Language of document : ECLI:EU:C:2018:979

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

4 de dezembro de 2018 (*)

«Reenvio prejudicial — Igualdade de tratamento em matéria de emprego — Diretiva 2000/78/CE — Proibição de discriminação em razão da idade — Recrutamento dos agentes da polícia — Órgão nacional instituído por lei para garantir a aplicação do direito da União num domínio específico — Poder de não aplicar a legislação nacional não conforme ao direito da União — Primado do direito da União»

No processo C‑378/17,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda), por decisão de 16 de junho de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 22 de junho de 2017, no processo

Minister for Justice and Equality,

Commissioner of An Garda Síochána

contra

Workplace Relations Commission,

sendo intervenientes:

Ronald Boyle e o.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, R. Silva de Lapuerta (relatora), vice‑presidente, J.‑C. Bonichot, A. Arabadjiev, T. von Danwitz, C. Toader e F. Biltgen, presidentes de secção, E. Levits, L. Bay Larsen, M. Safjan, C. G. Fernlund, C. Vajda e S. Rodin, juízes,

advogado‑geral: N. Wahl,

secretário: L. Hewlett, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 5 de junho de 2018,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do Minister for Justice and Equality, do Commissioner of An Garda Síochána e da Irlanda, por M. Browne, L. Williams e T. Joyce, na qualidade de agentes, assistidos por A. Kerr, BL, e B. Murray, SC,

–        em representação da Workplace Relations Commission, por G. Gilmore, BL, e C. Power, SC, mandatados por S. Larkin, solicitor,

–        em representação de Ronald Boyle e o., por D. Fennelly, BL, mandatado por M. Mullan, solicitor,

–        em representação do Governo checo, por M. Smolek, J. Vláčil e J. Pavliš, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por H. Krämer e L. Flynn, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 11 de setembro de 2018,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a questão de saber se um órgão nacional instituído por lei para garantir a aplicação do direito da União num domínio específico deve ter a possibilidade de não aplicar uma norma de direito nacional contrária ao direito da União.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe o Minister for Justice and Equality (ministro da Justiça, da Igualdade e da Reforma do Direito, Irlanda) (a seguir «ministro») e o Commissioner of An Garda Síochána (comissário da polícia nacional, Irlanda) ao Equality Tribunal (Tribunal para a Igualdade, Irlanda), cujas funções foram assumidas, a partir de 2015, pela Workplace Relations Commission (Comissão para as Relações Laborais, Irlanda), a respeito da competência desta última para decidir não aplicar disposições de direito nacional contrárias ao direito da União.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Nos termos do artigo 1.o da Diretiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional (JO 2000, L 303, p. 16):

«A presente diretiva tem por objeto estabelecer um quadro geral para lutar contra a discriminação em razão da religião ou das convicções, de uma deficiência, da idade ou da orientação sexual, no que se refere ao emprego e à atividade profissional, com vista a pôr em prática nos Estados‑Membros o princípio da igualdade de tratamento.»

4        O artigo 3.o, n.o 1, alínea a), desta diretiva, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação», prevê:

«Dentro dos limites das competências atribuídas à [União], a presente diretiva é aplicável a todas as pessoas, tanto no setor público como no privado, incluindo os organismos públicos, no que diz respeito:

a)      Às condições de acesso ao emprego, ao trabalho independente ou à atividade profissional, incluindo os critérios de seleção e as condições de contratação, seja qual for o ramo de atividade e a todos os níveis da hierarquia profissional, incluindo em matéria de promoção;

[…]»

5        O artigo 9.o, n.o 1, da referida diretiva, que faz parte do capítulo II desta, sob a epígrafe «Vias de recurso e execução», tem a seguinte redação:

«Os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que todas as pessoas que se considerem lesadas pela não aplicação, no que lhes diz respeito, do princípio da igualdade de tratamento, possam recorrer a processos judiciais e/ou administrativos, incluindo, se considerarem adequado, os processos de conciliação, para exigir o cumprimento das obrigações impostas pela presente diretiva, mesmo depois de extintas as relações no âmbito das quais a discriminação tenha alegadamente ocorrido.»

 Direito irlandês

6        O artigo 34.o da Bunreacht na hÉireann (Constituição irlandesa) dispõe:

«1.      A justiça deve ser administrada em tribunais estabelecidos por lei, por juízes nomeados nos termos previstos pela presente Constituição e, salvo nos casos especiais e restritos previstos por lei, deve ser administrada em público.

2.      O sistema judicial é constituído pelos seguintes órgãos jurisdicionais:

i.      tribunais de primeira instância;

ii.      um Tribunal de Recurso; e

iii.      um Tribunal de Última Instância.

3. 1 Dos tribunais de primeira instância faz parte um Tribunal Superior com competência de plena jurisdição em primeira instância e com poderes para dirimir todas as matérias ou questões, de direito ou de facto, civis ou penais.

2.      Salvo disposição em contrário no presente artigo, a competência do Tribunal Superior abrange as questões relativas à validade de toda a legislação à luz da presente Constituição, não podendo nenhuma questão dessa natureza ser suscitada (por pedido, fundamento ou de outro modo) perante um tribunal instituído nos termos do presente artigo ou de outro artigo da presente Constituição, além do Tribunal Superior, do Tribunal de Recurso ou do Supremo Tribunal».

7        Nos termos do artigo 37.o, n.o 1, da Constituição irlandesa:

«Nenhuma disposição da presente Constituição permite proibir o exercício de funções e de poderes limitados de natureza judicial em matérias não penais, por qualquer pessoa ou órgão devidamente autorizado por lei para exercer tais funções e poderes, ainda que essa pessoa ou esse órgão não seja um magistrado ou um órgão jurisdicional designado ou criado como tal nos termos da presente Constituição.»

8        As medidas nacionais de transposição da Diretiva 2000/78 em matéria de emprego, incluindo recrutamento, figuram nos Employment Equality Acts 1998 to 2015 (Leis de 1998 a 2015, relativas à igualdade em matéria de emprego, a seguir «Leis relativas à igualdade»), cujo artigo 77.o, n.o 1, dispõe:

«Uma pessoa que alegar […] ter sido vítima de discriminação em violação das [Leis relativas à igualdade] pode […] pedir a reparação junto do diretor‑geral da Comissão para as Relações Laborais […]»

9        O artigo 82.o das Leis relativas à igualdade estabelece diversas medidas de correção que podem ser ordenadas pelo diretor‑geral da Comissão para as Relações Laborais. Este último pode, em primeiro lugar, ordenar a indemnização sob a forma de retroativos de remuneração (em caso de incumprimento da obrigação de igual remuneração) relativos a um período de atividade com início nos três anos anteriores à data do pedido, na aceção do artigo 77.o, n.o 1, das referidas leis, que conduziu à decisão do diretor‑geral, em segundo lugar, ordenar a igualdade de remuneração a partir dessa data, em terceiro lugar, ordenar a indemnização em razão dos atos de discriminação ou de perseguição que tenham tido lugar, no mínimo, seis anos antes da data do pedido, na aceção do artigo 77.o das referidas leis, em quarto lugar, ordenar a igualdade de tratamento em quaisquer matérias pertinentes no processo, em quinto lugar, exigir a uma ou várias pessoas identificadas na decisão a adoção das medidas aí previstas ou, em sexto lugar, ordenar a reintegração ou recontratação, com ou sem indemnização.

10      A regra 5, n.o 1, alínea c), da Garda Síochána (Admissions and Appointments) Regulations 1988 [Decreto relativo à polícia nacional (recrutamento e nomeações) de 1988], conforme alterada pela Garda Síochána (Admissions and Appointments) (Amendment) Regulations 2004 [Decreto relativo à polícia nacional (recrutamento e nomeações) (alteração) de 2004)] (a seguir «Decreto “recrutamento e nomeações”»), dispõe:

«Sem prejuízo do presente decreto, o comissário só pode admitir como estagiário

[…]

c)      quem tiver, no mínimo, 18 anos e, no máximo, 35 anos de idade, no primeiro dia do mês em que tenha sido publicado pela primeira vez, num jornal nacional, o anúncio da vaga a que o recrutamento respeita;

[…]»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

11      Ronald Boyle e duas outras pessoas (a seguir «R. Boyle e o.») foram excluídos de um processo de recrutamento de dois novos agentes para a An Garda Síocháina (polícia nacional, Irlanda) com o fundamento de que tinham excedido a idade máxima de recrutamento prevista pelo Decreto «recrutamento e nomeações».

12      No seguimento dessa decisão, R. Boyle e o. interpuseram recurso para o Equality Tribunal (Tribunal para a Igualdade).

13      R. Boyle e o. alegavam que a fixação de uma idade máxima de recrutamento nas forças da polícia nacional constitui uma discriminação proibida tanto pela Diretiva 2000/78 como pelas disposições de direito irlandês que transpõem a referida diretiva.

14      O ministro alegou a incompetência do Equality Tribunal (Tribunal para a Igualdade) com o fundamento de que a medida que impunha a idade máxima de recrutamento nas forças da polícia nacional era uma disposição de direito nacional, pelo que só os tribunais criados pela Constituição irlandesa eram competentes para, se fosse o caso, decidir não aplicar tal disposição. No entanto, o Equality Tribunal (Tribunal para a Igualdade) decidiu prosseguir a apreciação do referido recurso, indicando, porém, que, no âmbito do mesmo processo, apreciaria e decidiria a questão de competência suscitada pelo ministro.

15      O ministro interpôs recurso para a High Court (Tribunal Superior, Irlanda), pedindo que esse órgão jurisdicional, mediante despacho dirigido ao Equality Tribunal (Tribunal para a Igualdade), o proíba de agir de uma maneira ilegal.

16      A High Court (Tribunal Superior) deu provimento ao recurso interposto pelo ministro através de um despacho que proibia o Equality Tribunal (Tribunal para a Igualdade) de conhecer do recurso de R. Boyle e o. Com efeito, a High Court (Tribunal Superior) decidiu que o Equality Tribunal (Tribunal para a Igualdade) não detinha competência para tomar uma decisão juridicamente vinculativa que declarasse a incompatibilidade do direito nacional com o direito da União, dado tal competência estar expressamente reservada à High Court (Tribunal Superior) nos termos do artigo 34.o da Constituição irlandesa.

17      O Equality Tribunal (Tribunal para a Igualdade) recorreu desse despacho para o órgão jurisdicional de reenvio, a Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda).

18      O órgão jurisdicional de reenvio salienta que, em direito nacional, o Equality Tribunal (Tribunal para a Igualdade), que entretanto passou a designar‑se Comissão para as Relações Laborais, não é competente para não aplicar disposições de direito nacional que considera contrárias ao direito da União. Só a High Court (Tribunal Superior) dispõe dessa competência e pode, a esse título, ser validamente chamada a conhecer de um litígio que, se for dado provimento ao recurso, implica a não aplicação de uma disposição de direito nacional, sem prejuízo de um recurso para a Court of Appeal (Tribunal de Recurso, Irlanda) ou para o órgão jurisdicional de reenvio.

19      Este último considera, assim, que, em direito nacional, a competência para conhecer dos processos relativos à igualdade em matéria de emprego é repartida entre, por um lado, a Comissão para as Relações Laborais, competente para a maioria dos processos, e, por outro, a High Court (Tribunal Superior), quando o facto de julgar procedente um pedido neste domínio exige, designadamente, a não aplicação de disposições de direito nacional não conformes ao direito da União. O órgão jurisdicional de reenvio considera igualmente que, em direito nacional e a fim de garantir o respeito do direito da União, a High Court (Tribunal Superior) é competente para tomar quaisquer medidas necessárias à aplicação dos direitos reconhecidos pelo direito da União.

20      A Supreme Court (Supremo Tribunal) apreciou em seguida a questão de saber se tal repartição de competências na ordem jurídica interna respeita os princípios da equivalência e da efetividade enunciados pela jurisprudência do Tribunal de Justiça.

21      A este propósito, o órgão jurisdicional de reenvio considera, por um lado, que, visto tal repartição ser passível de aplicação em qualquer domínio jurídico, quer seja nacional ou do direito da União, o princípio da equivalência é claramente respeitado.

22      Por outro lado, o mesmo órgão jurisdicional considera que esta repartição de competências, segundo a qual devem ser submetidos à High Court (Tribunal Superior) os processos que envolvam uma eventual não aplicação de normas de direito nacional contrárias ao direito da União, é conforme ao princípio da efetividade, na medida em que este último órgão jurisdicional é competente para garantir o respeito de quaisquer direitos reconhecidos pelo direito da União e, nesse contexto, para não aplicar, se necessário, as disposições de direito nacional que fixam a idade máxima de recrutamento na função de polícia contrárias às disposições do direito da União relativas à igualdade em matéria de emprego, de uma forma que não torne excessivamente difícil a aplicação do direito da União.

23      A Comissão para as Relações Laborais alega, por sua vez, que, enquanto órgão responsável pela obrigação geral de garantir o respeito do direito nacional e do direito da União relativos à igualdade em matéria de emprego, deve dispor de todos os poderes necessários para o efeito. Assim, considera que a repartição de competências entre a High Court (Tribunal Superior) e ela própria não é conforme ao direito da União, na medida em que a impossibilita de cumprir a referida obrigação.

24      Neste contexto, a Supreme Court (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Quando:

[a)]      um órgão nacional é criado por uma lei que lhe atribui uma competência genérica para, nomeadamente, garantir a aplicação do direito da União num domínio particular;

[b)]      o direito nacional exclui a competência desse órgão numa categoria restrita de casos, em que a tutela jurisdicional efetiva impõe a não aplicação de uma regra jurídica nacional com base no direito nacional ou no direito da União; e

[c)]      os órgãos jurisdicionais nacionais [competentes] têm [o poder de] ordenar a não aplicação do direito nacional necessári[a] para garantir o respeito da regra de direito da União em causa [e] têm competência para conhecer dos processos em que essa tutela [é] necessária [bem como] para, nesses casos, determinar quaisquer providências [exigidas pelo] direito da União [e consideradas] compatíveis com os princípios da equivalência e da efetividade [pela] jurisprudência da União,

deve considerar‑se, não obstante, que o organismo criado por lei tem competência para apreciar um recurso administrativo no qual se alega que o direito nacional viola o direito da União aplicável[,] e, no caso de conceder provimento ao recurso, [que] tem competência para não aplicar essa regra nacional, apesar de o direito nacional reservar aos tribunais estabelecidos nos termos da Constituição, e não ao organismo em questão, a competência para conhecer [de todos os] processos em que […] a validade de uma regra [é impugnada por qualquer motivo] ou [em que é pedida] a sua […] não aplicação […]?»

 Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

25      O Governo checo contesta a admissibilidade do pedido de decisão prejudicial salientando o caráter vago do mesmo e o facto de o órgão jurisdicional de reenvio não especificar as disposições da Diretiva 2000/78 com as quais a legislação nacional está em contradição.

26      A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito da cooperação entre este último e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.o TFUE, o juiz nacional a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade da decisão judicial a tomar tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal. Consequentemente, desde que as questões colocadas digam respeito à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 27 de junho de 2017, Congregación de Escuelas Pías Provincia Betania, C‑74/16, EU:C:2017:496, n.o 24 e jurisprudência aí referida).

27      Daqui resulta que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a interpretação solicitada do direito da União não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 27 de junho de 2017, Congregación de Escuelas Pías Provincia Betania, C‑74/16, EU:C:2017:496, n.o 25 e jurisprudência aí referida).

28      É também importante que o juiz nacional indique as razões precisas que o levaram a interrogar‑se sobre a interpretação do direito da União e a considerar necessário submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça (Acórdão de 21 de novembro de 2013, Deutsche Lufthansa, C‑284/12, EU:C:2013:755, n.o 21 e jurisprudência aí referida).

29      No caso em apreço, embora o processo principal tenha origem no recurso interposto pelos candidatos excluídos de um processo de recrutamento de agentes da polícia irlandesa e destinado a denunciar a incompatibilidade da fixação, pelo Decreto «recrutamento e nomeações», de uma idade máxima de recrutamento com a Diretiva 2000/78 e com as Leis relativas à igualdade, resulta, no entanto, da decisão de reenvio que, no âmbito do processo que é chamado a apreciar, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à compatibilidade com o direito da União, designadamente com o princípio do primado deste direito, da repartição de competências entre a High Court (Tribunal Superior) e a Comissão para as Relações Laborais, tal como decorre da interpretação da legislação nacional pela Supreme Court (Supremo Tribunal), nos termos da qual a mesma comissão não tem o poder de não aplicar uma disposição nacional contrária à referida diretiva.

30      Conclui‑se que o Tribunal de Justiça dispõe dos elementos necessários para responder utilmente à questão que lhe é submetida e, consequentemente, que o pedido de decisão prejudicial é admissível.

 Quanto à questão prejudicial

31      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o direito da União, em especial o princípio do primado deste direito, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, segundo a qual um órgão nacional instituído por lei para garantir a aplicação do direito da União num domínio específico não é competente para decidir não aplicar uma norma de direito nacional contrária ao direito da União.

32      Resulta da decisão de reenvio que, segundo o direito irlandês, conforme interpretado pela Supreme Court (Supremo Tribunal), existe uma repartição de competências entre os órgãos jurisdicionais designados como tais pelo direito nacional e a Comissão para as Relações Laborais. Por um lado, esta última é competente para conhecer dos recursos interpostos de medidas ou decisões alegadamente incompatíveis com a Diretiva 2000/78 e com as Leis relativas à igualdade e, por outro, a High Court (Tribunal Superior) é competente quando o facto de dar provimento a tal recurso exige a não aplicação ou a anulação de uma disposição nacional contrária ao direito da União.

33      A este respeito, importa, a título preliminar, salientar, como fez o advogado‑geral no n.o 45 das suas conclusões, que deve ser feita uma distinção entre o poder de não aplicar, num caso específico, uma disposição de direito nacional contrária ao direito da União e o de anular tal disposição, que tem o efeito mais amplo de a mesma ficar desprovida de validade.

34      Com efeito, cabe aos Estados‑Membros designar os órgãos jurisdicionais e/ou instituições competentes para apreciar a validade de uma disposição nacional e prever as vias de recurso e os processos que permitem contestar essa validade, e, quando o recurso é procedente, anular a referida disposição, determinando, se for o caso, os efeitos dessa anulação.

35      Em contrapartida, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o primado do direito da União exige que os órgãos jurisdicionais nacionais encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, as disposições do direito da União tenham a obrigação de garantir a plena eficácia dessas disposições, não aplicando, se necessário, no exercício da sua própria autoridade, qualquer disposição nacional contrária, sem pedir nem aguardar pela eliminação prévia dessa disposição nacional por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (v., neste sentido, Acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal, 106/77, EU:C:1978:49, n.os 17, 21 e 24, e de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 46 e jurisprudência aí referida).

36      É, pois, incompatível com as exigências inerentes à própria natureza do direito da União qualquer disposição de uma ordem jurídica nacional ou qualquer prática legislativa, administrativa ou judicial que tenha por efeito diminuir a eficácia do direito da União pelo facto de recusar ao juiz competente para a aplicação desse direito o poder de, no próprio momento dessa aplicação, fazer tudo o que for necessário para não aplicar as disposições legislativas nacionais que eventualmente obstem à plena eficácia das normas diretamente aplicáveis do direito da União (v., neste sentido, Acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal, 106/77, EU:C:1978:49, n.o 22; de 19 de junho de 1990, Factortame e o., C‑213/89, EU:C:1990:257, n.o 20; e de 8 de setembro de 2010, Winner Wetten, C‑409/06, EU:C:2010:503, n.o 56).

37      Ora, é esse o caso se, havendo uma contradição entre uma disposição do direito da União e uma lei nacional, a resolução desse conflito for atribuída a uma autoridade diferente do juiz chamado a assegurar a aplicação do direito da União, investida de um poder de apreciação próprio (Acórdão de 8 de setembro de 2010, Winner Wetten, C‑409/06, EU:C:2010:503, n.o 57 e jurisprudência aí referida).

38      Como diversas vezes afirmou o Tribunal de Justiça, a referida obrigação de não aplicar uma legislação nacional contrária ao direito da União incumbe não só aos órgãos jurisdicionais nacionais mas também a todos os órgãos do Estado, incluindo as autoridades administrativas, encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, o direito da União (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o 31; de 9 de setembro de 2003, CIF, C‑198/01, EU:C:2003:430, n.o 49; de 12 de janeiro de 2010, Petersen, C‑341/08, EU:C:2010:4, n.o 80; e de 14 de setembro de 2017, The Trustees of the BT Pension Scheme, C‑628/15, EU:C:2017:687, n.o 54).

39      Daqui resulta que o princípio do primado do direito da União impõe não só aos órgãos jurisdicionais mas a todas as instâncias do Estado‑Membro que confiram plena eficácia às normas da União.

40      É à luz destas considerações que se deve responder à questão submetida.

41      A este respeito, cumpre salientar que, segundo o artigo 9.o da Diretiva 2000/78, os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que todas as pessoas que se considerem lesadas pela não aplicação, no que lhes diz respeito, do princípio da igualdade de tratamento possam recorrer a processos judiciais e/ou administrativos, incluindo, se considerarem adequado, os processos de conciliação, para exigir o cumprimento das obrigações impostas por essa diretiva.

42      Resulta do referido artigo que cabe aos Estados‑Membros estabelecer os processos destinados a exigir o cumprimento das obrigações resultantes da Diretiva 2000/78.

43      No caso em apreço, conforme decorre das informações que figuram no pedido de decisão prejudicial, o legislador irlandês optou por conferir a competência específica para assegurar a observância da Diretiva 2000/78 à Comissão para as Relações Laborais. Segundo o artigo 77.o, n.o 1, das Leis relativas à igualdade, que contêm as medidas de transposição daquela diretiva para o direito irlandês, qualquer pessoa que alegue ter sido vítima de discriminação em violação das referidas leis pode, efetivamente, pedir a indemnização do prejuízo que considera ter sofrido, mediante recurso à referida comissão.

44      Resulta assim dos elementos submetidos ao Tribunal de Justiça que a Comissão para as Relações Laborais é um órgão criado pelo legislador irlandês para dar cumprimento à obrigação que recai sobre a Irlanda por força do artigo 9.o da Diretiva 2000/78.

45      Neste contexto, se a Comissão para as Relações Laborais, enquanto órgão investido pelo legislador nacional da competência para assegurar a aplicação do princípio da não discriminação em matéria de emprego e de trabalho, tal como concretizado pela Diretiva 2000/78 e pelas Leis relativas à igualdade, for chamada a pronunciar‑se sobre um litígio que ponha em causa a observância deste princípio, o princípio do primado do direito da União exige que assegure, no âmbito dessa competência, a proteção jurídica que o direito da União confere aos particulares e garanta o pleno efeito deste direito, não aplicando, se necessário, qualquer disposição eventualmente contrária da lei nacional (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de novembro de 2005, Mangold, C‑144/04, EU:C:2005:709, n.o 77; de 19 de janeiro de 2010, Kücükdeveci, C‑555/07, EU:C:2010:21, n.o 53; e de 19 de abril de 2016, DI, C‑441/14, EU:C:2016:278, n.o 35).

46      Com efeito, seria contraditório que os particulares tenham o direito de invocar as disposições do direito da União num domínio específico perante um órgão a que o direito nacional atribuiu a competência para dirimir litígios nesse domínio e que o referido órgão não tenha a obrigação de aplicar aquelas disposições, afastando as do direito nacional que as contrariem (v., neste sentido, Acórdão de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o 31).

47      Além disso, na medida em que deve ser considerada um «órgão jurisdicional», na aceção do artigo 267.o TFUE (v., neste sentido, Acórdão de 18 de março de 2014, Z., C‑363/12, EU:C:2014:159), a Comissão para as Relações Laborais pode submeter ao Tribunal de Justiça, ao abrigo deste artigo, uma questão de interpretação das disposições pertinentes do direito da União e, uma vez que está vinculada pelo acórdão proferido a título prejudicial pelo Tribunal de Justiça, deve dar imediatamente cumprimento ao referido acórdão, não aplicando, se necessário e no exercício da sua própria autoridade, as disposições contrárias da legislação nacional (v., neste sentido, Acórdão de 5 de abril de 2016, PFE, C‑689/13, EU:C:2016:199, n.os 32, 34, 39 e 40).

48      Se um órgão como a Comissão para as Relações Laborais, investido pela lei da missão de garantir o cumprimento e o respeito das obrigações decorrentes da aplicação da Diretiva 2000/78, não pudesse constatar que uma disposição nacional é contrária à referida diretiva e, em consequência, não pudesse decidir não aplicar a referida disposição, o efeito útil das normas da União no domínio da igualdade em matéria de emprego e de trabalho seria reduzido (v., neste sentido, Acórdão de 9 de setembro de 2003, CIF, C‑198/01, EU:C:2003:430, n.o 50).

49      Ora, não se pode admitir que a unidade e a eficácia do direito da União sejam postas em causa por normas de direito nacional, mesmo que de ordem constitucional (Acórdão de 8 de setembro de 2010, Winner Wetten, C‑409/06, EU:C:2010:503, n.o 61).

50      Resulta do princípio do primado do direito da União, tal como foi interpretado pelo Tribunal de Justiça na jurisprudência mencionada nos n.os 35 a 38 do presente acórdão, que os órgãos encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, o direito da União têm a obrigação de tomar todas as medidas necessárias para garantir a plena eficácia desse direito, não aplicando, se necessário, qualquer disposição ou jurisprudência nacionais contrárias ao referido direito. Isso implica que esses órgãos, para garantir a plena eficácia do direito da União, não devem pedir nem aguardar pela eliminação prévia dessa disposição ou jurisprudência por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional.

51      Por consequência, o facto, evidenciado pelo órgão jurisdicional de reenvio, de, no caso em apreço, o direito nacional permitir aos particulares interpor perante a High Court (Tribunal Superior) um recurso fundado na alegada incompatibilidade de uma disposição nacional com a Diretiva 2000/78 e a este último órgão jurisdicional, se der provimento ao recurso, não aplicar a disposição nacional em causa não é suscetível de pôr em causa a conclusão anterior.

52      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o direito da União, em particular o princípio do primado deste direito, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, segundo a qual um órgão nacional instituído por lei para garantir a aplicação do direito da União num domínio específico não é competente para decidir não aplicar uma norma de direito nacional contrária ao direito da União.

 Quanto às despesas

53      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

O direito da União, em particular o princípio do primado deste direito, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, segundo a qual um órgão nacional instituído por lei para garantir a aplicação do direito da União num domínio específico não é competente para decidir não aplicar uma norma de direito nacional contrária ao direito da União.

Assinaturas


*      Língua do processo: inglês.