Language of document : ECLI:EU:C:2019:22

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NILS WAHL

apresentadas em 15 de janeiro de 2019 (1)

Processo C‑52/18

Christian Fülla

contra

Toolport GmbH

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Amtsgericht Norderstedt (Tribunal de Primeira Instância de Norderstedt, Alemanha)]

«Pedido de decisão prejudicial — Proteção dos consumidores — Diretiva 1999/44/CE — Venda de bens de consumo — Direitos do consumidor — Falta de conformidade do bem entregue — Reposição da conformidade do bem a posteriori — Obrigações do vendedor — Determinação do lugar onde o bem deve ser colocado à disposição para reparação ou substituição (lugar da correção do cumprimento) — Significado de “grave inconveniente para o consumidor” — Significado de “reparação sem encargos” — Direito à resolução do contrato»






1.        Na venda a consumidores, quando um bem é adquirido ao abrigo de um contrato à distância e posteriormente se revela não conforme com esse contrato, existe no direito da União uma regra definitiva que fixe o lugar onde o consumidor deve colocar à disposição do vendedor esse bem para que seja reposta a sua conformidade?

2.        Na era do comércio digital, esta questão é de importância crescente, em particular quando se trata de bens de consumo pesados ou volumosos. No caso em apreço, objeto do reenvio do Amtsgericht Norderstedt (Tribunal de Primeira Instância de Norderstedt, Alemanha), é alegado que uma tenda para festas de 5 metros por seis foi entregue com defeitos.

3.        Para responder à questão, o Tribunal de Justiça deverá pronunciar‑se sobre vários problemas regulados pela Diretiva 1999/44/CE, relativa a certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas (a seguir «Diretiva») (2).

I.      Quadro jurídico

A.      Direito da União

4.        A Diretiva harmonizou, em certa medida, a obrigação do vendedor de repor a conformidade dos bens de consumo com o contrato.

5.        O preâmbulo da Diretiva dispõe o seguinte:

«(1)      Considerando que o n.o 1 e 3 do artigo 153.o do Tratado estabelece que a Comunidade deve contribuir para a realização de um nível elevado de defesa dos consumidores através de medidas adotadas nos termos do artigo 95.o;

(2)      Considerando que o mercado interno comporta um espaço sem fronteiras internas no qual é assegurada a livre circulação de mercadorias, de pessoas, de serviços e de capitais; que a livre circulação de mercadorias não respeita apenas ao comércio profissional, mas também às transações efetuadas pelos particulares; que implica que os consumidores residentes num Estado‑Membro possam adquirir bens no território de outro Estado‑Membro com base num conjunto mínimo de regras equitativas que regulem a venda de bens de consumo;

[…]

(12)      Considerando que, em caso de falta de conformidade, o vendedor pode sempre oferecer ao consumidor, como solução, qualquer outra forma de reparação possível; que compete ao consumidor decidir se aceita ou rejeita essa proposta;

[…]

(19)      Considerando que os Estados‑Membros devem poder fixar um prazo durante o qual os consumidores devem informar o vendedor de qualquer falta de conformidade; que os Estados‑Membros podem assegurar aos consumidores um nível de proteção mais elevado não introduzindo uma obrigação desse tipo; que, de qualquer modo, os consumidores comunitários devem dispor de, pelo menos, dois meses para informar o vendedor da existência da falta de conformidade;»

6.        O artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva, prevê:

«Presume‑se que os bens de consumo são conformes com o contrato, se:

(a)      Forem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor e possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo;

(b)      Forem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha [aceitado];

(c)      Forem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;

(d)      Apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.»

7.        O artigo 3.o da Diretiva respeita aos direitos dos consumidores quanto aos contratos de venda de bens de consumo e às garantias a esta relativas. Dispõe o seguinte:

«1.      O vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue.

2.      Em caso de falta de conformidade, o consumidor tem direito a que a conformidade do bem seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, nos termos do n.o 3, a uma redução adequada do preço, ou à rescisão do contrato no que respeita a esse bem, nos termos dos n.os 5 e 6.

3.      Em primeiro lugar, o consumidor pode exigir do vendedor a reparação ou a substituição do bem, em qualquer dos casos sem encargos, a menos que isso seja impossível ou desproporcionado.

Presume‑se que uma solução é desproporcionada se implicar para o vendedor custos que, em comparação com a outra solução, não sejam razoáveis, tendo em conta:

–        o valor que o bem teria se não existisse falta de conformidade,

–        a importância da falta de conformidade,

–        a possibilidade de a solução alternativa ser concretizada sem grave inconveniente para o consumidor.

A reparação ou substituição deve ser realizada dentro de um prazo razoável, e sem grave inconveniente para o consumidor, tendo em conta a natureza do bem e o fim a que o consumidor o destina.

4.      A expressão “sem encargos” constante dos n.os 2 e 3 reporta‑se às despesas necessárias incorridas para repor o bem em conformidade, designadamente as despesas de transporte, de mão‑de‑obra e material.

5.      O consumidor pode exigir uma redução adequada do preço, ou a rescisão do contrato:

–        se o consumidor não tiver direito a reparação nem a substituição, ou

–        se o vendedor não tiver encontrado uma solução num prazo razoável, ou

–        se o vendedor não tiver encontrado uma solução sem grave inconveniente para o consumidor.

6.      O consumidor não tem direito à rescisão do contrato se a falta de conformidade for insignificante.»

8.        Por outro lado, o artigo 8.o, n.o 2, prevê que «[o]s Estados‑Membros podem adotar ou manter, no domínio regido pela presente diretiva, disposições mais estritas, compatíveis com o Tratado, com o objetivo de garantir um nível mais elevado de proteção do consumidor».

B.      Direito alemão

9.        A Diretiva foi transposta para o direito alemão através de alterações ao Bürgerliche Gesetzbuch (Código Civil Alemão: a seguir «BGB»).

10.      O § 439 do BGB prevê, quanto à correção do cumprimento:

«1)      O comprador pode exigir, de acordo com a sua preferência, a reparação do defeito ou a entrega do bem sem defeitos, através da correção do cumprimento.

2)      O vendedor pagará as despesas necessárias para efeitos do cumprimento a posteriori, incluindo, em especial, as despesas de transporte, remessa, mão‑de‑obra e material.

3)      […] o vendedor pode recusar a forma de cumprimento a posteriori escolhida pelo adquirente se tal cumprimento apenas for possível com um custo desproporcionado. A este respeito, haverá que ter em conta, em especial, o valor que os bens teriam se não existisse falta de conformidade, a importância da falta de conformidade e se a solução alternativa poderá ser efetuada sem grave inconveniente para o adquirente. Em tais casos, o direito do adquirente será restringido ao meio alternativo de cumprimento a posteriori no respeito das condições descritas no primeiro período, porém, sem prejuízo do direito do vendedor a também recusar a solução alternativa.

4)      Quando um vendedor entregue bens isentos de defeito para efeitos do cumprimento a posteriori, pode exigir ao comprador a restituição dos bens defeituosos nos termos dos §§ 346 a 348.»

11.      Em relação ao lugar da prestação, o § 269 do BGB dispõe o seguinte:

«1)      Quando o lugar da prestação não estiver determinado nem puder ser deduzido das circunstâncias, em especial da natureza da obrigação, deve a mesma ser realizada no lugar onde o devedor tinha a sua residência no momento da constituição da obrigação.

2)      Quando a obrigação se tenha constituído no âmbito do exercício de uma atividade comercial ou industrial do devedor e este tenha o seu estabelecimento comercial ou industrial em lugar diferente do seu domicílio, o lugar desse estabelecimento substitui o do domicílio.

3)      O simples facto de o devedor ter assumido as despesas de expedição não permite, por si só, concluir que o lugar de destino da expedição é o da prestação.»

II.    Matéria de facto, tramitação do processo e questões prejudiciais

12.      Em 2015, o demandante no processo principal comprou à demandada, por telefone, uma tenda de 5x6 metros (descrita como «Partytent»). A tenda foi entregue no lugar do domicílio do demandante. O demandante alegou então que a tenda tinha determinados defeitos. A demandada rejeitou a reclamação por a considerar infundada.

13.      O demandante exigiu a correção do cumprimento, isto é, que os defeitos fossem reparados ou que lhe fosse entregue uma outra tenda. No entanto, o demandante não enviou o bem em causa à demandada, nem sequer se ofereceu para o fazer.

14.      Nessa fase, não houve qualquer discussão entre as partes sobre o lugar do cumprimento. O contrato celebrado entre as partes também é omisso a esse respeito.

15.      No entanto, no âmbito do processo principal, a demandada veio alegar, pela primeira vez, que o lugar da correção do cumprimento é o do seu estabelecimento.

16.      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a determinação do lugar da correção do cumprimento é indispensável para saber se o demandante deu à demandada uma oportunidade para reparar os defeitos ou um prazo razoável na aceção do artigo 3.o, n.o 5, segundo travessão, a fim de poder resolver o contrato.

17.      Por ter dúvidas sobre a correta interpretação das disposições pertinentes do direito da União, o Amtsgericht Norderstedt (Tribunal de Primeira Instância de Norderstedt) decidiu suspender a instância e submeter as seguintes questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça:

«1)      Deve o artigo 3.o, n.o 3, terceiro parágrafo, da [Diretiva] ser interpretado no sentido de que é sempre e apenas no lugar [onde] o bem de consumo adquirido à distância se encontra que o consumidor o deve colocar à disposição do profissional para que este o possa reparar ou substituir?

2)      Em caso de resposta negativa à questão anterior:

Deve o artigo 3.o, n.o 3, terceiro parágrafo, da [Diretiva] ser interpretado no sentido de que é sempre no lugar [do estabelecimento] do profissional que o consumidor deve colocar o bem de consumo adquirido à distância à disposição deste para que o possa reparar ou substituir?

3)      Em caso de resposta negativa à questão anterior:

Quais os critérios que se podem deduzir do artigo 3.o, n.o 3, terceiro parágrafo, da [Diretiva] [para determinar] lugar [onde] o consumidor deve colocar à disposição do profissional o bem de consumo adquirido à distância para que o possa reparar ou substituir?

4)      No caso de o lugar [onde] o consumidor deve colocar à disposição do profissional o bem de consumo adquirido à distância, para [inspeção] e correção do cumprimento, se situar — sempre ou no caso concreto — [no estabelecimento] do profissional:

É compatível com o artigo 3.o, n.o 3, primeiro parágrafo, conjugado com o artigo 3.o, n.o 4, da [Diretiva], que um consumidor tenha de adiantar as despesas do transporte do bem de consumo para esse lugar e[/ou] para o respetivo reenvio, ou resulta da obrigação de “reparação sem encargos” que o vendedor tem a obrigação de [lhe pagar] um adiantamento?

5)      No caso de o lugar no qual o consumidor deve colocar à disposição do profissional o bem de consumo adquirido à distância, para [inspeção] e correção do cumprimento, se situar — sempre ou no caso concreto — [no estabelecimento] do profissional, e de a obrigação do consumidor de adiantar as despesas ser compatível com o artigo 3.o, n.o 3, primeiro parágrafo, conjugado com o artigo 3.o, n.o 4, da [Diretiva]:

Deve o artigo 3.o, n.o 3, terceiro parágrafo, conjugado com o artigo 3.o, n.o 5, segundo travessão, da [Diretiva] ser interpretado no sentido de que um consumidor que se limitou a indicar o defeito ao profissional sem propor o transporte do bem [até ao] estabelecimento do profissional não pode exigir a resolução do contrato?

6)      No caso de o lugar [onde] o consumidor deve colocar à disposição do profissional o bem de consumo adquirido à distância para [inspeção] e correção do cumprimento se situar — sempre ou no caso concreto — na sede do profissional, mas […] a obrigação do consumidor de adiantar as despesas não ser compatível com o artigo 3.o, n.o 3, primeiro parágrafo, conjugado com o artigo 3.o, n.o 4, da [Diretiva]:

Deve o artigo 3.o, n.o 3, terceiro parágrafo, conjugado com o artigo 3.o, n.o 5, segundo travessão, da [Diretiva] ser interpretado no sentido de que um consumidor que se limitou a indicar o defeito ao profissional sem propor o transporte do bem de consumo para o estabelecimento do profissional não pode exigir a resolução do contrato?»

18.      Foram apresentadas observações escritas no âmbito do presente processo pelos Governos alemão e francês e pela Comissão Europeia. Em conformidade com o artigo 76.o, n.o 2, do Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça decidiu não realizar audiência.

III. Análise

19.      Com o seu pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, como se determina o lugar do cumprimento para correção de defeitos de um bem de consumo através da sua reparação ou substituição, assim como os respetivos efeitos no direito do consumidor de resolver o contrato.

20.      Porém, antes de tratar das questões prejudiciais, devo analisar o argumento do Governo alemão de que o pedido do órgão jurisdicional de reenvio é inadmissível.

A.      Admissibilidade

21.      O Governo alemão alega que a admissibilidade do pedido de decisão prejudicial é «no mínimo, duvidosa». Argumenta que tanto a descrição dos factos do processo como a apresentação das disposições pertinentes do direito nacional são rudimentares. Para responder às questões prejudiciais, o Tribunal de Justiça teria de funcionar com base em inúmeras hipóteses e suposições.

22.      Embora o Governo alemão admita que, com base na jurisprudência do Tribunal de Justiça, existe uma presunção a favor da admissibilidade dos pedidos de decisão prejudicial, sugere que, no mínimo, as questões submetidas sejam reformuladas.

23.      Recorde‑se que, no âmbito de um processo nos termos do artigo 267.o TFUE, fundado numa nítida separação de funções entre os tribunais nacionais e o Tribunal de Justiça, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades de cada processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões colocadas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a decidir (3).

24.      Com efeito, a recusa de se pronunciar sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional só é possível quando for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem qualquer relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for de natureza hipotética ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para responder utilmente às questões que lhe são submetidas (4).

25.      Entendo que estas condições não estão preenchidas no caso em apreço.

26.      O órgão jurisdicional de reenvio descreveu os factos do processo principal, bem como as disposições pertinentes do direito nacional, de forma concisa mas suficientemente clara, de modo que o Tribunal de Justiça dispõe de todos os elementos de facto e de direito necessários para proferir uma decisão.

27.      Resulta do pedido de decisão prejudicial que o órgão jurisdicional de reenvio pretende obter uma interpretação da Diretiva a fim de determinar o lugar do cumprimento para reparação dos defeitos do bem em causa, e, consequentemente, se o demandante no processo principal pode resolver o contrato.

28.      Tendo em conta o que foi anteriormente exposto, as questões submetidas devem ser consideradas admissíveis e analisadas quanto ao seu mérito.

B.      Quanto ao mérito

29.      Em alternativa à declaração de inadmissibilidade do pedido do órgão jurisdicional de reenvio, o Governo alemão sugere que as questões submetidas pelo Amtsgericht Norderstedt (Tribunal de Primeira Instância de Norderstedt) sejam reformuladas. A este respeito, propõe que as questões prejudiciais devem ser interpretadas no sentido de que se pretende saber se as disposições alemãs pertinentes são incompatíveis com uma interpretação correta da Diretiva.

30.      A meu ver, as questões prejudiciais não devem ser reformuladas. O órgão jurisdicional nacional que proferiu a decisão de reenvio é o mais indicado para determinar o conteúdo das questões necessárias para resolver o processo submetido à sua apreciação.

31.      No entanto, sou de opinião que algumas das questões submetidas pelo Amtsgericht Norderstedt (Tribunal de Primeira Instância, Norderstedt) podem ser melhor analisadas em conjunto.

32.      Das questões prejudiciais decorrem três problemas distintos relativos à interpretação do artigo 3.o da Diretiva. Com a sua primeira, segunda e terceira questões, o órgão jurisdicional de reenvio procura, em substância, determinar o lugar onde o bem de consumo deve ser colocado à disposição para que seja reposta a sua conformidade (lugar de correção do cumprimento). A quarta questão prejudicial procura, em seguida, saber se decorre ou não do requisito de uma «reparação sem encargos» que o vendedor tem a obrigação de pagar um adiantamento para suportar quaisquer despesas de transporte em que o consumidor possa incorrer para colocar os bens à sua disposição. Por último, a quinta e sexta questões prejudiciais dizem respeito às circunstâncias em que o consumidor pode ter o direito de resolver um contrato no caso de lhe ter sido entregue um bem não conforme.

33.      Após algumas observações preliminares sobre o contexto e a finalidade da Diretiva e do seu artigo 3.o, estes três problemas serão abordados sucessivamente.

1.      Observações preliminares

34.      A Diretiva faz parte dos esforços do legislador da União com vista a garantir, aos consumidores de toda a União Europeia, um nível de proteção mínimo uniforme do cumprimento defeituoso do contrato de venda de bens de consumo. Esta proteção destina‑se a incentivar e a facilitar compras transfronteiriças pelos consumidores (5).

35.      No entanto, a Diretiva não tem apenas como objetivo alcançar um elevado nível de proteção do consumidor. Visa também manter um certo equilíbrio entre as obrigações das várias partes. Por um lado, a Diretiva determina as obrigações dos vendedores no caso de bens de consumo não conformes. Por outro lado, a Diretiva estabelece obrigações que os consumidores devem cumprir para não perder os seus direitos (6).

36.      Nesse sentido, o objetivo geral da Diretiva não é acrescentar obrigações contratuais às acordadas entre as partes, mas sim facilitar o cumprimento das obrigações acordadas. Apenas em caso de cumprimento defeituoso do contrato por parte do vendedor são impostas outras obrigações que podem, em certos casos, exceder as obrigações previstas no contrato (7).

37.      Porém, há que ter em conta que a Diretiva não visa colocar os consumidores numa posição mais favorável do que a que podiam invocar ao abrigo do contrato de venda, mas apenas tentar restabelecer a situação que existiria se o vendedor tivesse entregado os bens em conformidade com o contrato. A este respeito, é importante notar que a Diretiva prevê um nível de proteção mínimo. Os Estados‑Membros podem adotar disposições mais estritas, mas não podem prejudicar as garantias previstas pelo legislador da União (8).

38.      Por último, importa ainda sublinhar que a Diretiva apenas regula aspetos estritamente ligados à proteção dos consumidores quando adquirem bens que não estão em conformidade com o contrato. Questões relativas à formação do contrato entre as partes, vícios do contrato, efeitos do contrato ou outras formas de incumprimento parcial não são tratadas por este instrumento e estão sujeitas apenas ao direito nacional (9).

39.      O artigo 3.o da Diretiva estabelece, especificamente, os direitos de um consumidor a quem tenham sido vendido bens de consumo que não estão em conformidade com o contrato no momento em que são entregues. A disposição reflete os mesmos princípios orientadores da Diretiva em geral.

40.      Assim, o artigo 3.o, n.o 1, estabelece que um vendedor é responsável perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem é entregue. Nos casos em que o vendedor entrega um bem não conforme, não executa corretamente a obrigação à qual se tinha comprometido através do contrato de venda e deve, assim, assumir as consequências dessa má execução do contrato (10).

41.      Segundo o artigo 3.o, n.o 2, o consumidor tem, nestas circunstâncias, o direito a que os bens sejam reparados ou substituídos sem encargos, a uma redução adequada do preço ou à resolução do contrato no que respeita a esses bens. Resulta do artigo 3.o, n.o 5, que a Diretiva privilegia a manutenção das obrigações decorrentes do contrato de venda. O consumidor deve dar ao vendedor a oportunidade de reparar ou substituir os bens de consumo em causa. Só se o vendedor não o fizer, é que o consumidor tem direito a uma redução do preço ou a resolver o contrato (11).

42.      O artigo 3.o, n.o 3, estabelece determinadas condições para a reposição da conformidade do bem através de reparação ou de substituição. A conformidade do bem deve ser reposta sem encargos, dentro de um prazo razoável e sem grave inconveniente para o consumidor. Conforme referiu anteriormente o Tribunal de Justiça, esta tripla exigência constitui a expressão da vontade manifestada pelo legislador da União de garantir aos consumidores uma proteção efetiva (12).

43.      Ao mesmo tempo, a Diretiva também tem em conta os interesses do vendedor. Em primeiro lugar, prevê um prazo máximo de dois anos para apresentação de reclamações (13). Em segundo lugar, o vendedor pode recusar a reparação ou a substituição do bem sempre que a reposição da conformidade seja impossível ou desproporcionada (14).

44.      Como o Tribunal de Justiça sublinhou no Acórdão Gebr. Weber e Putz, o artigo 3.o visa, assim, estabelecer um justo equilíbrio entre os interesses do consumidor e os do vendedor, garantindo ao primeiro, enquanto parte débil no contrato, uma proteção completa e eficaz contra uma má execução pelo vendedor das suas obrigações contratuais, permitindo simultaneamente atender a considerações de ordem económica invocadas por este último (15).

45.      À semelhança de outros instrumentos do direito da UE em matéria de consumo, a Diretiva procura restabelecer o equilíbrio na relação entre o consumidor e o vendedor, constituindo, assim, uma expressão do princípio da liberdade contratual de que gozam as partes. No entanto, a Diretiva não procura colocar o consumidor numa posição particularmente favorável (16).

46.      Os problemas suscitados pelo presente pedido de decisão prejudicial devem ser apreciados à luz desta lógica subjacente à Diretiva.

2.      Onde deve ser colocado à disposição o bem de consumo para que seja reposta a sua conformidade (lugar da correção do cumprimento)?

47.      Com a sua primeira, segunda e terceira questões, o órgão jurisdicional de reenvio procura, em substância, determinar o lugar onde o bem de consumo deve ser colocado à disposição para que seja reposta a sua conformidade (lugar da correção do cumprimento). A resposta determinará se basta que o consumidor coloque à disposição o bem em causa no lugar onde se encontra (habitualmente o lugar do seu domicílio), ou se o consumidor deve colocar o bem à disposição no lugar do estabelecimento do vendedor.

48.      As partes que apresentaram observações adotaram pontos de vista divergentes sobre esta questão, que constitui o cerne do presente pedido de decisão prejudicial.

49.      Enquanto o Governo francês e a Comissão sublinham o nível elevado de proteção dos consumidores prosseguido pela Diretiva, o Governo francês alega que os requisitos para a reposição da conformidade previstos no artigo 3.o da Diretiva apenas podem ser preenchidos se o consumidor tiver simplesmente de colocar os bens à disposição no lugar onde se encontram. A Comissão, por seu turno, defende a visão mais matizada de que o consumidor pode ser obrigado a colocar o bem à disposição no lugar do estabelecimento do vendedor, exceto quando tal constitua um grave inconveniente para o consumidor.

50.      O Governo alemão sustenta que o requisito de que a reposição da conformidade do bem sem encargos para o consumidor não constitui indicação suficiente de que o bem deve ser sempre colocado à disposição no lugar onde se encontra. Além disso, argumenta que decorre do requisito de uma reposição «sem grave inconveniente para o consumidor» que podem ser impostos pequenos inconvenientes ao consumidor. Como o tempo e o esforço envolvidos na colocação do bem à disposição no lugar do estabelecimento do vendedor podem variar, o lugar onde o bem deve ser colocado à disposição para que seja reposta a sua conformidade com o contrato depende das circunstâncias específicas de cada caso concreto.

51.      O artigo 3.o não determina expressamente onde o bem não conforme deve ser colocado à disposição para reparação ou substituição, nem, tanto quanto é do meu conhecimento, esta questão foi anteriormente abordada pelo Tribunal de Justiça.

52.      No entanto, embora não preveja expressamente onde deve o bem de consumo defeituoso deve ser colocado à disposição a fim de ser resposta a sua conformidade, o artigo 3.o estabelece determinados requisitos a esse respeito. Tal como acima referido, a reparação ou a substituição do bem de consumo não conforme deve ser efetuada sem encargos, num prazo razoável e sem grave inconveniente para o consumidor.

a)      Requisito de uma reposição da conformidade do bem sem encargos

53.      O requisito de que a conformidade do bem seja reposta sem encargos é definido pelo artigo 3.o, n.o 4, que especifica que a expressão se refere a «despesas necessárias incorridas para repor o bem em conformidade, designadamente as despesas de transporte, de mão‑de‑obra e material».

54.      O Tribunal de Justiça observou no Acórdão Gebr. Weber e Putz que o legislador da União pretendeu fazer da gratuitidade da reposição em conformidade do bem pelo vendedor um elemento essencial da proteção assegurada ao consumidor pela Diretiva. Esta exigência visa proteger o consumidor contra o risco de encargos financeiros que o poderiam demover de exercer os seus direitos caso essa proteção não existisse (17).

55.      Contudo, o artigo 3.o, n.o 3, também prevê que o vendedor pode recusar a reparação ou a substituição do bem sem encargos sempre que isso seja impossível ou desproporcionado. Considera‑se desproporcionada uma solução que impõe ao vendedor custos não razoáveis (18).

56.      Nesse sentido, a Diretiva tem em conta não apenas a proteção do consumidor, mas também considerações de ordem económica do vendedor. Se o vendedor tivesse de suportar custos desproporcionados para reparar ou substituir bens não conformes isso acabaria por levá‑lo a aumentar os seus preços. Os custos assim incorridos seriam, além do mais, transferidos para os consumidores em geral.

57.      No entanto, não é clara a questão de saber se o requisito «sem encargos» significa que o consumidor apenas tem o direito de ser reembolsado de quaisquer custos incorridos no âmbito da reposição da conformidade dos bens ou se tem o direito de ser ressarcido sem qualquer contribuição (financeira ou outra) da parte dele.

58.      Considero que a resposta a esta questão se prende com os outros dois requisitos mencionados no artigo 3.o da Diretiva.

b)      Requisito de uma reposição da conformidade do bem dentro de um prazo razoável

59.      O artigo 3.o, n.o 3, também prevê, no seu parágrafo terceiro, que qualquer reparação ou substituição deve estar concluída dentro de um prazo razoável. Este requisito respeita ao objetivo do legislador da União de resolver todas as questões entre o consumidor e o vendedor, de forma rápida e amigável (19).

60.      Colocar o bem à disposição no lugar do estabelecimento do vendedor pode, em determinadas circunstâncias, assegurar uma rápida reparação ou substituição. Em tais circunstâncias, poderia decorrer muito tempo até que o vendedor pudesse fazer uma inspeção no lugar onde se encontra o bem ou promover o seu transporte para o lugar do seu estabelecimento, sobretudo se esse lugar se situar num país diferente.

61.      Por outro lado, se o vendedor já dispuser de uma rede logística para a entrega do bem no lugar onde este se encontra, pode ser mais rápido e mais económico para o vendedor inspecionar o bem nesse lugar, ou promover o seu transporte.

62.      Por conseguinte, considerado apenas numa perspetiva de conveniência, parece que o lugar onde o bem de consumo deve ser colocado à disposição para que seja reposta a sua conformidade depende das circunstâncias de cada caso.

c)      Requisito de uma reposição da conformidade do bem sem grave inconveniente para o consumidor

63.      O terceiro requisito do artigo 3.o, n.o 3, é que a reposição da conformidade do bem deve ser feita sem grave inconveniente para o consumidor. Na determinação da gravidade do inconveniente devem ter‑se em conta a natureza do bem e o fim a que o consumidor o destina (20).

64.      Por conseguinte, o lugar onde o bem deve ser colocado à disposição para que seja reposta a sua conformidade (lugar da correção do cumprimento) não pode ser escolhido de forma a causar um grave inconveniente para o consumidor. A contrario, pode concluir‑se que o consumidor deve, no entanto, aceitar inconvenientes insignificantes ou menores na reparação ou substituição do bem. Segundo a redação do artigo 3.o, n.o 3, terceiro parágrafo, para apreciar se algo constitui um grave inconveniente para o consumidor, deve ter‑se em conta a natureza do bem e o fim a que o consumidor o destina.

65.      No Acórdão Gebr. Weber e Putz, o Tribunal de Justiça declarou que, tendo em conta o elevado nível de proteção do consumidor pretendido pela Diretiva, a expressão «sem grave inconveniente para o consumidor» não pode ser interpretada de forma restritiva (21).

66.      À primeira vista, esta afirmação pode parecer um pouco contraditória. Ao qualificar o inconveniente como grave, parece que o legislador da União pretendeu estabelecer um limiar bastante elevado para o tipo de inconveniente que o consumidor terá de tolerar. Contudo, interpretar a expressão de uma forma ampla irá reduzir esse limiar.

67.      Na minha opinião, para interpretar a referida expressão deve encontrar‑se um ponto de equilíbrio entre o interesse de proteção do consumidor e o de não frustrar a eficácia da qualificação introduzida pelo legislador da União. Considero, por conseguinte, que, mesmo à luz da afirmação do Tribunal de Justiça no Acórdão Gebr. Weber e Putz, a referida expressão não pode, em qualquer caso, levar a uma interpretação que favoreça particularmente os interesses do consumidor. Isto é sobretudo verdade à luz do objetivo da Diretiva de estabelecer um equilíbrio justo entre, por um lado, os interesses do consumidor e, por outro, as considerações de ordem económica do vendedor.

68.      Por conseguinte, na minha opinião, existe um grave inconveniente para o consumidor quando o encargo financeiro é de tal ordem que pode demover o consumidor de exercer os seus direitos (22). No entanto, tal como acontece com outros instrumentos jurídicos de proteção do consumidor da UE, a avaliação não pode ser feita com base no que poderia demover um consumidor individual de exercer os seus direitos. Em vez disso, como ponto de referência na avaliação, deve ser usado o padrão relativo ao tipo de encargo financeiro que demoveria o consumidor médio (23).

69.      Para assegurar uma reparação ou substituição rápida, o consumidor médio pode estar disposto a promover o transporte do bem em causa para o lugar do estabelecimento do vendedor ou a colocá‑lo à disposição numa estação de serviço próxima. No entanto, isso geralmente dependerá da natureza do bem. Quando o bem em causa é bastante compacto e pode facilmente ser enviado por correio normal, pode presumir‑se que colocar o bem à disposição no lugar do estabelecimento do vendedor não causará qualquer inconveniente grave ao consumidor. Se, pelo contrário, o bem for volumoso ou necessitar de manuseamento especial, o consumidor ficará mais relutante em promover o transporte por conta própria.

70.      Assim, o lugar onde o bem deve ser colocado à disposição para preencher os requisitos do artigo 3.o, n.o 3, parece depender das circunstâncias específicas de cada caso concreto.

71.      De qualquer modo, estas considerações são válidas para bens comprados à distância. No caso de o consumidor ter adquirido o bem no lugar do estabelecimento do vendedor e, além disso, o bem não exigir uma instalação específica, pode presumir‑se, na minha opinião, que a colocação do bem à disposição no lugar do estabelecimento do vendedor não constitui um inconveniente grave para o consumidor.

d)      Considerações adicionais

72.      Pode defender‑se que basear a determinação do lugar onde o bem deve ser colocado à disposição para reparação ou substituição numa avaliação circunstancial não oferece grande grau de segurança jurídica. Pode haver situações em que não é evidente, desde o início, onde o bem deve ser colocado à disposição para que seja reposta a sua conformidade.

73.      No entanto, a segurança pode ser reforçada pelas medidas tomadas pelos vendedores ou pelos Estados‑Membros.

74.      Em primeiro lugar, no interesse da satisfação do consumidor, bem como de uma resolução rápida e amigável dos problemas de conformidade, os vendedores podem fornecer voluntariamente determinados serviços pós‑venda (tais como inspeções dos eletrodomésticos defeituosos no domicílio do consumidor ou franquia gratuita das devoluções). Na realidade, é o que já acontece em certas ordens jurídicas.

75.      Em segundo lugar, como a Diretiva constitui uma medida de harmonização mínima e confere alguma margem de manobra aos Estados‑Membros, estes podem determinar, nas suas disposições nacionais, o lugar onde o bem deve ser colocada à disposição, tendo em conta os requisitos impostos pelo artigo 3.o, n.o 3. Além disso, de acordo com o artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva, os Estados‑Membros podem sempre adotar ou manter em vigor disposições mais estritas para um nível mais elevado de defesa do consumidor. Assim, no interesse da segurança jurídica, os Estados‑Membros podem aprovar regras específicas para determinadas categorias de bens.

76.      Concluindo sobre a primeira, segunda e terceira questões prejudiciais, proponho ao Tribunal de Justiça que responda no sentido de que o artigo 3.o, n.o 3, terceiro parágrafo, da Diretiva deve ser interpretado no sentido de que o lugar onde o consumidor tem de colocar o bem adquirido à distância à disposição de um profissional, a fim de permitir a sua reparação ou substituição, deve ser determinado pelo órgão jurisdicional nacional em função de todas as circunstâncias pertinentes do processo que lhe foi submetido. A este respeito, o lugar onde o bem tem de ser colocado à disposição deve ser de molde a assegurar a sua reparação ou substituição sem encargos, dentro de um prazo razoável e sem inconveniente grave para o consumidor, tendo em conta a natureza do bem e o fim a que o consumidor o destina.

77.      Para a eventualidade de o órgão jurisdicional de reenvio concluir que, neste caso específico, o consumidor deve colocar o bem em causa à disposição no lugar do estabelecimento do vendedor, será analisada a seguir a questão de saber se o consumidor tem direito a um adiantamento relativo a quaisquer despesas de transporte em que possa incorrer.

3.      O requisito de uma «reparação sem encargos» dá ao consumidor o direito a um adiantamento relativo às despesas de transporte?

78.      Com a quarta questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se decorre ou não do requisito de uma «reparação sem encargos» que o vendedor tem de pagar adiantadamente quaisquer despesas de transporte em que o consumidor possa incorrer para colocar o bem à disposição do vendedor.

79.      A expressão «sem encargos» encontra‑se definida no artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva no sentido de que se refere às «despesas necessárias incorridas para repor o bem em conformidade, designadamente as despesas de transporte, de mão de obra e material». Como o Tribunal de Justiça já salientou no Acórdão Quelle, resulta da utilização do advérbio «designadamente» pelo legislador da União que esta enumeração tem caráter indicativo, e não exaustivo (24).

80.      Resulta claramente do artigo 3.o, n.o 4, que o consumidor não é, em caso algum, responsável pelas despesas de transporte incorridas para devolver um bem não conforme ao vendedor. Contudo, tal como referido no n.o 57, supra, é menos clara a questão de saber se resulta desta disposição que o requisito «sem encargos» inclui simplesmente o direito de o consumidor ser reembolsado de quaisquer custos resultantes da reposição da conformidade do bem, ou, antes, que não pode ser exigida nenhuma contribuição financeira, mesmo temporária, ao consumidor durante esse procedimento.

81.      No Acórdão Gebr. Weber e Putz, o Tribunal de Justiça parece ter aceitado implicitamente a última interpretação (25). Além disso, o Tribunal de Justiça declarou nesse acórdão que resulta tanto do teor da Diretiva como, de resto, dos respetivos trabalhos preparatórios pertinentes que o legislador da União pretendeu fazer da gratuitidade da reposição da conformidade do bem pelo vendedor um elemento essencial da proteção assegurada ao consumidor pela Diretiva. Esta obrigação de gratuitidade da reposição da conformidade do bem que incumbe ao vendedor, sob a forma de uma reparação ou de uma substituição do bem não conforme, visa proteger o consumidor contra o risco de encargos financeiros que o poderiam demover de exercer os seus direitos caso essa proteção não existisse (26).

82.      Daqui poderia concluir‑se que o consumidor deve receber sempre o pagamento adiantado dos custos de transporte.

83.      Contudo, a Diretiva não visa apenas proteger os interesses do consumidor. A Diretiva também procura equilibrar estes interesses com os aspetos económicos do vendedor. Além disso, a Diretiva preconiza uma rápida resolução dos problemas de conformidade.

84.      O adiantamento das despesas de transporte pelo vendedor aumentará sempre o tempo necessário para assegurar a conformidade do bem. Além disso, o pagamento adiantado das despesas de transporte pode impor ao vendedor um encargo administrativo desproporcionado. Isto acontecerá, sobretudo, quando se conclua, através de inspeção, que o bem em causa, afinal, não é defeituoso.

85.      Por conseguinte, considero que é compatível com a ratio legis da Diretiva que os consumidores tenham de antecipar as despesas de transporte para que os bens possam ser inspecionados ou para repor a sua conformidade no lugar do estabelecimento do vendedor. Contudo, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, as despesas de transporte não podem ser tão elevadas que representem um encargo financeiro suscetível de demover o consumidor de exercer os seus direitos.

86.      A questão de saber se esse limiar é ou não atingido deve ser determinada com base em todas as circunstâncias de cada caso concreto, tendo em conta fatores como o montante das despesas de transporte, o valor do bem ou as vias de recurso disponíveis para o caso de o vendedor não reembolsar as despesas incorridas.

87.      Por conseguinte, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à quarta questão prejudicial no sentido de que o artigo 3.o, n.o 3, primeiro parágrafo, conjugado com o artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva, não se opõe a que um consumidor tenha de adiantar as despesas de transporte e/ou de reenvio do bem, desde que isso não represente um encargo financeiro que demova o consumidor de exercer os seus direitos.

4.      Quando é que o consumidor tem direito a resolver um contrato?

88.      A quinta e sexta questões prejudiciais dizem respeito às circunstâncias em que um consumidor pode ter direito a resolver um contrato quando o bem adquirido não seja conforme. Mais especificamente, trata‑se de saber se um consumidor que apenas notificou o vendedor de que o bem não está em conformidade, mas não colocou o bem à disposição no lugar do estabelecimento do vendedor, nem se ofereceu para colocar o bem à disposição no lugar do estabelecimento do vendedor, pode invocar o artigo 3.o, n.o 5, da Diretiva para resolver o contrato.

89.      Nos termos do artigo 3.o, n.o 5, da Diretiva, o consumidor tem direito a uma redução do preço ou a resolver o contrato, em primeiro lugar, se a reparação ou a substituição forem impossíveis ou constituírem um encargo financeiro desproporcionado para o vendedor, em segundo lugar, se o vendedor não tiver realizado a reparação ou a substituição num prazo razoável, ou, em terceiro lugar, caso o vendedor não tenha encontrado uma solução sem grave inconveniente para o consumidor. Além disso, o direito de resolver o contrato não se estende a circunstâncias em que haja apenas uma falta de conformidade insignificante (27).

90.      O artigo 3.o estabelece, assim, uma hierarquia clara de soluções a que o consumidor tem direito no caso de bens não conformes. Dentro dessa hierarquia, a resolução do contrato é a solução de último recurso. A Diretiva favorece claramente a execução do contrato, no interesse de ambas as partes (28).

91.      É por esta razão que, na minha opinião, a possibilidade de resolução do contrato deve ser interpretada de forma estrita.

92.      Uma vez que a Diretiva procura manter um certo equilíbrio entre as obrigações das diferentes partes de um contrato (29), quando o bem não é conforme decorrem obrigações do artigo 3.o da Diretiva tanto para o consumidor como para o vendedor.

93.      O consumidor, pelo seu lado, deve dar ao vendedor uma oportunidade suficiente para este repor a conformidade do bem. Para esse efeito, é necessária uma ação positiva por parte do consumidor. Para começar, o consumidor deve ter informado o vendedor da falta de conformidade do bem em causa e da sua escolha de uma solução ao abrigo do artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva (reparação ou substituição). Além disso, o consumidor deve colocar o bem não conforme à disposição do vendedor.

94.      O vendedor, por outro lado, deve efetuar a reparação ou a substituição dentro de um prazo razoável e sem qualquer inconveniente grave para o consumidor. O vendedor só pode recusar‑se a fazê‑lo quando tal for impossível ou desproporcionado (30).

95.      O consumidor só pode exigir uma redução do preço ou a resolução do contrato se o vendedor não cumprir as obrigações previstas no artigo 3.o Como foi mencionado acima, se a falta de conformidade do bem em causa for apenas insignificante, a resolução não é possível.

96.      No presente processo, o órgão jurisdicional de reenvio é confrontado com a questão de saber se o consumidor cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 3.o e, por conseguinte, se pode resolver o contrato, quando não é claro o lugar onde o bem deve ser colocado à disposição para reposição da sua conformidade.

97.      Nem todos os pormenores das interações entre o consumidor e o vendedor resultam claros do pedido de decisão prejudicial do Amtsgericht Norderstedt (Tribunal de Primeira Instância de Norderstedt). Parece, no entanto, que as partes não discutiram sobre o lugar onde o bem devia ser colocado à disposição para ser reposta a sua conformidade. Resulta dos autos que o consumidor apenas solicitou que fosse reposta a conformidade do bem no lugar do seu domicílio. O vendedor, por seu turno, só no decurso do processo perante o órgão jurisdicional de reenvio afirmou pela primeira vez que o bem deveria ter sido colocado à disposição no lugar do seu estabelecimento.

98.      Parece‑me que o consumidor cumpriu, assim, as suas obrigações nos termos do artigo 3.o Como o Tribunal de Justiça declarou no Acórdão Faber, a obrigação imposta ao consumidor não pode exceder a que consiste em informar o vendedor da existência de uma falta de conformidade. Tendo em conta a inferioridade em que o consumidor se encontra relativamente ao vendedor no que respeita às informações relativas às qualidades do bem e ao estado em que este foi vendido, o consumidor também não pode estar obrigado a indicar a causa precisa dessa falta de conformidade (31).

99.      Em contrapartida, com base nas informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, parece que, nestas circunstâncias, o vendedor não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 3.o Na minha opinião, a obrigação de encontrar uma solução num prazo razoável implica que todas as medidas necessárias para encontrar a solução também devem ser tomadas dentro de um prazo razoável, desde que o consumidor tenha comunicado de forma clara que existe uma falta de conformidade, incluindo um certo número de indicações relativamente à natureza do bem em causa, às condições contratuais acordadas e às manifestações concretas da alegada falta de conformidade (32).

100. Nestas circunstâncias, sou de opinião que uma situação em que o vendedor se limita a sustentar perante o consumidor que o bem em causa é conforme e não toma nenhuma medida para, pelo menos, inspecionar o bem, deve ser equiparada a uma total inação, e não pode equivaler ao cumprimento das obrigações previstas no artigo 3.o da Diretiva. No mínimo, o vendedor será obrigado a informar o consumidor, num prazo razoável, onde o bem deve ser colocado à disposição para que seja reposta a sua conformidade. Como o vendedor está a atuar no exercício da sua profissão, tem mais possibilidades de saber onde o bem deve ser colocado à disposição para esse efeito.

101. Assim, no processo pendente no órgão jurisdicional de reenvio, deve considerar‑se que o prazo no qual deveria ter sido reposta a conformidade do bem começou a correr.

102. Contudo, um pré‑requisito essencial para o exercício de qualquer dos direitos previstos no artigo 3.o da Diretiva é que o bem não seja conforme no momento em que foi entregue. Uma vez que, nos termos da Diretiva, existe uma presunção de que o bem é conforme (33), deve ser provado que o bem não é, de facto, conforme com o contrato, antes de o consumidor poder resolver o contrato (34).

103. Por conseguinte, a resposta à quinta e sexta questões prejudiciais submetidas deve ser que o consumidor tem o direito de resolver um contrato de venda de bens de consumo quando o vendedor não tenha tomado nenhumas medidas, incluindo fornecer informação sobre o lugar onde o bem deve ser colocado à disposição para que seja reposta a sua conformidade através de uma das soluções previstas no artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva, a menos que a falta de conformidade seja apenas insignificante ou não tenha sido demonstrada.

IV.    Conclusão

104. Tendo em consideração o exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pelo Amtsgericht Norderstedt (Tribunal de Primeira Instância, Norderstedt, Alemanha), conforme segue:

O artigo 3.o, n.o 3, terceiro parágrafo, da Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de maio de 1999, relativa a certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, deve ser interpretado no sentido de que o lugar onde o consumidor deve colocar um bem adquirido à distância à disposição a um profissional, a fim de permitir a sua reparação ou substituição, deve ser determinado pelo órgão jurisdicional nacional em função de todas as circunstâncias pertinentes do caso que lhe foi submetido. A este respeito, o lugar onde o bem deve ser colocado à disposição deve ser de molde a assegurar a reparação ou a substituição sem encargos, dentro de um prazo razoável e sem inconveniente grave para o consumidor, tendo em conta a natureza do bem e o fim a que o consumidor o destina.

O artigo 3.o, n.o 3, primeiro parágrafo, conjugado com o artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva 1999/44/CE, não se opõe a que um consumidor tenha de adiantar as despesas de transporte e reenvio do bem, desde que isso não represente um encargo financeiro que demova o consumidor de exercer os seus direitos.

O artigo 3.o, n.o 3, terceiro parágrafo, da Diretiva 1999/44, conjugado com o segundo travessão do artigo 3.o, n.o 5, da mesma diretiva, deve ser interpretado no sentido de que um consumidor que tenha notificado um defeito ao vendedor tem o direito de resolver o contrato quando o vendedor não tenha tomado quaisquer medidas, incluindo fornecer informação sobre o lugar onde o bem deve ser colocado à disposição para que seja reposta a sua conformidade através de uma das soluções previstas no artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva, a menos que a falta de conformidade seja apenas insignificante ou não tenha sido demonstrada.


1      Língua original: inglês.


2      Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de maio de 1999 (JO 1999, L 171, p. 12).


3      V. Acórdão de 16 de junho de 2011, Gebr. Weber e Putz (C‑65/09 e C‑87/09, EU:C:2011:396, n.o 35 e jurisprudência referida).


4      V. Acórdão de 16 de junho de 2011, Gebr. Weber e Putz (C‑65/09 e C‑87/09, EU:C:2011:396, n.o 36 e jurisprudência referida).


5      V. considerando 2 da Diretiva, bem como Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à venda e às garantias dos bens de consumo [COM(95) 520 final], pp. 1 e sgs.


6      Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à venda e às garantias dos bens de consumo, p. 7.


7      V., neste sentido, Acórdão de 16 de junho de 2011, Gebr. Weber e Putz (C‑65/09 e C‑87/09, EU:C:2011:396, n.os 57 a 60).


8      V. artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva, bem como Acórdão de 16 de junho de 2011, Gebr. Weber e Putz (C‑65/09 e C‑87/09, EU:C:2011:396, n.o 60 e jurisprudência referida).


9      V. artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva, e Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à venda e às garantias dos bens de consumo, p. 6.


10      V., neste sentido, Acórdão de 17 de abril de 2008, Quelle (C‑404/06, EU:C:2008:231, n.o 41).


11      V., neste sentido, Acórdão de 16 de junho de 2011, Gebr. Weber e Putz (C‑65/09 e C‑87/09, EU:C:2011:396, n.o 72).


12      V. Acórdão de 16 de junho de 2011, Gebr. Weber e Putz (C‑65/09 e C‑87/09, EU:C:2011:396, n.o 52 e jurisprudência referida).


13      V. artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva.


14      V. artigo 3.o, n.o 3, segundo parágrafo, da Diretiva.


15      Acórdão de 16 de junho de 2011, Gebr. Weber e Putz (C‑65/09 e C‑87/09, EU:C:2011:396, n.o 75).


16      V., por comparação, minhas Conclusões no processo Kásler e Káslerné Rábai (C‑26/13, EU:C:2014:85, n.os 27 a 29 e 105).


17      V. Acórdão de 16 de junho de 2011, Gebr. Weber e Putz (C‑65/09 e C‑87/09, EU:C:2011:396, n.o 46 e jurisprudência referida).


18      V. artigo 3.o, n.o 3, segundo parágrafo, da Diretiva e, neste sentido, Acórdão de 17 de abril de 2008, Quelle (C‑404/06, EU:C:2008:231, n.o 42). V., também, Acórdão de 16 de junho de 2011, Gebr. Weber e Putz (C‑65/09 e C‑87/09, EU:C:2011:396, n.o 58).


19      Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à venda e às garantias dos bens de consumo, pp. 14 e 15.


20      V. artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva.


21      V., para esse efeito, Acórdão de 16 de junho de 2011, Gebr. Weber e Putz (C‑65/09 e C‑87/09, EU:C:2011:396, n.o 53).


22      V. Acórdão de 16 de junho de 2011, Gebr. Weber e Putz (C‑65/09 e C‑87/09, EU:C:2011:396, n.o 46).


23      V., nesse sentido, a título de exemplo, Acórdão de 25 de julho de 2018, Dyson (C‑632/16, EU:C:2018:599, n.o 56) (sobre práticas comerciais desleais), e Acórdão de 20 de setembro de 2017, Andriciuc e o. (C‑186/16, EU:C:2017:703, n.o 47) (relativo às cláusulas contratuais abusivas).


24      V. Acórdão de 17 de abril de 2008, Quelle (C‑404/06, EU:C:2008:231, n.o 31).


25      V. Acórdão de 16 de junho de 2011, Gebr. Weber e Putz (C‑65/09 e C‑87/09, EU:C:2011:396, n.o 61).


26      V. Acórdão de 16 de junho de 2011, Gebr. Weber e Putz (C‑65/09 e C‑87/09, EU:C:2011:396, n.o 46 e jurisprudência referida).


27      V. artigo 3.o, n.o 6, da Diretiva.


28      V., também, neste sentido, Acórdão de 16 de junho de 2011, Gebr. Weber e Putz (C‑65/09 e C‑87/09, EU:C:2011:396, n.o 72).


29      Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à venda e às garantias dos bens de consumo, p. 7.


30      V. artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva.


31      V., neste sentido, artigo 5.o, n.o 2, da Diretiva, lido à luz do seu considerando 19. V., também, Acórdão de 4 de junho de 2015, Faber (C‑497/13, EU:C:2015:357, n.os 62 e 63).


32      V., neste sentido, Acórdão de 4 de junho de 2015, Faber (C‑497/13, EU:C:2015:357, n.o 63).


33      V. artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva.


34      V. Acórdão de 4 de junho de 2015, Faber (C‑497/13, EU:C:2015:357, n.o 52).