Language of document : ECLI:EU:T:2017:323

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Primeira Secção)

10 de maio de 2017 (*)

«Direito institucional — Iniciativa de cidadania europeia — Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento — Acordo Económico e Comercial Global — Falta manifesta de competência da Comissão — Proposta de ato jurídico para efeitos de aplicação dos Tratados — Artigo 11.°, n.° 4, TUE — Artigo 2.°, n.° 1, e artigo 4.°, n.° 2, alínea b), do Regulamento (UE) n.° 211/2011 — Igualdade de tratamento»

No processo T‑754/14,

Michael Efler, residente em Berlim (Alemanha), e os outros recorrentes cujos nomes figuram em anexo (1), representados por B. Kempen, professor,

recorrentes,

contra

Comissão Europeia, representada inicialmente por J. Laitenberger e H. Krämer, em seguida, por H. Krämer e, por último, por H. Krämer e F. Erlbacher, na qualidade de agentes,

recorrida,

que tem por objeto um recurso baseado no artigo 263.° TFUE, destinado à anulação da Decisão C(2014) 6501 final da Comissão, de 10 de setembro de 2014, que indefere o pedido de registo da proposta de iniciativa de cidadania europeia intitulada «Stop TTIP»,

O TRIBUNAL GERAL (Primeira Secção),

composto por: H. Kanninen, presidente, E. Buttigieg (relator) e L. Calvo‑Sotelo Ibáñez‑Martín, juízes,

secretário: S. Bukšek Tomac, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 13 de setembro de 2016,

profere o presente

Acórdão

 Antecedentes do litígio

1        Por decisão de 27 de abril de 2009, o Conselho da União Europeia autorizou a Comissão das Comunidades Europeias a encetar negociações com o Canadá com vista à celebração de um acordo de comércio livre, posteriormente designado «Acordo Económico e Comercial Global») (Comprehensive Economic and Trade Agreement, a seguir «CETA»). Por decisão de 14 de junho de 2013, o Conselho autorizou a Comissão a encetar negociações com os Estados Unidos da América com vista à celebração de um acordo de comércio livre, posteriormente designado «Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento» (Transatlantic Trade and Investment Partnership, a seguir «TTIP»).

2        Em 15 de julho de 2014, os recorrentes, Michael Efler e outros cujos nomes figuram em anexo, enviaram à Comissão, na sua condição de membros do comité de cidadãos constituído para o efeito, um pedido de registo da proposta de iniciativa de cidadania europeia (a seguir «ICE») intitulada «Stop TTIP» (a seguir «proposta de ICE»). A proposta de ICE indica que o seu objeto consiste em que «a Comissão Europeia […] recomende ao Conselho que revogue o mandato de negociação do [TTIP] e não celebre o [CETA]». Como objetivos prosseguidos, a proposta de ICE enuncia que se trata de «impedir o TTIP e o CETA, uma vez que contêm vários pontos críticos, como processos de resolução de litígios entre investidores e Estados e disposições sobre a cooperação normativa que constituem uma ameaça para a democracia e o Estado de direito […], [de] evitar que negociações pouco transparentes enfraqueçam as regras de proteção do trabalho, de proteção social, de proteção ambiental, de proteção da vida privada e de proteção dos consumidores e que os serviços públicos (por exemplo, o fornecimento de água) e a cultura não sejam desregulamentados» e de apoiar «uma política comercial e de investimento diferente na [União Europeia]». A proposta de ICE refere‑se aos artigos 207.° TFUE e 218.° TFUE como fundamento jurídico da referida iniciativa.

3        Com a Decisão C(2014) 6501, de 10 de setembro de 2014 (a seguir «decisão impugnada»), a Comissão recusou registar a proposta de ICE, nos termos do artigo 4.°, n.° 2, alínea b), do Regulamento (UE) n.° 211/2011 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011, sobre a iniciativa de cidadania (JO 2011, L 65, p. 1).

4        A decisão impugnada enuncia, em substância, que uma decisão do Conselho que autoriza a Comissão a encetar negociações com vista à celebração de um acordo com um país terceiro não é um ato jurídico da União Europeia e que uma recomendação relativa à referida decisão não constitui, portanto, uma proposta adequada na aceção do artigo 11.°, n.° 4, TUE e do artigo 2.°, n.° 1, do Regulamento n.° 211/2011, na medida em que essa decisão constitui um ato preparatório da decisão posterior do Conselho de autorizar a assinatura do acordo, como foi negociado, e a sua celebração. Tal decisão preparatória só produz efeitos jurídicos entre as instituições em causa, sem alterar o direito da União, contrariamente ao que sucederia com a decisão de assinar e celebrar um determinado acordo, que poderia ser objeto de uma ICE. A Comissão deduz daqui que o registo da proposta de ICE, na medida em que visa convidá‑la a apresentar ao Conselho uma recomendação para adotar uma decisão que revogue a autorização para a abertura de negociações com vista à celebração do TTIP, deve ser recusado.

5        De resto, a decisão impugnada enuncia que, na medida em que a proposta de ICE pode ser entendida como um convite à Comissão para não apresentar ao Conselho propostas de decisão do Conselho sobre a assinatura e a celebração do CETA ou do TTIP, ou para apresentar ao Conselho propostas de decisão que não autorizem a assinatura desses acordos ou a sua celebração, esse convite também não está abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 2.°, n.° 1, do Regulamento n.° 211/2011, segundo o qual a ICE visa a adoção dos atos jurídicos necessários para aplicar os Tratados e que produzam efeitos jurídicos autónomos.

6        A decisão impugnada conclui, assim, que a proposta de ICE está fora da competência da Comissão nos termos da qual esta pode apresentar uma proposta de ato jurídico da União para efeitos da aplicação dos Tratados, na aceção do artigo 4.°, n.° 2, alínea b), do Regulamento n.° 211/2011, conjugado com o artigo 2.°, n.° 1, do mesmo regulamento.

 Tramitação processual e pedidos das partes

7        Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 10 de novembro de 2014, os recorrentes interpuseram o presente recurso.

8        Por requerimento separado, que deu entrada na Secretaria do Tribunal Geral em 15 de abril de 2016, os recorrentes apresentaram um pedido de medidas provisórias, que foi indeferido por despacho de 23 de maio de 2016, Efler e o./Comissão (T‑754/14 R, não publicado, EU:T:2016:306). Por requerimento de 17 de julho de 2016, os recorrentes interpuseram recurso desse despacho, nos termos do artigo 57.°, segundo parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, ao qual foi negado provimento por despacho do vice‑presidente do Tribunal de Justiça de 29 de setembro de 2016, Efler e o./Comissão [C‑400/16 P(R), não publicado, EU:C:2016:735].

9        Os recorrentes concluem pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        anular a decisão impugnada;

–        condenar a Comissão nas despesas.

10      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar os recorrentes nas despesas.

 Questão de direito

11      Os recorrentes invocam dois fundamentos de recurso, o primeiro, relativo à violação do artigo 11.°, n.° 4, TUE, do artigo 2.°, n.° 1, e do artigo 4.°, n.° 2, alínea b), do Regulamento n.° 211/2011, o segundo, relativo à violação do princípio da igualdade de tratamento.

12      No que se refere ao primeiro fundamento, os recorrentes observam, em primeiro lugar, que, na medida em que a recusa de registo da proposta de ICE se baseia no facto de que as decisões do Conselho que visam autorizar a abertura de negociações com vista à celebração de um acordo internacional são atos preparatórios, não contestam que tais decisões revistam esse caráter. Contudo, o mesmo se pode dizer das decisões do Conselho que autorizam a assinatura de um acordo internacional. Além disso, o Regulamento n.° 211/2011 refere‑se, em geral, a qualquer ato jurídico, sem se limitar aos atos que produzem efeitos definitivos, e nem a génese nem o contexto normativo das disposições em causa indicam que o conceito de «ato jurídico» seja de interpretação estrita. Por último, uma decisão de revogação do mandato de negociação a favor da Comissão poria termo às negociações, seria juridicamente vinculativa e teria, assim, caráter definitivo.

13      Em segundo lugar, os recorrentes observam que, na medida em que a recusa do registo da proposta de ICE se baseia no facto de que as decisões do Conselho que autorizam a abertura de negociações com vista à celebração de um acordo internacional produzem apenas efeitos entre as instituições em causa, o conceito amplo de ato jurídico que figura nos artigos 288.° a 292.° TFUE proíbe negar essa qualidade às decisões da Comissão adotadas à margem do processo legislativo ordinário e excluir estas últimas do âmbito de aplicação das disposições relativas à ICE, uma vez que essas decisões são juridicamente vinculativas. Não resulta do teor dos Tratados, nem da sua sistemática, nem dos objetivos que prosseguem que o princípio da democracia, em que assenta a União, só deva ser aplicado às pessoas afetadas pelo ato jurídico em causa ou às quais este diga respeito. A Comissão contradiz‑se igualmente na medida em que, por outro lado, considera admissível uma ICE de aclamação e de confirmação relativa à assinatura e à celebração de um acordo cujos objeto e conteúdo já tenham sido determinados.

14      Em terceiro lugar, os recorrentes observam que, na medida em que a decisão impugnada se baseia no alegado caráter «destrutivo» das propostas de atos que visam revogar o mandato de negociação da Comissão com vista à celebração do TTIP e apresentar ao Conselho uma proposta para não autorizar a assinatura do TTIP e do CETA ou para não celebrar os referidos acordos, essas propostas não podem ser postas em causa pelo facto de que, em conformidade com o artigo 11.°, n.° 4, TUE e o artigo 2.°, n.° 1, do Regulamento n.° 211/2011, o ato jurídico previsto deve contribuir para «aplicar os Tratados», dado que os atos previstos visam, de uma forma ou de outra, tornar operacionais os fundamentos de competência do direito primário. Segundo os recorrentes, o direito geral dos cidadãos de participar na vida democrática da União inclui a faculdade de agir com vista a modificar atos de direito derivado em vigor, a reformá‑los ou a anulá‑los total ou parcialmente. O registo da proposta de ICE levaria ao aumento do debate público, objetivo principal de qualquer ICE.

15      Por outro lado, se, como defende a Comissão pela primeira vez na contestação, qualquer tipo de tratado internacional, quer vise revogar um tratado existente quer adotar um tratado completamente novo, pudesse ser proposto por uma ICE, seria contraditório que esta não pudesse ter como objeto impedir a celebração de um tratado que está a ser negociado.

16      Os recorrentes acrescentam que uma proposta ao Conselho para não aprovar o CETA não exclui que projetos modificados de acordos transatlânticos de comércio livre possam ser posteriormente elaborados.

17      Por último, a proposta de ICE não está, em qualquer caso, «manifestamente» fora da competência da Comissão, como exige o artigo 4.°, n.° 2, alínea b), do Regulamento n.° 211/2011.

18      Antes de mais, a Comissão observa que a alegação relativa à violação do artigo 11.°, n.° 4, TUE é inoperante, dado que o Regulamento n.° 211/2011, adotado com base no artigo 24.°, primeiro parágrafo, TFUE, constitui a referência para a fiscalização da legalidade das decisões da Comissão relativas ao registo de propostas de ICE.

19      Seguidamente, a Comissão alega que uma decisão do Conselho que a autoriza a encetar negociações com vista à celebração de um acordo internacional, contrariamente a uma decisão do Conselho de assinar tal acordo, tem caráter puramente preparatório, na medida em que só produz efeitos jurídicos nas relações entre as instituições. Ora uma interpretação sistemática e teleológica do artigo 2.°, n.° 1, e do artigo 4.°, n.° 2, alínea b), do Regulamento n.° 211/2011 permite concluir que um ato jurídico de caráter puramente preparatório não é um ato jurídico na aceção das referidas disposições.

20      Por outro lado, segundo a Comissão, só os atos jurídicos cujos efeitos vão além das relações entre as instituições da União podem ser objeto de uma ICE, uma vez que a participação democrática que esta pretende fomentar tem por finalidade que os cidadãos se associem às decisões sobre questões que digam respeito, pelo menos potencialmente, à sua esfera jurídica. O Conselho e a Comissão gozam de suficiente legitimidade democrática indireta para adotar os atos cujos efeitos jurídicos se limitam às instituições.

21      Além disso, segundo a Comissão, a proposta de ICE elude a regra segundo a qual ela não pode ser convidada mediante uma ICE a não propor um determinado ato jurídico ou a propor uma decisão de não adotar um determinado ato jurídico. Com efeito, a redação do artigo 10.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento n.° 211/2011, uma vez que faz referência às «medidas que tenciona tomar», implica que só as ICE destinadas à adoção de um ato jurídico com um conteúdo preciso ou à anulação de um ato jurídico existente são autorizadas. Se a Comissão anunciasse, na sua comunicação prevista no artigo 10.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento n.° 211/2011, que não tinha intenção de propor o ato jurídico correspondente, daí resultaria uma limitação política inaceitável do seu direito de iniciativa. A isso acresce que a função atribuída à ICE, que consiste em levar a Comissão a abordar publicamente o tema objeto da ICE e em suscitar assim um debate político, só pode ser plenamente cumprida com uma proposta de ICE destinada à adoção de um ato jurídico com um conteúdo preciso ou à revogação de um ato jurídico existente. Uma ICE que solicite a não adoção de uma decisão do Conselho já não poderia cumprir a função que consiste em lançar tal debate político pela primeira vez e representaria uma ingerência inadmissível no desenvolvimento de um processo legislativo em curso.

22      Por último, uma decisão do Conselho de não aceitação do TTIP ou do CETA, tal como sugere a proposta de ICE, não teria um alcance autónomo face à simples não adoção de uma decisão do Conselho que aprova a celebração do acordo, de modo que essa decisão seria juridicamente supérflua. Uma ICE com esse objeto teria uma função equivalente a uma ICE que pede que não se apresente uma proposta de ato jurídico e, como tal, seria inadmissível.

23      O Tribunal Geral recorda que o artigo 11.°, n.° 4, TUE enuncia que um milhão, pelo menos, de cidadãos da União, nacionais de um número significativo de Estados‑Membros, pode tomar a iniciativa de convidar a Comissão Europeia a, no âmbito das suas atribuições, apresentar uma proposta adequada em matérias sobre as quais esses cidadãos considerem necessário um ato jurídico da União para aplicar os Tratados.

24      Como indica o considerando 1 do Regulamento n.° 211/2011, pelo qual o Parlamento Europeu e o Conselho estabeleceram, em conformidade com o artigo 24.°, primeiro parágrafo, TFUE, as normas processuais e as condições para a apresentação de uma ICE na aceção do artigo 11.° TUE, o Tratado UE reforça a cidadania da União e melhora o seu funcionamento democrático, prevendo nomeadamente que todos os cidadãos têm o direito de participar na vida democrática da União através de uma ICE (acórdãos de 30 de setembro de 2015, Anagnostakis/Comissão, T‑450/12, pendente de recurso, EU:T:2015:739, n.° 26, e de 19 de abril de 2016, Costantini e o./Comissão, T‑44/14, EU:T:2016:223, n.os 53 e 73). Segundo o mesmo considerando, o referido mecanismo oferece aos cidadãos a possibilidade de, à semelhança do Parlamento pelo artigo 225.° TFUE e do Conselho pelo artigo 241.° TFUE, abordarem diretamente a Comissão, convidando‑a apresentar uma proposta de ato jurídico da União para aplicar os Tratados.

25      Para o efeito, o artigo 2.°, n.° 1, do Regulamento n.° 211/2011 define a ICE como uma iniciativa apresentada à Comissão nos termos desse regulamento, pela qual esta é convidada a apresentar, no âmbito das suas atribuições, «uma proposta adequada sobre matérias em relação às quais os cidadãos consideram necessário um ato jurídico da União para aplicar os Tratados» e que tenha recebido o apoio de pelo menos um milhão de subscritores elegíveis, provenientes de pelo menos um quarto dos Estados‑Membros.

26      Em conformidade com o artigo 4.°, n.° 2, alínea b), e n.° 3, do Regulamento n.° 211/2011, a Comissão recusa o registo da proposta de ICE se a mesma estiver manifestamente fora da competência da Comissão para apresentar uma «proposta de ato jurídico da União para efeitos de aplicação dos Tratados».

27      O artigo 10.°, n.° 1, alínea c), do mesmo regulamento dispõe que quando a Comissão receber a ICE em conformidade com o artigo 9.° desse regulamento, deve apresentar, no prazo de três meses, as suas conclusões jurídicas e políticas sobre a ICE, «as medidas que tenciona tomar, se for caso disso, e os motivos que a levam a tomar ou não tomar essas medidas».

28      No que se refere ao alcance da proposta de ICE, os recorrentes, em resposta a uma questão formulada na audiência, precisaram que esta não tinha por objeto convidar a Comissão a não apresentar ao Conselho uma proposta de ato com vista a autorizar a assinatura do TTIP e do CETA e a celebrar os referidos acordos, mas que se destinava a convidar a Comissão a apresentar ao Conselho, por um lado, uma proposta de ato do Conselho de revogação do mandato de negociação para a celebração do TTIP e, por outro, uma proposta de ato do Conselho que não autorize a Comissão a assinar o TTIP e o CETA nem a celebrar os referidos acordos.

29      Por outro lado, o presente recurso não versa sobre a competência da União para negociar os acordos TTIP e CETA, mas os recorrentes contestam os motivos invocados na decisão impugnada para recusar o registo da proposta de ICE na medida em que esta pretende pôr fim ao mandato de negociação com vista à celebração do TTIP e impedir a assinatura e a celebração do CETA e do TTIP.

30      A este respeito, decorre da decisão impugnada que, segundo a Comissão, o facto de uma decisão do Conselho que a autoriza a encetar negociações para a celebração de um acordo internacional ter caráter preparatório e produzir efeitos jurídicos unicamente entre as instituições impede que se qualifique a referida decisão de ato jurídico na aceção da legislação em causa e opõe‑se ao registo da proposta de ICE na medida em que esta visa a revogação de tal decisão. O mesmo se diga da proposta de ICE na medida em que convida a Comissão a apresentar ao Conselho uma proposta de decisão de não autorizar a assinatura dos acordos em causa e de não os celebrar, porque essa decisão não produz efeitos jurídicos autónomos, ao passo que, segundo o artigo 2.°, n.° 1, do Regulamento n.° 211/2011, a ICE visa a adoção de atos jurídicos necessários «para aplicar os Tratados», o que não se verifica no caso em apreço.

31      Como referido anteriormente, a Comissão recusa o registo de propostas de ICE que estejam manifestamente fora da sua competência para apresentar «uma proposta de ato jurídico da União para efeitos de aplicação dos Tratados».

32      É pacífico que a Comissão pode, por iniciativa própria, apresentar ao Conselho uma proposta de ato para que revogue o mandato mediante o qual foi autorizada a encetar negociações com vista à celebração de um acordo internacional. Também não se pode impedir a Comissão de apresentar ao Conselho uma proposta de decisão de não autorizar, finalmente, a assinatura de um acordo negociado ou a sua celebração.

33      No entanto, a Comissão alega que uma proposta de ICE não pode versar sobre esses atos e invoca, por um lado, o caráter preparatório e a falta de efeitos jurídicos externos às instituições do ato de abertura das negociações com vista à celebração de um acordo internacional e, por outro, o facto de os atos jurídicos cuja adoção é proposta não serem necessários «para aplicar os Tratados».

34      Antes de mais, há que observar que as partes estão de acordo em considerar que uma decisão do Conselho que autoriza a Comissão, em conformidade com os artigos 207.° e 218.° TFUE, a encetar negociações com vista à celebração de um acordo internacional constitui um ato preparatório da decisão posterior de assinatura e de celebração desse acordo e produz efeitos jurídicos entre a União e os seus Estados‑Membros, bem como entre as instituições da União (v., neste sentido, acórdãos de 4 de setembro de 2014, Comissão/Conselho, C‑114/12, EU:C:2014:2151, n.° 40, e de 16 de julho de 2015, Comissão/Conselho, C‑425/13, EU:C:2015:483, n.° 28).

35      Ora, como os recorrentes alegam acertadamente, o conceito de ato jurídico, na aceção do artigo 11.°, n.° 4, TUE, do artigo 2.°, n.° 1, do Regulamento n.° 211/2011 e do artigo 4.°, n.° 2, alínea b), do mesmo regulamento, não pode, na falta de qualquer indicação em contrário, ser entendido, como pretende a Comissão, no sentido de que se limita apenas aos atos jurídicos da União definitivos e que produzem efeitos jurídicos para com terceiros.

36      Nem a redação das disposições em causa nem os objetivos que estas prosseguem justificam em especial que uma decisão que autoriza a abertura de negociações com vista à celebração de um acordo internacional, como o TTIP e o CETA no caso em apreço, adotada em aplicação do artigo 207.°, n.os 3 e 4, TFUE e do artigo 218.° TFUE e que constitui manifestamente uma decisão na aceção do artigo 288.°, quarto parágrafo, TFUE (v., neste sentido, acórdãos de 4 de setembro de 2014, Comissão/Conselho, C‑114/12, EU:C:2014:2151, n.° 40, e de 16 de julho de 2015, Comissão/Conselho, C‑425/13, EU:C:2015:483, n.° 28), seja excluída do conceito de ato jurídico para efeitos de uma ICE.

37      Pelo contrário, o princípio da democracia, que, como é salientado nomeadamente no preâmbulo do Tratado UE, no artigo 2.° TUE e no preâmbulo da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, figura entre os valores fundamentais em que assenta a União, bem como o objetivo especificamente prosseguido pelo mecanismo da ICE, que consiste em melhorar o funcionamento democrático da União ao conferir a qualquer cidadão um direito geral de participar na vida democrática (v. n.° 24, supra), exigem que se acolha uma interpretação do conceito de ato jurídico que inclua atos jurídicos como uma decisão de abertura de negociações com vista à celebração de um acordo internacional, que visa indiscutivelmente alterar a ordem jurídica da União.

38      Com efeito, a tese defendida pela Comissão, segundo a qual o Conselho e ela gozam de uma legitimidade democrática indireta suficiente para adotar os atos jurídicos que não produzem efeitos jurídicos para com terceiros, teria por consequência limitar consideravelmente o recurso ao mecanismo da ICE como instrumento de participação dos cidadãos da União na atividade normativa desta mediante a celebração de acordos internacionais. Na medida em que a fundamentação enunciada na decisão impugnada possa, se for caso disso, ser entendida no sentido de que impede definitivamente os cidadãos da União de proporem qualquer abertura de negociações sobre um novo tratado a negociar mediante uma ICE, a referida argumentação iria manifestamente contra os objetivos prosseguidos pelos Tratados e pelo Regulamento n.° 211/2011 e, consequentemente, não pode ser admitida.

39      Por conseguinte, a tese defendida pela Comissão na decisão impugnada, segundo a qual a decisão de revogação da autorização para a abertura de negociações com vista à celebração do TTIP está fora do conceito de ato jurídico para efeitos de uma proposta de ICE pelo facto de a referida autorização não estar ela própria compreendida nesse conceito devido ao seu caráter preparatório e à falta de efeitos jurídicos para com terceiros, deve igualmente ser julgada improcedente. Isso é tanto mais assim que, como os recorrentes salientaram acertadamente, uma decisão de revogação da autorização para a abertura de negociações com vista à celebração de um acordo internacional, na medida em que põe termo às referidas negociações, não pode ser qualificada de ato preparatório, mas apresenta, em si, caráter definitivo.

40      Por outro lado, para se opor ao registo da proposta de ICE, a Comissão alega ainda que os atos do Conselho cuja adoção está prevista na referida proposta, em especial as decisões do Conselho de não assinar ou de não celebrar o TTIP e o CETA, equivalem a atos «destrutivos» que não ocorrem para «aplicar os Tratados» e, consequentemente, não podem ser objeto de uma ICE.

41      A esta alegação há que responder que a regulamentação relativa à ICE não contém nenhuma indicação segundo a qual a participação dos cidadãos não pode ser prevista para impedir a adoção de um ato jurídico. Se é certo que, em conformidade com o artigo 11.°, n.° 4, TUE e o artigo 2.°, n.° 1, do Regulamento n.° 211/2011, o ato jurídico previsto deve contribuir para aplicar os Tratados, isso verifica‑se sem dúvida no caso dos atos que têm por objeto impedir a celebração do TTIP e do CETA, que visam alterar a ordem jurídica da União.

42      Como os recorrentes salientaram acertadamente, o objetivo de participação na vida democrática da União prosseguido pelo mecanismo da ICE inclui manifestamente a faculdade de solicitar a alteração de atos jurídicos em vigor ou a sua revogação, total ou parcial.

43      Assim, nada justifica também excluir do debate democrático os atos jurídicos que visam a revogação de uma decisão que autoriza a abertura de negociações com vista à celebração de um acordo internacional, bem como os atos que têm por objeto impedir a assinatura ou a celebração de tal acordo, os quais, contrariamente à tese defendida pela Comissão, produzem indiscutivelmente efeitos jurídicos autónomos, impedindo, se for caso disso, uma alteração anunciada do direito da União.

44      A tese defendida pela Comissão, tal como parece deduzir‑se da decisão impugnada, implicaria definitivamente que uma ICE só se pudesse referir à decisão do Conselho de celebrar ou de autorizar a assinatura de acordos internacionais cuja iniciativa tivesse sido das instituições da União e que estas tivessem negociado previamente, impedindo os cidadãos da União de recorrer ao mecanismo da ICE para propor alterações a esses acordos ou desistir deles. É certo que, perante o Tribunal Geral, a Comissão defendeu que uma ICE podia, se fosse caso disso, incluir também uma proposta de abertura de negociações com vista à celebração de um acordo internacional. Ora, nesta última hipótese, nada justifica obrigar os autores de uma proposta de ICE a esperar pela celebração de um acordo para poderem contestar depois unicamente a sua oportunidade.

45      O argumento da Comissão segundo o qual os atos que a proposta de ICE a convida a apresentar ao Conselho levariam a uma ingerência inadmissível no desenvolvimento do processo legislativo em curso também não pode proceder. Com efeito, o fim prosseguido pela ICE é permitir aos cidadãos da União participar mais na vida democrática da União, nomeadamente, expondo em pormenor à Comissão as questões suscitadas pela ICE, convidando esta instituição a apresentar uma proposta de ato jurídico da União depois de ter, se for caso disso, apresentado a ICE numa audição pública organizada pelo Parlamento, em conformidade com o artigo 11.° do Regulamento n.° 211/2011, por conseguinte, suscitando um debate democrático sem ter de esperar pela adoção do ato jurídico cuja alteração ou desistência se pretende definitivamente.

46      Admitir tal possibilidade também não viola, por conseguinte, o princípio do equilíbrio institucional, característico da estrutura institucional da União (v., neste sentido, acórdão de 14 de abril de 2015, Conselho/Comissão, C‑409/13, EU:C:2015:217, n.° 64), na medida em que cabe à Comissão decidir se dá ou não seguimento favorável à ICE apresentando, em conformidade com o artigo 10.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento n.° 211/2011, por meio de uma comunicação, as suas conclusões jurídicas e políticas sobre a ICE, as medidas que tenciona tomar, se for caso disso, e os motivos que a levam a tomar ou não tomar essas medidas.

47      Por conseguinte, longe de representar uma ingerência no desenvolvimento de um processo legislativo em curso, a proposta de ICE constitui a expressão da participação efetiva dos cidadãos da União na vida democrática desta, sem pôr em causa o equilíbrio institucional pretendido pelos Tratados.

48      Por último, nada obsta a que as medidas que a Comissão «tenciona tomar, se for caso disso», na aceção do artigo 10.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento n.° 211/2011, possam consistir em propor ao Conselho que adote os atos previstos na proposta de ICE. Contrariamente às alegações da Comissão, nada impede, se for caso disso, as instituições da União de negociar e celebrar novos projetos de acordos transatlânticos de comércio livre, depois da adoção pelo Conselho de atos objeto da proposta de ICE.

49      Face a todas as considerações que precedem, há que concluir que a Comissão, ao recusar o registo da proposta de ICE, violou o artigo 11.°, n.° 4, TUE e o artigo 4.°, n.° 2, alínea b), em conjugação com o artigo 2.°, n.° 1, do Regulamento n.° 211/2011.

50      Assim, há que julgar procedente o primeiro fundamento e, por conseguinte, o recurso no seu conjunto, sem que seja necessário apreciar o segundo fundamento.

 Quanto às despesas

51      Nos termos do artigo 134.°, n.° 1, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão sido vencida, há que condená‑la nas despesas da presente instância, incluindo as relativas ao processo de medidas provisórias, conforme peticionado pelos recorrentes.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Primeira Secção)

decide:

1)      A Decisão C(2014) 6501 final da Comissão, de 10 de setembro de 2014, que indefere o pedido de registo da proposta de iniciativa de cidadania europeia intitulada «Stop TTIP» é anulada.

2)      A Comissão Europeia suportará as suas próprias despesas e as de Michael Efler e dos outros recorrentes cujos nomes figuram em anexo, incluindo as relativas ao processo de medidas provisórias.

Kanninen

Buttigieg

Calvo‑Sotelo Ibáñez‑Martín

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 10 de maio de 2017.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.


1      A lista dos outros recorrentes só é anexada à versão notificada às partes.