Language of document : ECLI:EU:C:2020:494

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 25 de junho de 2020(1)

Processo C510/19

Openbaar Ministerie,

YU,

ZV

contra

AZ

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hof van beroep te Brussel (Tribunal de Recurso de Bruxelas, Bélgica)]

«Reenvio prejudicial — Cooperação policial e judiciária em matéria penal — Mandado de detenção europeu — Decisão‑Quadro 2002/584/JAI — Artigo 6.o, n.o 2 — Conceito de autoridade judiciária de execução — Artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4 — Pedido de consentimento adicional aceite pelo Ministério Público do Estado‑Membro de execução»






1.        O Tribunal de Justiça pronunciou‑se em diversas ocasiões sobre o conceito de «autoridade judiciária», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI (2), especificando as condições que devem estar reunidas na autoridade que emite um mandado de detenção europeu (MDE) (3).

2.        Esta questão prejudicial constitui uma oportunidade para se proceder à interpretação do conceito referido, mas agora à luz do artigo 6.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro, em conjugação com o seu artigo 27.o É isso o que pede um tribunal belga, que pergunta, no essencial, se o Ministério Público dos Países Baixos pode ser qualificado de «autoridade judiciária» que consente o alargamento das infrações constantes de um MDE anterior, já executado.

I.      Quadro jurídico

A.      Direito da União. DecisãoQuadro 2002/584

3.        Os considerandos 5, 6 e 8 enunciam:

«(5) O objetivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduz à supressão da extradição entre os Estados‑Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias. Acresce que a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal permite suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos atuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que até ao momento prevaleceram entre Estados‑Membros devem dar lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré‑sentencial como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.

(6) O [MDE] previsto na presente decisão‑quadro constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de “pedra angular” da cooperação judiciária.

[…]

(8) As decisões sobre a execução do [MDE] devem ser objeto de um controlo adequado, o que implica que deva ser a autoridade judiciária do Estado‑Membro onde a pessoa procurada foi detida a tomar a decisão sobre a sua entrega.»

4.        Nos termos do artigo 1.o («Definição do [MDE] e obrigação de o executar»):

«1. O [MDE] uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2. Os Estados‑Membros executam todo e qualquer [MDE] com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.

3. A presente decisão‑quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.o do Tratado da União Europeia.»

5.        O artigo 6.o («Determinação das autoridades judiciárias competentes») dispõe:

«1. A autoridade judiciária de emissão é a autoridade judiciária do Estado‑Membro de emissão competente para emitir um [MDE] nos termos do direito desse Estado.

2. A autoridade judiciária de execução é a autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução competente para executar o [MDE] nos termos do direito desse Estado.

3. Cada Estado‑Membro informa o Secretariado‑Geral do Conselho da autoridade judiciária competente nos termos do respetivo direito nacional.»

6.        Nos termos do artigo 14.o («Audição da pessoa procurada»):

«A pessoa procurada, se não consentir na sua entrega como previsto no artigo 13.o, tem o direito de ser ouvida pela autoridade judiciária de execução, em conformidade com o direito nacional do Estado‑Membro de execução.»

7.        O artigo 15.o («Decisão sobre a entrega») tem a seguinte redação:

«1. A autoridade judiciária de execução decide da entrega da pessoa nos prazos e nas condições definidos na presente decisão‑quadro.

[…]»

8.        O artigo 19.o («Audição da pessoa enquanto se aguarda uma decisão») dispõe:

«1. A pessoa procurada é ouvida por uma autoridade judiciária, coadjuvada por outra pessoa designada em conformidade com o direito do Estado‑Membro do tribunal requerente.

2. A pessoa procurada é ouvida em conformidade com o direito do Estado‑Membro de execução e as condições são fixadas por acordo mútuo entre a autoridade judiciária de emissão e a autoridade judiciária de execução.

3. A autoridade judiciária de execução competente pode designar uma outra autoridade judiciária do seu Estado‑Membro para tomar parte na audição da pessoa procurada, no sentido de assegurar a correta aplicação do presente artigo e das condições que tiverem sido fixadas.»

9.        Nos termos do artigo 27.o («Eventuais procedimentos penais por outras infrações»):

«1. Cada Estado‑Membro tem a faculdade de notificar ao Secretariado‑Geral do Conselho que, nas suas relações com os outros Estados‑Membros que tenham apresentado a mesma notificação, se presume dado o consentimento para a instauração de procedimento penal, a condenação ou a detenção, para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, por uma infração praticada antes da sua entrega, diferente daquela por que foi entregue, salvo se, num caso específico, a autoridade judiciária de execução declarar o contrário na sua decisão de entrega.

2. Exceto nos casos previstos nos n.os 1 e 3, uma pessoa entregue não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue.

3. O n.o 2 não se aplica nos seguintes casos:

[…]

g) Quando a autoridade judiciária de execução que entregou a pessoa tenha dado o seu consentimento nos termos do n.o 4.

4. O pedido de consentimento é apresentado à autoridade judiciária de execução, acompanhado das informações referidas no n.o 1 do artigo 8.o e de uma tradução conforme indicado no n.o 2 do artigo 8.o O consentimento deve ser dado sempre que a infração para a qual é solicitado dê ela própria lugar a entrega em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro. O consentimento deve ser recusado pelos motivos referidos no artigo 3.o, podendo ainda, a não ser assim, ser recusado apenas pelos motivos referidos no artigo 4.o A decisão deve ser tomada no prazo máximo de 30 dias a contar da data de receção do pedido.

[…]»

B.      Direito nacional

1.      Direito belga. Lei relativa ao MDE (4)

10.      O artigo 37.o prevê:

«1. Uma pessoa entregue com base num [MDE] emitido por uma autoridade judiciária belga não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue.

2. O n.o 1 não se aplica nos seguintes casos:

[…]

Se, para lá dos casos previstos no primeiro parágrafo, o juiz de instrução, o procurador do Ministério Público ou o órgão jurisdicional pretenderem, consoante o caso, sujeitar a procedimento penal, condenar ou privar de liberdade a pessoa entregue, por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue, deve apresentar um pedido de consentimento à autoridade judiciária de execução, acompanhada das informações referidas no artigo 2.o, n.o 4, bem como, se for caso disso, de uma tradução.»

2.      Direito neerlandês

a)      Lei de 29 de abril de 2004, que transpõe a DecisãoQuadro (5)

11.      O artigo 14.o dispõe:

«1. O consentimento na entrega só é dado na condição geral de a pessoa procurada não ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue, salvo se:

[…]

f) For solicitado e obtido, para o efeito, o consentimento prévio do procurador do ministério público.

[…]

3. O procurador do ministério público dá o consentimento referido no n.o 1, alínea f), […] a pedido da autoridade judiciária de execução e com base no [MDE] e respetiva tradução relativamente às infrações pelas quais podia ter sido dado consentimento na entrega por força desta lei […].»

12.      O artigo 35.o, n.o 1, enuncia:

«Logo que possível, após a decisão de consentimento, total ou parcial, da entrega, a pessoa reclamada é efetivamente entregue. O procurador do Ministério Público determina, após acordo com a autoridade judiciária de emissão, o momento e o local da entrega.»

13.      Na sua versão anterior a 13 de julho de 2019, o artigo 44.o previa:

«O procurador do Ministério Público pode agir como autoridade judiciária de emissão.»

14.      Na versão em vigor a partir de 13 de julho de 2019, o artigo 44.o tem a seguinte redação:

«O juiz‑comissário [rechter‑commissaris] pode agir como autoridade judiciária de emissão.»

b)      Lei da Organização Judiciária (6)

15.      Nos termos do artigo 127.o, o Ministro da Justiça e da Segurança pode dar instruções gerais e individuais sobre o exercício das funções e das competências do Ministério Público.

II.    Factos na origem do litígio e questões prejudiciais

16.      O juiz de instrução do rechtbank van eerste aanleg te Leuven (Tribunal de primeira instância de Lovaina, Bélgica) emitiu, em 26 de setembro de 2017, um MDE contra AZ, nacional belga, para a instauração de procedimento penal por crimes de falsificação e burla cometidos na Bélgica durante 2017.

17.      Detido nos Países Baixos em execução desse MDE, AZ foi entregue às autoridades belgas em 13 de dezembro de 2017 por Decisão do rechtbank Amsterdam (Tribunal de primeira instância de Amesterdão, Países Baixos).

18.      Em 26 de janeiro de 2018, o mesmo juiz de instrução de Lovaina emitiu um (segundo) MDE, solicitando a entrega de AZ por crimes de falsificação e burla diferentes dos incluídos no primeiro MDE.

19.      Em 13 de fevereiro de 2018, o officier van justitie (procurador) do arrondissementsparket Amsterdam (do Ministério Público da Comarca de Amesterdão, Países Baixos) deu o seu consentimento para que AZ fosse julgado por todas as infrações penais incluídas nos dois MDE.

20.      AZ acabou por ser condenado em três anos de prisão.

21.      AZ recorreu da condenação para o Hof van beroep te Brussel (Tribunal de Recurso de Bruxelas, Bélgica), contestando que o Ministério Público neerlandês pudesse ser considerado uma «autoridade judiciária» na aceção do artigo 6.o, n.o 2, e do artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, da Decisão‑Quadro.

22.      Neste contexto, o Hof van beroep te Brussel (Tribunal de Recurso de Bruxelas) submete ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.1) A expressão “autoridade judiciária”, no sentido do artigo 6.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro, é um conceito autónomo do direito da União?

1.2)       Em caso de resposta afirmativa à questão 1.1.: que critérios devem ser utilizados para determinar se uma autoridade do Estado‑Membro de execução é uma “autoridade judiciária” e, por conseguinte, se o [MDE] por si executado constitui uma decisão judicial?

1.3) Em caso de resposta afirmativa à questão 1.1.: o Ministério Público neerlandês, mais especificamente o delegado do ministério público, é abrangido pelo conceito de “autoridade judiciária”, no sentido do artigo 6.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro, e, por conseguinte, o [MDE] executado por esta autoridade constitui uma decisão judicial?

1.4)       Em caso de resposta afirmativa à questão 1.3.: pode‑se permitir que a entrega inicial seja apreciada por uma autoridade judiciária, mais especificamente a Overleveringskamer te Amsterdam (Juízo de Entregas de Amesterdão), nos termos do artigo 15.o da Decisão‑Quadro, sendo nesse contexto respeitados, nomeadamente, o direito de audiência e o direito de acesso do interessado aos tribunais, ao passo que a entrega complementar nos termos do artigo 27.o da Decisão‑Quadro é atribuída a outra entidade, a saber, o delegado do Ministério Público, não sendo, nesse contexto, respeitados o direito de audiência e o direito de acesso do interessado aos tribunais, o que cria uma manifesta incoerência na Decisão‑Quadro sem qualquer justificação razoável?

1.5)       Em caso de resposta afirmativa às questões 1.3. e 1.4.: devem os artigos 14.o, 19.o e 27.o da Decisão‑Quadro ser interpretados no sentido de que o Ministério Público que intervém como autoridade judiciária de execução, tem, em primeiro lugar, de respeitar o direito de audiência e o direito de acesso aos tribunais do interessado, antes de poder prestar o seu consentimento à instauração de procedimento penal, à condenação ou à detenção de uma pessoa para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega ao abrigo de um [MDE], e que não é a infração pela qual foi pedida a sua entrega?

2)       O delegado do Ministério Público do arrondissementsparket Amsterdam (Ministério Público da Comarca de Amesterdão), que age em execução do artigo 14.o da [Olw], é a autoridade judiciária de execução, no sentido do artigo 6.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro, que entregou a pessoa procurada e que pode prestar o seu consentimento nos termos do artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4 da Decisão‑Quadro?»

III. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

23.      O pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 4 de julho de 2019.

24.      Apresentaram observações escritas, AZ, o Openbaar Ministerie, os Governos alemão, espanhol, húngaro e neerlandês, bem como a Comissão.

25.      Não foi considerada necessária a realização de audiência.

IV.    Análise

A.      Quanto à admissibilidade da questão prejudicial

26.      O Governo alemão duvida da viabilidade da questão prejudicial (embora não se oponha formalmente à sua admissibilidade), uma vez que as questões submetidas não são relevantes para que o órgão jurisdicional de reenvio se pronuncie sobre o processo penal nele pendente.

27.      Estas questões dizem respeito a atos jurídicos definitivos adotados nos Países Baixos (a entrega de AZ e o consentimento de um procurador do Ministério Público neerlandês com vista à instauração de processo por atos praticados antes da referida entrega), e não ao processo no órgão jurisdicional de reenvio belga. Este último não poderia proceder à revisão da decisão de entrega decidida por um tribunal neerlandês (isto é, do Estado de execução do MDE).

28.      É certo que o órgão jurisdicional de reenvio não se pode pronunciar sobre a validade das decisões das autoridades neerlandesas, que deve ser determinada no âmbito do direito interno do Estado‑Membro de execução (Países Baixos) e pelos seus próprios órgãos jurisdicionais.

29.      Ora, o órgão jurisdicional de reenvio é efetivamente competente para apreciar os efeitos que as decisões das autoridades neerlandesas devem ter no direito belga no momento da execução do MDE pedido pelas autoridades belgas. Partindo da validade dessas decisões — que deve dar por adquirido com base no princípio da confiança mútua —, o órgão jurisdicional de reenvio pode, insisto, ponderar as repercussões que as mesmas têm no seu direito nacional.

30.      A pessoa sujeita a procedimento penal pelos tribunais belgas tem o direito, que lhe é reconhecido pelo artigo 27.o da Decisão‑Quadro, «de apenas ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração pela qual tiver sido entregue», sem prejuízo das exceções previstas nesta disposição (7).

31.      Partindo desta premissa, AZ não poderia ser condenado ou privado de liberdade, na Bélgica, por factos diferentes dos incluídos no (primeiro) MDE executado pelo Tribunal de Amesterdão, a não ser que as autoridades neerlandesas tivessem dado o seu consentimento ao alargamento constante do (segundo) MDE pedido pelas autoridades belgas.

32.      Enquanto titular desse direito, reconhecido pela Decisão‑Quadro, AZ pode invocá‑lo nos órgãos jurisdicionais belgas, que são os competentes para o sujeitar a procedimento penal, para o condenar ou para o privar de liberdade. Pode, portanto, invocar em seu benefício os efeitos de uma eventual irregularidade da decisão do Estado de execução, pela qual se consentiu o alargamento das infrações previstas no MDE, no direito belga.

33.      É evidente que a contestação de AZ podia ter lugar nas autoridades neerlandesas, que são as que deram o consentimento em causa (8) e estão, por isso, em condições de o anular na origem. Ora, na medida em que a AZ já foi entregue às autoridades belgas, obrigá‑lo a impugnar o consentimento no órgão jurisdicional de um Estado‑Membro de execução (os Países Baixos) onde já não se encontra poderia dificultar o exercício do seu direito a um recurso efetivo e conduzir ao atraso do processo penal.

34.      Os tribunais belgas, sem que seja necessário julgar da validade do consentimento dado pelas autoridades neerlandesas, podem apreciá‑lo à luz do direito da União, com a colaboração do Tribunal de Justiça, em caso de dúvida. Ou seja, podem analisar os elementos desse consentimento que são exclusivamente condicionados pela Decisão‑Quadro.

35.      Em especial, no que releva para o caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio pode verificar se o consentimento foi dado por uma «autoridade judiciária» na aceção do artigo 6.o, n.o 2, e do artigo 27.o da Decisão‑Quadro, uma vez que este conceito (como exporei a seguir) corresponde a um conceito autónomo do direito da União.

36.      Se o resultado dessa verificação impedir que se reconheça ao procurador do Ministério Público neerlandês a sua capacidade de agir na qualidade de autoridade judiciária de execução, em conformidade com o artigo 6.o, n.o 2, e o artigo 27.o da Decisão‑Quadro, o órgão jurisdicional de reenvio pode deduzir as consequências apropriadas do direito belga.

37.      Em suma, circunscrevendo a discussão à questão de saber se a autoridade neerlandesa que deu o consentimento, a pedido das autoridades belgas, pode ser qualificada de «autoridade judiciária», no contexto do MDE e segundo o direito da União, considero que o reenvio prejudicial é admissível.

B.      Quanto ao mérito

1.      O conceito autónomo de «autoridade judiciária» (primeira parte da questão prejudicial)

38.      Com exceção do Governo húngaro, que não se manifestou expressamente a este respeito, os intervenientes no processo prejudicial estão de acordo quanto ao facto de a expressão «autoridade judiciária» do artigo 6.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro constituir um conceito autónomo do direito da União.

39.      Embora, até agora, o Tribunal de Justiça se tenha pronunciado sobre este conceito no âmbito do n.o 1 do artigo 6.o da Decisão‑Quadro (autoridade de emissão), considero que os seus argumentos são transponíveis para a interpretação do n.o 2 do referido artigo (autoridade de execução).

40.      Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, embora, em conformidade com o princípio da autonomia processual, os Estados‑Membros possam designar, segundo o seu direito nacional, a «autoridade judiciária» competente para emitir um MDE, não lhes compete determinar o sentido e o alcance deste conceito, que «exige, em toda a União, uma interpretação autónoma e uniforme que deve ser procurada tendo em conta simultaneamente os termos do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro […], o contexto em que se insere e o objetivo prosseguido por esta decisão‑quadro» (9).

41.      As mesmas razões prevalecem quanto ao conceito de «autoridade judiciária» competente para executar um MDE e, por extensão, nos termos do artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, da Decisão‑Quadro, para dar o consentimento a que estas disposições se referem.

42.      Por conseguinte, a primeira parte da questão prejudicial deve ser respondida afirmativamente, o que abre a porta à análise do resto, que abordarei conjuntamente.

2.      O Ministério Público enquanto autoridade de execução na aceção do artigo 6.o, n.o 2, da DecisãoQuadro

a)      O Ministério Público enquanto autoridade judiciária de emissão: a jurisprudência do Tribunal de Justiça

43.      O Tribunal de Justiça já definiu as condições que a autoridade judiciária competente para a emissão de um MDE deve preencher. Essas condições resultam de um trabalho interpretativo baseado em três fatores: a) os termos do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro; b) o contexto em que se insere a referida disposição; e c) o objetivo prosseguido pela própria Decisão‑Quadro (10).

44.      Com base no acima exposto, o Tribunal de Justiça declarou que a expressão «autoridade judiciária» «não se limita […] a designar apenas os juízes ou órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro, mas permite […] incluir, de forma mais abrangente, as autoridades chamadas a participar na administração da justiça na ordem jurídica em questão» (11).

45.      A fim de precisar, entre os que participam na administração da justiça, os que merecem a qualificação de «autoridade judiciária», o Tribunal de Justiça teve em consideração o facto de a Decisão‑Quadro ser «um instrumento da cooperação judiciária em matéria penal, relativa ao reconhecimento mútuo, não apenas das decisões definitivas proferidas pelos órgãos jurisdicionais penais, mas mais amplamente das decisões adotadas pelas autoridades judiciárias dos EstadosMembros no âmbito do processo penal, incluindo a fase relativa ao exercício da ação penal» (12).

46.      Em especial, continua, «[o] termo “tramitação dos processos”, que é entendido em sentido amplo, pode abranger o procedimento penal no seu todo, ou seja, a fase prévia ao processo penal, o próprio processo penal e a fase de execução da decisão definitiva de um órgão jurisdicional penal proferida contra uma pessoa condenada por uma infração penal» (13).

47.      Constituindo os MDE um instrumento ao serviço da cooperação judiciária, podem ser emitidos nos procedimentos penais, na sua aceção ampla; também no que diz respeito àqueles para os quais as procuradorias «são levadas […] a implementar as condições prévias ao exercício do poder judicial pelos órgãos jurisdicionais penais» (14).

48.      Por conseguinte, o conceito de «autoridade judiciária», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro, abrange, em princípio, o Ministério Público.

49.      Ora, como a confiança e o reconhecimento mútuos são essenciais para o sistema da Decisão‑Quadro (15), «a autoridade judiciária de emissão deve poder assegurar à autoridade judiciária de execução que, à luz das garantias dadas pela ordem jurídica do Estado‑Membro de emissão, atua de forma independente no exercício das suas funções inerentes à emissão de um mandado de detenção europeu» (16).

50.      Consequentemente, o Ministério Público pode ser qualificado de «autoridade judiciária», para efeitos da emissão de um MDE, quando beneficia de um estatuto que assegure a sua independência, mesmo que esta última não tenha de ser, segundo o Tribunal de Justiça, idêntica à independência judicial.

51.      Nesta perspetiva, basta «que existam regras estatutárias e organizativas adequadas para garantir que a autoridade judiciária de emissão, no âmbito da adoção de uma decisão de emissão desse mandado de detenção, não corra nenhum risco de estar sujeita nomeadamente a uma instrução individual da parte do poder executivo» (17).

52.      Às duas condições anteriores — participação na administração da justiça e independência refletida na exclusão de instruções individuais do poder executivo — o Tribunal de Justiça acrescenta uma terceira, que diz respeito ao procedimento em que o Ministério Público é competente para emitir um MDE: a emissão de um MDE pelo procurador do Ministério Público deve ser suscetível de revisão jurisdicional (18).

53.      Em suma, o Ministério Público que participa na administração da justiça só é considerado uma «autoridade judiciária de emissão» se beneficiar de um estatuto orgânico que exclua a possibilidade de receber instruções individuais do poder executivo. Se for esse o caso, é competente para a emissão de um MDE, desde que a sua decisão possa ser impugnada num órgão jurisdicional (19).

b)      A aplicação desta jurisprudência ao Ministério Público enquanto autoridade de execução do MDE

54.      As condições acima descritas, relativas à sua qualidade de autoridade de emissão, são igualmente aplicáveis ao Ministério Público para o qualificar de «autoridade judiciária de execução» de um MDE?

55.      Enquanto AZ e os Governos alemão e espanhol respondem afirmativamente a essa questão, o Governo neerlandês prefere uma aplicação menos rigorosa no que diz respeito às condições de independência e de sujeição à fiscalização jurisdicional.

56.      Recordo que, segundo o despacho de reenvio:

— AZ foi entregue por força da decisão de um tribunal de Amesterdão, que agiu na qualidade de «autoridade judiciária de execução» do artigo 6.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro.

— Em contrapartida, o consentimento do artigo 27.o da Decisão‑Quadro foi dado por um procurador do Ministério Público, também de Amesterdão, cuja aptidão para esse efeito é debatida no âmbito do processo a quo.

57.      Na sequência destes factos, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em especial, se o Ministério Público neerlandês pode executar um MDE, isto é, agir como «autoridade judiciária» na aceção do artigo 6.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro.

58.      Ora, esta questão baseia‑se logicamente na premissa de que a «autoridade judiciária que consente» (artigo 27.o da Decisão‑Quadro) coincide com a «autoridade judiciária que executa» (artigo 6.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro). Acabo de expor que, no caso em apreço, foi um órgão jurisdicional neerlandês que ordenou a execução do MDE, enquanto o Ministério Público neerlandês só deu, posteriormente, o consentimento pedido pelas autoridades belgas para o alargamento das infrações imputáveis a AZ.

59.      O que aqui importa não é, portanto, a questão de saber se o Ministério Público neerlandês tinha, em abstrato, o estatuto de «autoridade judiciária de execução», mas se podia autorizar, em conformidade com o artigo 27.o, n.o 3, alínea g), da Decisão‑Quadro, o referido alargamento de infrações puníveis.

60.      A interpretação literal do artigo 27.o, n.o 3, alínea g), da Decisão‑Quadro aponta para que apenas quem tenha executado o MDE possa consentir. O consentimento a que o legislador se refere nesta disposição diz respeito, precisamente, à «autoridade judiciária de execução que entregou a pessoa». Em meu entender, a clareza da redação é incontestável.

61.      Por conseguinte, o artigo 27.o da Decisão‑Quadro exclui a possibilidade de, nas circunstâncias do caso, o procurador do Ministério Público consentir o alargamento das infrações que estão na origem da entrega de AZ. Por força desta disposição, o consentimento pertencia à autoridade de execução neerlandesa (no caso em apreço, o tribunal de Amesterdão) que já tinha entregado essa pessoa às autoridades belgas.

62.      Se for esse o caso, a questão do órgão jurisdicional de reenvio é destacada das circunstâncias concretas do litígio. Seja qual for, em abstrato, a posição do Ministério Público enquanto autoridade judiciária de execução, como foi um tribunal neerlandês que, nesta hipótese, entregou a pessoa procurada, o procurador do Ministério Público de Amesterdão não podia dar o consentimento referido no artigo 27.o, n.o 3, alínea g), da Decisão‑Quadro.

63.      O Openbaar Ministerie (Ministério Público) defende, pelo contrário, que, para além da redação do artigo 27.o, n.o 3, alínea g), da Decisão‑Quadro, a autonomia processual dos Estados‑Membros permite‑lhes designar como «autoridade judiciária que consente» uma «autoridade judiciária» diferente da que executa.

64.      Não creio que a disposição permita esta interpretação. Pelo contrário, exclui‑a.

65.      É certo que os Estados‑Membros podem legislar, livremente, que autoridade judiciária é competente para executar um MDE. Mas, uma vez resolvido este ponto, o nexo [estabelecido pelo artigo 27.o, n.o 3, alínea g), da Decisão‑Quadro] entre essa autoridade e a autoridade que consente o alargamento do MDE não pode ser quebrado ao abrigo do princípio da autonomia processual.

66.      A Decisão‑Quadro estabelece, entre as duas autoridades, uma relação de identidade, indisponível para os legisladores nacionais. A autonomia destes últimos esgota‑se na designação da autoridade judiciária de execução, mas não se estende ao ponto de afastar a regra de aplicação da Decisão‑Quadro (a autoridade que executa deve ser também a que consente).

67.      Essa relação de identidade responde, além disso, a motivos razoáveis:

— Por um lado, a autoridade que já executou o MDE está em melhor posição para apreciar a conveniência de proceder ao seu alargamento, tendo em conta que teve oportunidade de conhecer os seus pormenores.

— Por outro lado, se a autoridade que consente for diferente da que já executou o MDE, a sua decisão necessitará de um período de tempo que seria dispensável para esta última, já familiarizada com o processo. Tal atraso implicará provavelmente um prolongamento da tramitação do procedimento de alargamento e, nessa medida, da situação jurídica da pessoa entregue, que é, por definição, anómala sob o ponto de vista do gozo efetivo dos seus direitos (20).

68.      Embora não concorde com a premissa em que se baseia o Openbaar Ministerie (Ministério Público), examinarei a sua argumentação a título subsidiário, começando pelas condições que deve preencher para executar um MDE. Abordarei, seguidamente, as que deveria satisfazer para consentir o alargamento dos factos constantes de um MDE já executado.

c)      As condições necessárias para a execução de um MDE e o estatuto do Ministério Público nos Países Baixos

69.      Considero que as três condições acima referidas para que o Ministério Público possa emitir um MDE (a saber: participação na administração da justiça, independência e possibilidade de revisão judicial) (21) são transponíveis para a execução de um MDE.

70.      Recordo que, para o Tribunal de Justiça, «[n]o que se refere a uma medida que, tal como a emissão de um mandado de detenção europeu, pode afetar o direito à liberdade da pessoa em causa, consagrado no artigo 6.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, esta proteção implica que uma decisão que cumpra as exigências inerentes a uma proteção judicial efetiva seja adotada, pelo menos, num dos dois níveis da referida proteção» (22).

71.      Este mesmo critério deve reger a execução de um MDE, uma vez que com ela também se pode privar a pessoa afetada do seu direito à liberdade pessoal. Será esse o caso, desde logo, quando a execução origine, de modo mediato, uma pena de prisão, no termo do processo instaurado contra a pessoa entregue. Mas será também esse o caso, antes ainda, devido à privação (temporária) de liberdade que pode ser decidida pela autoridade judiciária de execução, enquanto esta se pronuncia sobre a entrega, em conformidade com o artigo 12.o da Decisão‑Quadro.

72.      Contrariamente ao que acontece no que diz respeito à emissão de um MDE, a proteção jurisdicional da pessoa afetada pela sua execução não se desdobra em dois níveis: o equivalente ao processo de adoção do mandado de detenção nacional não existe no procedimento de execução do MDE (23). Mas no único nível existente, o da decisão sobre a execução, a garantia do direito a uma proteção jurisdicional efetiva deve ser respeitada.

73.      Consequentemente, a «autoridade judiciária de execução», na aceção do artigo 6.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro, deve estar em condições de exercer esta função de forma objetiva e independente. Não pode, como também não deveria ter podido a autoridade judiciária de emissão, correr «risco de que o seu poder decisório seja objeto de ordens ou de instruções externas, nomeadamente da parte do poder executivo, de forma a que não exista nenhuma dúvida quanto ao facto de a decisão de [executar] o [MDE] ser da responsabilidade desta autoridade e não, em última análise, do referido poder» (24).

74.      Corolário do que precede é o facto de o Ministério Público só ser competente para executar um MDE em conformidade com o direito da União se não puder receber ordens ou instruções do poder executivo. Não era esse o caso nos Países Baixos à data dos factos do presente litígio, uma vez que, em conformidade com o artigo 127.o da Wet RO, o Ministério Público neerlandês podia receber instruções individuais provenientes do poder executivo.

75.      Nesta fase, não há que verificar, além disso, se, no âmbito do processo de execução do MDE a cargo do Ministério Público neerlandês, está previsto um recurso jurisdicional equivalente ao exigido pelo Tribunal de Justiça para os MDE que esta instituição, se fosse independente do executivo, poderia emitir (25).

76.      Nesta hipótese, a mesma exigência seria transferida para a execução de um MDE pelo Ministério Público. O recurso das suas decisões num órgão jurisdicional visaria também «garantir que a fiscalização do respeito dos requisitos necessários à [execução] de um [MDE] respeita as exigências decorrentes de uma proteção jurisdicional efetiva» (26).

d)      As condições em que o Ministério Público neerlandês poderia consentir o alargamento dos factos constantes de um [MDE] já executado

77.      No que diz respeito ao consentimento previsto no artigo 27.o, n.o 3, alínea g), da Decisão‑Quadro, considero que devem reger as mesmas condições aplicáveis à execução dos MDE, das quais o Ministério Público neerlandês não preenche a segunda (a total independência do poder executivo).

78.      Por conseguinte, o Ministério Público neerlandês também não pode dar esse consentimento sem que a exigência de independência possa ser relativizada para além do que já resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça referente ao artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro (27).

79.      Também não é possível abstrair da exigência de um recurso judicial quando o consentimento é prestado pelo Ministério Público, que tem um caráter independente do poder executivo.

80.      Com efeito, através do pedido dirigido à autoridade judiciária de execução para que consinta que a pessoa já entregue seja sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração diferente da constante do MDE que esteve na origem da entrega, a autoridade judiciária de emissão está a emitir, do ponto de vista material ou substantivo, um novo MDE.

81.      Este consentimento é pedido relativamente a uma «infração diferente» (ou seja, uma infração que não foi considerada, por qualquer razão, no MDE que deu lugar à entrega da pessoa procurada), pelo que só pode ser formalizado por um processo equivalente ao que conduziu à execução daquele MDE.

82.      Nestas condições, o consentimento é na realidade autorizado por um alargamento (substancial) (28) das infrações imputáveis a essa pessoa. Por conseguinte, é lógico que o Ministério Público, para consentir, tenha de cumprir as mesmas condições que teria tido de cumprir relativamente ao MDE de origem, incluindo a possibilidade de a sua decisão ser impugnada (29).

83.      Em suma, mesmo que o Ministério Público neerlandês participe na administração da justiça e as suas decisões possam ser sujeitas a uma eventual revisão judicial, o risco de ser submetido a ordens ou a instruções individuais do executivo implica que não pode ser qualificado de «autoridade judiciária» na aceção do artigo 6.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro, nem dar o consentimento a que se refere o seu artigo 27.o, n.o 3, alínea g).

3.      O direito de audiência no procedimento da manifestação do consentimento previsto no artigo 27.o, n.o 3, alínea g), da DecisãoQuadro

84.      A resposta que proponho para as questões anteriores torna desnecessário responder a esta. No entanto, para ser exaustivo, pronunciar‑me‑ei, também, sobre o último problema suscitado pelo órgão jurisdicional de reenvio.

85.      Segundo o Openbaar Ministerie (Ministério Público) e o Governo neerlandês, a Decisão‑Quadro não reconhece à pessoa já entregue o direito de ser ouvida pela autoridade de execução antes de decidir se consente em proceder ao alargamento das infrações relativamente às quais poderá ser julgada.

86.      A Decisão‑Quadro prevê, no seu artigo 14.o, o direito de audiência da «pessoa […], se não consentir na sua entrega», para efeitos do qual o artigo 19.o estabelece um procedimento. Em contrapartida, nada diz sobre a aquiescência da pessoa já entregue ao pedido de alargamento das infrações. Uma vez que esse pedido é dirigido à autoridade judiciária de execução, poder‑se‑ia pensar que apenas exige o consentimento dessa autoridade.

87.      Na minha opinião, o silêncio da Decisão‑Quadro sobre este ponto não pode privar a pessoa entregue do seu direito de audiência (que faz parte dos direitos de defesa, inerentes ao direito de obter uma proteção jurisdicional efetiva) antes de serem alargadas as infrações constantes do MDE original.

88.      Este alargamento, se for aceite, pode implicar que a pessoa em causa seja sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade, devido a uma infração diferente daquela contra a qual se pôde, no passado, defender. Por conseguinte, da resolução do diferendo relativo a esta questão dependerá, portanto, nada menos que a delimitação das infrações pelas quais essa pessoa poderá acabar por ser julgada, o que traduz o caráter perentório do seu direito a uma proteção jurisdicional efetiva.

89.      Não vejo por que razão esses direitos de defesa poderiam ser suprimidos no âmbito do segundo processo, cujas consequências poderiam ser tão ou mais desfavoráveis do que as do primeiro (o que incidiu no MDE inicial).

90.      O respeito dos direitos de defesa no procedimento de alargamento das infrações poderia revestir‑se de uma destas modalidades:

— Ou, como preconiza o Governo alemão, é realizada uma audição no âmbito do processo previsto no artigo 27.o da Decisão‑Quadro.

— Ou atribui‑se à pessoa já entregue a possibilidade de se opor a esse alargamento na autoridade de emissão, como diligência prévia para que esta envie o pedido à autoridade de execução.

C.      Limitação no tempo dos efeitos do acórdão do Tribunal de Justiça

91.      O Openbaar Ministerie (Ministério Público) pediu que, no caso de o Tribunal de Justiça considerar que não pode ser considerado uma «autoridade judiciária», na aceção do artigo 6.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro, o acórdão que põe termo a este incidente prejudicial não tenha efeitos imediatos.

92.      Só a título excecional é que o Tribunal de Justiça pode, aplicando o princípio geral da segurança jurídica inerente à ordem jurídica da União, ser levado a limitar a possibilidade de qualquer interessado invocar uma disposição por si interpretada para pôr em causa relações jurídicas estabelecidas de boa‑fé. Para que esta limitação possa ser decidida, é necessário que estejam preenchidos os critérios da boa‑fé dos meios interessados e o risco de perturbações graves (30).

93.      A boa‑fé das autoridades neerlandesas deve considerar‑se garantida, uma vez que não hesitaram em adaptar, sem demora, a sua legislação à jurisprudência do Tribunal de Justiça no que diz respeito ao artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro. No entanto, o mesmo não acontece com o risco de perturbações graves: a aplicação imediata da interpretação do artigo 6.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro aqui proposta não implica essas perturbações que, aliás, não foram identificadas com precisão pelo Openbaar Ministerie (Ministério Público).

V.      Conclusão

94.      Atendendo a todas as considerações efetuadas, proponho que o Tribunal de Justiça responda ao Hof van beroep te Brussel (Tribunal de Recurso de Bruxelas, Bélgica) nos seguintes termos:

«O artigo 6.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, na sua versão alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de “autoridade judiciária de execução”, enquanto conceito autónomo do direito da União, não abrange o Ministério Público de um Estado‑Membro exposto ao risco de estar sujeito, direta ou indiretamente, a ordens ou instruções individuais do poder executivo.

O artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI deve ser interpretado no sentido de que o Ministério Público de um Estado‑Membro exposto ao risco de estar sujeito, direta ou indiretamente, a ordens ou instruções individuais do poder executivo não pode dar o consentimento a que se refere essa disposição.»


1      Língua original: espanhol.


2      Decisão‑Quadro do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), na sua versão alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24; a seguir «Decisão‑Quadro»).


3      V., de forma genérica, Acórdão de 12 de dezembro de 2019, Parquet général du Grand‑Duché de Luxembourg e Openbaar Ministerie (Magistrados de Lyon e de Tours) (C‑566/19 PPU e C‑626/19 PPU, EU:C:2019:1077; a seguir «Acórdão Magistrados de Lyon e de Tours»), e jurisprudência aí referida.


4      Wet betreffende het Europees aanhoudingsbevel de 19 de dezembro de 2003 (Belgisch Staatsblad, 22 de dezembro de 2003, p. 60075).


5      Wet van 29 april 2004 tot implementatie van het kaderbesluit van de Raad van de Europese Unie betreffende det Europees aanhoudingsbevel en de procedures van overlevering tussen de lidstaten van de Europese Unie (Stb. 2004, n.o 195; a seguir «Olw»). Foi alterada a partir de 13 de julho de 2019.


6      Wet op de Rechterlijke Organisatie de 18 de abril de 1827 (Lei da Organização Judiciária; a seguir «Wet RO»),


7      Acórdão de 1 de dezembro de 2008, Leymann e Pustovarov (C‑388/08 PPU, EU:C:2008:669; a seguir «Acórdão Leymann e Pustovarov»), n.o 44.


8      Com o termo «consentimento» refiro‑me, convencionalmente, ao que a autoridade do Estado de execução concede, nos termos do artigo 27.o da Decisão‑Quadro, para que a pessoa já entregue seja sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega, diferente daquela por que foi entregue.


9      Acórdão Magistrados de Lyon e de Tours, n.o 51, e jurisprudência aí referida.


10      V., de forma genérica, Acórdão de 27 de maio de 2019, PF (Procurador‑Geral da Lituânia) (C‑509/18, EU:C:2019:457; a seguir «Acórdão Procurador‑Geral da Lituânia»), n.o 28.


11      Acórdão de 10 de novembro de 2016, Poltorak (C‑452/16 PPU, EU:C:2016:858; a seguir «Acórdão Poltorak», n.o 33).


12      Acórdão de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau) (C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456; a seguir «Procuradorias de Lübeck e de Zwickau»), n.o 52; o sublinhado é meu.


13      Ibidem, n.o 54.


14      Ibidem, n.o 62.


15      Acórdão de 10 de novembro de 2016, Kovalkovas (C‑477/16 PPU, EU:C:2016:861; a seguir «Acórdão Kovalkovas»), n.o 27: a confiança mútua e o reconhecimento mútuo «permitem a criação e a manutenção de um espaço sem fronteiras internas. Mais concretamente, o princípio da confiança mútua impõe, designadamente no que respeita ao espaço de liberdade, segurança e justiça, que cada um dos Estados‑Membros considere, salvo em circunstâncias excecionais, que todos os outros Estados‑Membros respeitam o direito da União e, muito em especial, os direitos fundamentais reconhecidos por esse direito».


16      Procuradorias de Lübeck e de Zwickau, n.o 74; o sublinhado é meu.


17      Ibidem, n.o 74.


18      Esta exigência «não constitui uma condição para que esta autoridade possa ser qualificada como autoridade judiciária de emissão, na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro […] n[em] está abrangida pelas regras estatutárias e organizacionais da referida autoridade, mas diz respeito ao procedimento de emissão de tal mandado». Acórdão Magistrados de Lyon e de Tours, n.o 48.


19      Assim é, apenas, para a emissão de um MDE que tem por objeto a ação penal. Tratando‑se de um MDE para a execução de uma pena, o Tribunal de Justiça afasta a necessidade de a decisão do Ministério Público poder ser submetida a revisão judicial. Acórdão de 12 de dezembro de 2019, Openbaar Ministerie (Procurador do Rei de Bruxelas) (C‑627/19 PPU, EU:C:2019:1079; a seguir «Acórdão Procurador do Rei de Bruxelas», n.o 39).


20      O Tribunal de Justiça admitiu no Acórdão de 9 de outubro de 2019, NJ (Procurador de Viena) (C‑489/19 PPU, EU:C:2019:849), que um tribunal «homologue» o MDE emitido por uma procuradoria dependente do poder executivo. No entanto, isto não implica que os Estados‑Membros possam desdobrar em duas autoridades a competência para emitir um MDE. Pressupõe, apenas, que a autoridade de emissão é só a que «homologou» a decisão da Procuradoria. Nos mesmos termos, os Estados‑Membros podem participar no processo de concessão do consentimento do artículo 27.o da Decisão‑Quadro a uma autoridade diferente daquela que executou o MDE, mas é esta última que deve, formalmente, consentir.


21      V. os n.os 43 a 53 destas conclusões.


22      Acórdão Procuradorias de Lübeck e de Zwickau, n.o 68.


23      Acórdão de 1 de junho de 2016, Bob‑Dogi (C‑241/15, EU:C:2016:385), n.os 55 a 57. Em rigor, poderia considerar‑se que o procedimento de execução do MDE beneficia de uma proteção em três níveis: os dois incluídos no procedimento de emissão do MDE e o representado pelo procedimento de execução.


24      Procuradorias de Lübeck e de Zwickau, n.o 73.


25      Acórdão Magistrados de Lyon e de Tours, n.o 62: «quando o direito do Estado‑Membro de emissão atribui a competência para emitir um [MDE] a uma autoridade que, embora participando na administração da justiça desse Estado‑Membro, não é ela mesma um órgão jurisdicional, a decisão de emitir esse mandado de detenção e, nomeadamente, o caráter proporcionado dessa decisão devem poder estar sujeitos, no referido Estado‑Membro, a um recurso judicial que cumpra plenamente as exigências inerentes a uma proteção judicial efetiva».


26      Ibidem, n.o 63.


27      Se assim não fosse, o modelo da Decisão‑Quadro seria desvirtuado enquanto sistema de entrega entre autoridades judiciárias sem participação — para lá da estritamente instrumental e administrativa — da autoridade governamental [Acórdão de 28 de junho de 2012 West (C‑192/12 PPU, EU:C:2012:404, n.o 54)].


28      Esse pedido não deve ser confundido com o que permite a introdução de alterações puramente descritivas ou acidentais nos factos descritos no MDE já executado. O Tribunal de Justiça admite modificações que não alterem a natureza da infração originária nem deem origem a motivos de não execução (Acórdão Leymann e Pustovarov, n.o 57).


29      O Governo neerlandês alegou que esse recurso existe no direito nacional, apesar de não ter sido utilizado por AZ.


30      Acórdão Kovalkovas, n.o 52, e jurisprudência aí referida.