Language of document : ECLI:EU:C:2019:1079

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

12 de dezembro de 2019 (*)

«Reenvio prejudicial — Tramitação prejudicial urgente — Cooperação policial e judiciária em matéria penal — Mandado de detenção europeu — Decisão‑Quadro 2002/584/JAI — Artigo 6.o, n.o 1 — Conceito de “autoridade judiciária de emissão” — Critérios — Mandado de detenção europeu emitido pelo Ministério Público de um Estado‑Membro para efeitos da execução de uma pena»

No processo C‑627/19 PPU,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão, Países Baixos), por Decisão de 22 de agosto de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 22 de agosto de 2019, no processo relativo à execução de um mandado de detenção europeu emitido contra

ZB,



O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: J.‑C. Bonichot, presidente de secção, M. Safjan, L. Bay Larsen, C. Toader (relatora) e N. Jääskinen, juízes,

advogado‑geral: M. Campos Sánchez‑Bordona,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 24 de outubro de 2019,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de ZB, por M. A. C. de Bruijn, advocaat,

–        em representação do Openbaar Ministerie, por K. van der Schaft e N. Bakkenes,

–        em representação do Governo neerlandês, por M. K. Bulterman e J. Langer, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo belga, por C. Van Lul, C. Pochet e J.‑C. Halleux, na qualidade de agentes,

–        em representação da Irlanda, por G. Hodge e M. Browne, na qualidade de agentes, assistidas por R. Kennedy, SC,

–        em representação do Governo espanhol, por L. Aguilera Ruiz, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo francês, por A. Daniel e A.‑L. Desjonquères, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por L. Fiandaca, avvocato dello Stato,

–        em representação do Governo finlandês, por M. Pere, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por S. Grünheid e R. Troosters, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 26 de novembro de 2019,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24) (a seguir «Decisão‑Quadro 2002/584»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito da execução, nos Países Baixos, de um mandado de detenção europeu emitido em 24 de abril de 2019 pelo Procureur des Konings te Brussel (Procurador do Rei de Bruxelas, Bélgica) para efeitos da execução de duas penas privativas de liberdade proferidas contra ZB.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Os considerandos 5, 6, 10 e 12 da Decisão‑Quadro 2002/584 têm a seguinte redação:

«(5)      O objetivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduz à supressão da extradição entre os Estados‑Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias. Acresce que a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal permite suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos atuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que até ao momento prevaleceram entre Estados‑Membros devem dar lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré‑sentencial como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.

(6)      O mandado de detenção europeu previsto na presente decisão‑quadro constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de “pedra angular” da cooperação judiciária.

[…]

(10)      O mecanismo do mandado de detenção europeu é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados‑Membros. A execução desse mecanismo só poderá ser suspensa no caso de violação grave e persistente, por parte de um Estado‑Membro, dos princípios enunciados no n.o 1 do artigo 6.o [UE], verificada pelo Conselho nos termos do n.o 1 do artigo 7.o [UE] e com as consequências previstas no n.o 2 do mesmo artigo.

[…]

(12)      A presente decisão‑quadro respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos pelo artigo 6.o [UE] e consignados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia […], nomeadamente o seu capítulo VI. […]»

4        O artigo 1.o desta decisão‑quadro, sob a epígrafe «Definição de mandado de detenção europeu e obrigação de o executar», dispõe:

«1.      O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2.      Os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.

3.      A presente decisão‑quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.o [UE].»

5        O artigo 2.o da referida decisão‑quadro, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação do mandado de detenção europeu», prevê, no seu n.o 1:

«O mandado de detenção europeu pode ser emitido por factos puníveis, pela lei do Estado‑Membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses ou, quando tiver sido decretada uma pena ou aplicada uma medida de segurança, por sanções de duração não inferior a quatro meses.»

6        Nos termos do artigo 6.o da mesma Decisão‑Quadro 2002/584, sob a epígrafe «Determinação das autoridades judiciárias competentes»:

«1.      A autoridade judiciária de emissão é a autoridade judiciária do Estado‑Membro de emissão competente para emitir um mandado de detenção europeu nos termos do direito desse Estado.

2.      A autoridade judiciária de execução é a autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução competente para executar o [mandado] de detenção europeu nos termos do direito desse Estado.

3.      Cada Estado‑Membro informa o Secretariado‑Geral do Conselho da autoridade judiciária competente nos termos do respetivo direito nacional.»

7        O artigo 8.o desta decisão‑quadro, sob a epígrafe «Conteúdo e formas do mandado de detenção europeu», dispõe, no seu n.o 1:

«O mandado de detenção europeu contém as seguintes informações, apresentadas em conformidade com o formulário em anexo:

[…]

c)      Indicação da existência de uma sentença com força executiva, de um mandado de detenção ou de qualquer outra decisão judicial com a mesma força executiva abrangida pelo âmbito de aplicação dos artigos 1.o e 2.o;

[…]

f)      Pena proferida, caso se trate de uma sentença transitada em julgado, ou a medida da pena prevista pela lei do Estado‑Membro de emissão para essa infração;

[…]»

 Direito belga

 Constituição belga

8        Segundo o artigo 151.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da belgische Grondwet (Constituição belga):

«Os juízes são independentes no exercício das suas competências jurisdicionais. O Ministério Público é independente no exercício de investigações e ações penais individuais, sem prejuízo do direito do ministro competente de ordenar ações penais e emitir diretrizes vinculativas de política criminal, incluindo em matéria de política de investigação e de ação penal.»

 Lei Relativa ao Mandado de Detenção Europeu

9        O artigo 32.o, n.o 2, da wet betreffende het Europees aanhoudingsbevel (Lei Relativa ao Mandado de Detenção Europeu), de 19 de dezembro de 2003 (Belgisch Staatsblad de 22 de dezembro de 2003, p. 60075), dispõe:

«Havendo razões para admitir que uma pessoa procurada para efeitos de cumprimento de uma pena ou de uma medida de segurança se encontra no território de outro Estado‑Membro da União Europeia, o Procurador do Rei emite um mandado de detenção europeu sob a forma e nas condições previstas nos artigos 2.o e 3.o

Se, neste caso, a pena ou a medida de segurança foram aplicadas por uma decisão proferida à revelia, e se a pessoa procurada não foi citada pessoalmente nem informada por qualquer outro meio da data e local da audiência que precedeu a decisão proferida à revelia, do mandado de detenção europeu deve constar que a pessoa procurada tem direito a recorrer na Bélgica e a ser julgada na sua presença.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

10      Em 24 de abril de 2019, o procureur du Roi de Bruxelles (Procurador do Rei de Bruxelas) emitiu um mandado de detenção europeu contra ZB para efeitos da execução de uma sentença proferida em 7 de fevereiro de 2019 pelo tribunal de première instance francophone de Bruxelles (Tribunal de Primeira Instância de Língua Francesa de Bruxelas, Bélgica), pela qual ZB foi condenado a penas de prisão de trinta meses e de um ano.

11      Em 3 de maio de 2019, ZB foi detido nos Países Baixos, com base no mandado de detenção europeu.

12      No mesmo dia, o Openbaar Ministerie (Ministério Público, Países Baixos), em aplicação do artigo 23.o da Overleveringswet (Lei Relativa à Entrega), de 29 de abril de 2004, na sua versão aplicável ao processo principal, apresentou ao rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão, Países Baixos) um pedido de apreciação do referido mandado de detenção europeu.

13      O órgão jurisdicional de reenvio alega, por um lado, que resulta das informações fornecidas pelas autoridades belgas no âmbito do processo principal que, na Bélgica, os membros do Ministério Público participam na administração da justiça e atuam com independência, sem correrem o risco de estar sujeitos, direta ou indiretamente, a ordens ou a instruções individuais do poder executivo.

14      Por outro lado, este órgão jurisdicional constata que a regulamentação belga relativa ao mandado de detenção europeu não prevê a possibilidade de interposição de um recurso distinto contra a decisão de emitir tal mandado.

15      O referido órgão jurisdicional interroga‑se, assim, sobre se a condição que figura no n.o 75 do Acórdão de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau) (C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456), nos termos do qual a decisão de emitir um mandado de detenção europeu e, nomeadamente, o caráter proporcionado desta decisão devem poder ser objeto de um recurso judicial que cumpra plenamente os requisitos inerentes a uma proteção jurisdicional efetiva, é igualmente aplicável quando o mandado de detenção europeu visa a execução de uma pena privativa de liberdade.

16      Embora o órgão jurisdicional de reenvio considere que os requisitos estabelecidos nos Acórdãos de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau) (C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456), e de 27 de maio de 2019, PF (Procurador‑Geral da Lituânia) (C‑509/18, EU:C:2019:457), devem ser cumpridos por todos os mandados de detenção europeus, quer estes sejam emitidos para efeitos de procedimento penal quer da execução de uma pena, incluindo quando procedem de uma decisão com força executiva proferida por um órgão jurisdicional, o mesmo salienta, não obstante, que, no caso em apreço, a autoridade judiciária de emissão e o Ministério Público neerlandês partilham de opinião contrária.

17      Neste contexto, o rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«No caso de um [mandado de detenção europeu] que visa a execução de uma pena privativa da liberdade aplicada por uma decisão com força executiva proferida por um juiz ou por um órgão jurisdicional, sendo que o [mandado de detenção europeu] foi emitido por um magistrado do Ministério Público que participa na administração da justiça no Estado‑Membro de emissão e existe a garantia de que esse magistrado atua de forma independente no exercício das suas funções inerentes à emissão de um mandado de detenção europeu, também se aplica a condição de que a decisão de emitir um [mandado de detenção europeu] — e, nomeadamente, o seu caráter proporcionado — deve ser suscetível de recurso judicial que cumpra plenamente as exigências de uma proteção judicial efetiva?»

 Quanto à tramitação urgente

18      Em 17 de setembro de 2019, a Primeira Secção do Tribunal de Justiça decidiu, sob proposta da juíza‑relatora, ouvido o advogado‑geral, submeter à tramitação prejudicial urgente o reenvio prejudicial no processo C‑627/19 PPU.

19      Com efeito, após ter salientado que o reenvio tinha por objeto a interpretação da Decisão‑Quadro 2002/584, pelo título V da parte III do Tratado FUE, relativo ao espaço de liberdade, segurança e justiça, e, portanto, como solicitado pelo órgão jurisdicional de reenvio, podia ser sujeito à tramitação prejudicial urgente prevista no artigo 23.o‑A do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a Primeira Secção do Tribunal de Justiça baseou‑se na circunstância de ZB ter sido colocado, desde 3 de maio de 2019, em prisão preventiva, tendo em vista a extradição, até ser adotada uma decisão relativa à execução do mandado de detenção europeu emitido contra si, e de a manutenção da sua detenção depender da resolução do litígio no processo principal.

 Quanto à questão prejudicial

20      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Decisão‑Quadro 2002/584 deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que, apesar de atribuir a competência para emitir um mandado de detenção europeu para efeitos da execução de uma pena a uma autoridade que, embora participando na administração da justiça desse Estado‑Membro, não é, ela mesma, um órgão jurisdicional, não prevê a existência de um recurso judicial distinto contra a decisão dessa autoridade de emitir tal mandado de detenção europeu.

21      A este respeito, há que recordar, em primeiro lugar, que tanto o princípio da confiança mútua entre os Estados‑Membros como o princípio do reconhecimento mútuo, ele próprio assente na confiança recíproca entre estes últimos, são, no direito da União, de fundamental importância, dado que permitem a criação e a manutenção de um espaço sem fronteiras internas. Mais especificamente, o princípio da confiança mútua impõe a cada um desses Estados‑Membros, designadamente no que respeita ao espaço de liberdade, segurança e justiça, que considere, salvo em circunstâncias excecionais, que todos os restantes Estados‑Membros respeitam o direito da União e, em especial, os direitos fundamentais reconhecidos por esse direito [Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.o 36 e jurisprudência referida].

22      Há igualmente que observar que a Decisão‑Quadro 2002/584, como resulta do seu considerando 6, constitui a primeira concretização, no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo das sentenças e das decisões judiciais, consagrado no artigo 82.o, n.o 1, TFUE, que substituiu o artigo 31.o UE com base no qual esta decisão‑quadro foi adotada. Desde então, a cooperação judiciária em matéria penal tem vindo a dotar‑se de instrumentos jurídicos cuja aplicação coordenada se destina a reforçar a confiança dos Estados‑Membros nas suas respetivas ordens jurídicas nacionais, com o objetivo de assegurar o reconhecimento e a execução, na União, das sentenças em matéria penal, a fim de evitar a total impunidade dos autores das infrações.

23      O princípio do reconhecimento mútuo, que está subjacente à economia da Decisão‑Quadro 2002/584, implica, nos termos do artigo 1.o, n.o 2, desta decisão, que os Estados‑Membros são, em princípio, obrigados a cumprir o mandado de detenção europeu (Acórdão de 16 de novembro de 2010, Mantello, C‑261/09, EU:C:2010:683, n.o 36 e jurisprudência referida).

24      Com efeito, segundo as disposições da Decisão‑Quadro 2002/584, os Estados‑Membros apenas podem recusar dar execução a tal mandado nos casos de não execução obrigatória previstos pelo artigo 3.o desta e nos casos de não execução facultativa enumerados nos seus artigos 4.o e 4.o‑A. Além disso, a autoridade judiciária de execução apenas pode subordinar a execução de um mandado de detenção europeu às condições definidas no artigo 5.o da referida decisão‑quadro (Acórdão de 29 de janeiro de 2013, Radu, C‑396/11, EU:C:2013:39, n.o 36 e jurisprudência referida).

25      O Tribunal de Justiça declarou igualmente que apenas os mandados de detenção europeus, na aceção do artigo 1.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, devem ser executados em conformidade com as disposições desta. Ora, resulta deste artigo que esse mandado de detenção constitui uma «decisão judiciária», o que exige que seja emitido por uma «autoridade judiciária», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, desta decisão‑quadro [Acórdão de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau), C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456, n.o 46 e jurisprudência referida].

26      No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio sustenta que resulta das informações comunicadas pelas autoridades belgas no âmbito do processo principal que, na Bélgica, as procuradorias cumprem os requisitos estabelecidos nos n.os 51 e 74 do Acórdão de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau) (C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456), para serem qualificadas de «autoridade judiciária de emissão», na medida em que participam na administração da justiça penal desse Estado‑Membro e atuam com independência no exercício das funções inerentes à emissão de um mandado de detenção europeu.

27      A este respeito, o Governo belga confirmou igualmente, nas suas observações escritas e orais, que a independência do Ministério Público no exercício de investigações e de ações penais individuais é garantida pela Constituição belga. O Governo belga, também observou que, embora o ministro da Justiça possa emitir diretrizes em matéria de política penal, estas não constituem nem injunções nem instruções dirigidas a um processo específico.

28      No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio interrogou‑se sobre a questão de saber se, à luz do n.o 75 do Acórdão de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau) (C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456), a decisão de emitir um mandado de detenção europeu para efeitos da execução de uma pena deve poder ser objeto de recurso judicial no Estado‑Membro de emissão.

29      A este respeito, o sistema do mandado de detenção europeu inclui uma proteção em dois níveis dos direitos em matéria processual e dos direitos fundamentais de que deve beneficiar a pessoa procurada, uma vez que, à proteção judiciária prevista no primeiro nível, no momento da adoção de uma decisão judiciária nacional, como um mandado de detenção nacional, acresce a que deve ser garantida no segundo nível, no momento da emissão do mandado de detenção europeu, que pode ocorrer, se for caso disso, num curto prazo, após a adoção da referida decisão judiciária nacional [Acórdão de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau), C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456, n.o 67 e jurisprudência referida].

30      Assim, no que se refere a uma medida que, como a emissão de um mandado de detenção europeu, pode afetar o direito à liberdade da pessoa em causa, esta proteção implica que uma decisão que cumpre as exigências inerentes a uma proteção jurisdicional efetiva seja adotada, pelo menos, num dos dois níveis da referida proteção [Acórdão de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau), C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456, n.o 68].

31      Em particular, o segundo nível de proteção dos direitos da pessoa em causa implica que a autoridade judiciária de emissão fiscalize o cumprimento das condições necessárias a esta emissão e analise com objetividade, tendo em conta todos os elementos incriminatórios e ilibatórios, e sem correr o risco de estar sujeita a instruções externas, nomeadamente do poder executivo, se a referida emissão reveste caráter proporcionado [v., neste sentido, Acórdão de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau), C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456, n.os 71 e 73].

32      Quanto ao mandado de detenção europeu emitido para efeitos de procedimento penal, o Tribunal de Justiça acrescentou que, quando o direito do Estado‑Membro de emissão atribui a competência para emitir um mandado de detenção europeu a uma autoridade que, embora participando na administração da justiça desse Estado‑Membro, não é, ela mesma, um órgão jurisdicional, a decisão de emitir esse mandado de detenção e, nomeadamente, o caráter proporcionado dessa decisão devem poder estar sujeitos, no referido Estado‑Membro, a um recurso judicial que cumpra plenamente as exigências inerentes a uma proteção jurisdicional efetiva [Acórdão de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau), C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456, n.o 75].

33      No caso em apreço, diferentemente das situações que deram origem aos Acórdãos de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau) (C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456), e de 27 de maio de 2019, PF (Procurador‑Geral da Lituânia) (C‑509/18, EU:C:2019:457), relativos a mandados de detenção europeus emitidos para efeitos de procedimento penal, o processo principal tem por objeto um mandado de detenção europeu emitido para efeitos da execução de uma pena.

34      A este respeito, tal mandado tem por base, como resulta do artigo 8.o, n.o 1, alíneas c) e f), da Decisão‑Quadro 2002/584, uma decisão com força executiva que impõe uma pena privativa de liberdade à pessoa em causa, pela qual a presunção de inocência de que esta pessoa beneficia é invertida num processo judicial que deve respeitar as exigências decorrentes no artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais.

35      Nessa situação, a fiscalização jurisdicional a que o n.o 75 do Acórdão de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau) (C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456), faz referência e que responde à necessidade de assegurar uma proteção jurisdicional efetiva à pessoa procurada com fundamento num mandado de detenção europeu emitido para efeitos da execução de uma pena, é realizada pela decisão com força executiva.

36      Com efeito, a existência de um processo judicial anterior relativo à culpabilidade da pessoa procurada permite à autoridade judiciária de execução presumir que a decisão de emitir um mandado de detenção europeu para efeitos da execução de uma pena decorre de um processo nacional no âmbito do qual a pessoa que é objeto de uma decisão com força executiva beneficiou de todas as garantias próprias à adoção deste tipo de decisão, nomeadamente das que resultam dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais referidos no artigo 1.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2002/584.

37      Além disso, as próprias disposições da Decisão‑Quadro 2002/584 já preveem um processo conforme com as exigências do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais, independentemente das modalidades de implementação dessa decisão‑quadro escolhidas pelos Estados‑Membros (Acórdão de 30 de maio de 2013, F, C‑168/13 PPU, EU:C:2013:358, n.o 47).

38      Por outro lado, quando um mandado de detenção europeu é emitido com vista à execução de uma pena, a sua proporcionalidade resulta da condenação proferida, a qual, como decorre do artigo 2.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, deve consistir numa pena ou numa medida de segurança de duração não inferior a quatro meses.

39      Tendo em consideração o exposto, há que responder à questão submetida que a Decisão‑Quadro 2002/584 deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que, apesar de atribuir a competência para emitir um mandado de detenção europeu para efeitos da execução de uma pena a uma autoridade que, embora participando na administração da justiça desse Estado‑Membro, não é, ela mesma, um órgão jurisdicional, não prevê a existência de um recurso judicial distinto contra a decisão dessa autoridade de emitir tal mandado de detenção europeu.

 Quanto às despesas

40      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

A DecisãoQuadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os EstadosMembros, conforme alterada pela DecisãoQuadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma legislação de um EstadoMembro que, apesar de atribuir a competência para emitir um mandado de detenção europeu para efeitos da execução de uma pena a uma autoridade que, embora participando na administração da justiça desse EstadoMembro, não é, ela mesma, um órgão jurisdicional, não prevê a existência de um recurso judicial distinto contra a decisão dessa autoridade de emitir tal mandado de detenção europeu.

Assinaturas


*      Língua do processo: neerlandês.