Language of document : ECLI:EU:C:2018:911

Edição provisória

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

15 de novembro de 2018 (*)

«Reenvio prejudicial — Regulamento (UE) n.° 1215/2012 — Competência judiciária em matéria civil e comercial — Âmbito de aplicação — Artigo 1.°, n.° 1 — Conceito de “matéria civil e comercial” — Obrigações emitidas por um Estado‑Membro — Participação do setor privado na restruturação da dívida pública desse Estado — Alteração unilateral e retroativa das condições do empréstimo — Cláusulas de ação coletiva — Ação proposta contra o referido Estado por credores privados, titulares dessas obrigações, enquanto pessoas singulares — Responsabilidade do Estado por atos ou omissões praticadas no exercício da autoridade pública»

No processo C‑308/17,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Oberster Gerichtshof (Tribunal Supremo, Áustria), por decisão de 25 de abril de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 29 de maio de 2017, no processo

República Helénica

contra

Leo Kuhn

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: R. Silva de Lapuerta (relatora), vice‑presidente, exercendo funções de presidente da Primeira Secção, J.‑C. Bonichot, E. Regan, C. G. Fernlund e S. Rodin, juízes,

advogado‑geral: Y. Bot,

secretário: I. Illéssy, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 19 de abril de 2018,

considerando as observações apresentadas:

–        em representação da Hellenische Republik, por K. Kitzberger, Rechtsanwältin,

–        em representação de L. Kuhn, por M. Brand, Rechtsanwalt,

–        em representação do Governo helénico, por K. Boskovits bem como por S. Charitaki, M. Vlassi e S. Papaioannou, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por P. Pucciariello, avoccato dello Stato,

–        em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, M. Figueiredo e P. Lacerda, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por M. Wilderspin e M. Heller, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral apresentadas na audiência de 4 de julho de 2018,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 7.°, ponto 1, do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Hellenische Republik (República Helénica) a Leo Kuhn, a propósito de um pedido de execução das condições do empréstimo relativas a obrigações, emitidas por esse Estado‑Membro, de que era portador, ou de indemnização pela inexecução das mesmas.

 Quadro jurídico

 O Tratado MEE

3        Em 2 de fevereiro de 2012, foi celebrado em Bruxelas (Bélgica) o Tratado que cria o Mecanismo Europeu de Estabilidade, entre o Reino da Bélgica, a República Federal da Alemanha, a República da Estónia, a Irlanda, a República Helénica, o Reino de Espanha, a República Francesa, a República Italiana, a República de Chipre, o Grão‑Ducado do Luxemburgo, a República de Malta, o Reino dos Países Baixos, a República da Áustria, a República Portuguesa, a República da Eslovénia, a República Eslovaca e a República da Finlândia (a seguir «Tratado MEE»). O artigo 12.°, n.° 3, desse tratado prevê que são incluídas, a partir de 1 de janeiro de 2013, cláusulas de ação coletiva em todos os novos títulos de dívida pública da área do euro com prazo de vencimento superior a um ano, em moldes que assegurem que o seu impacto jurídico é idêntico.

 Direito da União

4        Os considerandos 4, 15 e 16 do Regulamento n.° 1215/2012 enunciam:

«(4)      Certas disparidades das regras nacionais em matéria de competência judicial e de reconhecimento de decisões judiciais dificultam o bom funcionamento do mercado interno. São indispensáveis disposições destinadas a unificar as regras de conflito de jurisdição em matéria civil e comercial e a fim de garantir o reconhecimento e a execução rápidos e simples das decisões proferidas num dado Estado‑Membro.

[...]

(15)      As regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar‑se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido. Os tribunais deverão estar sempre disponíveis nesta base, exceto nalgumas situações bem definidas em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam um critério de conexão diferente. No respeitante às pessoas coletivas, o domicílio deve ser definido de forma autónoma, de modo a aumentar a transparência das regras comuns e evitar os conflitos de jurisdição.

(16)      O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado‑Membro que não seria razoavelmente previsível para ele. Este elemento é especialmente importante nos litígios relativos a obrigações extracontratuais decorrentes de violações da privacidade e de direitos de personalidade, incluindo a difamação.»

5        O artigo 1.°, n.° 1, deste regulamento estabelece:

«O presente regulamento aplica‑se em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição. Não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras ou administrativas, nem a responsabilidade do Estado por atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado (“acta jure imperii”).»

6        O artigo 4.°, n.° 1, do referido regulamento prevê:

«Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado‑Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado‑Membro.»

7        O artigo 7.°, n.° 1, do mesmo regulamento tem a seguinte redação:

«As pessoas domiciliadas num Estado‑Membro podem ser demandadas noutro Estado‑Membro:

1)      a)      Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;»

 Direito grego

8        Segundo a decisão de reenvio, o sistema de contas correntes do Banco Central grego inclui contas abertas em nome de cada um dos participantes que o governador desse banco admitiu nesse sistema.

9        Nos termos do artigo 6.°, n.° 2, da Lei 2198/1994, os participantes no sistema de contas correntes do Banco Central grego podem conceder direitos conexos com uma obrigação a investidores terceiros, mas o ato jurídico através do qual esses direitos são concedidos só produz efeitos em relação às partes interessadas, com exclusão expressa de qualquer efeito em benefício ou em detrimento da República Helénica.

10      Segundo o artigo 6.°, n.° 4, dessa lei, uma obrigação é transmitida pela sua creditação na conta de um participante no referido sistema.

11      Por outro lado, a Lei 4050/2012, de 23 de fevereiro de 2012, que aprova regras de alteração, com o consentimento dos titulares, dos títulos emitidos ou garantidos pelo Estado grego (FEK A’ 36/23.2.2012), prevê, em substância, que os titulares de determinadas obrigações soberanas receberão uma proposta de «reestruturação», em que são convidados pelo Estado grego a decidir se aceitam a alteração dos títulos elegíveis visados por essa proposta.

12      De acordo com o artigo 1.°, n.° 4, dessa lei, a alteração dos títulos em causa necessita da aprovação por um quórum que represente 50% do total das obrigações em questão, bem como de uma maioria qualificada correspondente a dois terços do capital participante.

13      O artigo 1.°, n.° 9, da referida lei prevê também a introdução de uma cláusula de «reestruturação» ou «cláusula de ação coletiva» (a seguir «CAC»), que permite alterar as condições iniciais do empréstimo através de decisões tomadas por maioria qualificada do capital ainda em dívida e que se aplicam também à minoria.

14      De acordo com essa disposição, a decisão tomada pelos titulares de obrigações de aceitar ou recusar a proposta de reestruturação apresentada pelo Estado grego aplica‑se erga omnes, vincula todos os credores obrigacionistas em causa e prevalece sobre qualquer lei geral ou especial, qualquer decisão administrativa e qualquer contrato que se lhe oponha.

 Processo principal e questão prejudicial

15      Numa data não especificada, anterior a 2011, L. Kuhn, com domicílio em Viena (Áustria), adquiriu, por intermédio de um banco depositário sediado na Áustria, obrigações soberanas com um valor nominal de 35 000 euros, emitidas pela República Helénica, sujeitas ao direito grego e negociadas na Bolsa de Atenas (Grécia), enquanto «direitos‑valor», isto é, créditos inscritos no registo da dívida pública. Estes direitos‑valor foram registados no sistema de contas correntes do Banco Central grego.

16      Estas obrigações soberanas, que se venciam em 20 de fevereiro de 2012, foram creditadas na conta de títulos de que L. Kuhn é titular nesse banco depositário. Trata‑se de títulos ao portador que dão direito, de acordo com as condições do empréstimo, ao reembolso do capital na data do vencimento e ao pagamento de juros.

17      O órgão jurisdicional de reenvio entende que não há nenhuma relação contratual entre L. Kuhn e a República Helénica.

18      Segundo este órgão jurisdicional, decorre tanto do disposto na Lei 2198/1994 como das condições de empréstimo relativas às obrigações soberanas em causa que, antes de mais, são os participantes no referido sistema de contas correntes do banco central grego quem se tornou titular e credor dessas obrigações, transmitidas pela sua creditação nas contas desses participantes, sendo assente que, embora estes últimos possam conceder direitos conexos com as referidas obrigações a terceiros investidores, o ato jurídico pelo qual esses direitos são conferidos só produz efeitos relativamente aos interessados, com exclusão expressa de qualquer efeito em benefício ou em detrimento da República Helénica.

19      Na sequência da aprovação da Lei 4050/2012, a República Helénica procedeu à conversão das obrigações adquiridas por L. Kuhn, substituindo‑as por novas obrigações soberanas com um valor nominal inferior.

20      O órgão jurisdicional de reenvio refere que, de acordo com as alegações de L. Kuhn, a República Helénica, até ao dia dessa conversão, pagou juros numa conta aberta em seu nome junto de um banco sediado na Áustria. Esclarece que L. Kuhn terá vendido as obrigações assim convertidas por 7 831,58 euros, o que lhe causou um prejuízo de 28 673,42 euros, montante correspondente ao valor nominal das obrigações na data de vencimento, a saber, 20 de fevereiro de 2012, acrescido dos juros e das despesas.

21      L. Kuhn propôs uma ação no Landesgericht für Zivilrechtssachen Wien (Tribunal Cível da Comarca de Viena, Áustria), contra a República Helénica, em que pedia a execução das condições de empréstimo iniciais relativas às obrigações em causa ou uma indemnização pela inexecução daquelas.

22      Por despacho de 8 de janeiro de 2016, este órgão jurisdicional declarou‑se internacionalmente incompetente para conhecer dessa ação.

23      Chamado a pronunciar‑se em sede de recurso desse despacho, o Oberlandesgericht Wien (Tribunal Regional Superior de Viena, Áustria), por despacho de 25 de fevereiro de 2016, julgou improcedente a exceção de incompetência dos tribunais austríacos, com o fundamento de que o pedido de L. Kuhn não assentava num ato legislativo grego, mas sim nas condições iniciais do empréstimo relativas às obrigações soberanas em causa e que o tribunal competente é designado pelo direito grego, aplicável segundo as partes, sendo, neste caso, o do domicílio do credor, local em que a dívida pecuniária devia ser cumprida.

24      A República Helénica interpôs um «recurso extraordinário» desta decisão para o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal, Áustria).

25      Segundo aquele tribunal, L. Kuhn, uma vez que reclama a execução, pela República Helénica, das condições de empréstimo das obrigações soberanas em causa, tem razão quando se refere à alegada relação jurídica entre ele, enquanto adquirente das obrigações soberanas, e a República Helénica, enquanto emitente de tais obrigações, pelo que existe um direito contratual «secundário», na aceção do artigo 7.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1215/2012.

26      Foi nestas circunstâncias que o Oberster Gerichtshof (Tribunal Supremo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 7.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 1215/2012 ser interpretado no sentido de que:

–        mesmo no caso (como aqui sucede) de sucessivas transmissões contratuais de um crédito, o lugar de cumprimento na aceção desta norma é determinado em função do primeiro acordo contratual[;]

–        em caso de exercício de um direito a que se cumpram as condições de uma obrigação do Estado, como a emitida no presente caso pela República Helénica, ou de indemnização por incumprimento das referidas condições, o lugar de cumprimento efetivo é determinado logo pelo depósito de juros da referida obrigação do Estado na conta do detentor dos títulos, situada no território do país[;]

–        o facto de o primeiro acordo contratual determinar um lugar legal de cumprimento, no sentido [da referida disposição], opõe‑se a que o posterior cumprimento efetivo de um contrato constitua um — novo — lugar de cumprimento no sentido desta norma?»

 Quanto à questão prejudicial

27      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se, numa situação como a que está em causa no processo principal, em que uma pessoa adquiriu, por intermédio de um banco depositário, obrigações soberanas emitidas por um Estado‑Membro, o artigo 7.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que o «lugar de cumprimento da obrigação em questão» é determinado pelas condições do empréstimo definidas no momento da emissão das referidas obrigações ou pelo lugar do cumprimento efetivo das referidas condições, como o pagamento de juros.

28      A República Helénica e os Governos grego e italiano sustentam que o processo principal não releva da «matéria civil e comercial», na aceção do artigo 1, n.° 1, do Regulamento n.° 1215/2012, porquanto incide sobre o direito soberano de um Estados‑Membros de legislar para reestruturar a sua dívida pública.

29      Por conseguinte, há que determinar, a título preliminar, se um litígio como o em causa no processo principal pode ser considerado «matéria civil e comercial», na aceção do referido artigo 1.°, n.° 1.

30      Segundo esta disposição, o Regulamento n.° 1215/2012 não abrange, nomeadamente, a responsabilidade do Estado por atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado («acta jure imperii»).

31      Uma vez que o Regulamento n.° 1215/2012 veio substituir o Regulamento n.° 44/2001, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1), a interpretação fornecida pelo Tribunal de Justiça no que respeita às disposições deste último regulamento é igualmente válida para o Regulamento n.° 1215/2012, quando as disposições destes dois instrumentos de direito da União possam ser qualificadas de equivalentes (Acórdãos de 16 de novembro de 2016, Schmidt, C‑417/15, EU:C:2016:881, n.° 26; e de 9 de março de 2017, Pula Parking, C‑551/15, EU:C:2017:193, n.° 31).

32      É o que sucede com o artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 e com o artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1215/2012, que circunscrevem o âmbito de aplicação desses regulamentos à «matéria civil e comercial», sem, no entanto, definir o conteúdo e o alcance desse conceito, a propósito do qual o Tribunal de Justiça já decidiu que deve ser considerado um conceito autónomo que tem de ser interpretado com referência, por um lado, aos objetivos e ao sistema do referido regulamento e, por outro, aos princípios gerais resultantes das ordens jurídicas nacionais no seu conjunto (Acórdãos de 11 de junho de 2015, Fahnenbrock e o., C‑226/13, C‑245/13 e C‑247/13, EU:C:2015:383, n.° 35; e de 9 de março de 2017, Pula Parking, C‑551/15, EU:C:2017:193, n.° 33).

33      Esta interpretação leva a excluir determinadas ações ou decisões judiciais do âmbito de aplicação da Convenção de Bruxelas, devido aos elementos que caracterizam a natureza das relações jurídicas entre as partes no litígio ou o objeto deste (Acórdão de 15 de fevereiro de 2007, Lechouritou e o., C‑292/05, EU:C:2007:102, n.° 30 e jurisprudência referida).

34      O Tribunal de Justiça considerou, assim, que, embora determinados litígios que opõem uma entidade pública a uma entidade privada possam ser abrangidos pelo âmbito de aplicação desse regulamento, o mesmo já não acontece se essa entidade pública atuar no exercício da sua autoridade pública (v., designadamente, acórdão Sapir e o., já referido, n.° 31 e jurisprudência referida).

35      É o que sucede, nomeadamente, com as ações que decorrem de uma manifestação de prerrogativas de autoridade pública por uma das partes no litígio, devido ao exercício, por esta última, de poderes que exorbitam as regras de direito comum aplicáveis nas relações entre particulares (Acórdão de 15 de fevereiro de 2007, Lechouritou e o., C‑292/05, EU:C:2007:102, n.° 34).

36      Quanto ao processo principal, há pois que determinar se o mesmo tem origem em atos da República Helénica que decorrem do exercício de prerrogativas de autoridade pública.

37      Como o advogado‑geral salientou no n.° 62 e seguintes das suas conclusões, no caso vertente a manifestação desse exercício resulta quer da natureza e das modalidades das alterações da relação existente entre a República Helénica e os proprietários dos títulos obrigacionistas soberanos em causa no processo principal, quer das circunstâncias excecionais em que essas alterações ocorreram.

38      Com efeito, na sequência da aprovação da Lei 4050/2012 pelo legislador grego e da introdução retroativa de uma CAC por efeito dessa lei, esses títulos foram substituídos por novos títulos de um valor nominal inferior. Essa substituição de títulos não estava prevista nas condições do empréstimo iniciais, nem no direito grego em vigor à data da emissão dos títulos regidos por essas condições.

39      Assim, essa introdução retroativa de uma CAC permitiu à República Helénica impor a todos os portadores de títulos uma alteração substancial das condições financeiras desses títulos, incluindo àqueles que pretendiam opor‑se a essa alteração.

40      Por outro lado, esse recurso inédito à introdução retroativa de uma CAC e a alteração das referidas condições financeiras que daí resultou inseriam‑se num contexto e em circunstâncias excecionais da crise financeira grave. Foram ditados, nomeadamente, pela necessidade, no âmbito de um mecanismo intergovernamental de assistência, de reestruturar a dívida pública do Estado grego e de evitar o risco de fracasso do plano de reestruturação, para evitar a inadimplência desse Estado e garantir a estabilidade financeira da zona euro. Por declarações de 21 de julho e de 26 de outubro de 2011, os chefes de Estado ou de Governo da zona euro afirmaram, assim, que no tocante à participação do setor privado a situação da República Helénica exigia uma solução excecional.

41      A excecionalidade dessa situação resulta igualmente do facto de, em consonância com o artigo 12.°, n.° 3, do Tratado MEE, serem incluídas, a partir de 1 de janeiro de 2013, CAC em todos os novos títulos de dívida pública com prazo de vencimento superior a um ano, em moldes que assegurem que o seu impacto jurídico é idêntico.

42      Daqui resulta que, atendendo à excecionalidade das condições e circunstâncias em que se insere a aprovação da Lei 4050/2012, por força da qual as condições de empréstimo iniciais das obrigações soberanas em causa no processo principal foram alteradas unilateral e retroativamente pela introdução de uma CAC, e ao objetivo geral que esta prossegue, o litígio no processo principal tem origem numa manifestação de autoridade pública e resulta de atos do Estado no exercício dessa autoridade pública, pelo que esse litígio não releva da «matéria civil e comercial», na aceção do artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1215/2012.

43      Nestas condições, há que responder à questão submetida que o artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1215/2012, deve ser interpretado no sentido de que um litígio como o em causa no processo principal, relativo a uma ação proposta por uma pessoa singular que adquiriu obrigações emitidas por um Estado‑Membro contra o mesmo, que impugna a troca das referidas obrigações por obrigações de menor valor, imposta a essa pessoa singular por efeito de uma lei aprovada em circunstâncias excecionais pelo legislador nacional, por força da qual essas condições foram unilateral e retroativamente alteradas pela introdução de uma CAC que permite que uma maioria de detentores das obrigações em causa imponha essa troca à minoria, não releva da «matéria civil e comercial», na aceção daquela disposição.

 Quanto às despesas

44      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

O artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que um litígio como o em causa no processo principal, relativo a uma ação proposta por uma pessoa singular que adquiriu obrigações emitidas por um EstadoMembro contra o mesmo, que impugna a troca das referidas obrigações por obrigações de menor valor, imposta a essa pessoa singular por efeito de uma lei aprovada em circunstâncias excecionais pelo legislador nacional, por força da qual essas condições foram unilateral e retroativamente alteradas pela introdução de uma cláusula de ação coletiva que permite que uma maioria de detentores das obrigações em causa imponha essa troca à minoria, não releva da «matéria civil e comercial», na aceção daquela disposição.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.