Language of document : ECLI:EU:C:2020:477

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

18 de junho de 2020 (*)

«Reenvio prejudicial — Proteção dos consumidores — Comercialização à distância de serviços financeiros — Diretiva 2002/65/CE — Artigo 1.o — Âmbito de aplicação — Contratos relativos a serviços financeiros que compreendam um acordo inicial seguido de operações sucessivas — Aplicação da Diretiva 2002/65 apenas ao acordo inicial — Artigo 2.o, alínea a) — Conceito de “contrato relativo a serviços financeiros” — Acordo complementar a um contrato de empréstimo que altera a taxa de juro fixada inicialmente»

No processo C‑639/18,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Landgericht Kiel (Tribunal Regional de Kiel, Alemanha), por Decisão de 7 de setembro de 2018, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 12 de outubro de 2018, no processo

KH

contra

Sparkasse Südholstein,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: J.‑C. Bonichot, presidente de secção, R. Silva de Lapuerta, vice‑presidente do Tribunal de Justiça, M. Safjan (relator), L. Bay Larsen e C. Toader, juízes,

advogado‑geral: E. Sharpston,

secretário: D. Dittert, chefe de unidade,

vistos os autos e após a audiência de 4 de setembro de 2019,

considerando as observações apresentadas:

–        em representação de KH, por C. Rugen, Rechtsanwalt,

–        em representação da Sparkasse Südholstein, por F. van Alen, Rechtsanwalt,

–        em representação do Governo alemão, por J. Möller, M. Hellmann, E. Lankenau e T. Henze, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por B.‑R. Killmann e C. Valero, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 12 de março de 2020,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.o, alínea a), da Diretiva 2002/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de setembro de 2002, relativa à comercialização à distância de serviços financeiros prestados a consumidores e que altera as Diretivas 90/619/CEE do Conselho, 97/7/CE e 98/27/CE (JO 2002, L 271, p. 16).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe KH à Sparkasse Südholstein a respeito do direito de rescisão de KH relativamente a acordos complementares a contratos de empréstimo que alteram as taxas de juro inicialmente fixadas.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Os considerandos 1, 3, 13 e 16 a 18 da Diretiva 2002/65 enunciam:

«(1)      No contexto da realização dos objetivos do mercado interno importa aprovar medidas destinadas a consolidar progressivamente esse mercado, devendo estas, por outro lado, contribuir para a concretização de um elevado nível de defesa dos consumidores, nos termos dos artigos 95.o e 153.[CE].

[…]

(3)      […] A fim de garantir a liberdade de escolha dos consumidores, que constitui um direito fundamental destes, é necessário um elevado nível de proteção dos consumidores para garantir o reforço da confiança do consumidor na venda à distância.

[…]

(13)      A presente diretiva deve assegurar um elevado nível de defesa do consumidor a fim de garantir a livre circulação dos serviços financeiros. Os Estados‑Membros não poderão prever outras disposições para além das estabelecidas pela presente diretiva nos domínios por ela harmonizados, salvo disposição explícita em contrário da presente diretiva.

[…]

(16)      Um mesmo contrato que abranja operações sucessivas ou distintas da mesma natureza, de execução continuada pode ser objeto de qualificações jurídicas diferentes nos diversos Estados‑Membros. No entanto, a presente diretiva deverá ser aplicada de igual modo em todos os Estados‑Membros. Para o efeito, deve considerar‑se que a presente diretiva se aplica à primeira de uma série de operações sucessivas ou da mesma natureza, de execução continuada e que podem ser consideradas como formando um todo, independentemente de esta operação ou esta série de operações ser objeto de um contrato único ou de contratos distintos sucessivos.

(17)      Por “acordo inicial de serviço” entende‑se, por exemplo, a abertura de uma conta bancária, a aquisição de um cartão de crédito, a celebração de um contrato de gestão de carteira; por “operações” entende‑se, por exemplo, o depósito de dinheiro numa conta bancária ou o levantamento de dinheiro de uma conta bancária, pagamentos efetuados por cartão de crédito, transações realizadas no âmbito de um contrato de gestão de carteira. O aditamento de novos elementos a um acordo inicial de serviço, como a possibilidade de usar um instrumento de pagamento eletrónico juntamente com a conta bancária existente, não constitui “uma operação”, mas sim um contrato adicional a que se aplica a presente diretiva. A subscrição de novas unidades de participação do mesmo fundo de investimento coletivo é considerada uma das “operações sucessivas da mesma natureza”.

(18) Ao fazer referência a um sistema de prestação de serviços organizado pelo prestador de serviços financeiros, a presente diretiva pretende excluir do seu âmbito de aplicação as prestações de serviços efetuadas numa base estritamente ocasional e fora de uma estrutura comercial cuja finalidade seja celebrar contratos à distância.»

4        O artigo 1.o desta diretiva, sob a epígrafe «Objeto e âmbito», dispõe:

«1.      A presente diretiva tem por objeto a aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas à comercialização à distância de serviços financeiros prestados a consumidores.

2.      No caso de contratos relativos a serviços financeiros que compreendam um acordo inicial de serviço seguido de operações sucessivas ou de uma série de operações distintas da mesma natureza, de execução continuada, as disposições da presente diretiva são aplicáveis apenas ao acordo inicial de serviço.

Quando não exista um acordo inicial de serviço, mas as operações sucessivas da mesma natureza de execução continuada sejam realizadas entre as mesmas partes contratuais, os artigos 3.o e 4.o são aplicáveis apenas quando se realizar a primeira operação. No entanto, se durante mais de um ano não for realizada qualquer operação da mesma natureza, a operação seguinte será considerada a primeira de uma nova série de operações, sendo, por conseguinte, aplicáveis os artigos 3.o e 4.o»

5        O artigo 2.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Definições», prevê:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

a)      “Contrato à distância”: qualquer contrato relativo a serviços financeiros, celebrado entre um prestador e um consumidor, ao abrigo de um sistema de venda ou prestação de serviços à distância organizado pelo prestador que, para esse contrato, utilize exclusivamente um ou mais meios de comunicação à distância, até ao momento da celebração do contrato, inclusive;

b)      “Serviço financeiro”: qualquer serviço bancário, de crédito, de seguros, de pensão individual, de investimento ou de pagamento;

c)      “Prestador”: qualquer pessoa singular ou coletiva, privada ou pública, que, no âmbito das suas atividades comerciais ou profissionais, seja o prestador contratual de serviços que sejam objeto de contratos à distância;

d)      “Consumidor”: qualquer pessoa singular que, nos contratos à distância, atue de acordo com objetivos que não se integrem no âmbito da sua atividade comercial ou profissional;

[…]»

6        O artigo 3.o da mesma diretiva, sob a epígrafe «Informação do consumidor antes da celebração do contrato à distância», tem a seguinte redação:

«1.      Em tempo útil e antes de ficar vinculado por um contrato à distância ou por uma proposta, o consumidor deve beneficiar das seguintes informações relativas:

[…]

3)      Ao contrato à distância

a)      Existência ou não do direito de rescisão previsto no artigo 6.o e, quando este exista, a respetiva duração e condições de exercício, incluindo informações sobre o montante que pode ser exigido ao consumidor nos termos do n.o 1 do artigo 7.o, bem como as consequências do não exercício desse direito;

[…]

2.      As informações referidas no n.o 1, cujo objetivo comercial deva ser evidenciado de modo inequívoco, devem ser prestadas de maneira clara e compreensível, por qualquer forma adaptada ao meio de comunicação à distância utilizado, nomeadamente, na observância dos princípios de boa‑fé nas transações comerciais e da proteção das pessoas que, como os menores, são consideradas incapazes nos termos da legislação dos Estados‑Membros.

[…]»

7        O artigo 6.o da Diretiva 2002/65, sob a epígrafe «Direito de rescisão», estabelece:

«1.      Os Estados‑Membros devem garantir que o consumidor disponha de um prazo de 14 dias de calendário para rescindir o contrato, sem indicação do motivo nem penalização. […]

O prazo para o exercício do direito de rescisão começa a correr:

–        a contar da data da celebração do contrato à distância, exceto no que se refere a seguros de vida, em que esse prazo começa a correr a partir do momento em que o consumidor for informado da celebração do contrato, ou

–        a contar da data de receção, pelo consumidor, dos termos do contrato e das informações, nos termos dos n.os 1 ou 2 do artigo 5.o, se esta última data for posterior.

[…]

3.      Os Estados‑Membros podem prever que o direito de rescisão não seja aplicável:

a)      A qualquer crédito destinado principalmente à aquisição ou à manutenção de direitos de propriedade sobre terrenos ou prédios existentes ou projetad[o]s, ou para efeitos de renovação ou beneficiação de um prédio; quer

b)      A qualquer crédito garantido por uma hipoteca sobre um bem imóvel ou por um direito relativo a um bem imóvel […]

[…]»

 Direito alemão

8        O § 312b, n.o 1, do Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil), na versão em vigor à data dos factos em causa no processo principal (a seguir «BGB»), tem a seguinte redação:

«Contratos celebrados à distância são contratos relativos à entrega de bens ou a prestações de serviços, incluindo serviços financeiros, celebrados entre uma empresa e um consumidor, com a utilização exclusiva de meios de comunicação à distância, a menos que a celebração do contrato não ocorra ao abrigo de um sistema organizado de venda ou de prestação de serviços à distância. Serviços financeiros, na aceção do primeiro período, são serviços bancários, de concessão de crédito, de seguros, de pensão individual, de investimentos e de pagamentos.»

9        O § 312d do BGB reconhece ao consumidor que celebrou um contrato à distância um direito de rescisão e precisa, em substância, que o prazo para a rescisão não começa a correr antes do cumprimento dos deveres de informação nesse sentido e, no caso de uma prestação de serviços, não antes da celebração do contrato.

10      Nos termos do § 495, n.o 1, do BGB:

«Num contrato de crédito celebrado por um consumidor, o mutuário tem direito de rescisão […]»

11      O conteúdo dos §§ 312b e 312d do BGB foi alterado pela Gesetz zur Umsetzung der Verbraucherrechterichtlinie und zur Änderung des Gesetzes zur Regelung der Wohnungsvermittlung (Lei que Transpõe a Diretiva sobre os Consumidores e que Altera a Lei sobre as Agências Imobiliárias), de 20 de setembro de 2013 (BGBl. 2013 I, p. 3642). O § 229, n.o 32, da Einführungsgesetz zum Bürgerlichen Gesetzbuch (Lei Introdutória ao Código Civil) prevê, no entanto, que as alterações assim introduzidas no BGB não têm relevo para os acordos celebrados antes de 13 de junho de 2014. Por outro lado, resulta do referido § 229, n.o 32, que o direito de rescisão por parte do consumidor não se extingue relativamente aos contratos de serviços financeiros enquanto o consumidor, num contrato celebrado à distância antes de 13 de junho de 2014, não tiver sido informado do seu direito de rescisão ou não o tiver sido em conformidade com os requisitos legais em vigor à data da celebração do contrato.

12      O § 495 do BGB, na versão aplicável entre 1 de agosto de 2002 e 12 de junho de 2014, prevê, no seu n.o 1:

«Num contrato de crédito celebrado por um consumidor, o mutuário tem um direito de rescisão nos termos do § 355.»

13      Na versão aplicável à data dos factos no processo principal, o § 355 do BGB dispunha, no seu n.o 3:

«O direito de rescisão caduca no prazo máximo de seis meses após a celebração do contrato. No caso da entrega de bens, o prazo não começa a correr antes do dia da sua receção pelo destinatário. Não obstante o disposto no primeiro período, o direito de rescisão não caduca quando o consumidor não tenha sido regularmente informado sobre o seu direito de rescisão, nem, nos contratos de prestação de serviços financeiros celebrados à distância, quando o profissional não tenha cumprido regularmente os seus deveres de informação nos termos do § 312c, n.o 2, ponto 1.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

14      Em 1 de julho de 1994, 17 de julho de 1994 e 4 de novembro de 1999, o estabelecimento bancário ao qual a Sparkasse Südholstein sucedeu legalmente celebrou três contratos de empréstimo com KH. O primeiro contrato, no montante de 114 000 marcos alemães (DEM) (cerca de 57 000 euros) e com uma taxa de juro de 6,95 %, tinha por objeto o financiamento de um bem imóvel, estando garantido por hipoteca. O segundo contrato, no montante de 112 000 DEM (cerca de 56 000 euros) e com uma taxa de juro de 5,7 %, incidia igualmente sobre o financiamento de um bem imóvel, estando garantido por hipoteca. Quanto ao terceiro contrato, no montante de 30 000 DEM (cerca de 15 000 euros) e com uma taxa de juro de 6,6 %, o mesmo tinha por objeto o financiamento de bens de consumo.

15      As respetivas cláusulas contratuais previam que cada uma das partes tinha o direito de pedir, após um certo prazo, a adaptação da taxa de juro inicialmente acordada e que, nada sendo requerido, o estabelecimento mutuante poderia fixar uma taxa de juro variável comparável à aplicada aos empréstimos desse tipo.

16      Em conformidade com essas cláusulas, as partes celebraram, nos anos de 2008 a 2010, utilizando exclusivamente técnicas de comunicação à distância, acordos complementares aos três contratos relativamente à fixação de novas taxas de juro anuais. Por ocasião da celebração desses acordos complementares, a Sparkasse Südholstein não informou KH de que beneficiava do direito de rescisão.

17      Por declaração de 2 de setembro de 2015, recebida pela Sparkasse Südholstein em 8 de setembro de 2015, KH informou que pretendia exercer o direito de rescisão relativamente aos acordos complementares. Após ter sublinhado que cada um destes acordos constituía um contrato à distância, alegou que, não tendo sido informada do seu direito de rescisão, ainda dispunha da possibilidade de o exercer, nos termos do § 495, n.o 1, do BGB ou, a título subsidiário, do § 312d, n.o 1, do BGB.

18      KH intentou uma ação no Landgericht Kiel (Tribunal Regional de Kiel, Alemanha) para que fosse declarado que o exercício do direito de rescisão relativamente aos acordos complementares ao segundo e terceiro contratos tinha tido por efeito o desaparecimento de qualquer acordo entre as partes sobre as taxas de juro acordadas nesses acordos complementares, e para que a Sparkasse Südholstein fosse condenada a reembolsar‑lhe os juros e o capital pagos desde a celebração dos acordos complementares, bem como as despesas de manutenção das contas pagas, e a pagar‑lhe uma indemnização.

19      A Sparkasse Südholstein pediu que a ação fosse julgada improcedente, tendo contestado a existência de um direito de rescisão por parte de KH relativamente aos acordos complementares. Com efeito, segundo a instituição bancária, além de os contratos iniciais não terem sido celebrados utilizando técnicas de comunicação à distância, os acordos complementares, que não incidiam sobre outros serviços financeiros, não podiam ser objeto de um direito de rescisão em separado. A título subsidiário, alegou que o direito de rescisão exercido por KH só seria válido se a consequência fosse a anulação dos acordos complementares, e não a dos contratos iniciais, continuando estes a ser acrescidos de juros a taxas variáveis em conformidade com as disposições contratuais.

20      O órgão jurisdicional de reenvio expõe que a resolução do litígio no processo principal depende de saber se os acordos complementares, em primeiro lugar, devem ser considerados celebrados ao abrigo de um sistema de prestação de serviços à distância organizado pelo prestador, na aceção do artigo 2.o, alínea a), da Diretiva 2002/65, e, em segundo lugar, se devem ser considerados incluídos no conceito de «contrato relativo a serviços financeiros», previsto nesta mesma disposição. O órgão jurisdicional de reenvio salienta, em especial, a necessidade da resposta a esta segunda questão para, sendo caso disso, poder aplicar ao litígio no processo principal os §§ 312b, n.o 1, e 312d, n.os 1 e 2, do BGB, e acrescenta que, segundo a vontade do legislador alemão, o conceito de «contratos de prestação de serviços, incluindo serviços financeiros», referido no § 312b, n.o 1, primeiro período, do BGB, deve ser interpretado em conformidade com a Diretiva 2002/65.

21      Nestas circunstâncias, o Landgericht Kiel (Tribunal Regional de Kiel) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Um contrato através do qual é alterado um acordo de empréstimo apenas no que diz respeito ao montante dos juros estipulados (acordo complementar relativo à taxa de juro) constitui um contrato “celebrado […] ao abrigo de um sistema de venda ou prestação de serviços à distância organizado pelo prestador”, na aceção do artigo 2.o, alínea a), da Diretiva [2002/65], quando um banco com uma rede de filiais só celebra contratos de empréstimo relativos ao financiamento imobiliário, garantidos por hipoteca, nas suas instalações mas, no quadro de relações comerciais em curso, utiliza, por vezes exclusivamente, meios de comunicação à distância para celebrar contratos relativos à alteração de contratos de empréstimo já concluídos?

2)      O conceito de “contrato relativo a serviços financeiros” na aceção do artigo 2.o, alínea a), da Diretiva [2002/65], inclui a modificação de um contrato de empréstimo existente, quando essa modificação diz respeito unicamente à taxa de juro estipulada (acordo complementar relativo à taxa de juro), sem prorrogar a duração do empréstimo nem alterar o seu montante?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à segunda questão

22      Com a sua segunda questão, que importa analisar em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 2.o, alínea a), da Diretiva 2002/65 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «contrato relativo a serviços financeiros», na aceção desta disposição, abrange um acordo complementar a um contrato de empréstimo, quando esse acordo se limita a alterar a taxa de juro inicialmente acordada, sem prorrogar a duração do referido empréstimo nem alterar o seu montante, e as cláusulas iniciais do contrato de empréstimo previam a celebração desse acordo complementar ou, na falta dessa celebração, a aplicação de uma taxa de juro variável.

23      A título preliminar, deve salientar‑se, como sublinhou a advogado‑geral no n.o 45 das conclusões, que a Diretiva 2002/65 procede, em princípio, à harmonização completa dos aspetos que rege e que, em consequência, a sua redação deve ser objeto de uma interpretação comum a todos os Estados‑Membros (v., neste sentido, Acórdão de 11 de setembro de 2019, Romano, C‑143/18, EU:C:2019:701, n.os 34 e 55).

24      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, decorre das exigências tanto da aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que uma disposição do direito da União que não comporte uma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance deve normalmente ser objeto, em toda a União Europeia, de uma interpretação autónoma e uniforme, tendo em conta não só os seus termos mas também o contexto da disposição e do objetivo prosseguido pela regulamentação em causa (Acórdão de 23 de maio de 2019, WB, C‑658/17, EU:C:2019:444, n.o 50 e jurisprudência referida).

25      Quanto ao modo como está redigido o conceito de «contrato relativo a serviços financeiros», que figura no artigo 2.o, alínea a), da Diretiva 2002/65, há que observar que a referência que nele é feita aos «serviços financeiros» constitui o elemento distintivo deste conceito, uma vez que se trata de identificar uma categoria específica de contratos.

26      O artigo 2.o, alínea b), dessa diretiva define o conceito de «serviço financeiro» como abrangendo qualquer serviço bancário, de crédito, de seguros, de pensão individual, de investimento ou de pagamento.

27      No que respeita, mais especificamente, ao contrato de crédito, o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de precisar que a obrigação característica é a própria concessão da quantia emprestada, ao passo que a obrigação do mutuário de reembolsar a referida quantia é apenas a consequência da execução da prestação pelo mutuante (Acórdão de 15 de junho de 2017, Kareda, C‑249/16, EU:C:2017:472, n.o 41).

28      Em seguida, no que respeita ao contexto em que o artigo 2.o, alínea a), da Diretiva 2002/65 se insere, importa observar, como salientam, com razão, o órgão jurisdicional de reenvio e a advogada‑geral no n.o 41 das suas conclusões, no caso dos contratos relativos a serviços financeiros que compreendam um «acordo inicial de serviço» seguido de operações sucessivas, as disposições da Diretiva 2002/65, em conformidade com o seu artigo 1.o, n.o 2, primeiro parágrafo, só são aplicáveis ao acordo inicial de serviço. O considerando 17, segundo período, da referida diretiva precisa, a este respeito, que o aditamento de novos elementos a um acordo inicial de serviço não constitui uma «operação» mas um contrato adicional a que se aplica esta diretiva.

29      Ora, perante os exemplos de operações dados nesse mesmo considerando 17, deve considerar‑se que a fixação de uma nova taxa de juro por acordo complementar, em execução de uma cláusula de renegociação já prevista no contrato inicial, que impõe, na falta de acordo, uma cláusula supletiva que institua uma taxa de juro variável, não constitui nem uma operação, na aceção do artigo 1.o, n.o 2, primeiro parágrafo, da Diretiva 2002/65, nem o aditamento de elementos ao acordo inicial.

30      Assim, decorre tanto de uma interpretação literal como sistemática do artigo 2.o, alínea a), da Diretiva 2002/65 que se deve considerar como «contrato relativo a serviços financeiros» o contrato que prevê a prestação desses serviços. Ora, este requisito não está preenchido no caso de, como no processo principal, o acordo complementar em causa apenas ter por objeto a adaptação da taxa de juro devida em contrapartida de um serviço já acordado.

31      Esta interpretação é corroborada pela análise de outras disposições da Diretiva 2002/65, das quais resulta que esta abrange, em princípio, os acordos sobre a obrigação característica a cumprir pelo prestador. Assim, o artigo 3.o da referida diretiva prevê que o consumidor deve, em especial, ser plenamente informado da identidade do prestador ou das principais características do serviço financeiro, incluindo a existência ou não do direito de rescisão. Ora, no caso de um acordo complementar relativo apenas à taxa de juro, não tem interesse uma nova informação ao consumidor sobre esses aspetos.

32      Por último, quanto à finalidade da Diretiva 2002/65, há que observar que, em conformidade com os seus considerandos 3 e 13, esta tem por objetivo assegurar um elevado nível de proteção dos consumidores para garantir um reforço da sua confiança na venda à distância e garantir a livre circulação dos serviços financeiros.

33      Ora, tal objetivo não exige necessariamente que, nos casos em que, em conformidade com uma cláusula inicial de um contrato de empréstimo, um acordo complementar ao mesmo fixe uma nova taxa de juro, esse acordo complementar deva ser qualificado como novo contrato relativo a serviços financeiros.

34      Tendo em conta o que precede, importa responder à segunda questão que o artigo 2.o, alínea a), da Diretiva 2002/65 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «contrato relativo a serviços financeiros», na aceção desta disposição, não abrange um acordo complementar a um contrato de empréstimo, quando esse acordo se limita a alterar a taxa de juro inicialmente acordada, sem prorrogar a duração do empréstimo nem alterar o seu montante, e as cláusulas iniciais do contrato de empréstimo previam a celebração desse acordo complementar ou, na falta dessa celebração, a aplicação de uma taxa de juro variável.

 Quanto à primeira questão

35      Tendo em conta a resposta dada à segunda questão, não há que responder à primeira questão.

 Quanto às despesas

36      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

O artigo 2.o, alínea a), da Diretiva 2002/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de setembro de 2002, relativa à comercialização à distância de serviços financeiros prestados a consumidores e que altera as Diretivas 90/619/CEE do Conselho, 97/7/CE e 98/27/CE, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «contrato relativo a serviços financeiros», na aceção desta disposição, não abrange um acordo complementar a um contrato de empréstimo, quando esse acordo se limita a alterar a taxa de juro inicialmente acordada, sem prorrogar a duração do empréstimo nem alterar o seu montante, e as cláusulas iniciais do contrato de empréstimo previam a celebração desse acordo complementar ou, na falta dessa celebração, a aplicação de uma taxa de juro variável.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.