Language of document : ECLI:EU:C:2018:999

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Tribunal Pleno)

10 de dezembro de 2018 (*)

«Reenvio prejudicial — Artigo 50.o TUE — Notificação por um Estado‑Membro da sua intenção de se retirar da União Europeia — Consequências da notificação — Direito de revogação unilateral da notificação — Requisitos»

No processo C‑621/18,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Court of Session, Inner House, First Division (Scotland) [Tribunal de Sessão, decidindo em recurso, Secção Interna, Primeiro Juízo (Escócia), Reino Unido], por decisão de 3 de outubro de 2018, que deu entrada no Tribunal de Justiça no mesmo dia, no processo

Andy Wightman,

Ross Greer,

Alyn Smith,

David Martin,

Catherine Stihler,

Jolyon Maugham,

Joanna Cherry

contra

Secretary of State for Exiting the European Union,

sendo intervenientes:

Chris Leslie,

Tom Brake,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Tribunal Pleno),

composto por: K. Lenaerts, presidente, R. Silva de Lapuerta, vice‑presidente, J.‑C. Bonichot, A. Arabadjiev, A. Prechal, M. Vilaras, E. Regan, T. von Danwitz, C. Toader, F. Biltgen, K. Jürimäe e C. Lycourgos, presidentes de secção, A. Rosas, E. Juhász, M. Ilešič, J. Malenovský, L. Bay Larsen, M. Safjan, D. Šváby, C. G. Fernlund (relator), C. Vajda, S. Rodin, P. G. Xuereb, N. Piçarra e L. S. Rossi, juízes,

advogado‑geral: M. Campos Sánchez‑Bordona,

secretário: L. Hewlett, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 27 de novembro de 2018,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de A. Wightman, R. Greer, A. Smith, D. Martin, C. Stihler, J. Maugham e J. Cherry, por A. O’Neill, QC, M. Lester, QC, D. Welsh, advocate, P. Eeckhout, professor de direito, e E. Motion, solicitor,

–        em representação de C. Leslie e T. Brake, por M. Ross, QC, G. Facenna, QC, A. Howard, barrister, S. Donnelly, advocate, J. Jack e J. Halford, solicitors,

–        em representação do Governo do Reino Unido, por S. Brandon e C. Brodie, na qualidade de agentes, assistidos pelo Rt Hon. Lord Keen of Elie, QC, e T. de la Mare, QC,

–        em representação do Conselho da União Europeia, por H. Legal, J.‑B. Laignelot e J. Ciantar, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por L. Romero Requena, F. Erlbacher e K. Banks, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 4 de dezembro de 2018,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 50.o TUE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo que opõe Andy Wightman, Ross Greer, Alyn Smith, David Martin, Catherine Stihler, Jolyon Maugham e Joanna Cherry ao Secretary of State for Exiting the European Union (secretário de Estado encarregado da retirada da União Europeia, Reino Unido) a respeito da possibilidade de uma revogação unilateral da notificação da intenção do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte de se retirar da União Europeia.

 Quadro jurídico

 Direito internacional

3        A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, assinada em Viena, em 23 de maio de 1969 (Recueil des traités des Nations unies, vol. 1155, p. 331), dispõe, nos seus artigos 65.o, 67.o e 68.o:

«Artigo 65.o Procedimento a seguir quanto à nulidade de um tratado, à cessação da sua vigência, à retirada ou à suspensão da sua aplicação

1.      A Parte que, com base nas disposições da presente Convenção, invocar um vício do seu consentimento em ficar vinculada por um tratado, um motivo para contestar a validade de um tratado, para fazer cessar a sua vigência, para dele se retirar ou para suspender[…] a sua aplicação deve notificar a sua pretensão às outras Partes. A notificação deve indicar a medida que se propõe tomar quanto ao tratado e o respetivo fundamento.

2.      Se, após o decurso de um prazo que, salvo em casos de particular urgência, não deve ser inferior a três meses a contar da receção da notificação, nenhuma Parte formular objeções, a Parte que faz a notificação pode tomar, nas formas prescritas no artigo 67.o, a medida que tenha previsto.

3.      Se, porém, qualquer outra Parte tiver levantado uma objeção, as Partes devem procurar uma solução pelos meios indicados no artigo 33.o da Carta das Nações Unidas.

[…]

Artigo 67.o Instrumentos para declarar a nulidade de um tratado, fazer cessar a sua vigência, proceder à retirada ou suspender a sua aplicação

1.      A notificação prevista no n.o 1 do artigo 65.o deve ser feita por escrito.

2.      Todo o ato que vise declarar a nulidade de um tratado, fazer cessar a sua vigência, proceder à retirada ou suspender a sua aplicação, com base nas disposições do tratado ou nos n.os 2 e 3 do artigo 65.o, deve ser consignado num instrumento comunicado às outras Partes. Se o instrumento não for assinado pelo chefe do Estado, pelo chefe do governo ou pelo ministro dos negócios estrangeiros, o representante do Estado que faz a comunicação pode ser convidado a apresentar os seus plenos poderes.

Artigo 68.o Revogação das notificações e dos instrumentos previstos nos artigos 65.o e 67.o

A notificação e o instrumento previstos nos artigos 65.o e 67.o podem ser revogados em qualquer momento, antes da produção dos seus efeitos.»

 Direito da União

4        Nos termos do seu artigo 1.o, segundo parágrafo, o Tratado UE assinala uma nova etapa no processo de criação de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa, em que as decisões serão tomadas de uma forma tão aberta quanto possível e ao nível mais próximo possível dos cidadãos.

5        O artigo 2.o TUE dispõe:

«A União funda‑se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são comuns aos Estados‑Membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres.»

6        Nos termos do artigo 50.o TUE:

«1.      Qualquer Estado‑Membro pode decidir, em conformidade com as respetivas normas constitucionais, retirar‑se da União.

2.      Qualquer Estado‑Membro que decida retirar‑se da União notifica a sua intenção ao Conselho Europeu. Em função das orientações do Conselho Europeu, a União negoc[e]ia e celebra com esse Estado um acordo que estabeleça as condições da sua saída, tendo em conta o quadro das suas futuras relações com a União. Esse acordo é negociado nos termos do n.o 3 do artigo 218.o [TFUE]. O acordo é celebrado em nome da União pelo Conselho, deliberando por maioria qualificada, após aprovação do Parlamento Europeu.

3.      Os Tratados deixam de ser aplicáveis ao Estado em causa a partir da data de entrada em vigor do acordo de saída ou, na falta deste, dois anos após a notificação referida no n.o 2, a menos que o Conselho Europeu, com o acordo do Estado‑Membro em causa, decida, por unanimidade, prorrogar esse prazo.

4.      Para efeitos dos n.os 2 e 3, o membro do Conselho Europeu e do Conselho que representa o Estado‑Membro que pretende retirar‑se da União não participa nas deliberações nem nas decisões do Conselho Europeu e do Conselho que lhe digam respeito.

A maioria qualificada é definida nos termos da alínea b) do n.o 3 do artigo 238.o [TFUE].

5.      Se um Estado que se tenha retirado da União voltar a pedir a adesão, é aplicável a esse pedido o processo referido no artigo 49.o»

 Direito do Reino Unido

7        O European Union (Notification of Withdrawal) Act 2017 [Lei de notificação da retirada da União Europeia de 2017] dispõe:

«[…]

1      Competência para notificar a retirada da [União]:

(1)      O Primeiro‑Ministro pode notificar, em conformidade com o artigo 50.o, n.o 2, TUE, a intenção do Reino Unido de se retirar da [União].

(2)      A presente section produz efeitos não obstante qualquer disposição resultante do European Communities Act 1972 [(Lei das Comunidades Europeias de 1972)] ou de qualquer outra medida legislativa.

[…]»

8        A section 13 do European Union (Withdrawal) Act 2018 [Lei de retirada da União Europeia de 2018], promulgado em 26 de junho de 2018, dispõe:

«(1)      O acordo de retirada só poderá ser ratificado se:

(a)      um Ministro da Coroa apresentar em ambas as Câmaras do Parlamento

(i)      uma declaração de que se chegou a um acordo político,

(ii)      uma cópia do acordo de retirada negociado e

(iii)      uma cópia do quadro das futuras relações,

(b)      o acordo de retirada negociado e o quadro das futuras relações forem aprovados por resolução da House of Commons [(Câmara dos Comuns)] sob moção apresentada por um Ministro da Coroa,

(c)      um Ministro da Coroa apresentar na House of Lords [(Câmara dos Lordes)] uma moção para essa Câmara tomar conhecimento do acordo de retirada negociado e do quadro das futuras relações e

(i)      a Câmara dos Lordes debater a moção, ou

(ii)      a Câmara dos Lordes não tiver concluído a discussão da iniciativa no prazo de cinco dias de sessões da Câmara contados do primeiro dia de sessões da Câmara a seguir ao da aprovação na Câmara dos Comuns da resolução referida em (b),

e

(d)      o Parlamento aprovar uma lei de execução do acordo de retirada.

(2)      Na medida do possível, um Ministro da Coroa promoverá as diligências necessárias para que a moção prevista na subsection (1)(b) seja discutida e votada na Câmara dos Comuns, antes de o Parlamento Europeu decidir se dá ou não a sua aprovação a que o acordo de retirada seja celebrado em nome da União […], nos termos do artigo 50.o, n.o 2, TUE.

[…]»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

9        No referendo de 23 de junho de 2016 no Reino Unido, uma maioria pronunciou‑se a favor da saída desse Estado‑Membro da União. Autorizado para o efeito pela Lei de notificação da retirada da União Europeia de 2017, o Prime Minister (primeiro‑ministro, Reino Unido), em 29 de março de 2017, notificou o Conselho Europeu da intenção do Reino Unido de se retirar da União, nos termos do artigo 50.o TUE.

10      Em 19 de dezembro de 2017, os recorrentes no processo principal, entre os quais figuram um membro do Parliament of the United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland (Parlamento do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, a seguir «Parlamento do Reino Unido»), dois membros do Scottish Parliament (Parlamento escocês, Reino Unido) e três membros do Parlamento Europeu, interpuseram na Court of Session (Scotland) [Tribunal de Sessão (Escócia) Reino Unido] um recurso de fiscalização jurisdicional da legalidade (judicial review) com vista à prolação de uma sentença declarativa (declarator) que esclarecesse se, quando e como essa notificação podia ser unilateralmente revogada. Esses recorrentes, em apoio dos quais intervieram dois outros membros do Parlamento do Reino Unido, pretendem saber se a notificação a que se refere o artigo 50.o TUE pode ser unilateralmente revogada antes do termo do período de dois anos previsto nesse artigo, com o efeito de, se a notificação efetuada pelo Reino Unido for revogada, esse Estado‑Membro permanecer na União. Convidaram a Court of Session (Scotland) [Tribunal de Sessão (Escócia)] a submeter ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial sobre este problema. Contestando, o secretário de Estado encarregado da retirada da União Europeia alegou que a questão era hipotética e académica, tendo em conta a posição do Governo do Reino Unido de que a notificação não seria revogada.

11      Por Decisão de 8 de junho de 2018, o Lord Ordinary (juiz de primeira instância, Reino Unido) recusou submeter a questão ao Tribunal de Justiça e rejeitou o recurso de fiscalização jurisdicional da legalidade com os fundamentos de que, primeiro, a questão era hipotética, tendo em conta a posição do Reino Unido e uma vez que os factos com base nos quais o Tribunal de Justiça teria de responder não poderiam ser demonstrados com certeza e, segundo, a questão violava a soberania parlamentar e não era da competência do órgão jurisdicional nacional.

12      Os recorrentes no processo principal interpuseram recurso dessa decisão para o órgão jurisdicional de reenvio.

13      O órgão jurisdicional de reenvio salienta que, segundo a section 13 da Lei de retirada da União Europeia de 2018, é necessário o acordo do Parlamento do Reino Unido sobre o resultado das negociações entre o Reino Unido e a União em conformidade com o artigo 50.o TUE. Em particular, o acordo de retirada só poderá ser ratificado se esse acordo e o quadro aplicável à relação futura entre o Reino Unido e a União forem aprovados por resolução da Câmara dos Comuns, após debate na Câmara dos Lordes. Na falta dessa aprovação, o Governo do Reino Unido deve indicar a via que propõe seguir. Se o primeiro‑ministro declarar, antes de 21 de janeiro de 2019, que um acordo não poderá, em princípio, ser alcançado, esse Governo deve indicar novamente o que propõe fazer e deve apresentar essa proposta às duas Câmaras do Parlamento do Reino Unido.

14      O órgão jurisdicional de reenvio assinala que, se o eventual acordo entre o Reino Unido e a União não for aprovado e nada mais acontecer, os Tratados deixarão de ser aplicáveis a esse Estado‑Membro em 29 de março de 2019 e o referido Estado‑Membro sairá automaticamente da União nessa data.

15      Por Despacho de 21 de setembro de 2018, o órgão jurisdicional de reenvio deu provimento ao recurso interposto da decisão do Lord Ordinary (juiz de primeira instância) e deferiu o pedido dos recorrentes no processo principal de que fosse apresentado um pedido de decisão prejudicial ao abrigo do artigo 267.o TFUE. O órgão jurisdicional de reenvio entende que não é académico nem prematuro perguntar ao Tribunal de Justiça se é juridicamente possível um Estado‑Membro revogar unilateralmente a notificação efetuada nos termos do artigo 50.o, n.o 2, TUE e permanecer na União. O referido órgão jurisdicional considera que existe uma dúvida a este respeito e que a resposta do Tribunal de Justiça clarificará as opções de que dispõem os membros da Câmara dos Comuns quando tiverem de se pronunciar sobre o eventual acordo alcançado entre o Reino Unido e a União. Em particular, essa resposta permitir‑lhes‑á saber se em vez de duas existem três opções, a saber, a retirada da União sem acordo, a retirada da União com o acordo que lhes tenha sido apresentado ou a revogação da notificação da intenção de retirada e a manutenção do Reino Unido na União.

16      Nestas condições, a Court of Session, Inner House, First Division (Scotland) [Tribunal de Sessão, decidindo em recurso, Secção Interna, Primeiro Juízo (Escócia), Reino Unido] decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«No caso de, em conformidade com o artigo 50.o [TUE], um Estado‑Membro ter notificado o Conselho Europeu da sua intenção de se retirar da União Europeia, o direito da [União] permite que essa notificação seja unilateralmente revogada pelo Estado‑Membro notificante e, na afirmativa, em que condições e com que efeitos no que respeita à permanência do Estado‑Membro na União Europeia?»

17      O Governo do Reino Unido pediu ao órgão jurisdicional de reenvio autorização para recorrer do Despacho de 21 de setembro de 2018, mencionado no n.o 15 do presente acórdão, e do Despacho de 3 de outubro de 2018, pelo qual esse órgão jurisdicional apresentou o presente reenvio prejudicial. Tendo esse pedido sido indeferido por Decisão de 8 de novembro de 2018, esse Governo pediu à Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) autorização para recorrer destes dois despachos. Essa autorização foi indeferida por Despacho da Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) de 20 de novembro de 2018.

 Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

18      O órgão jurisdicional de reenvio pediu a aplicação da tramitação acelerada prevista no artigo 105.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

19      Por Despacho de 19 de outubro de 2018, Wightman e o. (C‑621/18, EU:C:2018:851), o presidente do Tribunal de Justiça deferiu esse pedido.

 Quanto à questão prejudicial

 Quanto à admissibilidade

20      O Governo do Reino Unido alega que a questão prejudicial é inadmissível, por ser hipotética. Em particular, esse Governo salienta que não foi adotado nem sequer está previsto qualquer projeto de ato de revogação da notificação da intenção do Reino Unido de se retirar da União, que não existe nenhum litígio no processo principal e que a questão submetida se destina, na realidade, a obter um parecer consultivo numa questão de ordem constitucional, a saber, a interpretação correta do artigo 50.o TUE e dos atos adotados com fundamento neste artigo.

21      Segundo o referido Governo, não há nenhum litígio concreto, pois a questão prejudicial é relativa a factos que não aconteceram e que não é certo que se venham a produzir. O Governo do Reino Unido afirma que foi sempre sua intenção, como tem constantemente repetido, honrar o resultado do referendo, procedendo à notificação prevista no artigo 50.o TUE e, portanto, à retirada da União, quer com base num acordo quer sem acordo.

22      Entende que, na realidade, a questão diz respeito às implicações jurídicas de uma situação diferente da que atualmente se apresenta. Por um lado, sugere que o Reino Unido, por iniciativa do seu Parlamento ou de outra maneira, tentará revogar a notificação e, por outro, que a Comissão Europeia ou os outros 27 Estados‑Membros virão a opor‑se a essa revogação, pois só essa oposição seria suscetível de dar origem a um litígio.

23      Segundo o Governo do Reino Unido, a interposição do recurso no processo principal acompanhada de um pedido de decisão prejudicial com vista a obter um parecer jurídico do Tribunal de Justiça constitui uma forma de contornar as regras do Tratado FUE em matéria de vias de recurso, de legitimidade e de prazos. Esse Governo lembra que o processo de parecer é enquadrado pelas regras do artigo 218.o, n.o 11, TFUE e só está aberto quando se coloca uma questão sobre a compatibilidade de um projeto de acordo internacional com os Tratados.

24      Entende que as únicas vias de recurso possíveis seriam os recursos diretos, na eventualidade de o Reino Unido revogar a sua notificação e provocar um litígio com os outros Estados‑Membros e as instituições da União.

25      A Comissão considera igualmente que a decisão que venha ser adotada pelo órgão jurisdicional de reenvio depois de ter recebido a resposta do Tribunal de Justiça à sua questão prejudicial não produzirá qualquer efeito vinculativo para as partes no processo principal, pelo que a questão é hipotética. Contudo, na audiência, reconheceu a existência de um litígio no processo principal.

26      A este respeito, há que recordar que o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação ou à validade de uma regra de direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdãos de 16 de junho de 2015, Gauweiler e o., C‑62/14, EU:C:2015:400, n.o 24, e de 7 de fevereiro de 2018, American Express, C‑304/16, EU:C:2018:66, n.o 31).

27      Daqui se conclui que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação ou a apreciação da validade de uma regra da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdãos de 16 de junho de 2015, Gauweiler e o., C‑62/14, EU:C:2015:400, n.o 25, e de 7 de fevereiro de 2018, American Express C‑304/16, EU:C:2018:66, n.o 32).

28      Por outro lado, há que recordar que, de acordo com jurisprudência constante, a justificação do reenvio prejudicial não é emitir opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas, mas a necessidade inerente à efetiva solução de um litígio (Acórdão de 28 de março de 2017, Rosneft, C‑72/15, EU:C:2017:236, n.o 194 e jurisprudência referida; v., igualmente, neste sentido, Acórdãos de 16 de dezembro de 1981, Foglia, 244/80, EU:C:1981:302, n.o 18, e de 12 de junho de 2008, Gourmet Classic, C‑458/06, EU:C:2008:338, n.o 26).

29      No caso presente, há que salientar que foi submetido ao órgão jurisdicional de reenvio um recurso de uma decisão do juiz de primeira instância, proferida no âmbito de um recurso destinado a obter uma sentença declarativa sobre a questão de saber se a notificação da intenção do Reino Unido de se retirar da União, efetuada em conformidade com o artigo 50.o TUE, pode ser unilateralmente revogada antes do termo do período de dois anos previsto nesse artigo, com o efeito de, se essa notificação fosse revogada, o Reino Unido permanecer na União. O órgão jurisdicional de reenvio indica, a este respeito, que lhe cabe decidir essa questão de direito, real e atual, que dá origem a um litígio e cuja importância prática é considerável. Esse órgão jurisdicional salienta que incumbe a um dos recorrentes e aos dois intervenientes no processo principal, que são membros do Parlamento do Reino Unido, pronunciar‑se sobre a retirada do Reino Unido da União e, nomeadamente, de acordo com a section 13 da Lei de retirada da União Europeia de 2018, sobre a ratificação do acordo negociado entre o Governo do Reino Unido e a União, ao abrigo do artigo 50.o TUE. O órgão jurisdicional de reenvio precisa que esses membros do Parlamento do Reino Unido têm um interesse na resposta a esta questão de direito, uma vez que essa resposta permitirá clarificar as opções que estão ao seu dispor no exercício dos seus mandatos parlamentares.

30      Ora, não cabe ao Tribunal de Justiça pôr em causa a apreciação pelo órgão jurisdicional de reenvio da admissibilidade do recurso no processo principal, a qual, no âmbito do processo de reenvio prejudicial, é da competência do juiz nacional, nem verificar se a decisão de reenvio foi adotada em conformidade com as regras nacionais de organização e de processo judiciais (v., neste sentido, Acórdãos de 16 de junho de 2015, Gauweiler e o., C‑62/14, EU:C:2015:400, n.o 26, e de 7 de fevereiro de 2018, American Express, C‑304/16, EU:C:2018:66, n.o 34). No caso presente, o órgão jurisdicional de reenvio rejeitou as objeções de admissibilidade nele suscitadas pelo Governo do Reino Unido a respeito do caráter hipotético ou académico do recurso no processo principal. Daqui resulta que, na medida em que visam pôr em causa a admissibilidade desse recurso, os argumentos do Governo do Reino Unido e da Comissão não têm incidência na apreciação da admissibilidade do pedido de decisão prejudicial (v., neste sentido, Acórdão de 13 de março de 2007, Unibet, C‑432/05, EU:C:2007:163, n.o 33).

31      Por outro lado, o facto de a ação principal ter caráter declarativo não obsta a que o Tribunal se pronuncie sobre uma questão prejudicial quando essa ação seja autorizada pelo direito nacional e essa questão responda a uma necessidade objetiva para a decisão da causa regularmente submetida ao órgão jurisdicional de reenvio (v., neste sentido, Acórdãos de 15 de dezembro de 1995, Bosman, C‑415/93, EU:C:1995:463, n.o 65, e de 16 de junho de 2015, Gauweiler e o., C‑62/14, EU:C:2015:400, n.o 28).

32      Assim, existe efetivamente um litígio pendente no órgão jurisdicional de reenvio, apesar de o demandado ter optado por não se pronunciar quanto ao mérito da questão suscitada pelos recorrentes no processo principal, alegando unicamente que o recurso destes é inadmissível (v., neste sentido, Acórdão de 8 de julho de 2010, Afton Chemical, C‑343/09, EU:C:2010:419, n.os 11 e 15).

33      A pertinência da questão prejudicial não deixa qualquer dúvida, uma vez que tem por objeto a interpretação de uma disposição de direito da União, no caso presente de direito primário, e essa questão é precisamente o objeto do litígio no processo principal.

34      Por conseguinte, não é manifesto que a questão colocada relativa à interpretação do artigo 50.o TUE não tenha qualquer relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal ou diga respeito a um problema hipotético.

35      Quanto ao argumento mencionado no n.o 23 do presente acórdão, segundo o qual o órgão jurisdicional de reenvio tenta obter um parecer do Tribunal de Justiça, contornando o processo previsto no artigo 218.o, n.o 11, TFUE, há que salientar que o órgão jurisdicional de reenvio não pede ao Tribunal de Justiça um parecer sobre a compatibilidade de um acordo projetado pela União com os Tratados, mas interroga o Tribunal sobre a interpretação de uma disposição do direito da União para efeitos de proferir uma sentença no processo principal.

36      Daqui resulta que a questão prejudicial é admissível.

 Quanto ao mérito

37      Os recorrentes e os intervenientes no processo principal, não deixando de constatar a inexistência de uma regra expressa no artigo 50.o TUE consagrada à revogação de uma notificação da intenção de retirada da União, alegam que esse direito existe e tem caráter unilateral. Entendem, porém, que esse direito só pode ser exercido no respeito das normas constitucionais do Estado‑Membro em causa, por analogia com o exercício do próprio direito de retirada, previsto no artigo 50.o, n.o 1, TUE. Assim, segundo essas partes no processo principal, o processo de retirada prossegue enquanto o Estado‑Membro em causa tencionar retirar‑se da União, mas termina se, antes do termo do período previsto no artigo 50.o, n.o 3, TUE, esse Estado‑Membro mudar de opinião e decidir já não se retirar da União.

38      O Conselho e a Comissão, não deixando de partilhar do ponto de vista de que um Estado‑Membro tem o direito de revogar a notificação da sua intenção de retirada antes de os Tratados terem deixado de lhe ser aplicáveis, contestam o caráter unilateral desse direito.

39      Segundo essas instituições, reconhecer um direito de revogação unilateral permitiria a um Estado‑Membro que tivesse notificado a sua intenção de retirada contornar as regras enunciadas no artigo 50.o, n.os 2 e 3, TUE, que visam permitir uma retirada ordenada da União, e poderia dar lugar a abusos por parte do Estado‑Membro em causa, em detrimento da União e das suas instituições.

40      O Conselho e a Comissão alegam que o Estado‑Membro em causa poderia então utilizar o seu direito de revogação pouco antes do termo do prazo previsto no artigo 50.o, n.o 3, TUE e notificar uma nova intenção de retirada imediatamente depois desse termo, abrindo assim um novo prazo de negociação de dois anos. Ao fazê‑lo, o Estado‑Membro beneficiaria, de facto, de um direito ilimitado no tempo de negociar a sua retirada e privaria de efeito útil o prazo previsto no artigo 50.o, n.o 3, TUE.

41      Além disso, segundo essas instituições, um Estado‑Membro poderia a todo o tempo utilizar o seu direito de revogação como alavanca de negociação. No caso de não lhe convirem os termos do acordo de retirada, poderia ameaçar revogar a sua notificação e desse modo fazer pressão sobre as instituições da União a fim de melhorar em seu benefício os termos desse acordo.

42      A fim de evitar tais riscos, o Conselho e a Comissão propõem, portanto, que se interprete o artigo 50.o TUE no sentido de que permite a revogação, mas unicamente se o Conselho Europeu o autorizar por unanimidade.

43      Por seu turno, o Governo do Reino Unido não tomou posição sobre o direito de um Estado‑Membro que tenha notificado a sua intenção de se retirar da União ao abrigo do artigo 50.o TUE de revogar essa notificação.

44      A este respeito, há que recordar que os Tratados fundadores, que constituem a carta constitucional de base da União (Acórdão de 23 de abril de 1986, Os Verdes/Parlamento, 294/83, EU:C:1986:166, n.o 23), instauraram, diversamente dos tratados internacionais ordinários, uma nova ordem jurídica, dotada de instituições próprias, a favor da qual os seus Estados‑Membros limitaram, em domínios cada vez mais amplos, os seus direitos soberanos e cujos sujeitos são não só os Estados‑Membros mas também os seus nacionais [Parecer 2/13 (Adesão da União à CEDH), de 18 de dezembro de 2014, EU:C:2014:2454, n.o 157 e jurisprudência referida].

45      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, essa autonomia do direito da União, no que respeita tanto ao direito dos Estados‑Membros como ao direito internacional, justifica‑se pelas características essenciais da União e do seu direito, relativas, nomeadamente, à estrutura constitucional da União, bem como à própria natureza do referido direito. Com efeito, o direito da União caracteriza‑se pelo facto de emanar de uma fonte autónoma, constituída pelos Tratados, pelo seu primado relativamente aos direitos dos Estados‑Membros, bem como pelo efeito direto de uma série de disposições aplicáveis aos seus nacionais e aos próprios Estados‑Membros. Estas características deram origem a uma rede estruturada de princípios, de regras e de relações jurídicas mutuamente interdependentes que vinculam, reciprocamente, a própria União e os seus Estados‑Membros, e estes entre si (Acórdão de 6 de março de 2018, Achmea, C‑284/16, EU:C:2018:158, n.o 33 e jurisprudência referida).

46      É, portanto, à luz dos Tratados no seu conjunto que se deve analisar a questão colocada.

47      A este respeito, cabe recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, na interpretação de uma disposição de direito da União, há que ter em conta não só os seus termos e os objetivos que prossegue mas também o seu contexto e o conjunto das disposições do direito da União. A génese de uma disposição do direito da União pode igualmente revestir elementos pertinentes para a sua interpretação (v., neste sentido, Acórdão de 27 de novembro de 2012, Pringle, C‑370/12, EU:C:2012:756, n.o 135; Acórdãos de 3 de outubro de 2013, Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho, C‑583/11 P, EU:C:2013:625, n.o 50 e jurisprudência referida, e de 17 de março de 2016, Parlamento/Comissão, C‑286/14, EU:C:2016:183, n.o 43).

48      Quanto aos termos do artigo 50.o TUE, há que observar que esse artigo não aborda de forma explícita a questão da revogação. Não a proíbe nem autoriza expressamente.

49      Dito isto, como salientou o advogado‑geral nos n.os 99 a 102 das suas conclusões, resulta da redação do artigo 50.o, n.o 2, TUE que um Estado‑Membro que decida retirar‑se deve notificar a sua «intenção» ao Conselho Europeu. Ora, uma intenção não é, por natureza, nem definitiva nem irrevogável.

50      Por outro lado, o artigo 50.o, n.o 1, TUE prevê que qualquer Estado‑Membro pode decidir, em conformidade com as respetivas normas constitucionais, retirar‑se da União. Daqui resulta que o Estado‑Membro em causa não tem de tomar a sua decisão em concertação com os outros Estados‑Membros nem com as instituições da União. A decisão de retirada resulta unicamente da vontade desse Estado‑Membro, no respeito das respetivas normas constitucionais, e depende, portanto, unicamente da sua escolha soberana.

51      O artigo 50.o, n.os 2 e 3, TUE prevê em seguida o processo a seguir em caso de decisão de retirada. Como o Tribunal já declarou no Acórdão de 19 de setembro de 2018, RO (C‑327/18 PPU, EU:C:2018:733, n.o 46), esse processo inclui, em primeiro lugar, a notificação ao Conselho Europeu da intenção de saída, em segundo lugar, a negociação e a celebração de um acordo que estabeleça as condições de saída, tendo em conta as relações futuras entre o Estado em causa e a União, e, em terceiro lugar, a retirada propriamente dita da União na data de entrada em vigor desse acordo ou, na falta deste, dois anos após a notificação efetuada ao Conselho Europeu, a menos que este, com o acordo do Estado‑Membro em causa, decida por unanimidade prorrogar esse prazo.

52      O artigo 50.o, n.o 2, TUE faz referência ao artigo 218.o, n.o 3, TFUE, segundo o qual a Comissão apresenta recomendações ao Conselho, que adota uma decisão que autoriza a abertura das negociações e que designa o negociador ou o chefe da equipa de negociação da União.

53      O artigo 50.o, n.o 2, TUE define, assim, o papel de diferentes instituições no processo a seguir para a negociação e a celebração do acordo de retirada, conclusão que exige uma votação por maioria qualificada do Conselho após aprovação pelo Parlamento Europeu.

54      O artigo 50.o TUE fixa igualmente, no seu n.o 3, a produção de efeitos da retirada do Estado‑Membro em causa da União, dispondo que os Tratados deixam de ser aplicáveis a esse Estado‑Membro a partir da data de entrada em vigor do acordo de retirada ou, na falta deste, dois anos após a notificação por esse Estado‑Membro da sua intenção de retirada. Este prazo máximo de dois anos a partir dessa notificação aplica‑se a menos que o Conselho Europeu, por unanimidade dos seus membros e com o acordo do Estado‑Membro em causa, decida prorrogá‑lo.

55      Após a sua retirada da União, o Estado‑Membro em causa pode novamente pedir para aderir a esta, em aplicação do processo previsto no artigo 49.o TUE.

56      Daqui resulta que o artigo 50.o TUE prossegue um duplo objetivo, a saber, por um lado, consagrar o direito soberano de um Estado‑Membro se retirar da União e, por outro, instituir um processo que permita que essa retirada seja feita de forma ordenada.

57      Ora, como salientou o advogado‑geral nos n.os 94 e 95 das suas conclusões, o caráter soberano do direito de retirada consagrado no artigo 50.o, n.o 1, TUE milita a favor da existência de um direito de o Estado‑Membro em causa, enquanto não tiver entrado em vigor um acordo de retirada celebrado entre a União e esse Estado‑Membro ou, na falta deste, enquanto não tiver expirado o prazo de dois anos previsto no artigo 50.o, n.o 3, TUE, eventualmente prorrogado em conformidade com esta última disposição, revogar a notificação da sua intenção de se retirar da União.

58      Na falta de disposição expressa que regule a revogação da notificação da intenção de retirada, essa revogação está sujeita ao respeito das regras previstas no artigo 50.o, n.o 1, TUE para a própria retirada, de modo que pode ser decidida unilateralmente, em conformidade com as normas constitucionais do Estado‑Membro em causa.

59      A revogação por um Estado‑Membro, antes de se produzir algum dos eventos referidos no n.o 57 do presente acórdão, da notificação da sua intenção de retirada reflete uma decisão soberana desse Estado de conservar o estatuto de Estado‑Membro da União, estatuto que a referida notificação não teve a consequência de interromper ou alterar (v., neste sentido, Acórdão de 19 de setembro de 2018, RO, C‑327/18 PPU, EU:C:2018:733, n.o 45), sob reserva unicamente das disposições do artigo 50.o, n.o 4, TUE.

60      Esta revogação distingue‑se neste ponto fundamentalmente de um eventual pedido do Estado‑Membro em causa no sentido de o Conselho Europeu prorrogar o prazo de dois anos previsto no artigo 50.o, n.o 3, TUE, pelo que a analogia que o Conselho e a Comissão tentam estabelecer entre a revogação e o pedido de prorrogação não pode ser aceite.

61      Quanto ao contexto do artigo 50.o TUE, há que referir o décimo terceiro considerando do preâmbulo do Tratado UE, o primeiro considerando do preâmbulo do Tratado FUE e o artigo 1.o TUE, dos quais resulta que os Tratados têm por objetivo criar uma união cada vez mais estreita entre os povos europeus, e ainda o segundo considerando do preâmbulo do Tratado FUE, do qual resulta que a União visa eliminar as barreiras que dividem a Europa.

62      Há que salientar igualmente a importância dos valores de liberdade e de democracia, enunciados no segundo e quarto considerandos do preâmbulo do Tratado UE, que fazem parte dos valores comuns a que se refere o artigo 2.o desse Tratado e o preâmbulo da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e que, neste sentido, constituem os próprios fundamentos do ordenamento jurídico da União (v., neste sentido, Acórdão do 3 de setembro de 2008, Kadi e Al Barakaat International Foundation/Conselho e Comissão, C‑402/05 P e C‑415/05 P, EU:C:2008:461, n.os 303 e 304).

63      Como resulta do artigo 49.o TUE, que prevê a possibilidade de qualquer Estado europeu pedir para se tornar membro da União e é o contraponto do artigo 50.o TUE relativo ao direito de retirada, a União agrupa Estados que aderiram livre e voluntariamente a esses valores, assentando assim o direito da União na premissa fundamental de que cada Estado‑Membro partilha com todos os outros Estados‑Membros, e reconhece que estes partilham com ele, esses valores [v., neste sentido, Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas no sistema judiciário), C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.o 35].

64      Saliente‑se ainda que, visto que o estatuto de cidadão da União tem vocação para ser o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros (v., neste sentido, Acórdãos de 20 de setembro de 2001, Grzelczyk, C‑184/99, EU:C:2001:458, n.o 31; de 19 de outubro de 2004, Zhu e Chen, C‑200/02, EU:C:2004:639, n.o 25; e de 2 de março de 2010, Rottmann, C‑135/08, EU:C:2010:104, n.o 43), a eventual retirada de um Estado‑Membro da União é suscetível de afetar de forma considerável os direitos de todos os cidadãos da União, incluindo, nomeadamente, o seu direito à livre circulação, tanto no que respeita aos nacionais do Estado‑Membro em causa como aos dos outros Estados‑Membros.

65      Nestas condições, se um Estado não pode ser obrigado a aderir à União contra a sua vontade, também não pode ser obrigado a retirar‑se da União contra a sua vontade.

66      Ora, se a notificação da intenção de retirada conduzisse inevitavelmente à retirada do Estado‑Membro em causa no termo do período previsto no artigo 50.o, n.o 3, TUE, esse Estado‑Membro poderia ser obrigado a abandonar a União contra a sua vontade, expressa no termo de um processo democrático conforme com as respetivas normas constitucionais, de reverter a sua decisão de se retirar e, portanto, de continuar a ser membro da União.

67      Não se pode deixar de observar que esse resultado seria contrário aos objetivos e aos valores recordados nos n.os 61 e 62 do presente acórdão. Em particular, seria contrário ao objetivo dos Tratados de criar uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa obrigar a retirar‑se da União um Estado‑Membro que, tendo notificado a sua intenção de se retirar em conformidade com as respetivas normas constitucionais e no termo de um processo democrático, decide revogar a notificação dessa intenção no âmbito de um processo deste tipo.

68      A génese do artigo 50.o TUE milita ainda a favor de uma interpretação desta disposição no sentido de que um Estado‑Membro tem o direito de revogar unilateralmente a notificação da sua intenção de se retirar da União. Com efeito, há que salientar que os termos deste artigo reproduzem em grande parte os de uma cláusula de retirada da União que figurava, pela primeira vez, no projeto de Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa. Ora, apesar de, por ocasião da redação dessa cláusula, terem sido propostas alterações no sentido de permitir a expulsão de um Estado‑Membro, de evitar o risco de abusos no decurso do processo de retirada ou ainda de dificultar a decisão de retirada, essas alterações foram todas rejeitadas com o fundamento, expressamente formulado nos comentários do projeto, de ser necessário salvaguardar o caráter voluntário e unilateral da decisão de retirada.

69      Resulta destes elementos que a notificação por um Estado‑Membro da sua intenção de retirada não pode levar inevitavelmente à retirada desse Estado‑Membro da União. Pelo contrário, um Estado‑Membro que reverte a sua decisão de se retirar da União tem o direito de revogar essa notificação enquanto não tiver entrado em vigor um acordo de retirada celebrado entre esse Estado‑Membro e a União ou, na falta de tal acordo, enquanto não tiver expirado o prazo de dois anos previsto no artigo 50.o, n.o 3, TUE, eventualmente prorrogado em conformidade com esta última disposição.

70      Esta conclusão é corroborada pelas estipulações da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que foi tida em conta nos trabalhos preparatórios do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa.

71      Com efeito, no caso de um tratado autorizar uma retirada ao abrigo das suas disposições, o artigo 68.o desta convenção precisa nomeadamente, em termos claros e incondicionais, que essa notificação de retirada, conforme prevista nos artigos 65.o e 67.o da referida convenção, pode ser revogada a qualquer momento antes de ter produzido efeitos.

72      Quanto à proposta do Conselho e da Comissão de sujeitar o direito de o Estado‑Membro em causa revogar a notificação da sua intenção de retirada a uma aprovação pelo Conselho Europeu, por unanimidade, essa exigência transformaria um direito unilateral soberano num direito condicional sujeito a um processo de aprovação. Ora, esse processo de aprovação seria incompatível com o princípio, recordado nos n.os 65, 67 e 69 do presente acórdão, de que um Estado‑Membro não pode ser obrigado a retirar‑se da União contra a sua vontade.

73      Daqui resulta, em primeiro lugar, que, enquanto não tiver entrado em vigor um acordo de retirada celebrado entre a União e o Estado‑Membro em causa ou, na falta de tal acordo, enquanto não tiver expirado o prazo de dois anos previsto no artigo 50.o, n.o 3, TUE, eventualmente prorrogado em conformidade com esta última disposição, esse Estado‑Membro, que, sob reserva do artigo 50.o, n.o 4, TUE, dispõe de todos os direitos e continua sujeito a todas as obrigações previstas nos Tratados, conserva a faculdade de revogar de forma unilateral a notificação da sua intenção de retirada da União, em conformidade com as respetivas normas constitucionais.

74      Em segundo lugar, é necessário que a revogação da notificação da intenção de retirada, por um lado, seja dirigida por escrito ao Conselho Europeu e, por outro, seja unívoca e incondicional, no sentido de que deve ter por objeto confirmar a pertença do Estado‑Membro em causa à União em termos inalterados quanto ao seu estatuto de Estado‑Membro, pondo fim ao processo de retirada.

75      Atendendo a todas estas considerações, há que responder à questão submetida que o artigo 50.o TUE deve ser interpretado no sentido de que, quando um Estado‑Membro tiver notificado ao Conselho Europeu, em conformidade com esse artigo, a sua intenção de se retirar da União, o referido artigo permite a esse Estado‑Membro, enquanto não tiver entrado em vigor um acordo de retirada celebrado entre esse Estado‑Membro e a União ou, na falta de tal acordo, enquanto não tiver expirado o prazo de dois anos previsto no n.o 3 deste mesmo artigo, eventualmente prorrogado em conformidade com este n.o 3, revogar unilateralmente, de forma unívoca e incondicional, essa notificação através de um documento escrito dirigido ao Conselho Europeu, depois de o Estado‑Membro em causa ter tomado a decisão de revogação em conformidade com as suas normas constitucionais. Essa revogação tem por objeto confirmar a pertença desse Estado‑Membro à União em termos inalterados quanto ao seu estatuto de Estado‑Membro, pondo fim ao processo de retirada.

 Quanto às despesas

76      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Tribunal Pleno) declara:

O artigo 50.o TUE deve ser interpretado no sentido de que, quando um EstadoMembro tiver notificado ao Conselho Europeu, em conformidade com esse artigo, a sua intenção de se retirar da União Europeia, o referido artigo permite a esse EstadoMembro, enquanto não tiver entrado em vigor um acordo de retirada celebrado entre esse EstadoMembro e a União Europeia ou, na falta de tal acordo, enquanto não tiver expirado o prazo de dois anos previsto no n.o 3 deste mesmo artigo, eventualmente prorrogado em conformidade com este n.o 3, revogar unilateralmente, de forma unívoca e incondicional, essa notificação através de um documento escrito dirigido ao Conselho Europeu, depois de o EstadoMembro em causa ter tomado a decisão de revogação em conformidade com as suas normas constitucionais. Essa revogação tem por objeto confirmar a pertença desse EstadoMembro à União Europeia em termos inalterados quanto ao seu estatuto de EstadoMembro, pondo fim ao processo de retirada.

Assinaturas


*      Língua do processo: inglês.