Language of document : ECLI:EU:C:2019:983

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

GIOVANNI PITRUZZELLA

apresentadas em 19 de novembro de 2019 (1)

Processo C653/19 (PPU)

Processo penal contra

DK

na presença de

Spetsializirana prokuratura

[pedido de decisão prejudicial submetido pelo Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária)]

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Diretiva (UE) 2016/343 — Presunção de inocência — Ónus da prova — Decisão sobre a culpa — Controlo judicial da manutenção da prisão preventiva»






1.        Os sistemas penais dos Estados‑Membros caracterizam‑se, em larga medida, por uma contradição dificilmente superável. Com efeito, ao mesmo tempo que sacralizam o princípio da presunção de inocência, verdadeiro fundamento da identidade penal europeia, recorrem maciçamente à prisão preventiva (2). A questão com a qual o Tribunal de Justiça é confrontado no quadro do presente pedido de decisão prejudicial é a de saber se e em que medida a Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal (3), conseguiu, no que respeita ao regime jurídico da prisão preventiva, tornar o espaço de justiça penal da União Europeia menos incompleto e pouco equilibrado (4).

I.      Quadro jurídico

A.      Diretiva 2016/343

2.        Resulta do considerando 16 da Diretiva 2016/343 que «[a] presunção de inocência seria violada se as declarações públicas emitidas pelas autoridades públicas, ou as decisões judiciais que não sejam as que estabelecem a culpa, [apresentassem] um suspeito ou um arguido como culpado, enquanto não [tivesse] sido provada a respetiva culpa nos termos da lei. […] A mesma disposição […] não deverá prejudicar as decisões preliminares de natureza processual proferidas pelas autoridades judiciárias ou por outras autoridades competentes e baseadas em suspeitas ou em elementos de acusação, tais como as decisões sobre a prisão preventiva, desde que tais decisões não apresentem o suspeito ou o arguido como culpado. Antes de proferir uma decisão preliminar de natureza processual, a autoridade competente poderá, em primeiro lugar, ter [de] verificar se existem elementos de acusação suficientes contra o suspeito ou o arguido que justifiquem a decisão em causa e a decisão poderá conter uma referência a esses elementos».

3.        O considerando 22 da Diretiva 2016/343 enuncia que «[o] ónus da prova da culpa dos suspeitos e dos arguidos recai sobre a acusação, e qualquer dúvida deverá ser interpretada em favor do suspeito ou do arguido. A presunção de inocência seria violada caso houvesse uma inversão do ónus da prova, sem prejuízo dos poderes ex officio do tribunal competente em matéria de apreciação dos factos e da independência dos órgãos judiciais na apreciação da culpa do suspeito ou do arguido, e da utilização de presunções de facto ou de direito em relação à responsabilidade penal de um suspeito ou de um arguido. Estas presunções deverão ser delimitadas de forma razoável, tendo em conta a importância dos interesses em causa e mantendo os direitos de defesa, e os meios [empregados] deverão ser razoavelmente proporcionados ao objetivo legítimo visado. Essas presunções deverão ser ilidíveis e, em todo o caso, só serão utilizadas quando os direitos de defesa [forem] respeitados».

4.        O artigo 1.o desta diretiva tem a seguinte redação:

«A presente diretiva estabelece normas mínimas comuns respeitantes:

a)      a certos aspetos do direito à presunção de inocência em processo penal;

b)      ao direito de comparecer em julgamento em processo penal.»

5.        O artigo 2.o da Diretiva 2016/343 prevê que esta última «[se] aplica às pessoas singulares que são suspeitas da prática de um ilícito penal ou que foram constituídas arguidas em processo penal e a todas as fases do processo penal, isto é, a partir do momento em que uma pessoa é suspeita da prática de um ilícito penal ou é constituída arguida ou é suspeita ou acusada de ter cometido um alegado ilícito penal, até ser proferida uma decisão final sobre a prática do ilícito penal e essa decisão ter transitado em julgado».

6.        O artigo 6.o da Diretiva 2016/343, sob a epígrafe «Ónus da prova», dispõe:

«1.      Os Estados‑Membros asseguram que recai sobre a acusação o ónus da prova da culpa do suspeito ou do arguido, sem prejuízo da obrigação que incumbe ao juiz ou ao tribunal competente de procurarem elementos de prova, tanto incriminatórios como ilibatórios, e do direito da defesa de apresentar provas em conformidade com o direito nacional aplicável.

2.      Os Estados‑Membros asseguram que toda e qualquer dúvida quanto à questão da culpa deve beneficiar o suspeito ou o arguido, mesmo quando o tribunal aprecia se a pessoa em causa deve ser absolvida.»

B.      Direito búlgaro

7.        O artigo 270.o do Nakazatelen protsesualen kodeks (Código do Processo Penal) tem a redação seguinte:

«(1)      A questão da comutação da medida de coação pode ser suscitada a todo o tempo na pendência do processo. Se houver alteração das circunstâncias, poderá ser apresentado um novo pedido ao mesmo tribunal.

(2)      O tribunal decide por despacho em audiência pública.»

II.    Litígio no processo principal e questão prejudicial

8.        DK estava no local em que aconteceu um tiroteio no qual uma pessoa foi morta e outra ficou gravemente ferida. Após o tiroteio, DK permaneceu no local e entregou‑se à polícia. Por estes factos, foi acusado de pertencer a uma associação criminosa e de homicídio e foi colocado em prisão preventiva em 11 de junho de 2016. O Ministério Público afirma que DK é responsável pela morte da vítima. DK alega que agiu em legítima defesa.

9.        O processo penal contra DK entrou na fase judicial em 9 de novembro de 2017. DK apresentou um primeiro pedido de libertação em 5 de fevereiro de 2018, que foi indeferido. Pelo menos seis outros pedidos foram apresentados por DK para esse efeito. Todos foram indeferidos, tanto pelo órgão jurisdicional de primeira instância como pelo órgão jurisdicional de segunda instância. Todos esses pedidos foram analisados à luz do requisito legal de que existam novas circunstâncias que ponham em causa a legalidade da prisão.

10.      O órgão jurisdicional de reenvio salienta que o Ministério Público não tinha de apresentar nenhum pedido de manutenção da prisão preventiva. Essa prisão permanece até que a defesa consiga provar uma alteração das circunstâncias, na aceção do artigo 270.o do Código do Processo Penal búlgaro. O órgão jurisdicional de reenvio apenas poderia ordenar a colocação em liberdade quando a defesa conseguisse provar de forma convincente que houve uma alteração das circunstâncias. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o artigo 270.o desse código inverteria o ónus da prova e estabeleceria uma presunção de legalidade da manutenção da prisão, que caberia à defesa combater. O mesmo órgão duvida de que tal abordagem seja conforme com o considerando 22 e com o artigo 6.o da Diretiva 2016/343. O órgão jurisdicional de reenvio evoca também o Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «TEDH») de 27 de agosto de 2019, Magnitskiy e o.  c. Rússia (5), nos termos do qual o TEDH declarou que a presunção a favor da libertação é subvertida quando a legislação nacional permite que a prisão preventiva perdure se não existirem circunstâncias novas e isso equivale a inverter o ónus da prova. O direito nacional pode, portanto, ser igualmente contrário ao artigo 5.o, n.o 3, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»).

11.      O órgão jurisdicional de reenvio salienta também que o direito nacional não prevê a fixação de uma duração máxima da prisão preventiva nem nenhum controlo periódico oficioso.

12.      Foi nestas circunstâncias que o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária) decidiu suspender a instância e, por Decisão recebida na Secretaria do Tribunal de Justiça em 4 de setembro de 2019, confirmada em 27 de setembro de 2019, submeter a este último a seguinte questão prejudicial:

«Uma legislação nacional que, na fase de julgamento do processo-crime, estabelece como condição para o deferimento do pedido de revogação da prisão do arguido apresentado pela defesa a existência de uma alteração das circunstâncias, está em conformidade com o artigo 6.o e o considerando 22 da Diretiva 2016/343 e com os artigos 6.o e 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia? [a seguir “Carta”]?»

III. Processo no Tribunal de Justiça

13.      O presente pedido de decisão prejudicial foi apresentado em 4 de setembro de 2019. Tendo em conta as dúvidas sobre o estado do processo pendente no órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça enviou a este último um pedido de informações, o qual foi respondido em 13 de setembro de 2019. Em 25 de setembro de 2019, o órgão jurisdicional de reenvio informou o Tribunal de Justiça de que a decisão de libertação de DK havia sido anulada pelo órgão jurisdicional de segunda instância. O órgão jurisdicional de reenvio realizou, em 27 de setembro de 2019, uma audiência extraordinária no decurso da qual DK apresentou um novo pedido de libertação. Foi nestas circunstâncias que o Tribunal de Justiça, por Decisão de 1 de outubro de 2019, decidiu submeter o pedido de decisão prejudicial a tramitação urgente, com fundamento no artigo 107.o, n.o 1, do seu Regulamento de Processo.

14.      Foram apresentadas observações escritas por DK e pela Comissão Europeia. Apenas a Comissão foi ouvida na audiência realizada perante o Tribunal de Justiça em 7 de novembro de 2019.

IV.    Análise

A.      Reflexões preliminares

15.      O órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça, em substância, sobre a compatibilidade com o artigo 6.o da Diretiva 2016/343 e, se for caso disso, com a Carta, da legislação penal nacional segundo a qual uma decisão de prisão preventiva apenas pode ser revogada, na fase judicial do processo penal, na presença de «circunstâncias novas». A leitura da questão prejudicial deve, no entanto, ser enriquecida pelos outros fundamentos da decisão de reenvio dos quais resulta mais precisamente que a referida questão é colocada em ligação com a do ónus da prova. Dito de outra forma, uma legislação que exige que o arguido, se pretender pôr fim à sua prisão preventiva, prove a existência de circunstâncias novas é compatível com o artigo 6.o da Diretiva 2016/343?

16.      A simplicidade da questão submetida ao Tribunal de Justiça não faz justiça às questões fundamentais para o espaço penal europeu que a mesma suscita.

17.      Com efeito, essa questão põe‑se num contexto particular. O órgão jurisdicional de reenvio descreve em termos assaz preocupantes o estado da lei nacional aplicável em matéria de prisão preventiva. A prisão preventiva, especialmente, não conhece nenhum limite no tempo, após o processo penal ter entrado na fase judicial. Certamente que o artigo 270.o do Código de Processo Penal búlgaro prevê que o arguido pode pedir a revogação da sua prisão preventiva a todo o momento, mas parece que a liberação efetiva ou a comutação da medida de coação é, na prática, particularmente difícil de obter (6).

18.      Não posso, portanto, deixar de exprimir as minhas preocupações perante tal situação. Essas preocupações são de duas ordens: primeira, num plano micro, por referência à situação pessoal de DK; segunda, num plano macro, por referência ao que este caso diz sobre a realidade do espaço penal europeu.

19.      Em primeiro lugar, DK é um arguido: um arguido é uma pessoa que ainda não pode ser considerada culpada e que é potencialmente inocente. Podemos sentir‑nos completamente à vontade com a ideia de que a sua prisão é ilimitada no tempo? Não existe abuso de linguagem ao continuar a falar de prisão preventiva? Assim, embora certamente não me deva pronunciar sobre a escolha feita pelos Estados‑Membros de optar por regimes que recorram maciçamente à prisão preventiva (7), parece‑me que qualquer análise relativa a esta temática deve ter em mente que são potenciais não culpados quem aguarda, em condições geralmente bastante severas, que o seu destino penal seja fixado.

20.      Em segundo lugar, as minhas preocupações são justificadas pelo estado, quase inexistente, de harmonização europeia na matéria, como tratarei de demonstrar um pouco mais adiante. Este caso obriga‑nos a constatar os limites do direito da União. Numa questão tão fundamental quanto a duração da prisão preventiva e as condições nas quais uma decisão de prisão preventiva pode ser contestada perante o juiz, não deixa de ser angustiante constatar que o direito da União é de baixa eficácia. Não se pode desculpar tudo no altar da falta de competência da União para agir neste campo.

21.      Obviamente, em matéria penal, o que não é garantido pela União pode ser pelo TEDH. Poderíamos então ver este caso como uma oportunidade de o Tribunal de Justiça exercer o seu papel de agulheiro das competências (8). É evidente que o que não é regido pelo direito da União não se situa necessariamente fora do próprio direito. Voltarei a esta questão mais tarde, mas o TEDH desenvolveu princípios importantes que enquadram a margem de apreciação dos Estados partes na CEDH no que concerne às decisões de prisão preventiva. Mas quanto tempo deve DK permanecer em prisão preventiva antes de obter uma sentença do Tribunal de Estrasburgo? Ele próprio pode obtê-la sozinho, uma vez que os seus representantes, talvez por razões económicas, não participaram da audiência perante o Tribunal de Justiça?

22.      Além da questão dos relatórios de sistemas, há uma urgência em que o legislador da União aborde a questão de uma harmonização, ainda que mínima, da prisão preventiva, uma vez que, no final, é o espaço penal europeu que está ameaçado. Com efeito, só poderá haver cooperação judiciária em matéria penal se a confiança mútua entre os Estados‑Membros for reforçada, e essa confiança não se poderá instalar serenamente se padrões tão contrastantes forem aplicados pelos Estados‑Membros, nomeadamente em matéria de prisão preventiva, que, recordo‑o, constitui uma exceção que deve permanecer o mais limitada possível à pedra angular da nossa civilização jurídica, que é o direito à liberdade.

23.      No entanto, quaisquer que sejam as minhas preocupações e lamentações sobre o estado atual do direito da União, apenas poderei observar, após uma análise rigorosamente jurídica, que a situação de DK não encontra uma solução na Diretiva 2016/343.

B.      Quanto à questão prejudicial

24.      O artigo 6.o da Diretiva 2016/343 impõe aos Estados‑Membros que prevejam que o ónus da prova recaia sobre a acusação se a defesa pedir que seja posto fim à prisão preventiva quando esta persista depois de o processo penal ter entrado na sua fase judicial? Para responder a esta questão, tratarei de demonstrar, em primeiro lugar, que a Diretiva 2016/343 não prescreve nenhuma regra relativa às condições nas quais uma decisão de manutenção da prisão preventiva pode ser contestada. Essa conclusão intermédia será, em segundo lugar, posta à prova com a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à Diretiva 2016/343 e às decisões de prisão preventiva. Em terceiro lugar, terminarei a análise relembrando as prescrições do TEDH.

1.      Interpretação literal, sistemática, histórica e teleológica da Diretiva 2016/343

25.      Desde já, saliento que a ligação entre a situação em causa no processo principal e o artigo 6.o da Diretiva 2016/343 não se impõe com força de evidência.

26.      É certo que a Diretiva 2016/343 prevê a sua aplicação a «pessoas singulares que são suspeitas da prática de um ilícito penal ou que foram constituídas arguidas em processo penal e a todas as fases do processo penal» (9). É pacífico que DK se insere no âmbito de aplicação pessoal da Diretiva 2016/343.

27.      Além disso, a presente diretiva aplica‑se «em todas as fases do processo penal», ou seja, a partir do momento em que uma pessoa é suspeita da prática de um ilícito penal até ser proferida uma decisão final sobre a prática do ilícito penal e essa decisão ter transitado em julgado (10). O período durante o qual o arguido é colocado em prisão preventiva insere‑se plenamente neste processo, de modo que a situação no processo principal se enquadra, em princípio, no âmbito de aplicação da Diretiva 2016/343 (11). No entanto, é claro que nem todos os artigos desta diretiva se aplicam necessariamente em todas as fases do processo penal (12).

28.      Está o artigo 6.o da Diretiva 2016/343, no entanto, vocacionado para regular a questão do ónus da prova nos processos que visam contestar a manutenção da prisão preventiva? Não estou convencido de que assim seja.

29.      A este respeito, deve notar‑se que este artigo se insere num capítulo mais amplo consagrado à presunção de inocência. Assim, a Diretiva 2016/343 cria uma obrigação para os Estados‑Membros de garantir que os suspeitos e os arguidos sejam presumidos inocentes enquanto a sua culpa não for provada nos termos da lei (13). Particularmente, as declarações públicas de autoridades públicas e decisões judiciais não devem apresentar um suspeito ou um arguido como culpado enquanto a culpa do suspeito ou do arguido não for provada nos termos da lei (14). Isso aplica‑se, no entanto, «sem prejuízo de atos da acusação que visam provar a culpa do suspeito ou do arguido e de decisões preliminares de caráter processual proferidas pelas autoridades judiciárias ou por outras autoridades competentes e baseadas em suspeitas ou em elementos de acusação» (15). No que respeita ao modo como a presunção de inocência deve ser preservada pelas declarações públicas e pelas decisões preliminares de caráter processual, o texto do artigo 4.o da Diretiva 2016/343 pode ser utilmente esclarecido pela leitura do considerando 16 dessa diretiva, do qual resulta que um ato de acusação não pode ser censurado por apresentar a pessoa em questão como potencialmente culpada. O respeito pela presunção de inocência também «não deverá prejudicar as decisões preliminares de natureza processual […] tais como as decisões sobre a prisão preventiva, desde que tais decisões não apresentem o suspeito ou o arguido como culpado. Antes de proferir uma decisão intermédia de natureza processual, a autoridade competente poderá, em primeiro lugar, ter [de] verificar se existem elementos de acusação suficientes contra o suspeito ou o arguido que justifiquem a decisão em causa e a decisão poderá conter uma referência a esses elementos» (16). Se, portanto, aqui é feita referência às decisões sobre prisão preventiva, é exclusivamente por referência à questão das declarações das autoridades públicas e judiciais, às quais a diretiva proíbe a apresentação do suspeito ou arguido como culpado.

30.      No que respeita ao ónus da prova propriamente dito, o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 — que é precisamente o objeto da questão prejudicial — impõe que os Estados‑Membros assegurem que recai sobre a acusação o ónus da prova da culpa do suspeito ou arguido. E isto «sem prejuízo da obrigação que incumbe ao juiz ou ao tribunal competente de procurarem elementos de prova, tanto incriminatórios como ilibatórios, e do direito da defesa de apresentar provas em conformidade com o direito nacional aplicável». (17) A dúvida deve beneficiar o suspeito ou arguido, «mesmo quando o tribunal aprecia se a pessoa em causa deve ser absolvida» (18). O considerando 22 da Diretiva 2016/343 visa explicitar a intenção do legislador. Dele resulta que se trata aqui do ónus da prova da culpa dos suspeitos e arguidos e que esse ónus deve recair sobre a acusação. O legislador da União parece ter admitido a possibilidade de recorrer a presunções de facto ou de direito relativas à responsabilidade criminal do suspeito ou arguido, sem que estas violem o princípio da presunção de inocência, desde que sejam «delimitadas de forma razoável, tendo em conta a importância dos interesses em causa e mantendo os direitos de defesa, e os meios [empregados] deverão ser razoavelmente proporcionados ao objetivo legítimo visado. Essas presunções deverão ser ilidíveis e, em todo o caso, só serão utilizadas quando os direitos de defesa [forem] respeitados» (19).

31.      Assim, embora o artigo 4.o da Diretiva 2016/343 se refira expressamente às decisões preliminares de caráter processual, como as decisões sobre a prisão preventiva (20), é forçoso considerar que o artigo 6.o dessa diretiva não contém tal referência. O mesmo se aplica ao considerando 22 desta diretiva. Isto explica‑se, na minha opinião, pelo facto de o legislador da União se colocar aqui noutra fase do processo penal, que é a da prova da culpa (21). Ora, o artigo 4.o da Diretiva 2016/343, no que diz respeito às decisões sobre a prisão preventiva, tem como único objetivo garantir que estas últimas não apresentem os arguidos como culpados. Não sendo a decisão sobre a prisão preventiva uma decisão sobre a culpa dessas pessoas, como aliás o prescreve expressamente a diretiva (22), tal decisão não está, na minha opinião, abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 6.o da Diretiva 2016/343.

32.      Tal interpretação não me parece infirmada pela redação do artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2016/343, que prevê que qualquer dúvida deve beneficiar o arguido. Com efeito, uma vez que a prisão preventiva é decidida antes de ser proferida a decisão sobre a sua culpa — ou seja, numa fase do processo penal em que nenhuma convicção quanto à culpa pode ser formada e que, portanto, necessariamente ainda mantém a dúvida —, se se considerar que o artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2016/343 se aplica também às decisões sobre a prisão preventiva, as hipóteses de colocação em prisão preventiva reduzir‑se‑iam, como indicou a Comissão, com razão, a algo insignificante (23).

33.      Uma interpretação limitada do artigo 6.o da Diretiva 2016/343, no sentido de que não se destina a regular a questão da repartição do ónus da prova para a adoção de decisões de prisão preventiva, parece‑me, mais uma vez, corroborada por uma análise histórica desta diretiva. O n.o 16 da exposição de motivos da Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em tribunal em processo penal (24) indica que, para a Comissão, uma vez que outras iniciativas haviam já sido empreendidas pela União em matéria de prisão preventiva, «esta não [faria] parte […] da presente diretiva». O alcance, à data, sempre limitado destas iniciativas legislativas (25) não poderá justificar uma interpretação da Diretiva 2016/343 que vá além do que ela autoriza. Noto a este respeito, mais uma vez, que a proposta do Parlamento de incluir uma referência expressa à prisão preventiva no texto do artigo 4.o não foi adotada (26).

34.      Como recordei acima, o objetivo da Diretiva 2016/343 é reforçar certos aspetos da presunção de inocência, com vista a reforçar a confiança mútua dos Estados‑Membros nos seus respetivos sistemas de justiça penal e o reconhecimento mútuo de sentenças e outras decisões judiciais (27). No entanto, a Diretiva 2016/343 estabeleceu regras mínimas, de acordo com a sua base jurídica (28), relativas apenas a certos aspetos da presunção de inocência em processo penal (29).

35.      A jurisprudência do Tribunal de Justiça, até ao presente, insistiu especialmente nesta harmonização mínima para limitar o alcance da Diretiva 2016/343 no que concerne aos regimes nacionais de prisão preventiva.

2.      Diretiva 2016/343 e decisões de prisão preventiva na jurisprudência do Tribunal de Justiça

36.      No seu primeiro Acórdão Milev (30), o Tribunal de Justiça foi convidado a pronunciar‑se sobre a compatibilidade com os artigos 3.o e 6.o da Diretiva 2016/343 de um entendimento emitido pelo órgão jurisdicional supremo búlgaro que conferia aos órgãos jurisdicionais nacionais competentes para decidir de um recurso contra uma decisão de prisão preventiva a faculdade de decidir se, durante a fase contenciosa do processo penal, a manutenção de um arguido em prisão preventiva deveria ser sujeita a um controlo jurisdicional que teria também por objeto a questão de saber se havia razões plausíveis para supor que havia cometido a infração de que era acusado. Uma vez que a questão foi colocada depois de a Diretiva 2016/343 entrar em vigor, mas sem que o seu prazo de transposição ainda não tivesse expirado, o Tribunal de Justiça limitou‑se a recordar as obrigações que vinculam os Estados‑Membros durante esse período particular (31) antes de declarar que — uma vez que o entendimento em questão deixou aos órgãos jurisdicionais em causa a liberdade para aplicar as disposições CEDH, como interpretadas pelo TEDH, ou do direito processual penal nacional — o referido entendimento não era suscetível de comprometer seriamente, após o termo do prazo de transposição, os objetivos da Diretiva 2016/343. Nesse processo, a resposta do Tribunal de Justiça centrou‑se, portanto, na questão sobre a obrigação de não comprometer seriamente o resultado da Diretiva 2016/343 durante o prazo de transposição dessa diretiva, e a questão — subjacente, mas diferente (32) — relativa à compatibilidade do entendimento do Supremo Tribunal e, mais amplamente, da legislação búlgara com a Diretiva 2016/343 não foi analisada.

37.      No seu segundo Acórdão Milev (33), foi pedido ao Tribunal de Justiça que determinasse se os artigos 3.o, 4.o e 10.o da Diretiva 2016/343, lidos à luz dos considerandos 16 e 48 dessa diretiva e dos artigos 47.o e 48.o da Carta, deveriam ser interpretados no sentido de que, sempre que um órgão jurisdicional nacional verifique que existem razões plausíveis, na aceção da legislação nacional, para supor que uma pessoa cometeu um crime, às quais está subordinada a manutenção em prisão preventiva desta, esse órgão jurisdicional se pode limitar a constatar que, à primeira vista, essa pessoa pode ter cometido um crime ou se esse órgão jurisdicional deve procurar determinar se existe uma forte probabilidade de a pessoa ter cometido o referido crime. O órgão jurisdicional de reenvio pediu igualmente ao Tribunal de Justiça que precisasse se as disposições do direito da União invocadas autorizavam um órgão jurisdicional nacional que decide sobre um pedido de alteração de uma medida de coação a fundamentar a sua decisão sem comparar os elementos de prova incriminatórios e ilibatórios ou se esse órgão jurisdicional deveria proceder a um exame mais detalhado desses elementos e fornecer uma resposta clara aos argumentos apresentados pela pessoa presa (34).

38.      Após ter recordado a letra dos artigos 2.o, 3.o, 4.o e 10.o da Diretiva 2016/343, o Tribunal de Justiça esclareceu que o objetivo dessa diretiva «é, como resulta do artigo 1.o e do considerando 9 da mesma, estabelecer normas mínimas comuns aplicáveis aos processos penais relativas a certos aspetos da presunção de inocência» (35). Essas normas mínimas prosseguem o objetivo de reforçar a confiança dos Estados‑Membros no sistema de justiça penal dos outros Estados‑Membros e, assim, facilitar o reconhecimento mútuo das decisões judiciais (36). Em razão deste caráter mínimo, particularmente enfatizado neste acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que a Diretiva 2016/343 «não pode ser interpretada como sendo um instrumento completo e exaustivo que tem por objetivo fixar a totalidade dos requisitos de adoção de uma decisão de prisão preventiva» (37). O Tribunal de Justiça declarou, em seguida, que o artigo 3.o e o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 «não se opõem à adoção de decisões preliminares de caráter processual, como uma decisão de manutenção de uma medida de prisão preventiva tomada por uma autoridade judiciária, baseadas em suspeitas ou em elementos de acusação, desde que tais decisões não apresentem a pessoa privada de liberdade como culpada» (38). Além disso, o Tribunal de Justiça declarou que «na medida em que […] o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber em que condições pode uma decisão de prisão preventiva ser adotada e se interroga, em particular, quanto ao grau de convicção que deve possuir relativamente ao autor da infração, às modalidades de apreciação dos diferentes elementos de prova e ao alcance da fundamentação que deve apresentar em resposta aos argumentos que lhe são apresentados, essas questões não são reguladas por esta diretiva, mas dizem unicamente respeito ao direito nacional» (39). Por outros termos, ainda mais claramente, a Diretiva 2016/343 «não regula as condições em que as decisões de prisão preventiva podem ser adotadas» (40).

39.      Ainda mais recentemente, o Tribunal de Justiça proferiu um despacho com base no artigo 99.o do seu Regulamento de Processo (41). Em substância, o Tribunal de Justiça foi questionado sobre se o artigo 4.o da Diretiva 2016/343, lido com o considerando 16 dessa mesma diretiva, deveria ser interpretado no sentido de que as exigências decorrentes da presunção de inocência requerem que, quando o órgão jurisdicional examinar as razões plausíveis para supor que o arguido cometeu a infração que lhe é imputada, a fim de se pronunciar sobre a legalidade de uma decisão de prisão preventiva, esse órgão jurisdicional proceda a uma ponderação dos elementos incriminatórios e ilibatórios que lhe são submetidos e que fundamente a sua decisão não só revelando os elementos tomados em consideração mas também se pronunciando sobre as objeções do defensor da pessoa em causa (42). Depois de salientar que o caso se parecia inserir «no âmbito mais vasto [(43)] do conceito de “suspeita razoável”, na aceção do artigo 5.o, n.o 1, alínea c), CEDH» (44), o Tribunal de Justiça, após aderir ao texto das disposições da Diretiva 2016/343 úteis para a resolução do pedido de decisão prejudicial, entendeu reforçar a sua demonstração, referindo‑se também ao artigo 6.o da mesma diretiva, para deduzir que, «se, na sequência de um exame dos elementos de prova incriminatórios e ilibatórios, um tribunal nacional concluir que existem razões plausíveis que permitem presumir que uma pessoa cometeu os atos que lhe são imputados e toma uma decisão preliminar nesse sentido, tal não pode equivaler a apresentar o suspeito ou o arguido como culpado desses atos, na aceção do artigo 4.o da Diretiva 2016/343» (45). Ao mesmo tempo, o Tribunal de Justiça recordou o precedente Milev sobre o caráter mínimo do objetivo de harmonização prosseguido pela Diretiva 2016/343, a qual não poderia ser interpretada como «um instrumento completo e exaustivo» que tem por objeto «fixar a totalidade dos requisitos de adoção de uma decisão de prisão preventiva, quer se trate das modalidade de exame dos diferentes elementos de prova ou do alcance da fundamentação de tal decisão» (46). O Tribunal de Justiça declarou então que «os artigos 4.o e 6. o da Diretiva 2016/343 […] não se opõem a que, quando o órgão jurisdicional competente examina as razões plausíveis que permitem presumir que o suspeito ou o arguido cometeu a infração que lhe é imputada, a fim de se pronunciar sobre a legalidade de uma decisão de prisão preventiva, esse órgão jurisdicional proceda a uma ponderação dos elementos de acusação e de defesa que lhe são submetidos e que fundamente a sua decisão não só revelando os elementos tomados em consideração mas também pronunciando‑se sobre as objeções do defensor da pessoa em causa, desde que essa decisão não apresente a pessoa privada de liberdade como culpada» (47). No entanto, é possível compreender da afirmação segundo a qual o artigo 6.o da Diretiva 2016/343 «não se opõe» a que, em consonância com o que o Tribunal de Justiça precedentemente decidiu, este artigo simplesmente não se aplica (48). Só desta forma a leitura do dispositivo do despacho assume o seu significado (49).

3.      Decisões de prisão preventiva na jurisprudência do TEDH

40.      A Diretiva 2016/343 constitui uma implementação da presunção de inocência e do direito a um processo equitativo, consagrados nos artigos 47.o e 48.o da Carta, aos quais a mesma se refere expressamente (50). A presunção de inocência visa garantir que ninguém será considerado ou tratado como culpado de uma infração antes de a sua culpabilidade ter sido provada por um tribunal (51). A Diretiva 2016/343 contém também uma cláusula de não regressão segundo a qual «[n]enhuma disposição da [referida] diretiva pode ser interpretada como uma limitação ou derrogação dos direitos e garantias processuais garantidos pela Carta, pela CEDH […] ou pela lei de qualquer Estado‑Membro que faculte um nível de proteção superior» (52).

41.      Os artigos 47.o e 48.o da Carta consagram, respetivamente, o direito a um recurso efetivo e o direito de aceder a um tribunal imparcial e, como acabei de enunciar, a presunção de inocência e os direitos de defesa. Resulta especialmente da explicação do artigo 48.o que este é o mesmo que o artigo 6.o, n.os 2 e 3, CEDH e tem, em conformidade com o artigo 52.o, n.o 3, da Carta, o mesmo significado e o mesmo alcance que o direito garantido pela CEDH.

42.      Ora, a jurisprudência do TEDH mencionada pelo órgão jurisdicional de reenvio não se refere à compatibilidade da situação em causa com o artigo 6.o CEDH, mas com o artigo 5.o, n.o 3, desta última (53).

43.      No seu Acórdão Magnitskiy e o. c. Rússia (54), o TEDH lembrou os princípios a partir de agora constantes que havia anteriormente estabelecido, a fim de apreciar a convencionalidade da manutenção da prisão preventiva.

44.      Com efeito, embora a prisão preventiva possa ser admissível pelos fundamentos estabelecidos no artigo 5.o, n.o 1, alínea c), CEDH, o terceiro número desse artigo estabelece «um certo número de garantias processuais» e prevê, nomeadamente, «que a duração da prisão preventiva deve ser razoável: não é portanto ilimitada» (55). A persistência de razões plausíveis para supor que a pessoa presa tenha cometido uma infração é uma condição sine qua non da regularidade da manutenção da prisão preventiva (56), mas, ao fim de «um determinado tempo», deixa de ser suficiente. O TEDH deve então determinar, em primeiro lugar, se os outros fundamentos adotados pelas autoridades judiciárias continuam a legitimar a privação de liberdade e, em segundo lugar, se esses motivos se revelarem pertinentes e suficientes, se as autoridades nacionais dedicaram uma particular diligência na continuação do processo (57). As autoridades devem demonstrar de maneira convincente que cada período de prisão, mesmo que curto, foi justificado (58). Uma vez que decidem sobre se uma pessoa deve ser liberta ou presa, devem investigar se não existem outros meios de garantir a sua presença em juízo (59). O TEDH decidiu que tal justificação existe em caso de perigo de fuga, pressão sobre as testemunhas, adulteração de provas, conluio, reincidência de perturbação da ordem pública ou em caso de necessidade de proteger a pessoa que é objeto da medida privativa da liberdade (60). Declarou também que «a presunção é sempre a favor da libertação […]. Até à condenação, o acusado deve ser considerado inocente e [o artigo 5.o, n.o 3, CEDH] tem essencialmente por objeto impor a libertação provisória quando a manutenção da prisão deixar de ser razoável. […] A legitimidade da manutenção em prisão preventiva de um acusado deve ser apreciada em cada caso, de acordo com as particularidades da causa. A continuação do encarceramento só se justifica num determinado caso se indícios concretos revelarem uma verdadeira exigência de interesse público prevalecente, não obstante a presunção de inocência, sobre a regra do respeito pela liberdade individual» (61). Para o efeito, as autoridades judiciais devem, «tendo em devida conta o princípio da presunção de inocência, examinar todas as circunstâncias suscetíveis de manifestar ou refutar a existência da referida exigência de interesse público que justifique uma derrogação à regra fixada no artigo 5.o [CEDH]. É essencialmente à luz dos motivos que figurem nessas decisões e com base nos factos dados como provados, indicados pelo interessado nos seus meios de defesa, que o Tribunal deve determinar se houve ou não uma violação do artigo 5.o, n.o 3[, CEDH]» (62).

45.      Em Magnitskiy e o. c. Rússia (63), o TEDH também teve particularmente em conta o facto de as autoridades nacionais terem invertido a presunção a favor da libertação, estabelecendo que, na ausência de novas circunstâncias, a prisão preventiva deveria ser mantida. Recordou que o artigo 5.o CEDH consagra o caráter excecional das restrições do direito à liberdade, que são admissíveis apenas nos casos limitativamente enumerados e estritamente definidos (64). Contudo, resulta da jurisprudência do TEDH que a inversão do ónus da prova se presta certamente a críticas por parte desta última, mas não constitui um motivo autónomo, suficiente e automático para concluir pela violação do artigo 5.o, n.o 3, CEDH, sendo essa violação sempre constatada após uma análise in concreto de todas as circunstâncias de cada caso (65).

46.      A asserção relativa à questão da prova na jurisprudência do TEDH afigura‑se muito mais precisa quando se trata de examinar uma situação à luz do artigo 6.o, n.o 2, CEDH (66), tendo o TEDH já declarado que, no domínio penal, o problema da produção da prova deve ser considerado à luz desta disposição (67).

47.      Resulta, pelo contrário, da jurisprudência do TEDH relativa ao artigo 5.o, n.o 3, CEDH que o referido tribunal averigua, além da definição a priori do ónus da prova em matéria de procedimentos destinados a pôr em causa decisões de prisão preventiva, se todos os argumentos a favor e contra a existência de um interesse público suscetível de justificar uma violação da regra estabelecida no artigo 5.o CEDH — ou seja, a liberdade — foram examinados pela autoridade encarregada do controlo de tais decisões, exame que se deve refletir na decisão da referida autoridade (68). O TEDH também não excluiu o recurso a uma presunção no que respeita ao cumprimento dos requisitos legais da manutenção da prisão preventiva, desde que, porém, a existência de factos concretos prevalecentes sobre a regra do artigo 5.o CEDH seja demonstrada de maneira convincente pelas autoridades, a fim de constituir motivos suficientes para legitimar a continuação da privação de liberdade (69).

4.      Conclusão da análise

48.      Consequentemente, resulta do que precede que a Diretiva 2016/343 não pretendeu implementar o direito à liberdade, como consagrado no artigo 6.o da Carta e no artigo 5.o CEDH, mas apenas harmonizar certos aspetos da presunção de inocência (70). O artigo 6.o da Diretiva 2016/343 refere‑se, por conseguinte, à questão do ónus da prova para o apuramento da culpabilidade do arguido. A questão da determinação do ónus da prova com vista a pôr em causa uma decisão de manutenção da prisão preventiva é uma questão diferente, não sendo regulada pelo artigo 6.o da Diretiva 2016/343.

V.      Conclusão

49.      Tendo em conta todas as considerações que precedem, proponho que o Tribunal de Justiça responda à questão prejudicial submetida pelo Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária) do seguinte modo:

O artigo 6.o da Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal, não regula a questão do ónus da prova no que respeita às decisões de manutenção da prisão preventiva.


1      Língua original: francês.


2      V., para um estudo comparativo, van Kalmthout, A. M., Knapen, M. M., e Morgenstern, C. (eds.), Pretrial Detention in the European Union, Wolf Legal Publishers, 2009, p. 994.


3      JO 2016, L 65, p. 1.


4      Retomando a expressão utilizada pelo Parlamento Europeu no n.o 5 da sua Resolução de 27 de fevereiro de 2014, que contém recomendações à Comissão sobre a revisão do mandado de detenção europeu [P7_TA(2014)0174].


5      CE:ECHR:2019:0827JUD003263109.


6      Contudo, como a Comissão indicou na audiência, a redação do artigo 270.o do Código de Processo Penal búlgaro simplesmente não define os papéis respetivos da defesa e da acusação, nem o nível de prova exigido, nem as circunstâncias suscetíveis de ser consideradas «novas», na aceção dessa disposição, o que, na minha opinião, pode deixar ao juiz nacional uma certa margem de apreciação quando for chamado a fazer aplicação dessa disposição, a menos que outros elementos do direito nacional que não tenham sido apresentados neste processo o impeçam.


7      E isto, tanto mais que reconheço sem dificuldade que essa escolha é evidentemente ditada por considerações relacionadas com a proteção da segurança pública.


8      Se me for permitido roubar as palavras ao deão Vedel.


9      Artigo 2.o da Diretiva 2016/343.


10      V. artigo 2.o da Diretiva 2016/343.


11      V., por analogia, Acórdão de 19 de setembro de 2018, Milev (C‑310/18 PPU, EU:C:2018:732, n.o 40).


12      V., nomeadamente, artigos 8.o e 9.o da Diretiva 2016/343 que consagram, respetivamente, o direito de comparecer em julgamento e o direito a um novo julgamento.


13      V. artigo 3.o da Diretiva 2016/343.


14      V. artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343.


15      Artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343. O sublinhado é meu.


16      Considerando 16 da Diretiva 2016/343. O sublinhado é meu.


17      Artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343.


18      Artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2016/343.


19      Considerando 22 da Diretiva 2016/343. O caráter muito articulado do texto deste considerando contrasta com a formulação mais lapidar do artigo 6.o da Diretiva 2016/343, que não contém nenhuma menção às presunções previstas pelo preâmbulo.


20      Como nos ensina o considerando 16 da Diretiva 2016/343.


21      A redação dos considerandos 36 e 37 parece confirmar que, no espírito do legislador, «uma decisão sobre a culpa ou a inocência do suspeito ou do arguido» é, em princípio, a que é proferida no final do processo.


22      Assim, o âmbito de aplicação do artigo 4.o da Diretiva 2016/343 demarca‑se natural e puramente do artigo 6.o da mesma diretiva. O artigo 4.o da Diretiva 2016/343 aplica‑se a declarações públicas de autoridades públicas assim como a decisões judiciais que não estabelecem a culpa, mas também a decisões preliminares de caráter processual, entre as quais decisões sobre a prisão preventiva. Por outro lado, o artigo 6.o desta diretiva visa aplicar‑se apenas às decisões sobre, na minha opinião, a culpa. Para uma outra ilustração desta distinção, v. Acórdão de 5 de setembro de 2019, AH e o. (Presunção de inocência) (C‑377/18, EU:C:2019:670, n.os 34 e 35).


23      Tratar‑se‑ia, então, essencialmente de casos de flagrantes delitos ou de confissões irrefutáveis, se essas confissões existirem. No entanto, a simples existência de «suspeita razoável de ter cometido uma infração» — e não de certezas — é uma das condições para a implementação da exceção ao direito à liberdade e à segurança: v. artigo 5.o, n.o 1, alínea c), CEDH.


24      COM(2013) 821 final.


25      Assim, e tanto quanto sei, não foi dado nenhum seguimento concreto ao Livro Verde de 14 de junho de 2011 «Reforçar a confiança mútua no espaço judiciário europeu — Livro Verde sobre a aplicação da legislação penal da UE no domínio da detenção» [COM(2011) 327 final]. A Comissão referiu‑se ainda, no n.o 16 da exposição de motivos da Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em tribunal em processo penal [COM(2013) 821 final], à Decisão‑Quadro 2009/829/JAI do Conselho, de 23 de outubro de 2009, relativa à aplicação, entre os Estados‑Membros da União Europeia, do princípio do reconhecimento mútuo às decisões sobre medidas de controlo, em alternativa à prisão preventiva (JO 2009, L 294, p. 20). O objetivo desta decisão‑quadro é, como o seu título nos permite antecipar, promover o reconhecimento mútuo de medidas alternativas à prisão preventiva: por conseguinte, não pretende regular a própria prisão preventiva. Reconhece ainda que o direito de beneficiar, no decurso de um processo penal, de uma medida não privativa de liberdade alternativa à prisão preventiva é uma «matéria […] regida pelo direito e procedimentos internos do Estado‑Membro onde decorre o processo penal» (artigo 2.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2009/829).


26      V. alteração 41 do Relatório sobre a proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em tribunal em processo penal (doc. A8‑0133/2015).


27      V. considerandos 2 e 4 da Diretiva 2016/343.


28      Ou seja, o artigo 82.o TFUE, cujo n.o 2 prevê a adoção de regras mínimas sempre que necessário «para facilitar o reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais e a cooperação policial e judiciária nas matérias penais com dimensão transfronteiriça». Estas regras mínimas devem, além disso, ter em conta as diferenças entre as tradições e sistemas jurídicos dos Estados‑Membros e não devem prejudicar a possibilidade de manter ou estabelecer um nível de proteção mais elevado.


29      V. considerandos 4 e 9 e artigo 1.o da Diretiva 2016/343.


30      Acórdão de 27 de outubro de 2016 (C‑439/16 PPU, EU:C:2016:818).


31      V. Acórdão de 27 de outubro de 2016, Milev (C‑439/16 PPU, EU:C:2016:818, n.os 29 a 32).


32      Segundo os termos utilizados no n.o 35 das Conclusões do advogado‑geral M. Bobek no Acórdão Milev (C‑439/16 PPU, EU:C:2016:760).


33      Acórdão de 19 de setembro de 2018 (C‑310/18 PPU, EU:C:2018:732).


34      V. Acórdão de 19 de setembro de 2018, Milev (C‑310/18 PPU, EU:C:2018:732, n.o 38).


35      Acórdão de 19 de setembro de 2018, Milev (C‑310/18 PPU, EU:C:2018:732, n.o 45).


36      Acórdão de 19 de setembro de 2018, Milev (C‑310/18 PPU, EU:C:2018:732, n.o 46).


37      Acórdão de 19 de setembro de 2018, Milev (C‑310/18 PPU, EU:C:2018:732, n.o 47).


38      Acórdão de 19 de setembro de 2018, Milev (C‑310/18 PPU, EU:C:2018:732, n.o 49).


39      Acórdão de 19 de setembro de 2018, Milev (C‑310/18 PPU, EU:C:2018:732, n.o 48). O sublinhado é meu.


40      Acórdão de 19 de setembro de 2018, Milev (C‑310/18 PPU, EU:C:2018:732, n.o 49).


41      Despacho de 12 de fevereiro de 2019, RH (C‑8/19 PPU, EU:C:2019:110).


42      Despacho de 12 de fevereiro de 2019, RH (C‑8/19 PPU, EU:C:2019:110, n.o 49).


43      Por referência ao Acórdão de 19 de setembro de 2018, Milev (C‑310/18 PPU, EU:C:2018:732).


44      Despacho de 12 de fevereiro de 2019, RH (C‑8/19 PPU, EU:C:2019:110, n.o 52).


45      Despacho de 12 de fevereiro de 2019, RH (C‑8/19 PPU, EU:C:2019:110, n.o 57).


46      Despacho de 12 de fevereiro de 2019, RH (C‑8/19 PPU, EU:C:2019:110, n.o 59).


47      Despacho de 12 de fevereiro de 2019, RH (C‑8/19 PPU, EU:C:2019:110, n.o 60). O sublinhado é meu.


48      O facto de o Tribunal de Justiça ter proferido este Despacho com base no artigo 99.o do seu Regulamento de Processo e ter recordado o seu Acórdão Milev [19 de setembro de 2018 (C 310/18 PPU, EU:C:2018:732)], que levantou uma questão semelhante no texto desse Despacho, argumenta a favor de tal interpretação.


49      À primeira vista, poderia parecer estranho complementar a interpretação fornecida do artigo 4.o da Diretiva 2016/343 — que se refere apenas a decisões judiciais que não estatuem sobre a culpa — por referência ao artigo 6.o da mesma diretiva, que cobre as decisões judiciais que estatuem sobre a culpa de suspeitos ou arguidos.


50      V. considerando 1 da Diretiva 2016/343.


51      V. Acórdão de 16 de julho de 2009, Rubach (C‑344/08, EU:C:2009:482, n.o 31 e jurisprudência referida).


52      Artigo 13.o da Diretiva 2016/343.


53      Nos termos do qual «[q]ualquer pessoa presa ou detida nas condições previstas no parágrafo 1, alínea c), do presente artigo deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada num prazo razoável, ou posta em liberdade durante o processo. A colocação em liberdade pode estar condicionada a uma garantia que assegure a comparência do interessado em juízo». O artigo 5.o CEDH corresponde ao artigo 6.o da Carta [v. explicações ao artigo 6.o da Carta. Para uma compreensão, pelo Tribunal de Justiça, de questões de prisão preventiva sob o ângulo do artigo 6.o da Carta, v. Acórdão de 16 de julho de 2015, Lanigan (C‑237/15 PPU, EU:C:2015:474, n.os 54 e seguintes)].


54      TEDH, 27 de agosto de 2019 (CE:ECHR:2019:0827JUD003263109).


55      TEDH, 5 de julho de 2016, Buzadji c. República da Moldávia (CE:ECHR:2016:0705JUD002375507, § 86). No entanto, o TEDH não definiu uma duração máxima fixa para a prisão preventiva: v. relatório elaborado por Pedro Agramunt para a Comissão de Assuntos Jurídicos e Direitos Humanos da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa intitulada «O abuso da prisão preventiva nos Estados partes na [CEDH]» (doc. 13863 de 7 de setembro de 2015, n.o 22). Ver também TEDH, 3 de outubro de 2006, McKay c. Reino Unido (CE:ECHR:2006:1003JUD000054303, § 45), no qual o TEDH justifica a ausência de um limite fixo para a duração máxima da prisão preventiva pela importância dada, durante o seu controlo, às particularidades de cada caso.


56      V., nomeadamente, TEDH, 17 de março de 2016, Rasul Jafarov c. Azerbaijão (CE:ECHR:2016:0317JUD006998114, § 119 e jurisprudência mencionada).


57      V. TEDH, 5 de julho de 2016, Buzadji c. República da Moldávia (CE:ECHR:2016:0705JUD002375507, § 87).


58      V. TEDH, 5 de julho de 2016, Buzadji c. República da Moldávia (CE:ECHR:2016:0705JUD002375507, § 87).


59      V. TEDH, 5 de julho de 2016, Buzadji c. República da Moldávia (CE:ECHR:2016:0705JUD002375507, § 87).


60      TEDH, 5 de julho de 2016, Buzadji c. República da Moldávia (CE:ECHR:2016:0705JUD002375507, § 88).


61      TEDH, 5 de julho de 2016, Buzadji c. República da Moldávia (CE:ECHR:2016:0705JUD002375507, §§ 89 e 90).


62      V. TEDH, 5 de julho de 2016, Buzadji c. República da Moldávia (CE:ECHR:2016:0705JUD002375507, § 91).


63      TEDH, 27 de agosto de 2019 (CE:ECHR:2019:0827JUD003263109).


64      TEDH, 27 de agosto de 2019, Magnitskiy e o. c. Rússia (CE:ECHR:2019:0827JUD003263109, § 222).


65      V., nomeadamente, TEDH, 24 de março de 2016, Zherebin c. Rússia (CE:ECHR:2016:0324JUD005144509, §§ 51, 60 e 62).


66      O TEDH, portanto, não transigiu ao afirmar que «o princípio da presunção de inocência é violado se o ónus da prova for invertido» [TEDH, 31 de março de 2009, Natunen c. Finlândia (CE:ECHR:2009:0331JUD002102204, § 53)], o que contrasta com a ideia de que essa inversão não implica, por si só, uma violação do artigo 5.o, n.o 3, CEDH.


67      V. TEDH, 6 de dezembro de 1988, Barberà, Messegué e Jabardo c. Espanha (CE:ECHR:1988:1206JUD001059083, § 76).


68      V. TEDH, 26 de julho de 2001, Ilijkov c. Bulgária (CE:ECHR:2001:0726JUD003397796 § 86 e 87) e TEDH, 19 de março de 2014, Pastukhov e Yelagin c. Rússia (CE:ECHR:2013:1219JUD005529907, § 40). No seu Acórdão de 10 de março de 2009, Bykov c. Rússia (CE:ECHR:2009:0310JUD000437802, §§ 64 e 65), o TEDH, após recordar a sua posição de princípio quanto à inversão do ónus da prova, a fim de estabelecer a exigência de liberação, concluiu pela violação do artigo 5.o, n.o 3, CEDH, em razão do facto de dez pedidos de liberação terem sido rejeitados para o mesmo suspeito e cada uma das dez decisões de rejeição se limitarem a enumerar os fundamentos legais de manutenção da prisão preventiva, sem os basear em razões pertinentes e suficientes e sem ter em conta a evolução da situação (v. §§ 64 e 65 do referido acórdão).


69      V., para uma presunção considerada compatível com o artigo 5.o, n.o 3, CEDH, TEDH, 24 de agosto de 1998, Contrada c. Itália (CE:ECHR:1998:0824JUD002714395, § 58); v., para o caso inverso, TEDH, 26 de julho de 2001, Ilijkov c. Bulgária (CE:ECHR:2001:0726JUD003397796, §§ 84 e seguintes). Neste último acórdão, o TEDH insiste no caráter lacónico da motivação da decisão (v., particularmente, § 86 do referido acórdão).


70      O resumo da análise de impacto insiste no facto de que o objetivo geral da Diretiva 2016/343 é garantir o direito a um processo equitativo e que não poderá haver um processo equitativo se for violada a presunção de inocência [v. n.o 1 do resumo da análise de impacto que acompanha o documento «Proposta de medidas para o reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal», doc. SWD (2013) 479 final, de 27 de novembro de 2013]. A questão do direito à liberdade afigura‑se, portanto, estranha à Diretiva 2016/343.