Language of document : ECLI:EU:C:2019:153

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

GIOVANNI PITRUZZELLA

apresentadas em 28 de fevereiro de 2019 (1)

Processo C‑254/18

Syndicat des cadres de la sécurité intérieure

contra

Premier ministre,

Ministre de l’Intérieur,

Ministre de l’Action et des Comptes publics

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França)]

«Reenvio prejudicial — Política social — Organização do tempo de trabalho — Diretiva 2003/88/CE — Artigo 6.o, alínea b) e artigo 16.o — Duração máxima do trabalho semanal — Derrogação — Artigo 17.o, n.os 2 e 3, e artigo 19.o, primeiro parágrafo — Funcionários de polícia — Período de referência — Natureza variável ou fixa — Proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores»






1.        O «período de referência» que, na aceção da Diretiva 2003/88/CE (2), os Estados‑Membros podem prever para calcular a duração média máxima do trabalho semanal deve ser entendido no sentido de que se refere a um período «variável», a saber, um período cujo início varia em função do decurso do tempo, ou pode também ser determinado de forma «fixa», no sentido de que o referido período pode começar e terminar uma data de calendário fixa?

2.        Esta é, em substância, a questão a que o Tribunal de Justiça deverá responder no presente processo, relativo a um pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França) que tem por objeto a interpretação de diversas disposições da Diretiva 2003/88.

3.        Esta questão é submetida no âmbito de um processo intentado pelo Syndicat des cadres de la sécurité intérieure [Sindicato dos Quadros de Segurança Interna (a seguir «SCSI»)], um sindicato de agentes de polícia, que pede ao Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) a anulação de um decreto que altera as disposições derrogatórias das garantias mínimas da duração do trabalho e de descanso aplicáveis ao pessoal da Polícia Nacional francesa. O SCSI alega que este decreto viola as disposições da Diretiva 2003/88 por prever um período de referência «fixo» para calcular a duração média máxima do trabalho semanal.

4.        As modalidades de determinação da duração máxima do trabalho semanal, que está prevista nas disposições da Diretiva 2003/88, são efetivamente diferentes consoante o período de referência assente numa escolha «variável» ou «fixa». Com efeito, a utilização de um período de referência «variável» garante que a duração média máxima do trabalho semanal é sempre respeitada, ao passo que a utilização de um período «fixo» bloqueia o período que deve ser tomado em consideração para determinar as horas de trabalho efetivamente prestadas pelo trabalhador.

5.        No presente processo, o Tribunal de Justiça é assim chamado a esclarecer o alcance do conceito «período de referência» para efeitos do cálculo da duração máxima do trabalho semanal, conforme prevista pela Diretiva 2003/88, à luz do seu objetivo essencial, a saber, a proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores.

I.      Quadro jurídico

A.      Direito da União

6.        O artigo 6.o da Diretiva 2003/88, intitulado «Duração máxima do trabalho semanal», dispõe:

«Os Estados‑Membros tomarão as medidas necessárias para que, em função dos imperativos de proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores:

[…]

b)      A duração média do trabalho em cada período de sete dias não exceda 48 horas, incluindo as horas extraordinárias, em cada período de sete dias.»

7.        O artigo 16.o da Diretiva 2003/88, relativo aos períodos de referência, tem a seguinte redação:

«Os Estados‑Membros podem prever:

[…]

b)      Para efeitos de aplicação do artigo 6.o (duração máxima do trabalho semanal), um período de referência não superior a quatro meses. […]

[…]»

8.        O artigo 17.o, n.os 2 e 3, desta diretiva prevê, entre outras, as seguintes derrogações:

«2.      As derrogações previstas nos n.os 3, 4 e 5 podem ser estabelecidas por via legislativa, regulamentar ou administrativa, ou ainda por via de convenções coletivas ou de acordos celebrados entre parceiros sociais, desde que sejam concedidos aos trabalhadores em causa períodos equivalentes de descanso compensatório ou que, nos casos excecionais em que não seja possível, por razões objetivas, a concessão de períodos equivalentes de descanso compensatório, seja concedida aos trabalhadores em causa uma proteção adequada.

3.      Nos termos do n.o 2 do presente artigo, são permitidas derrogações [ao artigo] 16.o:

[…]

b)      No caso de atividades de guarda, de vigilância e de permanência caracterizada pela necessidade de assegurar a continuidade do serviço ou da produção, designadamente;

c)      No caso de atividades caracterizadas pela necessidade de assegurar a continuidade do serviço ou da produção […]

[…]»

9.        O artigo 19.o da Diretiva 2003/88, intitulado «Limitações às derrogações de períodos de referência», contém as seguintes disposições:

«A faculdade de derrogar à alínea b) do artigo 16.o, prevista no n.o 3 do artigo 17.o […] não pode ter como efeito a fixação de um período de referência que ultrapasse seis meses. […]»

B.      Direito francês

10.      No que se refere ao tempo de trabalho na função pública do Estado a nível central e na magistratura, em regra, no direito francês, «a duração do tempo de trabalho semanal efetivo, incluindo as horas extraordinárias, não pode exceder nem quarenta e oito horas no decurso de uma mesma semana, nem uma média de quarenta e quatro horas num qualquer período de doze semanas consecutivas» (artigo 3.o, I., do Decreto n.o 2000‑815) (3). Esta regra só pode ser derrogada, nomeadamente, quando o próprio objeto do serviço público em causa o exija em permanência, designadamente para a proteção de pessoas e bens, por decreto do Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional), adotado depois de determinadas comissões administrativas e o Conseil supérieur de la fonction publique (Conselho Superior da Função Pública, França) emitirem pareceres, devendo esse decreto estabelecer as contrapartidas que são concedidas às categorias de agentes em causa [artigo 3.o, II., alínea a), do Decreto n.o 2000‑815].

11.      As derrogações às garantias mínimas da duração do trabalho e do descanso aplicáveis aos funcionários da Polícia Nacional são reguladas pelo décret n.o 2002‑1279, du 23 octobre 2002 (Decreto n.o 2002‑1279, de 23 de outubro de 2002). O artigo 1.o deste decreto foi alterado pelo décret n.o 2017‑109 du 30 janvier 2017 (Decreto n.o 2017‑109, de 30 de janeiro de 2017) (a seguir «Decreto n.o 2017‑109)». Esta disposição, na sua versão alterada, tem a seguinte redação:

«Para efeitos da organização do trabalho dos funcionários ativos dos serviços da Polícia Nacional, são derrogadas as garantias mínimas referidas no ponto I do artigo 3.o do Decreto de 25 de agosto de 2000 acima referido, quando as missões de segurança e paz públicas, de polícia judiciária e de serviços de informações de segurança que lhes são confiadas o exijam.

Esta derrogação deve, todavia, respeitar os seguintes requisitos:

1)      A duração do tempo de trabalho semanal medida, em cada período de sete dias, incluindo as horas extraordinárias, não pode em média exceder quarenta e oito horas num período de um semestre do ano civil;

[…]»

II.    Litígio no processo principal e questões prejudiciais

12.      Em 28 de março de 2017, o SCSI entregou no Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) uma petição que tinha por objeto a anulação do artigo 1.o do Decreto n.o 2017‑109. O SCSI alega, entre outros, que, ao selecionar, para calcular a duração média do trabalho semanal, um período de referência fixo, expresso em semestres do ano civil, e não um período indefinido de seis meses que assenta numa base variável, a referida disposição viola as regras da Diretiva 2003/88.

13.      O órgão jurisdicional de reenvio pergunta se as disposições conjugadas dos artigos 6.o e 16.o da Diretiva 2003/88 devem ser interpretadas no sentido de que impõem um período de referência que é definido de maneira variável ou no sentido de que é deixada aos Estados‑Membros a possibilidade de conferirem a esse período uma natureza variável ou fixa.

14.      O órgão jurisdicional de reenvio pergunta também, no caso de só ser admissível o período de referência variável, se o referido período deve conservar a sua natureza variável quando seja alargado para seis meses em aplicação da derrogação prevista no artigo 17.o, n.o 3, alínea b), da Diretiva 2003/88.

15.      Nestas condições, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Devem as disposições dos artigos 6.o e 16.o da Diretiva [2003/88] ser interpretadas no sentido de que impõem um período de referência que é definido de maneira variável ou no sentido de que deixam aos Estados‑Membros a opção de lhe conferir uma natureza variável ou fixa?

2)      No caso de estas disposições virem a ser interpretadas no sentido de que impõem um período de referência variável, a possibilidade conferida pelo artigo 17.o, de derrogar a alínea b) do artigo 16.o, é suscetível de dizer respeito, não apenas à duração do período de referência, mas também à sua natureza variável?»

III. Análise jurídica

A.      Observações preliminares

16.      As questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio no presente processo dizem respeito ao conceito «período de referência» que os Estados‑Membros podem prever para aplicarem as disposições da Diretiva 2003/88 relativas à duração máxima do trabalho semanal.

17.      No que respeita à duração média máxima do trabalho semanal, importa salientar, a título preliminar, que a Diretiva 2003/88 prevê dois regimes: um regime geral e um regime derrogatório.

18.      Mais especificamente, no âmbito do regime geral, a duração máxima do trabalho semanal encontra‑se definida no artigo 6.o, alínea b), e no artigo 16.o, alínea b), da Diretiva 2003/88. Deste modo, nos termos da primeira destas disposições, a duração média do trabalho em cada período de sete dias não excede 48 horas, incluindo as horas extraordinárias, em cada período de sete dias. Nos termos da segunda disposição, para calcular aquela duração média máxima, os Estados‑Membros podem prever um período de referência não superior a quatro meses.

19.      Contudo, a Diretiva 2003/88 contém também disposições que conferem aos Estados‑Membros a faculdade de derrogar o regime geral que regulamenta a duração máxima do trabalho semanal. Assim, nos termos do artigo 17.o, n.o 3, alíneas b) e c), da Diretiva 2003/88, os Estados‑Membros podem derrogar, nomeadamente, o artigo 16.o da mesma diretiva no caso de «atividades de guarda, de vigilância e de permanência caracterizada pela necessidade de assegurar a continuidade do serviço ou da produção, designadamente» e «[n]o caso de atividades caracterizadas pela necessidade de assegurar a continuidade do serviço ou da produção». No entanto, nos termos do artigo 19.o, primeiro parágrafo, esta faculdade «não pode ter como efeito a fixação de um período de referência que ultrapasse seis meses».

20.      Ora, o Decreto n.o 2017‑109, cuja anulação é pedida no litígio no processo principal, contém uma derrogação ao regime geral no que respeita à duração máxima do trabalho semanal para os funcionários públicos do Estado a nível central e, especificamente, à derrogação aplicável aos funcionários ativos dos serviços da Polícia Nacional. Conforme resulta dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe, e como foi confirmado na audiência pelas diferentes partes que apresentaram observações ao Tribunal de Justiça, quando adotou este decreto, a República Francesa fez uso da faculdade que lhe é conferida pelo artigo 17.o, n.o 3, da Diretiva 2003/88 de derrogar o regime geral em matéria de duração máxima do trabalho semanal.

21.      Daqui resulta que as disposições da Diretiva 2003/88, acima referidas no n.o 19, que preveem a possibilidade de derrogar o regime geral em matéria de duração máxima do trabalho semanal são pertinentes para o presente processo (4).

22.      Por outro lado, há que constatar que as disposições da Diretiva 2003/88, relativas tanto ao regime geral como ao regime derrogatório em matéria de duração máxima do trabalho semanal, utilizam o mesmo conceito «período de referência» no artigo 16.o, alínea b), e no artigo 19.o, primeiro parágrafo.

23.      Nestas condições, há que considerar que o conceito «período de referência» para efeitos do cálculo da duração média máxima do trabalho semanal constitui um conceito único no âmbito da Diretiva 2003/88, o qual, neste âmbito, tem o mesmo significado e deve ser objeto de uma interpretação idêntica.

24.      Além disso, uma vez que as referidas disposições da Diretiva 2003/88 não comportam nenhuma remissão para o direito nacional dos Estados‑Membros, este conceito deve igualmente ser entendido como um conceito autónomo do direito da União que deve ser interpretado de maneira uniforme no território desta última, independentemente das qualificações utilizadas nos Estados‑Membros (5).

25.      Neste contexto, saliento, no entanto, que a leitura das duas questões prejudiciais submetidas pelo Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) indica que estas questões pressupõem uma possível diferença na interpretação do conceito «período de referência», consoante a uma situação seja aplicável o regime geral ou o regime derrogatório em matéria de duração máxima do trabalho semanal (6).

26.      Todavia, atendendo ao caráter único conceito «período de referência» para efeitos do cálculo da duração média máxima do trabalho semanal, há que considerar que estas duas questões visam, na realidade, a interpretação do mesmo conceito e devem, assim, ser tratadas em conjunto.

27.      Nestas condições, entendo que se deve considerar que, com as suas duas questões prejudiciais, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça, em substância, se as disposições pertinentes da Diretiva 2003/88 — acima mencionadas nos n.os 18 e 19 — devem ser interpretadas no sentido de que, independentemente de estar em causa o regime geral ou o regime derrogatório em matéria de duração máxima do trabalho semanal, os Estados‑Membros devem definir o período de referência a utilizar para calcular esta duração de forma «variável» ou se também têm a faculdade de definir esse período de referência de forma «fixa».

28.      A este respeito, de entre as partes que participaram no processo no Tribunal de Justiça, destacam‑se essencialmente duas posições.

29.      Tanto a Comissão Europeia e o Governo francês, por um lado, como o SCSI, por outro, consideram que as disposições da Diretiva 2003/88 devem ser interpretadas no sentido de que conferem aos Estados‑Membros a possibilidade de conferirem ao período de referência utilizado para calcular a duração do tempo de trabalho semanal uma natureza variável ou fixa.

30.      Todavia, contrariamente à Comissão e ao Governo francês, o SCSI considera que, no caso de o Estado‑Membro ter utilizado a faculdade de derrogar o regime geral que estabelece um período de referência de seis meses nos termos do artigo 19.o da Diretiva 2003/88, neste caso só poderá ser implementado um período de referência que tenha uma natureza variável.

31.      Para responder à questão colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio, considero que é oportuno começar por analisar o sistema da Diretiva 2003/88 no qual se insere o conceito «período de referência», à luz dos princípios jurisprudenciais desenvolvidos pelo Tribunal de Justiça nesta matéria. Em seguida, partindo dessa análise, será possível fornecer uma interpretação deste conceito.

B.      A Diretiva 2003/88 na jurisprudência do Tribunal de Justiça

32.      Resulta de jurisprudência constante que a Diretiva 2003/88 tem por objetivo fixar prescrições mínimas destinadas a melhorar as condições de vida e de trabalho dos trabalhadores através de uma aproximação das regulamentações nacionais relativas, nomeadamente, à duração do tempo de trabalho (7).

33.      Esta harmonização a nível da União em matéria de organização do tempo de trabalho visa garantir uma melhor proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores, permitindo‑lhes beneficiar desses períodos mínimos de descanso — nomeadamente diário e semanal — bem como de períodos de descanso adequados e prevendo um limite máximo para a duração do trabalho semanal (8).

34.      É desta forma que as disposições da Diretiva 2003/88, acima referidas nos n.os 18 e 19, preveem a regulamentação em matéria de limite máximo da duração do trabalho semanal. O direito a uma limitação da duração máxima do trabalho está, aliás, expressamente consagrado no artigo 31.o, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

35.      A este respeito, o Tribunal de Justiça salientou que o limite máximo médio de 48 horas, incluindo as horas extraordinárias, em cada período de sete dias, que tem de ser respeitado, nos termos do artigo 6.o, alínea b), da Diretiva 2003/88, e que os Estados‑Membros são obrigados a adotar as medidas necessárias, se baseia na necessidade de respeitar os imperativos de proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores (9).

36.      Também especificou que este limite máximo figura entre as prescrições da Diretiva 2003/88 que constituem uma regra do direito social da União que reveste especial importância de que cada trabalhador deve beneficiar como prescrição mínima necessária para assegurar a proteção da sua segurança e da sua saúde (10).

37.      Neste contexto, o Tribunal de Justiça também especificou que as prescrições mínimas da Diretiva 2003/88 que visam assegurar a proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores impõem aos Estados‑Membros obrigações de resultado claras e precisas no que respeita à possibilidade de beneficiar dos direitos que esta diretiva lhes concede (11). Este entendimento é especificamente válido no que se refere à regra enunciada na referida diretiva que consiste na previsão de um limite de 48 horas, incluindo as horas extraordinárias, para a duração média do trabalho semanal (12).

38.      Na mesma perspetiva, baseando‑se na redação dos artigos que contêm as referidas prescrições mínimas, bem como nos objetivos prosseguidos pela Diretiva 2003/88 e no sistema implementado por esta, o Tribunal de Justiça também sublinhou a necessidade de que os trabalhadores beneficiem de forma efetiva dos direitos que a referida diretiva lhes confere (13).

39.      Deste modo, o Tribunal de Justiça especificou que é necessário que o efeito útil dos direitos que a Diretiva 2003/88 confere aos trabalhadores seja integralmente assegurado, o que implica necessariamente a obrigação de os Estados‑Membros garantirem o respeito de cada uma das prescrições mínimas estabelecidas nesta diretiva. Esta interpretação é, com efeito, a única interpretação que é conforme com o objetivo da Diretiva 2003/88, que consiste em garantir uma proteção eficaz da segurança e da saúde dos trabalhadores, permitindo‑lhes beneficiar efetivamente dos direitos que esta lhes confere (14).

40.      Assim sendo, embora as prescrições mínimas da Diretiva 2003/88 imponham aos Estados‑Membros obrigações de resultado para garantir o efeito útil dos direitos conferidos aos trabalhadores por esta última, resulta, no entanto, da mesma diretiva, nomeadamente do seu considerando 15, que esta também concede uma certa flexibilidade aos Estados‑Membros aquando da implementação das suas disposições (15).

41.      Daqui resulta, assim, que os Estados‑Membros dispõe de uma certa margem de apreciação no que respeita às modalidades de implementação das referidas prescrições mínimas, continuando, no entanto, sempre a estar obrigados, conforme resulta explicitamente do mesmo considerando da Diretiva 2003/88, a assegurar a observância dos princípios da proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores (16).

C.      Interpretação do conceito «período de referência» para efeitos do cálculo da duração média máxima do trabalho semanal

42.      É dentro do quadro descrito nos números anteriores que há que definir o conceito «período de referência» conforme este é utilizado na Diretiva 2003/88 para efeitos do cálculo da duração média máxima do trabalho semanal e, especificamente, para determinar se, nos termos desta diretiva, os Estados‑Membros devem definir este período no sentido de que reveste natureza «variável» ou se também o podem definir no sentido de que reveste natureza «fixa».

43.      Nos termos da jurisprudência, há que interpretar um conceito autónomo de direito da União, como o conceito «período de referência», de maneira uniforme no território da União, independentemente das qualificações utilizadas nos Estados‑Membros, de acordo com características objetivas, tomando em consideração os termos das disposições que o utilizam, bem como o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação em que este conceito se integra (17). Com efeito, só uma interpretação autónoma é suscetível de assegurar à Diretiva 2003/88 a sua plena eficácia, bem como uma aplicação uniforme de tal conceito em todos os Estados‑Membros (18).

44.      A este respeito, no que se refere, em primeiro lugar, aos termos «período de referência», bem como à redação das disposições da Diretiva 2003/88 que utilizam este conceito para efeitos do cálculo da duração média máxima do trabalho semanal, há que constatar que aqueles termos não permitem determinar se este período deve revestir natureza «variável» ou «fixa».

45.      Com efeito, nem a locução «período de referência» enquanto tal, nem o texto, nomeadamente, do artigo 16.o, alínea b), e do artigo 19.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2003/88, fornecem elementos que permitem determinar se o início deste período deve ser fixo ou se deve variar em função do tempo. Por conseguinte, esta diretiva não especifica de que forma este período deve ser tomado em consideração para efeitos do cálculo da duração média máxima do trabalho semanal. A análise das diferentes versões linguísticas desta locução e destas disposições não altera esta constatação.

46.      Ora, embora o silêncio da referida diretiva sobre esta questão não permita tirar conclusões definitivas, parece‑me, no entanto, que este silêncio pende mais a favor de uma interpretação que conceda uma certa latitude aos Estados‑Membros e que lhes dê liberdade para optarem por definir o período de referência para efeitos do cálculo da duração média máxima do trabalho semanal que assente numa base «fixa» ou numa base «variável».

47.      No que se refere, em segundo lugar, ao contexto em que se insere o conceito «período de referência», importa, antes de mais, salientar que o legislador da União utilizou este conceito em diversas disposições da Diretiva 2003/88 para determinar o período dentro do qual deve ser calculada a duração média máxima do trabalho semanal.

48.      É o que sucede no artigo 16.o, alínea b), da Diretiva 2003/88, que dispõe que os Estados‑Membros podem prever um período de referência não superior a quatro meses, para efeitos da aplicação da duração máxima do trabalho semanal na aceção do artigo 6.o da mesma diretiva, bem como no seu artigo 19.o, primeiro parágrafo, que dispõe que a faculdade de derrogar o artigo 16.o, alínea b), prevista, nomeadamente, no artigo 17.o, n.o 3, não pode ter como efeito a fixação de um período de referência que ultrapasse seis meses.

49.      Na Diretiva 2003/88, o conceito «período de referência» é explicitamente utilizado para efeitos do cálculo da duração máxima do trabalho semanal, nomeadamente no artigo 17.o, n.o 5, à luz das derrogações relativas aos médicos em formação, no artigo 20.o, n.o 2, aos trabalhadores que efetuam principalmente uma atividade em offshore, no artigo 21.o, n.o 1, segundo parágrafo, aos trabalhadores a bordo de navios de pesca que arvorem pavilhões de um Estado‑Membro, e no artigo 22.o, n.o 1, alíneas a) e e), que se refere à faculdade que é concedida, desde que estejam preenchidos requisitos estritos, aos Estados‑Membros de poderem não aplicar o artigo 6.o da Diretiva 2003/88. Todavia, estas disposições não fornecem nenhuma indicação precisa sobre a natureza «variável» ou «fixa» do conceito «período de referência».

50.      De um ponto de vista contextual, há igualmente que referir que a Diretiva 2003/88 também utiliza o conceito «período de referência» para fins diferentes do cálculo da duração média máxima do trabalho semanal. Assim, por um lado, o artigo 16.o, alínea a), desta diretiva determina o período de referência que os Estados‑Membros podem prever para efeitos da aplicação do artigo 5.o da referida diretiva relativo ao descanso semanal mínimo e, por outro, o artigo 16.o, alínea c), da mesma diretiva utiliza o mesmo conceito para efeitos da aplicação do artigo 8.o desta diretiva relativo à duração do trabalho noturno.

51.      No que diz especificamente respeito ao conceito «período de referência» relativo ao cálculo do período mínimo de descanso semanal, na aceção do artigo 5.o e do artigo 16.o, alínea a), da Diretiva 2003/88, há que salientar que, no Acórdão de 9 de novembro de 2017, Maio Marques da Rosa (C‑306/16, EU:C:2017:844), designadamente no n.o 43, o Tribunal de Justiça declarou que «neste contexto, um período de referência pode ser definido como um período fixo no qual deve ser concedido um certo número de horas consecutivas de descanso, independentemente do momento em que essas horas são concedidas» (19).

52.      Baseando‑se nesta definição consagrada pelo Tribunal de Justiça, a qual, todavia, dizia respeito ao período mínimo de descanso semanal nos termos do artigo 5.o da Diretiva 2003/88, a República Francesa alega que o período de referência previsto no artigo 16.o, alínea b), desta diretiva, para efeitos do cálculo da duração média máxima semanal, deve, por analogia, ser definido como um período fixo.

53.      A este respeito, importa todavia salientar que a questão que se discutiu no Tribunal de Justiça no âmbito do processo Maio Marques da Rosa era diferente da questão submetida no presente processo. Com efeito, no referido processo, o Tribunal de Justiça foi chamado a determinar se o período mínimo de descanso semanal ininterrupto de vinte e quatro horas, a que o trabalhador tem direito nos termos do artigo 5.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2003/88, devia ou não ser concedido, o mais tardar, no dia que se segue a um período de seis dias de trabalho consecutivos.

54.      Neste âmbito, o Tribunal de Justiça considerou que o período de sete dias previsto no artigo 5.o podia ser considerado um «período de referência» e definiu, conforme resulta do n.o 51 das presentes conclusões, o conceito «período de referência» para esse efeito através da utilização dos termos «período fixo».

55.      No entanto, considero que, ao utilizar o termo «fixo» nesta definição, o Tribunal de Justiça não pretendeu decidir que o conceito «período de referência» devia ser interpretado no sentido de que o início deste período deve necessariamente ser fixo, ou seja, que deve corresponder a uma data fixa. Esta questão, aliás, não era objeto do processo então pendente no Tribunal de Justiça. Em contrapartida, ao utilizar o termo «fixo», o Tribunal de Justiça pretendeu, em minha opinião, dizer que o período de referência é um período fixo no sentido de que tem uma duração determinada, em concreto, nos termos do artigo 5.o da Diretiva 2003/88, uma duração de sete dias. Acrescento, por outro lado, que, no n.o 43 do referido Acórdão Maio Marques da Rosa, o Tribunal de Justiça limitou expressamente o alcance da definição ao utilizar a expressão «neste contexto», a saber, ao contexto da disposição em matéria de descanso semanal.

56.      Nestas circunstâncias, contrariamente ao que a República Francesa alega, não é assim possível, em minha opinião, retirar conclusões definitivas da definição do conceito «período de referência» consagrada pelo Tribunal de Justiça no n.o 43 do Acórdão Maio Marques da Rosa (C‑306/16, EU:C:2017:844) em matéria de descanso semanal mínimo quanto à questão de saber se o período de referência que nos termos da Diretiva 2003/88 os Estados‑Membros podem utilizar para efeitos do cálculo da duração máxima do trabalho semanal deve revestir natureza «fixa» ou natureza «variável».

57.      Em contrapartida, é possível inspirar‑se na definição consagrada pelo Tribunal de Justiça no referido Acórdão Maio Marques da Rosa para definir o período de referência em matéria de duração máxima do trabalho semanal como um período determinado dentro do qual a duração média do trabalho semanal não pode exceder um certo número de horas.

58.      Decorre do que precede que, do mesmo modo, a análise contextual não permite determinar de forma conclusiva se o conceito «período de referência» para efeitos do cálculo da duração média máxima do trabalho semanal deve ser entendido no sentido de que obriga os Estados‑Membros a defini‑lo de maneira «variável» ou se, pelo contrário, os Estados‑Membros também têm a faculdade de o definir de maneira «fixa».

59.      No que se refere, em terceiro lugar, ao objetivo da Diretiva 2003/88, conforme recordei nos n.os 32 e 33, supra, esta última tem por finalidade proteger de forma eficaz a segurança e a saúde dos trabalhadores.

60.      O papel central deste objetivo essencial da Diretiva 2003/88, no âmbito da regulamentação relativa à duração máxima do trabalho semanal, é confirmado tanto pela previsão explícita, no artigo 6.o da Diretiva 2003/88, de que os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias relativas à duração máxima do trabalho semanal «em função dos imperativos de proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores» (20), como pela caracterização, feita pelo Tribunal de Justiça em várias ocasiões, da disposição do artigo 6.o, alínea b), da Diretiva 2003/88 como uma disposição cuja plena eficácia deve ser respeitada pelos Estados‑Membros que estão obrigados a impedir qualquer prolongamento da duração máxima do trabalho semanal conforme foi fixada no artigo 6.o, alínea b), da Diretiva 2003/88 (21).

61.      É assim à luz deste objetivo essencial da Diretiva 2003/88 e da obrigação que incumbe aos Estados‑Membros, para o respetivo cumprimento, de garantir a plena eficácia das prescrições da Diretiva 2003/88 relativas à duração máxima do horário de trabalho semanal que há que interpretar o conceito «período de referência» em causa.

62.      A este respeito, há que salientar, como a Comissão sublinhou com razão, que um método de cálculo da duração máxima do trabalho semanal que utiliza um período de referência que assenta numa base variável responde da melhor forma ao objetivo essencial da Diretiva 2003/88 que consiste na proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores.

63.      Por um lado, com efeito, ao aplicar semelhante método de cálculo, o início do período de referência não é bloqueado, antes variando em função do decurso do tempo, de modo que em tal caso está garantido o respeito pela duração média máxima do trabalho semanal, independentemente da escolha do momento do início do período. Por outras palavras, semelhante método garante que a duração média máxima do trabalho semanal fique sempre assegurada.

64.      Por outro lado, a escolha de tal método permite evitar que um trabalhador tenha de trabalhar durante dois períodos de referência sucessivos e suprime assim o risco de que o trabalhador exceda, em média, o limite semanal de quarenta e oito horas de trabalho em longos períodos bem como o risco de que ocorram situações nas quais, não obstante o respeito formal da duração máxima do trabalho, a segurança e a saúde do trabalhador sejam postas em risco (22).

65.      Em contrapartida, a questão afigura‑se menos clara no que respeita à utilização de um método de cálculo da duração média máxima do trabalho semanal que utilize período de referência «fixo», cujo início corresponde assim a uma data bloqueada. Para apreciar a compatibilidade da utilização de tal método com a Diretiva 2003/88, considero que há que partir de duas reflexões.

66.      Em primeiro lugar, como foi acima salientado nos n.os 40 e 41, a Diretiva 2003/88 reconhece aos Estados‑Membros uma certa flexibilidade na implementação das suas disposições, de modo que estes dispõem de uma certa margem de apreciação relativamente às modalidades de tal implementação. Esta flexibilidade permite que os Estados‑Membros tomem em consideração, nas disposições nacionais de transposição da referida diretiva, requisitos relacionados, nomeadamente, com a proteção de interesses de caráter geral, como a proteção da ordem pública, ou especificidades de atividades especiais, que necessitam de um certo grau de maleabilidade na organização do horário de trabalho. É, aliás, atendendo a esta perspetiva que o capítulo 5 da Diretiva 2003/88 prevê possibilidades de derrogação e exceções a determinadas disposições da referida diretiva.

67.      É certo que, como resulta explicitamente do considerando 15 da Diretiva 2003/88, esta flexibilidade se depara com um limite absoluto na exigência do respeito do objetivo principal da Diretiva 2003/88, e não pode assim conduzir a situações de violação dos imperativos de proteção da segurança e da saúde do trabalhador garantidos pela referida diretiva.

68.      Em segundo lugar, da escolha de um método de cálculo da duração média máxima do trabalho semanal que utilize um período de referência «fixo» não decorre automaticamente uma violação destes imperativos. Com efeito, a escolha da natureza «fixa» ou «variável» do período de referência a utilizar para calcular a duração média máxima do trabalho semanal é apenas um dos elementos de entre outros — tais como o número máximo de horas semanais de trabalho ou a duração do período de referência — que são tomados em consideração nas disposições nacionais relativas à organização do tempo de trabalho. Assim, um sistema de organização do tempo de trabalho no qual o cálculo de um período de referência assente numa base variável não protege sempre necessariamente mais os trabalhadores do que um sistema no qual o cálculo de um período de referência assente numa base fixa, conforme foi demonstrado por alguns dos exemplos apresentados durante o processo no Tribunal de Justiça (23).

69.      É certo que se o Estado‑Membro optar por um sistema de organização do tempo de trabalho que utilize um período de referência «fixo», especificamente de longa duração e no âmbito de um regime derrogatório, existe o risco de ocorrerem situações, como a situação hipotética evocada na audiência (24), nas quais não está garantido o respeito pelos imperativos de proteção da segurança e da saúde do trabalhador. Ora, conforme resulta dos n.os 35 a 39 e 60 das presentes conclusões, o Estado‑Membro tem obrigação de assegurar que situações deste tipo não se verifiquem. Com efeito, está sujeito a uma obrigação de resultado de garantir a plena efetividade da regra da Diretiva 2003/88 que prevê um limite de 48 horas para a duração média semanal bem como de garantir os direitos que esta regra confere aos trabalhadores.

70.      Resulta, em minha opinião, das considerações que precedem que, embora um método de cálculo da duração máxima do trabalho semanal que utiliza um período de referência que assente numa base variável garante da melhor forma o respeito pelos imperativos de proteção da segurança e da saúde e constitui, assim, a primeira escolha para a transposição das disposições pertinentes da Diretiva 2003/88 para o direito nacional, sobretudo num caso de um regime derrogatório em aplicação do artigo 17.o desta diretiva, tal não significa no entanto que, no âmbito da margem de apreciação de que os Estados‑Membros dispõem, estes não possam prever a utilização de um período de referência fixo, desde que o respeito pelos imperativos de proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores esteja assegurado.

71.      Em semelhante situação, o respeito por estes imperativos impõe, em minha opinião, um duplo requisito.

72.      Por um lado, quando opta por prever um método de cálculo da duração máxima do trabalho semanal que utiliza um período de referência que assenta uma base fixa, é especialmente importante que o Estado‑Membro assegure a existência e a implementação de instrumentos de organização do trabalho, de fiscalização e de garantia efetivos de natureza preventiva que permitam impedir que ocorram situações de violação dos referidos imperativos de proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores em razão da organização do horário de trabalho. Compete ao Estado‑Membro escolher os mecanismos preventivos que considere serem adequados para esse efeito. Todavia, estes instrumentos devem garantir o efeito útil do direito a uma duração média máxima semanal que a Diretiva 2003/88 — e o artigo 31.o, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais — conferem aos trabalhadores.

73.      Por outro lado, o Estado‑Membro deve também assegurar‑se de que, no caso de se vir a revelar que estes mecanismos preventivos não são eficazes e, não obstante a sua existência, se se vier ainda assim a verificar uma situação de violação dos imperativos de proteção da segurança e da saúde do trabalhador, o trabalhador poderá dispor, ex post, de vias de recurso efetivas tanto internas ou administrativas como jurisdicionais, através das quais poderá fazer cessar imediatamente uma eventual situação de violação dos referidos imperativos.

74.      Em resumo, se o Estado‑Membro optar por prever na sua legislação nacional um método de cálculo da duração máxima do trabalho semanal que utiliza um período de referência que assenta numa base fixa, especialmente em situações nas quais esse período é longo e diz respeito a um regime derrogatório, o Estado‑Membro deve então garantir que existam mecanismos organizacionais, processuais e jurisdicionais e que estes sejam adequados para assegurar, in concreto, que os imperativos de proteção da segurança e da saúde do trabalhador sejam efetivamente respeitados aquando da organização do tempo de trabalho e que não ocorram situações de violação desses imperativos aquando da organização do tempo de trabalho ou, se ainda assim ocorrerem situações de violação desses imperativos, que lhes seja posto termo sem demora.

75.      Compete, em última análise, ao juiz nacional apreciar no litígio que se encontra pendente perante si se, no caso de o Estado‑Membro ter optado por utilizar um determinado período de referência que assenta numa base «fixa», existem ou não semelhantes mecanismos efetivos e se o duplo requisito acima referido está ou não preenchido, para que se possa considerar que a legislação nacional que perante si foi questionada é compatível com o direito da União e, especificamente, com a Diretiva 2003/88.

A.      Quanto às questões prejudiciais

76.      À luz das considerações que precedem e da interpretação que proponho que seja dada ao conceito «período de referência» para efeitos do cálculo da duração média máxima do trabalho semanal, conforme utilizado na Diretiva 2003/88, considero que se deve responder às questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio no sentido de que, no âmbito da flexibilidade que esta diretiva lhes confere, os Estados‑Membros têm liberdade para escolherem um método de cálculo da duração média máxima do trabalho semanal que utilize um período de referência cuja definição assente numa base «variável» ou numa base «fixa».

77.      Todavia, no caso de um Estado‑Membro vir a decidir utilizar um período de referência cuja definição assente numa base «fixa», cabe‑lhe garantir que sejam implementados mecanismos organizacionais, processuais e jurisdicionais que sejam adequados para assegurar, in concreto, que os imperativos de proteção da segurança e da saúde do trabalhador sejam efetivamente respeitados aquando da organização do tempo de trabalho e que não ocorram situações de violação destes imperativos ou que, se ainda assim ocorrerem situações de violação destes imperativos, que lhes seja posto termo sem demora.

78.      Compete ao órgão jurisdicional de reenvio, único competente para interpretar o direito nacional, determinar se a regulamentação nacional cumpre estes requisitos.

79.      Todavia, aquando da apreciação que é chamado a efetuar, o referido órgão jurisdicional poderá tomar em consideração os elementos interpretativos que o Tribunal de Justiça lhe vier a fornecer. Nesta perspetiva, e para dar ao órgão jurisdicional de reenvio uma resposta que seja o mais útil possível para decidir o processo que se encontra pendente perante si, as seguintes considerações podem revelar‑se pertinentes.

80.      Com efeito, com base nas informações prestadas durante as fases escrita e oral do processo tramitado no Tribunal de Justiça, é possível ter dúvidas de que, no presente caso, esteja assegurado o duplo requisito que visa o respeito pelos imperativos de proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores. Assim, por um lado, não parece existir um sistema de fiscalização preventiva eficaz que possa assegurar que, no âmbito de um regime derrogatório como o da legislação questionada perante o órgão jurisdicional de reenvio, não se verifiquem situações nas quais não está garantido o respeito pelos imperativos de proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores em causa. Com efeito, foi alegado que, contrariamente ao que sucede no setor privado, não existe um organismo independente que possa intervir diretamente e intimar o empregador a pôr termo a situações de violação dos referidos imperativos e que, em substância, é impossível pôr termo a semelhantes situações.

81.      Por outro lado, foi alegado que os sistemas de recursos administrativos e judiciais ex post destinados que visam pôr termo a situações que comportam violações dos referidos imperativos também não são eficazes. Com efeito, aparentemente, em geral, não é dada resposta os recursos hierárquicos, os pedidos de medidas provisórias estão sujeitos a condições muito restritas e raramente são deferidos e a duração da tramitação dos processos nos tribunais administrativos varia entre um e quatro anos, pelo que a única forma de proteção de que os trabalhadores na realidade dispõem é, em substância, uma eventual indemnização ex post.

82.      Compete, evidentemente, ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar se estão implementados mecanismos organizacionais, processuais e jurisdicionais adequados que sejam aptos a assegurar, in concreto, que os imperativos de proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores sejam efetivamente respeitados. No entanto, no caso de tais garantias não existirem, a previsão de um período de referência cuja definição assenta numa base «fixa», como sucede na legislação nacional em causa, é incompatível com o direito da União.

IV.    Conclusão

83.      Atendendo a todas as considerações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda da seguinte forma às questões prejudiciais submetidas pelo Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França):

O artigo 6.o, alínea b), o artigo 16.o, alínea b), o artigo 17.o, n.o 3, e o artigo 19.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003, relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho, devem ser interpretados no sentido de que os Estados‑Membros têm liberdade para escolherem um método de cálculo da duração média máxima do trabalho semanal que utilize um período de referência cuja definição assente numa base «variável» ou numa base «fixa». Todavia, no caso de um Estado‑Membro vir a decidir utilizar um período de referência cuja definição assente numa base «fixa», cabe‑lhe garantir que sejam implementados mecanismos organizacionais, processuais e jurisdicionais que sejam adequados para assegurar, in concreto, que os imperativos de proteção da segurança e da saúde do trabalhador sejam efetivamente respeitados aquando da organização do tempo de trabalho e que não ocorram situações de violação destes imperativos ou que, se ainda assim ocorrerem situações de violação destes imperativos, que lhes seja posto termo sem demora. Compete ao órgão jurisdicional de reenvio, único competente para interpretar o direito nacional, determinar se a regulamentação nacional cumpre estes requisitos


1      Língua original: francês.


2      Diretiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003, relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho (JO 2003, L 299, p. 9).


3      Décret du 25 août 2000, relatif à l’aménagement et à la réduction du temps de travail dans la fonction publique de l’État et dans la magistrature (Decreto de 25 de agosto de 2000, relativo à organização e à redução do tempo de trabalho na função pública do Estado e na magistratura) (a seguir «Decreto n.o 2000‑815)».


4      V., a este respeito, Acórdão de 9 de novembro de 2017, Maio Marques da Rosa (C‑306/16, EU:C:2017:844, n.os 35 e 36).


5      V. Acórdão de 9 de novembro de 2017, Maio Marques da Rosa (C‑306/16, EU:C:2017:844, n.o 38 e jurisprudência referida).


6      Com efeito, a segunda questão prejudicial implica a possibilidade de o conceito «período de referência» utilizado no âmbito do regime derrogatório poder revestir uma natureza fixa no caso de aquele que é utilizado para o regime geral deve ter uma natureza variável.


7      V., designadamente, Acórdãos de 14 de outubro de 2010, Fuß (C‑243/09, EU:C:2010:609, n.o 32 e jurisprudência referida), e de 10 de setembro de 2015, Federación de Servicios Privados del sindicato Comisiones obreras (C‑266/14, EU:C:2015:578, n.o 23 e jurisprudência referida)


8      Ibidem.


9      V., neste sentido, Acórdão de 14 de outubro de 2010, Fuß (C‑243/09, EU:C:2010:609, n.o 33).


10      V., designadamente, Acórdãos de 14 de outubro de 2010, Fuß (C‑243/09, EU:C:2010:609, n.o 33 e jurisprudência referida), e de 23 de dezembro de 2015, Comissão/Grécia (C‑180/14, não publicado, EU:C:2015:840, n.o 34). No que respeita à obrigação de os Estados‑Membros garantirem o efeito útil da Diretiva 2003/88, v. considerações constantes dos n.os 45 a 54 das minhas conclusões de 31 de janeiro de 2019, relativas ao processo CCOO (C‑55/18, ECLI:EU:C:2019:87 e jurisprudência referida).


11      V., neste sentido, Acórdão de 7 de setembro de 2006, Comissão/Reino Unido (C‑484/04, EU:C:2006:526, n.o 37), no que se refere à Diretiva 93/104/CE do Conselho, de 23 de novembro de 1993, relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho (JO 1993 L 307, p. 18), conforme alterada pela Diretiva 2000/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de junho de 2000 (JO 2000 L 195, p. 41) (a seguir «Diretiva 93/104»), cujas disposições pertinentes estavam redigidas em termos substancialmente idênticos à redação da Diretiva 2003/88. O sublinhado é meu.


12      V., neste sentido, no que se refere à Diretiva 93/104, Acórdão de 5 de outubro de 2004, Pfeiffer e o. (C‑397/01 a C‑403/01, EU:C:2004:584, n.o 104).


13      V., neste sentido, Acórdão de 7 de setembro de 2006, Comissão/Reino Unido (C‑484/04, EU:C:2006:526, n.o 39); o sublinhado é meu.


14      V, neste sentido, Acórdão de 7 de setembro de 2006, Comissão/Reino Unido (C‑484/04, EU:C:2006:526, n.o 40 e jurisprudência referida).


15      V. Acórdão de 9 de novembro de 2017, Maio Marques da Rosa (C‑306/16, EU:C:2017:844, n.o 46.


16      No que respeita à margem de apreciação concedida aos Estados‑Membros pela Diretiva 2003/88, v., também, n.os 86 e seguintes das minhas conclusões no processo CCOO referido na precedente nota 10.


17      V., neste sentido, Acórdão de 9 de novembro de 2017, Maio Marques da Rosa (C‑306/16, EU:C:2017:844, n.o 38 e jurisprudência referida).


18      V., neste sentido, Despacho de 4 de março de 2011, Grigore (C‑258/10, não publicado, EU:C:2011:122, n.o 44 e jurisprudência referida), e, no que respeita à Diretiva 93/104, Acórdão de 1 de dezembro de 2005, Dellas e o. (C‑14/04, EU:C:2005:728, n.o 44 e jurisprudência referida).


19      O sublinhado é meu.


20      A este respeito, saliento que, ainda que a Diretiva 2003/88, no seu artigo 22.o, n.o 1, reconheça ao Estado‑Membro a faculdade de não aplicar o artigo 6.o, este último deve ainda assim respeitar expressamente «os princípios gerais de proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores». V., igualmente, Acórdão de 14 de outubro de 2010, Fuß (C‑243/09, EU:C:2010:609, n.o 34, in fine).


21      V. Acórdãos de 5 de outubro de 2004, Pfeiffer e o. (C‑397/01 a C‑403/01, EU:C:2004:584, n.o 118), e de 14 de outubro de 2010, Fuß (C‑243/09, EU:C:2010:609, n.o 51). Foi assim, tendo em conta o cumprimento deste objetivo fundamental, que o Tribunal de Justiça declarou que os Estados‑Membros não podem determinar unilateralmente o alcance da referida disposição, subordinando a qualquer condição ou restrição a aplicação do direito dos trabalhadores a que a duração média do trabalho semanal não exceda 48 horas (ibidem, respetivamente, n.o 99 e n.o 52), e que reconheceu que o artigo 6.o alínea b), da Diretiva 2003/88 confere diretamente direitos cujo efeito útil deve ser integralmente assegurado na ordem jurídica interna [Acórdão de 14 de outubro de 2010, Fuß (C‑243/09, EU:C:2010:609, n.o 64 e jurisprudência referida)]. V., igualmente, n.os 35 a 39 das presentes conclusões e jurisprudência referida.


22      V. exemplo referido na nota 24, infra.


23      A este respeito, a Comissão, nas suas observações, salientou com razão que, por exemplo, um trabalhador sujeito a uma regra de direito nacional que fixa uma duração máxima do trabalho semanal bastante inferior ao limite de 48 horas previsto no artigo 6.o, alínea b), da Diretiva 2003/88 e que deve ser calculada ao longo de um período de referência fixo de três semanas estaria mais bem protegido do que um trabalhador sujeito ao limite de quarenta e oito horas semanais nos casos em que este limite seja calculado com base num período de referência variável de seis meses.


24      Na audiência, o debate entre as partes que participaram na fase oral no Tribunal de Justiça desenrolou‑se à volta de um exemplo de uma situação hipotética na qual, num determinado período fixo de seis meses de calendário (1 de janeiro‑30 de junho), um trabalhador trabalharia 36 horas por semana durante os três primeiros meses e 60 horas por semana durante os três últimos meses, o que perfaz uma média de 48 horas por semana durante seis meses e, no período fixo de calendário seguinte (1 de julho‑31 de dezembro), o trabalhador trabalharia 60 horas por semana durante os três primeiros meses e 36 horas por semana durante os três últimos meses (nesta situação verifica‑se uma vez mais uma duração média de 48 horas por semana nos seis meses). Nesse caso, no decurso de cada um destes dois períodos fixos de calendário sucessivos, a duração média semanal era de facto de 48 horas por semana. Todavia, se for tomado em consideração o número de horas de trabalho entre 1 de abril e 30 de setembro, apercebemo‑nos de que o trabalhador teria trabalhado 60 horas por semana durante seis meses. É facto assente entre as partes que semelhante situação daria lugar a uma violação dos imperativos de proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores hipoteticamente abrangidos por semelhante situação.