Language of document : ECLI:EU:C:2019:337

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

M. CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 30 de abril de 2019(1)

Processos apensos C508/18 e C82/19 PPU

Minister for Justice and Equality

contra

OG

e

PI

[pedidos de decisão prejudicial apresentados pela Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda) e pela High Court (Tribunal Superior, Irlanda)]

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária e policial em matéria penal — Decisão‑quadro 2002/584/JAI — Artigo 6.o, n.o 1 — Mandado de detenção europeu — Conceito de “autoridade judiciária” — Ministério Público — Independência em relação ao poder executivo»






1.        Nas minhas Conclusões no processo Özçelik (2) afirmava que, «[e]mbora fosse tentador procurar dar, neste momento, uma resposta geral à dúvida sobre a legitimidade dos Ministérios Públicos dos Estados‑Membros para a emissão de [mandados de detenção europeus], não creio que este pedido de decisão prejudicial seja a ocasião adequada para fazê‑lo», pois importava determinar se o Ministério Público podia emitir um mandado de detenção nacional (MDN) nos termos do artigo 8.o, n.o 1, alínea c), da Decisão‑quadro 2002/584/JAI (3).

2.        A oportunidade surgiu agora, na sequência de duas questões prejudiciais nas quais ambos os tribunais irlandeses precisam de saber se o Ministério Público alemão pode ser classificado como «autoridade judiciária», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da decisão‑quadro e se, enquanto tal, tem poderes para emitir um mandado de detenção europeu (MDE).

I.      Quadro jurídico

A.      Direito da União. DecisãoQuadro 2002/584

3.        Nos considerandos 5, 6 e 10 da Decisão‑Quadro 2002/584 lê‑se:

«(5)      O objetivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduz à supressão da extradição entre os Estados‑Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias. […]

(6)      O mandado de detenção europeu previsto na presente decisão‑quadro constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de “pedra angular” da cooperação judiciária.

[…]

(10)      O mecanismo do mandado de detenção europeu é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados‑Membros. A execução desse mecanismo só poderá ser suspensa no caso de violação grave e persistente, por parte de um Estado‑Membro, dos princípios enunciados no n.o 1 do artigo 6.o do Tratado da União Europeia, verificada pelo Conselho nos termos do n.o 1 do artigo 7.o do mesmo Tratado e com as consequências previstas no n.o 2 do mesmo artigo.»

4.        Em conformidade com o artigo 1.o («Definição de mandado de detenção europeu e obrigação de o executar») da Decisão‑Quadro 2002/584:

«1.      O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2.      Os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.

3.      A presente decisão‑quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.o do Tratado da União Europeia.»

5.        O artigo 6.o («Determinação das autoridades judiciárias competentes») da Decisão‑Quadro 2002/584 dispõe:

«1.      A autoridade judiciária de emissão é a autoridade judiciária do Estado‑Membro de emissão competente para emitir um mandado de detenção europeu nos termos do direito desse Estado.

2.      A autoridade judiciária de execução é a autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução competente para executar o manda[d]o de detenção europeu nos termos do direito desse Estado.

3.      Cada Estado‑Membro informa o Secretariado‑Geral do Conselho da autoridade judiciária competente nos termos do respetivo direito nacional.»

B.      Direito alemão.

6.        Nos termos do § 146 da Gerichtsverfassungsgesetz (4) (Lei da organização judiciária):

«Os funcionários do Ministério Público devem cumprir as instruções oficiais ditadas pelos seus superiores hierárquicos.»

7.        O § 147 da GVG dispõe:

«O direito de supervisão e direção incumbe:

1.      Ao ministro Federal da Justiça, no que respeita ao Procurador‑Geral Federal e aos procuradores federais;

2.      Ao organismo de administração da justiça do Land, no que respeita a todos os agentes do Ministério Público do Land em questão;

3.      Ao mais alto funcionário do Ministério Público junto dos Tribunais Regionais Superiores e dos Tribunais Regionais, no que respeita a todos os agentes do Ministério Público da área de competência do tribunal em questão.

[…]»

8.        O § 150 da GVG refere:

«O Ministério Público, no exercício das suas funções oficiais, é independente dos tribunais.»

9.        Do § 151 da GVG resulta que:

«Os procuradores não podem exercer funções judiciais. Além disso, não lhes podem ser atribuídas funções de fiscalização da atividade judicial.»

II.    Factos na origem dos litígios nos processos principais e questões prejudiciais

A.      Processo C508/18

10.      Em 13 de maio de 2016, o Ministério Público junto do Landgericht Lübeck (Tribunal Regional de Lübeck, Alemanha) emitiu um MDE contra OG, cidadão lituano residente na Irlanda, para efeitos de procedimento penal por um crime de «homicídio voluntário, ofensas corporais graves», alegadamente cometido em 1995.

11.      Na High Court (Tribunal Superior, Irlanda), OG opôs‑se à sua entrega, alegando, entre outras razões, que o Ministério Público de Lübeck não é uma «autoridade judiciária» na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584.

12.      A High Court (Tribunal Superior), por Acórdão de 20 de março de 2017, julgou improcedente o fundamento apresentado por OG, alegando que o direito alemão prevê a independência do Ministério Público e o poder executivo só pode interferir na sua atuação em circunstâncias excecionais, o que não tinha sido o caso.

13.      A decisão da primeira instância foi confirmada em sede de recurso pela Court of Appeal (Tribunal de recurso, Irlanda), que aplicou os critérios de «independência funcional» e «funcionamento de facto independente», na linha desenvolvida pela Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal, Reino Unido) no processo Assange v. Swedish Prosecution Authority (5).

14.      Interposto recurso para a Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda), este órgão jurisdicional submete ao Tribunal de Justiça, ao abrigo do artigo 267.o TFUE, as seguintes perguntas:

«1)      Deve a independência de um procurador em relação ao poder executivo ser determinada em função do estatuto que esse procurador tem na ordem jurídica nacional em causa? Em caso de resposta negativa, quais os critérios de apreciação que permitem estabelecer a independência deste em relação ao poder executivo?

2)      Um procurador que, por força do direito nacional, pode estar subordinado, direta ou indiretamente, a uma ordem ou uma instrução do Ministério da Justiça, é suficientemente independente em relação ao poder executivo para poder ser considerado uma autoridade judiciária na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro [2002/584]?

3)      Em caso de resposta afirmativa à questão anterior, deve o procurador ser independente do poder executivo igualmente do ponto de vista funcional e quais os critérios para determinar essa independência funcional?

4)      Caso possa ser considerado independente do poder executivo, um procurador cujas funções se limitem a instaurar e a conduzir inquéritos, a assegurar que tais inquéritos sejam conduzidos objetiva e legalmente, a promover atos de acusação, a executar decisões judiciais e a instaurar procedimentos criminais, e que não emite mandados de detenção nacionais nem pode exercer funções judiciais, é uma «autoridade judiciária» na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro [2002/584]?

5)      O Ministério Público de Lübeck é uma autoridade judiciária na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro [2002/584]?»

B.      Processo C82/19 PPU

15.      Em 15 de março de 2018, o Ministério Público de Zwickau (Alemanha) emitiu um MDE contra PI para efeitos de procedimento penal pela alegada prática de um total de sete crimes de roubo, cuja pena máxima pode ascender a dez anos.

16.      Em 12 de setembro de 2018, a High Court (Tribunal Superior) ordenou a execução do MDE e, em consequência, PI foi detido em 15 de outubro de 2018, encontrando‑se privado de liberdade desde então.

17.      PI opõe‑se à sua entrega alegando que o Ministério Público de Zwickau não é uma «autoridade judiciária» na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584.

18.      Neste contexto, a High Court (Tribunal Superior) submeteu ao Tribunal de Justiça cinco perguntas idênticas às colocadas pela Supreme Court (Supremo Tribunal) no processo C‑508/18, com a única diferença de a pergunta n.o 5 se referir ao Ministério Público de Zwickau.

III. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

19.      Os despachos de reenvio deram entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 6 de agosto de 2018 e em 5 de fevereiro de 2019, respetivamente. Foi decidido serem submetidas a julgamento prioritário (C‑508/18) e à tramitação prejudicial urgente (C‑82/19 PPU).

20.      Apresentaram observações escritas OG, PI, o Minister for Justice and Equality (Ministério da Justiça e Igualdade, Irlanda), bem como os Governos alemão, austríaco, francês, húngaro, lituano, neerlandês e polaco, além da Comissão. Na audiência pública, celebrada em 26 de março de 2019 juntamente com a do processo C‑509/18, Minister for Justice and Equality contra PF, estiveram presentes, além de quem apresentou observações escritas — à exceção dos Governos húngaro e polaco —, os Governos dinamarquês e italiano.

IV.    Apreciação

A.      Considerações preliminares

21.      As quatro primeiras questões, suscitadas em termos idênticos pela Supreme Court (Supremo Tribunal) e pela High Court (Tribunal Superior), estão resumidas na quinta questão formulada em ambos os processos, ou seja: pode o Ministério Público de Lübeck e de Zwickau ser classificado como «autoridade judiciária na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro [2002/584]»?

22.      Segundo ambos os órgãos jurisdicionais de reenvio, o critério decisivo para responder a essa questão é a independência do Ministério Público face ao poder executivo. Pretendem saber, por isso, quais os fatores que podem ter relevância na apreciação dessa independência, referindo os seguintes:

–      a sua posição no direito nacional (primeira questão);

–      a sujeição a eventuais instruções do Ministério da Justiça (segunda questão); e

–      o grau de «independência funcional» do Ministério da Justiça (terceira questão).

23.      Na hipótese de ser independente do poder executivo, os órgãos jurisdicionais de reenvio pretendem saber, além disso, se o Ministério Público alemão, como órgão que investiga, exerce a ação penal e executa decisões judiciais, mas não emite mandados de detenção nacionais nem exerce funções jurisdicionais, é uma «autoridade judiciária» na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 (quarta pergunta).

24.      A independência é, desde logo, o elemento institucional característico da autoridade judiciária num Estado de direito (6). Trata‑se de uma qualidade atribuída (e exigida) aos órgãos jurisdicionais para que possam desempenhar adequadamente a função específica que o Estado lhes confia, de modo exclusivo, em conformidade com o princípio da separação de poderes. É uma qualidade instrumental, que adjetiva a função correspondente, mas essencial para a existência de um verdadeiro Estado de direito.

25.      Para classificar o Ministério Público como autoridade judiciária, na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, há que verificar, em primeiro lugar, se exerce uma função materialmente equiparável à atribuída ao poder judicial. Se assim for, é necessário apreciar se tem condições de a levar a cabo com independência (7).

26.      Nas decisões do Tribunal de Justiça sobre este assunto podem vislumbrar‑se algumas imprecisões (por vezes, meramente terminológicas) que levaram, pelo menos em parte, às dúvidas dos órgãos jurisdicionais de reenvio. Creio que essas dúvidas podem ser resolvidas se, como sugiro, for considerado, sobretudo, o conteúdo típico da função jurisdicional.

27.      Ao analisar o conceito de «autoridade judiciária» na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, o Tribunal de Justiça afirmou que «exige, em toda a União, uma interpretação autónoma e uniforme» (8), e «o [seu] sentido e o [seu] alcance […] não podem ser deixados à apreciação de cada Estado‑Membro» (9).

28.      Para definir esse conceito autónomo, o Tribunal de Justiça salientou que a expressão «autoridade judiciária» incluída nesse preceito «não se [limita] a designar apenas os juízes ou órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro, mas permitem incluir, de forma mais abrangente, as autoridades chamadas a participar na administração da justiça na ordem jurídica em questão» (10).

29.      No entanto, a possibilidade de ampliar o teor desse conceito não chega ao ponto de nele incluir os serviços de polícia (11) ou um órgão do poder executivo (12).

30.      Na sequência da exposição das razões que não permitem classificar a polícia ou um órgão do poder executivo como «autoridade judiciária», o Tribunal de Justiça salientou duas qualidades para que uma instituição possa ser considerada uma «autoridade judiciária» (13):

–      Em primeiro lugar, devem ser autoridades que «participam na administração da justiça», o que equivale a excluir, em conformidade com o princípio da separação de poderes, as já referidas autoridades governativas ou policiais (14).

–      Em segundo lugar, devem estar em situação de assegurar que «as decisões relativas ao [MDE] beneficiam de todas as garantias específicas a esse tipo de decisões, designadamente as que derivam dos direitos fundamentais», garantindo‑se que «todo o processo de entrega entre Estados‑Membros […] seja levado a cabo sob fiscalização judicial» (15).

31.      Este último ponto é fundamental para «dar à autoridade judiciária de execução a garantia de que a emissão desse [MDE] beneficiou [de] fiscalização judicial» (16). Salvaguarda‑se assim a premissa na qual se baseia o princípio do reconhecimento mútuo, consagrado no artigo 1.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2002/584 (17).

32.      Na minha opinião, a primeira dessas exigências, ou seja, a de participar na administração da justiça, é suficiente para não classificar como «autoridades judiciárias» instituições cuja afetação ao poder executivo é evidente (mais uma vez, a polícia ou um departamento do próprio governo). Mas, independentemente da sua eficácia para delimitar o perímetro externo do conceito (para o definir, por conseguinte, em termos negativos), a sua utilidade na elaboração de um conceito positivo (para definir o que nele se inclui) está ligada à segunda exigência: a de garantir adequadamente os direitos fundamentais em causa no procedimento de emissão e execução de um MDE.

B.      Participação na administração da justiça

33.      Na sua aceção mais específica, «administrar a justiça» equivale a «exercer a competência jurisdicional», isto é, a julgar (ius dicere), o que num Estado de direito está reservado, de modo exclusivo, aos órgãos jurisdicionais que integram o poder judicial do Estado (18).

34.      No entanto, no domínio criminal, o exercício da competência jurisdicional a cargo dos juízes e dos tribunais pode depender da intervenção de outros sujeitos e instituições. Assim, a título de exemplo, o particular que apresenta uma queixa ou a autoridade policial que efetua a sua investigação (ou, a fortiori, que executa um mandado judicial para comparência ou qualquer outra intimação judicial) não participam na administração da justiça, mas colaboram no seu exercício.

35.      A função do Ministério Público é qualitativamente diferente da daqueles sujeitos, uma vez que exerce prerrogativas de autoridade pública e, nessa medida, está autorizado por lei a influenciar, dentro de determinados limites, a situação jurídica dos cidadãos, quer afetando os seus direitos e liberdades, quer, pelo contrário, contribuindo para o gozo desses direitos.

36.      Como defendia nas minhas Conclusões no processo Özçelik (19), uma característica distintiva do Ministério Público é «a sua competência — quando assim o determinem em cada Estado‑Membro as suas normas constitucionais ou legais — para participar na administração da justiça, enquanto instrumento do Estado que leva a cabo processos penais, e em cujo âmbito pode inclusivamente adotar, pelo menos provisoriamente e durante períodos de tempo limitados, mandados de custódia e detenção ou decisões equivalentes, antes que os detidos sejam colocados à disposição do juiz chamado a decidir relativamente à sua liberdade ou à sua prisão».

37.      As formas dessa participação do Ministério Público na administração da justiça são variadas, e convém não transpor mecânica ou automaticamente soluções pensadas para alguns domínios para outros de natureza díspar.

38.      Assim, a título de exemplo, o artigo 2.o da Diretiva 2014/41/UE (20) refere os magistrados do Ministério Público entre as autoridades que podem emitir uma decisão europeia de investigação (21). A Diretiva (UE) 2016/800 (22), no seu considerando 47, classifica o Ministério Público como «autoridade judiciária», mas apenas para efeitos do pedido ao órgão jurisdicional efetivo da revisão periódica da detenção dos menores (23).

39.      Estas referências têm de ser cuidadosamente analisadas. Como defendi nas Conclusões do processo Özçelik (24), «não se pode equiparar, sem mais, a atuação do Ministério Público num âmbito (o relativo à liberdade, afetada pela detenção das pessoas) ao outro (a obtenção de elementos de prova). O que pretendo dizer é que a sua admissão como autoridade judiciária na Diretiva 2014/41, para as decisões de investigação, não implica necessariamente que essa admissão se deva aplicar também à Decisão‑Quadro 2002/584, para os MDE».

40.      Trata‑se, explicava nesse contexto, de um «dado normativo [que] representa um forte argumento a favor da tese que defende uma interpretação ampla, que autorize a considerar como tal o Ministério Público, do conceito de “autoridade judiciária” nas formas de cooperação penal (incluindo a do MDE) a que faz referência o artigo 82.o TFUE.» (25)

41.      O Ministério Público pode assim intervir de forma legítima num processo judicial em matéria penal, quer colocando as pessoas à disposição do juiz, nas condições a que aludirei em seguida, quer fornecendo a este último os elementos de prova que podem servir de base a uma condenação. No primeiro caso, utiliza as suas prerrogativas de autoridade pública para adotar, apenas de forma provisória e com caráter limitado no tempo, medidas restritivas de liberdade.

42.      Tudo isto respeitando o princípio da legalidade e (26), especialmente, os direitos individuais, que devem ser devidamente ponderados quando são tomadas medidas que restringem o seu exercício.

43.      O que importa aqui, especificamente, é a questão de saber se a natureza judiciária do Ministério Público, indiscutível no domínio da obtenção das provas (ou noutros domínios da cooperação penal), também o é no da emissão de um MDE, isto é, no contexto do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584.

44.      Na minha opinião, a resposta deve ser negativa.

45.      É certo que, no seu Acórdão de 10 de novembro de 2016, Özçelik (27), o Tribunal de Justiça declarou que um MDN emitido pelo Ministério Público constitui uma «decisão judiciária» na aceção do artigo 8.o, n.o 1, alínea c), da Decisão‑Quadro 2002/584, uma vez que se trata de uma decisão adotada por quem pode ser considerado uma «autoridade judiciária» (28).

46.      Também é verdade que essa afirmação se baseou na necessidade de garantir a coerência entre aquele preceito e o artigo 6.o, n.o 1, da própria Decisão‑Quadro 2002/584. Quanto a este último, recordava o Tribunal de Justiça referindo o Acórdão Poltorak, «o conceito de “autoridade judiciária” deve ser entendido no sentido de que designa as autoridades que participam na administração da justiça penal dos Estados‑Membros, com exclusão dos serviços de polícia.» (29).

47.      Ora, no Acórdão Poltorak, o que efetivamente se fez foi a delimitação negativa do conceito de «autoridade judiciária»(30), na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, para o aplicar à interpretação do artigo 8.o, n.o 1, alínea c), da mesma decisão‑quadro.

48.      Pelo contrário, creio que para delimitar positivamente o conteúdo daquele conceito, o Acórdão Özçelik não podia contar com o auxílio do Acórdão Poltorak. Nesse ponto, o Acórdão Özçelik chegou ele próprio à conclusão de que, uma vez que «o Ministério Público constitui uma autoridade chamada a participar na administração da justiça penal de um Estado‑Membro […], a decisão dessa autoridade deve ser considerada uma “decisão judiciária”, na aceção do artigo 8.o, n.o 1, alínea c), da [Decisão‑Quadro 2002/584]» (31).

49.      No entanto, na minha opinião, exceto o caso da exclusão dos serviços de polícia (32), o que é válido para o artigo 8.o, n.o 1, alínea c), não se aplica necessariamente ao artigo 6.o, n.o 1, ambos da mesma decisão‑quadro (33).

50.      Manifestando o meu acordo com o facto de que o Ministério Público, enquanto interveniente na administração da justiça, pode ser qualificado de autoridade que emite uma «decisão judiciária» com as características do MDN, na aceção do artigo 8.o, n.o 1, alínea c), da Decisão‑Quadro 2002/584, não tem por que o ser para efeitos do artigo 6.o, n.o 1, da referida decisão‑quadro. Pelo contrário, não o deve ser.

51.      Por outras palavras, assim como considero, como defendi nas Conclusões Özçelik, que o Ministério Público pode emitir um MDN, também considero que não pode adotar um MDE. Se, à primeira vista, esta posição poderia parecer divergente da que então defendi (34), tentarei explicar por que não é assim.

C.      Protagonismo judicial no processo da DecisãoQuadro 2002/584

52.      No processo Özçelik (C‑453/16 PPU) tratava‑se de saber se uma decisão do Ministério Público húngaro, que homologava um mandado de detenção emitido pela polícia, podia ser considerada uma «decisão judiciária» na aceção do artigo 8.o, n.o 1, alínea c), da Decisão‑Quadro 2002/584.

53.      A resposta afirmativa a essa questão pelo Tribunal de Justiça justificou‑se pelo facto de, nas circunstâncias do caso, «a homologação do mandado de detenção [policial] pelo Ministério Público concede à autoridade judiciária de execução a garantia de que o [MDE] se baseia numa decisão que foi sujeita a uma fiscalização judicial» (35).

54.      Na minha opinião, a «fiscalização judicial» que o Ministério Público pode levar a cabo sobre um mandado de detenção emitido pela polícia não vai além de determinar se se verificam as condições definidas pela lei para se deter alguém sem um mandado judicial expresso. Regra geral, em todos os Estados‑Membros a detenção ou a prisão ordenada pelo Ministério Público só é exequível durante um período limitado de tempo, antes de o detido ser libertado ou colocado à disposição do juiz (36). Por outras palavras, o Ministério Público não poderia, na minha opinião, homologar uma detenção policial cujas condições e efeitos fosse além das daquelas detenções que autonomamente pode ordenar.

55.      Na sua função de garante da legalidade e, por extensão, dos direitos individuais, o Ministério Público está assim em condições de assegurar que a pessoa procurada para efeitos de procedimento penal «já [pôde] beneficiar, numa primeira fase do processo, das garantias processuais e dos direitos fundamentais cuja proteção deve ser garantida pela autoridade judiciária do Estado‑Membro de emissão, segundo o direito nacional aplicável, designadamente com vista à adoção de um mandado de detenção nacional» (37).

56.      No entanto, a essa primeira ou inicial garantia deve acrescentar‑se a segunda, que é a da emissão do MDE. Nos termos do Acórdão Bob‑Dogi, «à proteção judiciária nacional prevista no primeiro nível, no momento da adoção de uma decisão judiciária nacional, como um [MDN], acresce a que deve ser garantida no segundo nível, no momento da emissão do [MDE], que pode ter lugar, se for caso disso, num curto prazo após a adoção da referida decisão judiciária nacional» (38).

57.      A proteção a garantir nesse segundo nível — o da emissão do MDE — deve ponderar, todavia, um fator chave que não se verifica no primeiro nível do processo: a eventualidade de uma detenção muito mais longa no Estado‑Membro de execução. É uma circunstância relevante e, na minha opinião, suficiente para reservar a emissão do MDE aos órgãos jurisdicionais, com exclusão do Ministério Público, como argumento em seguida.

58.      De acordo com a Decisão‑Quadro 2002/584, a pessoa contra a qual é emitido um MDE pode estar detida no Estado‑Membro de execução por um período de tempo que, em determinadas circunstâncias, pode ir até até 120 dias (39).

59.      Trata‑se, por conseguinte, de um prazo que excede manifestamente aquele que, regra geral, resulta das detenções ordenadas pelo Ministério Público, às quais se segue sempre decisão tendencialmente imediata de um órgão jurisdicional.

60.      Não me parece, repito, uma questão menor. O Minister for Justice and Equality (Ministério da Justiça e Igualdade) alegou (40) que, sem pretender minimizar a importância da independência de qualquer órgão que emita um MDE, as suas exigências deviam ser menos estritas neste caso do que se se tratasse de uma decisão relativa à culpabilidade ou inocência do visado.

61.      Não partilho desta abordagem. Entendo que a possibilidade de uma detenção tão longa como a que pode provocar a execução de um MDE é suficiente para exigir do seu responsável uma independência tão rigorosa como a que só os órgãos jurisdicionais stricto sensu garantem.

62.      No caso de um MDN, a detenção inicialmente ordenada pelo Ministério Público deve ser fiscalizada e revista por um juiz ou por um tribunal num curto período de tempo. Além disso, estes últimos ponderam direta e imediatamente os factos e as circunstâncias justificativas da decisão de privar de liberdade a pessoa detida que lhes é presente.

63.      Pelo contrário, no caso de um MDE, a autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução deve ter em conta principalmente, no que respeita à situação pessoal do arguido, o objetivo de salvaguardar a entrega. É certo que a decisão sobre a libertação provisória deve ser tomada de acordo com o direito interno do Estado‑Membro de execução (41), mas, quanto à natureza das razões que fundamentam o MDN, a autoridade judiciária de execução mais não pode fazer do que confiar no critério de quem, após assumir e fazer seu o MDN, optou por emitir um MDE (42).

64.      Para que o MDE ofereça à autoridade judiciária de execução as garantias aplicáveis, é imprescindível que o emissor possa fazer prova da perfeita regularidade do MDN em que aquele se baseia, designadamente, que tenha sido emitido com o devido respeito das garantias processuais e dos direitos fundamentais. E só os titulares do poder jurisdicional o podem fazer.

65.      É certo que, no primeiro nível de proteção — o da emissão do MDN —, o Ministério Público pode assegurar garantias a esse respeito, mas apenas com caráter provisório e enquanto a sua decisão não for confirmada por um órgão jurisdicional, a única autoridade capaz de assegurar o direito à ação do artigo 47.o da Carta.

66.      O direito à ação é, no essencial, a proteção de quem exerce a competência jurisdicional. Isto é, daquela autoridade que, aplicando de forma irrevogável o direito ao caso concreto, garante que o processo normativo e decisório que leva à aplicação definitiva das medidas legislativas da ordem jurídica (ius dicere) decorreu nos termos por esta consagrados.

67.      No Estado de direito, esta função é exclusiva dos órgãos jurisdicionais e não de outras autoridades, inclusivamente das que participam na administração da justiça, como é o Ministério Público. Estas últimas não estão, como está o juiz, exclusivamente subordinadas à lei, e o seu grau de independência não é o dos juízes (43), além de que estão sempre sujeitas à última palavra do poder jurisdicional (44).

68.      Se o MDN for executado no próprio Estado‑Membro, a atuação do Ministério Público pode ser revista ex post pelo órgão jurisdicional perante o qual compareça a pessoa detida, se não tiver sido libertada antes. Se o MDN não puder ser executado, pelo facto de a pessoa procurada se encontrar noutro Estado‑Membro, e for necessário um MDE, a fiscalização judicial da legalidade do MDN será efetuada no momento de decidir que é necessário emitir um MDE. Num e noutro caso, a garantia jurisdicional consagrada pelo artigo 47.o da Carta terá sido plenamente assegurada.

69.      Pelo contrário, se o Ministério Público pudesse emitir um MDE, o segundo nível de proteção do processo da Decisão‑Quadro 2002/584 teria lugar nos termos perentórios e provisórios característicos das garantias asseguradas pelo Ministério Público.

70.      Além disso, tornar‑se‑ia possível que uma decisão que, como o MDE, pode implicar uma significativa privação de liberdade do arguido no Estado‑Membro de execução, fosse adotada por quem, no Estado emissor, não pode ordenar essa mesma detenção a não ser em prazos muito reduzidos e sem prejuízo de uma fiscalização judiciária imediata.

71.      Ao anterior acresce que só os órgãos jurisdicionais têm condições para ponderar devidamente a proporcionalidade na emissão de um MDE (45).

72.      É certo que, e conforme se debateu na audiência, haveria a considerar a eventualidade de a emissão de um MDE pelo Ministério Público ser objeto de impugnação num tribunal do próprio Estado de reenvio. No entanto, esta eventualidade teria consequências que a tornam, na minha opinião, desaconselhável.

73.      Em primeiro lugar, pelas dificuldades que implicaria para o arguido no que respeita ao exercício do direito de defesa. Por um lado, porque, por estar ausente, o mais provável é que só tenha conhecimento da emissão de um MDE quando for detido no Estado‑Membro de execução. Por outro lado, porque terá de exercer o seu direito de defesa sem a garantia do imediatismo.

74.      Em segundo lugar, porque essa possibilidade de revisão significaria uma dilação adicional do processo de entrega, com a consequente afetação da liberdade do arguido, no caso de o MDE ter sido deferido e se ter emitido, para a sua execução, um mandado de detenção preventiva.

75.      Todas estas dificuldades se podem evitar, com a máxima economia, se, em vez de se reservar aos tribunais do Estado de emissão apenas a faculdade de rever um MDE emitido pelo Ministério Público, lhes for atribuída diretamente a competência para a emitir, como corresponde ao objetivo que inspira a Decisão‑Quadro 2002/584.

76.      Os órgãos jurisdicionais de reenvio partem da premissa de que o Ministério Público alemão não pode emitir um MDN (46). Tal foi expressamente confirmado pelo Governo alemão durante a audiência, reiterando que se trata de uma competência exclusiva dos tribunais. Assim, se, na Alemanha, o Ministério Público não pode emitir um MDN nem exercer funções jurisdicionais, não vejo como poderia adotar uma decisão cujas consequências podem implicar, no Estado‑Membro de execução, uma considerável privação de liberdade do arguido, como acontece com o MDE. Seria paradoxal que não pudesse fazer o menos (emitir um MDN por um curto período de tempo) e pudesse fazer o mais (emitir um MDE que pode determinar um período de detenção muito mais longo).

77.      Se, pelo contrário, e como acontece noutros Estados‑Membros, o Ministério Público alemão estivesse autorizado a ordenar a detenção de uma pessoa, ainda que em circunstâncias excecionais e com determinadas limitações, prescindir destes condicionalismos para emitir um MDE significaria que o Ministério Público poderia ultrapassar no Estado‑Membro de execução o que lhe é permitido no de emissão.

78.      Finalmente, por outro lado, como tive oportunidade de expor nas Conclusões do processo Özçelik (47) e irei recordar nas do processo C‑509/18 (48), os trabalhos preparatórios do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 parecem indicar que a vontade do legislador se inclinava para a exclusão do Ministério Público como autoridade judiciária na aceção dessa norma. Embora reconheça a consistência dos argumentos dos que defendem o contrário (o desaparecimento da referência ao Ministério Público, que constava da primeira versão do artigo, implicaria uma ampliação do conceito de «autoridade judiciária»), creio ser mais razoável interpretá‑la como uma restrição desses termos.

D.      Garantia da independência

79.      O Governo alemão alegou que, para o Tribunal de Justiça, o critério determinante não é tanto o da total independência do Ministério Público, mas o da sua afetação ao poder judicial (49). Na sua opinião, a independência do Ministério Público não deve confundir‑se com a independência da justiça, já que, diversamente do que acontece com as atribuições do juiz, as do Ministério Público não exigem uma separação completa da função do poder executivo, no sentido de estarem proibidas a fiscalização ou as instruções (50).

80.      Não partilho desta abordagem.

81.      Do mesmo modo que, como defendi nas Conclusões do processo Poltorak (C‑452/16 PPU, EU:C:2016:782, n.o 34), «existe uma estreita ligação entre a natureza de uma decisão judiciária e a qualidade de autoridade judiciária de quem a profere», há também uma ligação estreita entre a independência de uma autoridade e a qualidade das suas decisões. Se se preferir, a qualidade judiciária de uma autoridade depende da natureza e do alcance da sua independência.

82.      Entendo que o grau exigível de independência depende da atividade para a qual é requerida. A independência exigida da autoridade que emite um MDN pode não ser tão rigorosa como a requerida a um órgão jurisdicional, precisamente porque esse MDN está sempre sujeito a uma última e imediata revisão jurisdicional.

83.      A emissão de um MDE implica o desencadear de um processo que, como reitero, pode redundar numa intervenção muito agressiva quanto à liberdade da pessoa visada. A fiscalização judicial que deve ser efetuada no Estado‑Membro de execução do MDE não pode alcançar o grau de imediatismo, de exaustividade e de intensidade que é apanágio do juiz de emissão relativamente ao MDN que está na origem daquele.

84.      Por conseguinte, quem emite um MDE deve ter a máxima independência. Tanta como só é possível a um órgão jurisdicional em sentido estrito (51). E é assim porque a autoridade judiciária de execução só pode assumir um MDE que ofereça todas as garantias de uma decisão judicial. Isto é, de uma decisão proferida por um órgão jurisdicional que, nessa qualidade, beneficia da independência característica, e exclusiva, do poder judicial.

85.      O Tribunal de Justiça foi especialmente rigoroso ao defender, no Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), que «não apenas […] a decisão relativa à execução do mandado de detenção europeu mas também a decisão relativa à emissão desse mandado sejam tomadas por uma autoridade judiciária que preencha as exigências inerentes a uma proteção jurisdicional efetiva — incluindo a garantia de independência» (52).

86.      Esse mesmo acórdão contém afirmações contundentes sobre a independência das autoridades que intervêm na emissão e receção dos MDE:

–      «O elevado grau de confiança entre os Estados‑Membros, no qual se baseia o mecanismo do [MDE], funda‑se […] na premissa segundo a qual os órgãos jurisdicionais penais dos restantes Estados‑Membros […] satisfazem as exigências de uma proteção jurisdicional efetiva, entre as quais figuram, designadamente, a independência e a imparcialidade dos referidos órgãos jurisdicionais» (53).

–      «[P]ara garantir essa tutela, é fundamental que seja preservada a independência [das ditas instâncias], como confirma o artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, que refere o acesso a um tribunal “independente” de entre as exigências associadas ao direito fundamental a uma ação (Acórdão de 27 de fevereiro de 2018, Associação Sindical dos Juízes Portugueses, C‑64/16, EU:C:2018:117, n.o 41)» (54).

87.      Ora, essa independência da autoridade nacional que emite o MDE pressupõe que «a instância em causa exerça as suas funções com total autonomia, sem estar submetida a nenhum vínculo hierárquico ou de subordinação em relação a quem quer que seja e sem receber ordens ou instruções de qualquer origem, e esteja, assim, protegida contra intervenções ou pressões externas suscetíveis de afetar a independência de julgamento dos seus membros e influenciar as suas decisões» (55).

88.      Estas afirmações, tão categóricas como pertinentes perante situações em que a independência judicial poderia ser posta em risco, não podem ser desprezadas quando se trata de decisões judiciais que afetam a liberdade das pessoas. Seria paradoxal que, após as recentes decisões do Tribunal de Justiça proferidas a respeito da independência judicial, se reduzisse o nível de exigência, aceitando como autoridade judiciária independente quem pode estar obrigado a cumprir instruções de outros poderes.

89.      Para a Comissão (56), a exigência de que quem emite um MDE não esteja sujeito a indicações ou instruções não resulta tanto da necessidade de que seja uma autoridade dotada de independência judicial (que, na sua opinião, não faz parte do conceito de «autoridade judiciária» na Decisão‑Quadro 2002/584), mas da vontade do legislador da Decisão‑Quadro 2002/584 de despolitizar o procedimento do MDE no que respeita à extradição clássica.

90.      Com efeito, a Decisão‑Quadro 2002/584 tem por objetivo substituir o sistema de extradição tradicional, caracterizado por uma significativa componente política de oportunidade, por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias, baseado no princípio do reconhecimento mútuo e que se baseia num elevado grau de confiança entre os Estados‑Membros (57).

91.      O binómio autoridade judiciária/independência só pode dissociar‑se naquelas fases do procedimento de emissão de um MDE nas quais são suficientes as garantias dadas por uma autoridade que, não sendo um órgão jurisdicional, pode classificar‑se como «autoridade judiciária» pelas razões expostas nos n.os 36 a 50 destas conclusões. Nesse caso, serão suficientes a imparcialidade e a objetividade características do Ministério Público.

92.      No entanto, quando se trata de adotar medidas que podem ser extremamente gravosas para a liberdade das pessoas, o procedimento para a sua adoção só pode ser de natureza jurisdicional em sentido próprio e, em consequência, estar reservado ao poder judicial, isto é, a um poder independente sensu stricto.

93.      Por outras palavras, «autoridade judiciária» equivale a «poder judicial» (id est, poder independente) quando do exercício do poder público pode advir um prejuízo tão significativo para a liberdade individual como o que resulta do procedimento de execução de um MDE, em cuja origem está necessariamente a autoridade judiciária que o emitiu. Se aquele conceito pode ser ampliado de modo a abranger outras instituições, como o Ministério Público, sê‑lo‑á quando a sua atuação esteja sujeita a uma fiscalização jurisdicional tendencialmente imediata, como sucede com os MDN (mas não quando se adota um MDE).

94.      A natureza judicial do processo da Decisão‑Quadro 2002/584, por oposição à natureza política da extradição clássica, implica precisamente a sua atribuição exclusiva, por princípio, ao poder judicial, o que implica confiá‑lo, por definição, a um poder (radicalmente) independente (58). Sem prejuízo de que, sempre sujeitas à fiscalização jurisdicional aplicável, determinadas fases do processo possam ser confiadas a outras instituições. Seria o caso, por exemplo, da emissão do MDN que deve preceder qualquer MDE.

95.      Ora, o Governo alemão admite explicitamente que, por mais que tal seja excecional, na prática, o Ministério Público pode receber indicações e instruções do poder executivo (59). Essa mera possibilidade é suficiente para afastar a ideia de que beneficia da independência judicial, conceptualmente incompatível com qualquer vislumbre de indicações ou instruções, por teóricas ou excecionais que sejam, e quer adotem ou não procedimentos formais para a sua transmissão.

96.      Como já se afirmou, a independência é incompatível com qualquer «vínculo hierárquico ou de subordinação a em relação a quem quer que seja». Os titulares do poder judicial também são independentes face às instâncias judiciais superiores que, embora possam rever e anular a suas decisões a posteriori, não podem, no entanto, impor‑lhes como decidir.

97.      Pelo contrário, a estrutura hierárquica do Ministério Público na Alemanha revela a existência dessa subordinação: nos termos do § 147 da GVG, o Ministério Federal da Justiça ou os seus equivalentes nos Länder fiscalizam e dirigem a atividade do Ministério Público, nos seus respetivos níveis territoriais. Os funcionários hierarquicamente superiores em cada Procuradoria junto dos Tribunais superiores ou regionais, por seu lado, fiscalizam e dirigem a atividade dos funcionários dos níveis inferiores (60).

98.      Como se verificou na audiência, as diferenças entre os Länder a propósito da política institucional pela qual se rege o Ministério Público são muito significativas. A par de Länder nos quais as instruções ao Ministério Público só podem ser efetuadas por escrito e públicas, existem outros em que se admite que sejam orais. Além disso, não faltam Länder que assumiram o propósito de não fazer uso, em caso algum, dessa faculdade.

99.      Esta diversidade acresce à que se verifica entre os Estados‑Membros quanto à autonomia institucional e funcional do Ministério Público. Embora me pronuncie sobre este ponto nas minhas Conclusões no processo C‑509/18 (61), a disparidade de regimes obrigaria a autoridade judiciária de execução a determinar, casuisticamente, em função do Estado‑Membro de origem do MDE, qual o grau de independência do Ministério Público emissor. Em particular, haveria que certificar‑se se é possível que o Ministério da Justiça lhe dê instruções e se essa possibilidade se verificou no concreto MDE que foi submetido à sua apreciação. A consequência inevitável seria a dilação sistemática do procedimento de execução do MDE (com a eventual repercussão no tempo de privação de liberdade do detido) e o aditamento de uma diligência que contende com a simplificação que o legislador quis para este mecanismo de cooperação judiciária.

V.      Conclusão

100. Perante o exposto, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda) e à High Court (Tribunal Superior, Irlanda) nos seguintes termos:

O artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, conforme alterada pela Decisão‑quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de “autoridade judiciária de emissão” não abrange a instituição do Ministério Público.


1      Língua original: espanhol.


2      C‑453/16 PPU, EU:C:2016:783, n.o 45.


3      Decisão‑Quadro do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), conforme alterada pela Decisão‑quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24) (a seguir «Decisão‑Quadro 2002/584»).


4      Lei da Organização Judiciária (a seguir «GVG»).


5      Acórdão de 13 de maio de 2012, [2012] UKSC 22.


6      Citando apenas um dos muitos clássicos, D. Simon: Die Unabhängigkeit des Richters, WBG, Darmstadt, 1975.


7      Ser independente não equivale simplesmente a atuar com objetividade ou de forma não arbitrária. Outros poderes públicos, como a Administração, também devem respeitar os princípios da objetividade e imparcialidade, sem que lhes seja atribuída como característica a independência. Esta última é a garantia institucional própria que permite ao poder judicial atuar com subordinação exclusiva à lei. A independência judicial não é equiparável ao estatuto de outras instituições que devem conciliar a sua atuação no âmbito da lei com a sujeição à direção política do Governo legítimo, o que é consubstancial ao funcionamento do Estado democrático.


8      Acórdão de 10 de novembro de 2016, Poltorak (C‑452/16 PPU, EU:C:2016:858, a seguir «Acórdão Poltorak», n.o 32).


9      Acórdão de 10 de novembro de 2016, Poltorak (C‑452/16 PPU, EU:C:2016:858, n.o 31). Tudo isso pelos motivos referidos nos n.os 24 a 30 desse acórdão.


10      Acórdão de 10 de novembro de 2016, Poltorak (C‑452/16 PPU, EU:C:2016:858, n.o 33), e de 10 de novembro de 2016, Kovalkovas (C‑477/16 PPU, EU:C:2016:861, n.o 34).


11      Acórdão de 10 de novembro de 2016, Poltorak (C‑452/16 PPU, EU:C:2016:858, n.o 34).


12      Acórdão de 10 de novembro de 2016, Kovalkovas (C‑477/16 PPU, EU:C:2016:861, n.o 35).


13      O Tribunal de Justiça recorre, para este efeito, ao contexto em que se insere o artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 e aos objetivos desta. São as duas diretrizes de interpretação que, juntamente com a interpretação literal, se devem ter em conta ao interpretar o direito da União. V., nesse sentido, de forma genérica, o Acórdão de 17 de abril de 2018, Egenberger (C‑414/16, EU:C:2018:257, n.o 45).


14      Acórdão de 10 de novembro de 2016, Poltorak (C‑452/16 PPU, EU:C:2016:858, n.o 35), e de 10 de novembro de 2016, Kovalkovas (C‑477/16 PPU, EU:C:2016:861, n.o 36).


15      Acórdão de 10 de novembro de 2016, Kovalkovas (C‑477/16 PPU, EU:C:2016:861, n.o 37).


16      Acórdão de 10 de novembro de 2016, Poltorak (C‑452/16 PPU, EU:C:2016:858, n.o 45).


17      Acórdão de 10 de novembro de 2016, Kovalkovas (C‑477/16 PPU, EU:C:2016:861, n.o 43).


18      Tal é realçado pela Comissão no n.o 28 das suas observações escritas no processo C‑508/18. Assim também o Governo francês, no n.o 25 das observações apresentadas no mesmo processo, e o Governo húngaro ao salientar, precisamente, o papel do Ministério Público na organização do sistema judiciário (n.o 26 das observações escritas do Governo húngaro).


19      Conclusões do advogado‑geral M. Campos Sánchez‑Bordona no processo Özçelik (C‑453/16 PPU, EU:C:2016:783, n.o 52).


20      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 3 de abril de 2014, relativa à decisão europeia de investigação em matéria penal (JO 2014, L 130, p. 1). A ela se referem os Governos austríaco e polaco nas suas observações no processo C‑508/18 (n.os 35 e 17, respetivamente).


21      O artigo 1.o da Diretiva 2014/41 define a decisão europeia de investigação em matéria penal como «[…] uma decisão judicial emitida ou validada por uma autoridade judiciária de um Estado‑Membro (“Estado de emissão”) para que sejam executadas noutro Estado‑Membro (“Estado de execução”) uma ou várias medidas de investigação específicas, tendo em vista a obtenção de elementos de prova em conformidade com a presente diretiva». Segundo o artigo 2.o, alínea c), i), dessa diretiva, «[p]ara efeitos da presente […], entende‑se por […] autoridade de emissão […] um juiz, tribunal, juiz de instrução ou magistrado do Ministério Público competente no processo em causa […]». O sublinhado é meu.


22      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de maio de 2016, relativa a garantias processuais para os menores suspeitos ou arguidos em processo penal (JO 2016, L 132, p. 1).


23      Nesse considerando prevê‑se que «[a] detenção dos menores deverá estar sujeita a uma revisão periódica por um tribunal, podendo essa revisão também ser feita por um juiz singular. A revisão periódica deverá poder ser efetuada quer oficiosamente pelo tribunal quer a pedido do menor, do advogado do menor ou de uma autoridade judiciária que não seja um tribunal, nomeadamente um magistrado do Ministério Público». O sublinhado é meu.


24      Conclusões do advogado‑geral M. Campos Sánchez‑Bordona no processo Özçelik (C‑453/16 PPU, EU:C:2016:783, n.o 51).


25      Conclusões do advogado geral M. Campos Sánchez Bordona no processo Özçelik (C 453/16 PPU, EU:C:2016:783, n.o 51).


26      V., por exemplo, as observações escritas do Governo húngaro (n.o 26).


27      C‑453/16 PPU, EU:C:2016:860, a seguir «Acórdão Özçelik».


28      O Tribunal de Justiça admitiu que, como referi nas Conclusões no processo Poltorak (C‑452/16 PPU, EU:C:2016:782), n.o 34, «existe uma estreita ligação entre a natureza de uma decisão judiciária e a qualidade de autoridade judiciária de quem a profere».


29      Acórdão de 10 de novembro de 2016, Özçelik (C‑453/16 PPU, EU:C:2016:860, n.o 32).


30      Acórdão de 10 de novembro de 2016, Poltorak (C‑452/16 PPU, EU:C:2016:858, n.o 38).


31      Acórdão de 10 de novembro de 2016, Özçelik (C‑453/16 PPU, EU:C:2016:860, n.o 34).


32      E da de «um órgão do poder executivo de um Estado‑Membro, como um Ministério», como se afirma no Acórdão de 10 de novembro de 2016, Kovalkovas (C‑477/16 PPU, EU:C:2016:861, n.o 35.


33      Assim o entende, todavia, o Governo alemão que, no n.o 76 das suas observações escritas no processo C‑508/18 considera que no Acórdão Özçelik está implícito que o Ministério Público é uma autoridade judiciária no sentido (da totalidade) da Decisão‑Quadro 2002/584. Nesse sentido se manifesta também o Governo neerlandês no n.o 14 das suas observações escritas no processo C‑508/18. Muito crítico dessa possibilidade, M. Rodríguez‑Piñero y Bravo‑Ferrer: «Resolución judicial y autoridad judicial en la orden de detención europea», Diario La Ley, n.o 8876, 2016.


34      Alguns dos intervenientes neste processo de reenvio fizeram uma interpretação das Conclusões que apresentei no processo Özçelik (C‑453/16 PPU, EU:C:2016:783) que não coincide com o seu verdadeiro conteúdo.


35      Acórdão de 10 de novembro de 2016, Özçelik (C‑453/16 PPU, EU:C:2016:860, n.o 36).


36      Estas condições, que referi nas Conclusões do processo Özçelik (C‑453/16 PPU, EU:C:2016:783, n.o 56), seriam substancialmente aplicáveis ao conjunto dos Estados‑Membros.


37      Acórdão de 1 de junho de 2016, Bob‑Dogi (C‑241/15, EU:C:2016:385, n.o 55).


38      Acórdão de 1 de junho de 2016, Bob‑Dogi (C‑241/15, EU:C:2016:385, n.o 56).


39      Caso o visado não consinta na sua entrega, pode continuar detido até sessenta dias após a sua detenção (artigo 17.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2002/584), prazo que pode ser prorrogado por mais trinta dias (artigo 17.o, n.o 4, da Decisão‑Quadro 2002/584). A esse tempo acresce o prazo de 10 dias para efetuar a entrega, a contar da decisão definitiva de execução do MDE (artigo 23.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2002/584), que pode ser ampliado até 20 dias mais (artigo 23.o, n.os 3 e 4, da Decisão‑Quadro 2002/584).


40      N.o 30 das suas observações escritas no processo C‑508/18. Esta mesma posição foi defendida por outras partes na audiência.


41      Artigo 12.o da Decisão‑Quadro 2002/584. Como se afirmou no Acórdão do Tribunal de Justiça de 12 de fevereiro de 2019, TC (C‑492/18 PPU, EU:C:2019:108, n.o 46), «embora o artigo 12.o da Decisão‑Quadro 2002/584 admita a possibilidade, em determinadas condições, de uma colocação em liberdade provisória da pessoa detida com base num [MDE], nem esta disposição nem qualquer outra disposição desta decisão‑quadro prevê que, na sequência da expiração dos prazos previstos no artigo 17.o da mesma decisão‑quadro, a autoridade judiciária de execução seja obrigada a proceder a essa colocação em liberdade ou, a fortiori, a uma colocação em liberdade pura e simples dessa pessoa», caso contrário «poderia limitar[‑se] a eficácia do sistema de entrega instaurado por esta decisão‑quadro e, assim, obstar à realização dos objetivos prosseguidos por esta» (n.o 47).


42      Trata‑se aqui da confiança (considerando 10 da Decisão‑Quadro 2002/584) que está na base do princípio do reconhecimento mútuo, «pedra angular» da cooperação judiciária (considerando 6 da Decisão‑Quadro 2002/584).


43      Não o são no sentido em que só o pode ser o poder judicial. Sobre este ponto pronuncio‑me nas Conclusões do processo C‑509/18 apresentadas nesta mesma data. V., além disso, a este respeito, os n.os 73 segs. das presentes conclusões.


44      No mesmo sentido, I. de Otto, Estudios sobre el Poder Judicial, Obras completas, Universidad de Oviedo e CEPC, Madrid, 2010, e J.L. Requejo Pagés: Jurisdicción e independencia judicial, CEPC, Madrid, 1989.


45      Como nas Conclusões no processo Poltorak (C‑452/16 PPU, EU:C:2016:782, nota 21), remeto para as Conclusões do advogado‑geral Y. Bot sobre a proporcionalidade no âmbito do MDE, no processo Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:2016:140, n.os 137 e segs., em especial, no que respeita à autoridade judiciária de emissão, os n.os 145 a 155).


46      É o que consta no ponto 4.3 do despacho de reenvio da Supreme Court (Supremo Tribunal), com referência aos §§ 150 e 151 da GVG.


47      C‑453/16 PPU (EU:C:2016:783, n.os 39 a 42).


48      Processo Minister for Justice and Equality contra PF (C‑509/18).


49      N.o 95 das suas observações escritas no processo C‑508/18.


50      Ibidem, n.o 97.


51      A independência do poder judicial está, como a própria competência jurisdicional, exclusivamente ao serviço da integridade da ordem jurídica. Por seu lado, a que é característica de outras instituições deve estar em consonância com a garantia de interesses específicos, como podem ser a defesa da legalidade ou a objetividade da ação administrativa. Interesses específicos que só podem ser legitimamente prosseguidos com subordinação à ordem jurídica, mas que não têm como objeto próprio e exclusivo a defesa desta última. Se para esses interesses específicos a ordem jurídica é o meio que permite a sua realização, para o interesse prosseguido pelos tribunais a ordem jurídica é o único fim relevante e, assim, a sua manutenção necessita de uma independência que não admite exceções nem matizes.


52      Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário) (Processo C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.o 56).


53      Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário) (Processo C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.o 58).


54      Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário) (Processo C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.o 53).


55      Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário) (Processo C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.o 63). O sublinhado é meu.


56      N.o 38 das observações escritas da Comissão no processo C‑82/19 PPU.


57      Em termos gerais, Acórdão de 16 de julho de 2015, Laningan (C‑237/15 PPU, EU:C:2015:474, n.o 27).


58      Referia no n.o 73, nota 53, das Conclusões no processo Generalstaatsanwaltschaft (Condições de detenção na Hungria) (C‑220/18 PPU, EU:C:2018:547), que o sistema alemão de entrega parece inspirado «no mesmo procedimento e nos mesmos princípios que regulam a extradição. Como já se salientou num relatório de 31 de março de 2009, apresentado pelo Conselho aos Estados‑Membros após a quarta ronda de avaliações mútuas sobre a aplicação prática dos MDE, as disposições da [legislação alemã] nesta matéria, incluindo após a reforma de 2006, “não ajudam a compreender que a entrega com base num MDE não é só uma variedade ligeiramente diferente da clássica extradição, mas uma nova forma de assistência baseada em princípios completamente diferentes […] Nesta situação, os peritos consideram que há um risco de as autoridades judiciárias [alemãs] recorrerem à legislação e à jurisprudência sobre a extradição […]” (ST 7058 2009 REV 2, de 30 de abril de 2009, Evaluation report on the fourth round of mutual evaluations “The practical application of the European arrest warrant and corresponding surrender procedures between Member States», report on Germany, p. 35)”».


59      Esta possibilidade teórica não resultaria apenas da relação institucional vigente entre o Ministério da Justiça e a Procuradoria, mas também, mais especificamente, do facto de, de acordo com o direito alemão, a Procuradoria atuar, neste âmbito, por delegação daquele Ministério (ou dos seus equivalentes nos Länder). Com efeito, como referia no n.o 73, nota 52, das Conclusões no processo Generalstaatsanwaltschaft (Condições de detenção na Hungria) (C‑220/18 PPU, EU:C:2018:547), «[s]egundo a nota transmitida pelo Governo alemão à Secretaria‑Geral do Conselho, em 7 de agosto de 2006 (ST 12509 2006 INIT, de 7 de setembro de 2006), “as autoridades judiciárias competentes nos termos do artigo 6.o [da Decisão‑Quadro 2002/584] são os Ministérios da Justiça da Federação e dos Estados Federados (Länder)”». O que também é confirmado pelo ponto 2.7 do despacho de reenvio.


60      Na audiência debateu‑se a possibilidade de o Procurador que não respeitasse as instruções ser, inclusivamente, afastado do caso ou ver‑se exposto, no futuro, a consequências negativas para a sua carreira. Sobre este aspeto existe uma certa controvérsia nos meios judiciais alemães.


61      Processo Minister for Justice and Equality contra PF (C‑509/18, n.os 32 a 35).