recorde‑se que é jurisprudência constante que, na medida em que o Regulamento n.o 1215/2012 revoga e substitui o Regulamento n.o 44/2001 que, por sua vez, substitui a Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, conforme alterada pelas convenções sucessivas relativas à adesão dos novos Estados‑Membros a esta convenção, a interpretação fornecida pelo Tribunal de Justiça no que respeita às disposições destes últimos instrumentos é igualmente válida para o Regulamento n.o 1215/2012, quando essas disposições podem ser qualificadas de «equivalentes» (v., neste sentido, Acórdãos de 31 de maio de 2018, Nothartová, C‑306/17, EU:C:2018:360, n.o 18; de 15 de novembro de 2018, Kuhn, C‑308/17, EU:C:2018:911, n.o 31; e de 28 de fevereiro de 2019, Gradbeništvo Korana, C‑579/17, EU:C:2019:162, n.o 45 e jurisprudência referida).

37      O sistema de atribuição de competências comuns previstas no capítulo II do Regulamento n.o 1215/2012 baseia‑se na regra geral, enunciada no artigo 4.o, n.o 1, deste regulamento, segundo a qual as pessoas domiciliadas num Estado‑Membro devem ser demandadas nos tribunais desse Estado, independentemente da nacionalidade das partes.

38      Só por derrogação a esta regra geral da competência dos tribunais do domicílio do demandado é que o artigo 24.o do Regulamento n.o 1215/2012 prevê regras de competência exclusiva, nomeadamente em matéria de direitos reais sobre imóveis e de execução de decisões. Estas regras especiais de competência devem, consequentemente, ser objeto de interpretação estrita.

39      Resulta do pedido de decisão prejudicial que, segundo as regras pertinentes do EO, na sequência de um procedimento de adjudicação judicial de um imóvel, a repartição do produto da execução coerciva é decidida numa audiência, realizada perante o juiz de execução. Nessa ocasião, se for deduzida oposição ao direito de participação de um credor, o juiz deverá proceder a verificações relativas, nomeadamente, à existência ou à graduação dos créditos. No caso de a decisão sobre a oposição depender da verificação de factos controvertidos, as partes são convidadas a intentar uma ação de oposição ao estado da repartição.

40      No caso em apreço, em apoio da ação de oposição ao estado da repartição no processo principal, Reitbauer e o. invocaram, por um lado, a extinção por compensação do crédito de E. Casamassima e, por outro, a inoponibilidade da garantia real que garante a execução desse crédito, revestindo esta última objeção, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a natureza de uma ação pauliana.

41      Embora seja inegável que, analisada no seu todo, a ação de oposição ao estado da repartição apresenta um nexo com o processo de execução relativo à venda coerciva imobiliária, não deixa de ser verdade que, como resulta dos elementos dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça, os fundamentos de oposição suscitados no âmbito dessa ação podem ser muito diversos no que respeita ao seu conteúdo e revestir assim uma natureza jurídica diferente, de modo que a sua proximidade com a execução coerciva ou com os direitos reais sobre imóveis pode variar consideravelmente.

42      Portanto, uma análise global da ação de oposição ao estado da repartição para efeitos da determinação de regras de competência internacional aplicáveis a esta ação seria, como salientou, em substância, o advogado‑geral, nos n.os 35, 38 e 48 das suas conclusões, contrária à interpretação estrita, imposta pelo seu caráter derrogatório, das regras de competência exclusiva previstas no artigo 24.o, pontos 1 e 5, do Regulamento n.o 1215/2012.

43      Tendo em conta estas considerações, importa examinar se, por um lado, o artigo 24.o, ponto 1, do Regulamento n.o 1215/2012 e, por outro, o artigo 24.o, ponto 5, deste regulamento permitem determinar o foro competente para conhecer, respetivamente, de cada um dos fundamentos de oposição suscitados por Reitbauer e o.

 Quanto ao artigo 24.o, ponto 1, do Regulamento n.o 1215/2012

44      No que respeita à competência dos tribunais do Estado onde se situa o imóvel, prevista no artigo 24.o, ponto 1, do Regulamento n.o 1215/2012, o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que essa competência exclusiva não abrange a totalidade das ações relativas a direitos reais sobre imóveis, mas apenas aquelas que, ao mesmo tempo, entram no âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1215/2012 e se destinam, por um lado, a determinar o alcance, a consistência, a propriedade, a posse de um bem imóvel ou a existência de outros direitos reais sobre esses bens e, por outro, a assegurar aos titulares desses direitos a proteção das prerrogativas associadas ao seu título (Acórdãos de 3 de abril de 2014, Weber, C‑438/12, EU:C:2014:212, n.o 42; de 17 de dezembro de 2015, Komu e o., C‑605/14, EU:C:2015:833, n.o 26; e de 16 de novembro de 2016, Schmidt, C‑417/15, EU:C:2016:881, n.o 30).

45      Por conseguinte, não é suficiente que na ação esteja em causa um direito real sobre imóveis ou que a ação tenha um nexo com um imóvel, para determinar a competência do tribunal do Estado‑Membro onde se situa o imóvel. Pelo contrário, é necessário que a ação se baseie num direito real e não num direito pessoal (Acórdão de 16 de novembro de 2016, Schmidt, C‑417/15, EU:C:2016:881, n.o 34).

46      No que respeita, em primeiro lugar, ao fundamento de oposição destinado à declaração da extinção por compensação do crédito de E. Casamassima, há que observar que, com esse pedido, Reitbauer e o. visam, em substância, contestar a existência do crédito que lhes foi oposto no âmbito da repartição do preço da adjudicação judicial.

47      Ora, embora seja verdade que a existência do crédito serviu de base à constituição da garantia real e à execução subsequente, esse pedido de compensação não assenta num direito real. Por conseguinte, o facto de saber se o crédito de E. Casamassima sobre a sua devedora se extinguiu por compensação não está relacionado com as razões que permitem atribuir a competência exclusiva aos tribunais do lugar onde se situa o imóvel, a saber, a necessidade de proceder a verificações, inquéritos e peritagens no local (v., neste sentido, Acórdão de 17 de dezembro de 2015, Komu e o., C‑605/14, EU:C:2015:833, n.o 31 e jurisprudência referida).

48      Em segundo lugar, quanto ao fundamento pelo qual Reitbauer e o. contestam o mérito do ato notarial de reconhecimento de dívida outorgado entre E. Casamassima e C., em 13 de junho de 2014, que serviu de base à execução coerciva e pedem a declaração de inoponibilidade desse ato a seu respeito, há que observar que o exame de tal argumentação não exige a apreciação de factos nem a aplicação das regras e dos usos do local onde se situa o bem que sejam suscetíveis de justificar a competência de um juiz do Estado‑Membro onde se situa o imóvel (Acórdão de 10 de janeiro de 1990, Reichert e Kockler, C‑115/88, EU:C:1990:3, n.o 12).

49      Com efeito, tal fundamento de oposição, equiparado pelo órgão jurisdicional de reenvio a uma ação pauliana, assenta no direito de crédito, direito pessoal do credor relativamente ao devedor, e tem por objeto proteger o direito de garantia de que o primeiro pode dispor sobre o património do segundo (Acórdão de 4 de outubro de 2018, Feniks, C‑337/17, EU:C:2018:805, n.o 40).

50      Consequentemente, como foi igualmente salientado pelo advogado‑geral no n.o 58 das suas conclusões, a análise da questão de saber se estão reunidas as condições de uma ação deste tipo não pressupõe verificações estritamente relacionadas com o lugar onde se situa o imóvel, suscetíveis de justificar uma competência exclusiva dos tribunais do Estado‑Membro onde se situa esse imóvel.

 Quanto ao artigo 24.o, ponto 5, do Regulamento n.o 1215/2012

51      A título preliminar, importa recordar que, segundo esta disposição, em matéria de execução das decisões, só são competentes, sem consideração do domicílio das partes, os tribunais do Estado‑Membro do lugar de execução.

52      Segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, entram no âmbito de aplicação do artigo 24.o, ponto 5, do Regulamento n.o 1215/2012 as ações destinadas a dirimir um conflito relativo ao recurso à força, à coerção ou ao desapossamento de bens móveis e imóveis para assegurar a execução material de decisões e atos (v., neste sentido, Acórdão de 26 de março de 1992, Reichert e Kockler, C‑261/90, EU:C:1992:149, n.o 28).

53      Em primeiro lugar, no que respeita ao fundamento de oposição, suscitado por Reitbauer e o., destinado à declaração da extinção por compensação do crédito de E. Casamassima, há que observar que o exame do mérito desse pedido se afasta das questões relativas à execução coerciva enquanto tal.

54      Ora, como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, a especificidade do nexo exigido no artigo 16.o, ponto 5, da Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, conforme alterada pelas convenções sucessivas relativas à adesão dos novos Estados‑Membros a esta convenção, cujas disposições foram transcritas no artigo 24.o, ponto 5, do Regulamento n.o 1215/2012, implica que uma parte não pode invocar a competência que esta disposição confere aos tribunais do lugar de execução para submeter a esses tribunais, por via de exceção, um litígio que é da competência dos tribunais de outro Estado‑Membro (v., neste sentido, Acórdão de 4 de julho de 1985, AS‑Autoteile Service, 220/84, EU:C:1985:302, n.o 17).

55      Em segundo lugar, no que respeita ao fundamento de oposição equiparado pelo órgão jurisdicional de reenvio a uma ação pauliana, importa observar que, com o mesmo, Reitbauer e o. não impugnam os atos das autoridades encarregadas da execução coerciva, em si mesmos, pelo que tal ação não apresenta o grau de proximidade exigido com essa execução para justificar a aplicação da regra de competência exclusiva prevista no artigo 24.o, ponto 5, do Regulamento n.o 1215/2012.

56      Não obstante, e para dar ao órgão jurisdicional de reenvio todas as indicações úteis para decidir o litígio que lhe foi submetido, há que examinar, como fez o advogado‑geral, se o artigo 7.o, ponto 1, alínea a), do Regulamento n.o 1215/2012 não fornece uma base jurídica para a competência internacional desse órgão jurisdicional no que respeita à ação pauliana.

57      Segundo esta disposição, em matéria contratual, as pessoas domiciliadas num Estado‑Membro podem ser demandadas noutro Estado‑Membro, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão.

58      A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que a ação pauliana, quando intentada com fundamento em direitos de crédito decorrentes de obrigações assumidas com a celebração de um contrato, está abrangida pela «matéria contratual», na aceção do artigo 7.o, ponto 1, alínea a), do Regulamento n.o 1215/2012 (Acórdão de 4 de outubro de 2018, Feniks, C‑337/17, EU:C:2018:805, n.o 44).

59      No caso em apreço, como Reitbauer e o. e a Comissão Europeia alegaram, em substância, na audiência, uma vez que o segundo fundamento de oposição equiparado pelo órgão jurisdicional de reenvio a uma ação pauliana foi formulado com vista à declaração de inoponibilidade a Reitbauer e o. da garantia real constituída a favor de E. Casamassima por C., devedora comum à qual cada um desses credores estava contratualmente vinculado, o foro do domicílio do demandado poderia ser completado pelo foro permitido pelo artigo 7.o, ponto 1, alínea a), do Regulamento n.o 1215/2012.

60      Tal foro responde, tendo em conta origem contratual das relações entre os credores e C., tanto à exigência de segurança jurídica e de previsibilidade como ao objetivo de boa administração da justiça.

61      Consequentemente, os titulares de direitos de crédito decorrentes de um contrato podem intentar uma ação pauliana no tribunal do «lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão», que é o foro permitido nos termos do artigo 7.o, ponto 1, alínea a), do Regulamento n.o 1215/2012. No caso em apreço, com o segundo fundamento, Reitbauer e o. procuram preservar os seus interesses no cumprimento das obrigações decorrentes dos contratos de empreitada de obras de renovação, celebrados com C. Daqui se conclui que o «lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão» é, em conformidade com o artigo 7.o, ponto 1, alínea b), deste regulamento, o lugar onde, por força desses contratos, essas obras de renovação foram realizadas, a saber, a Áustria.

62      Tendo em conta estas considerações, há que responder às questões submetidas que o artigo 24.o, pontos 1 e 5, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que a ação de oposição ao estado de repartição do produto de uma adjudicação judicial de um imóvel, intentada por um credor, que visa, por um lado, a declaração da extinção por compensação de um crédito concorrente e, por outro, a inoponibilidade da garantia real que garante a execução deste último crédito, não é da competência exclusiva dos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro onde o imóvel se encontra situado ou dos órgãos jurisdicionais do lugar de execução coerciva.

 Quanto às despesas

63      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

O artigo 24.o, pontos 1 e 5, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que a ação de oposição ao estado de repartição do produto de uma adjudicação judicial de um imóvel, intentada por um credor, que visa, por um lado, a declaração da extinção por compensação de um crédito concorrente e, por outro, a inoponibilidade da garantia real que garante a execução deste último crédito, não é da competência exclusiva dos órgãos jurisdicionais do EstadoMembro onde o imóvel se encontra situado ou dos órgãos jurisdicionais do lugar de execução coerciva.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.