Language of document : ECLI:EU:C:2011:437

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção)

30 de Junho de 2011 (*)

«Regime de exclusividade da gestão das apostas hípicas fora dos hipódromos – Artigo 49.° CE – Restrição à livre prestação de serviços – Razões imperiosas de interesse geral – Objectivos de luta contra a dependência do jogo e contra as actividades fraudulentas e criminosas e de contribuição para o desenvolvimento rural – Proporcionalidade – Medida restritiva que deve visar reduzir as ocasiões de jogo e limitar as actividades de jogos de fortuna e azar de maneira coerente e sistemática – Operador que leva a cabo uma política comercial dinâmica – Política publicitária comedida – Apreciação do entrave à comercialização através dos canais tradicionais e da Internet»

No processo C‑212/08,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo Conseil d’État (França), por decisão de 9 de Maio de 2008, entrado no Tribunal de Justiça em 21 de Maio de 2008, no processo

Zeturf Ltd

contra

Premier ministre,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção),

composto por: K. Schiemann (relator), presidente de secção, C. Toader e A. Prechal, juízes,

advogado‑geral: N. Jääskinen,

secretário: R. Şereş, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 8 de Dezembro de 2010,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Zeturf Ltd, por O. Delgrange e M. Riedel, avocats,

–        em representação do Groupement d’intérêt économique Pari Mutuel Urbain, por P. de Montalembert, P. Pagès e C.‑L. Saumon, avocats,

–        em representação do Governo francês, por E. Belliard, N. Rouam, G. de Bergues e B. Messmer, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo belga, por C. Pochet e L. Van den Broeck, na qualidade de agentes, assistidas por P. Vlæmminck, advocaat,

–        em representação do Governo alemão, por M. Lumma e B. Klein, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo grego, por E.‑M. Mamouna, M. Tassopoulou e G. Papadaki, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo maltês, por A. Buhagiar, S. Camilleri e J. Borg, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes e P. Mateus Calado, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por C. Vrignon e E. Traversa, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação dos artigos 49.° CE e 50.° CE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Zeturf Ltd (a seguir «Zeturf»), uma sociedade de direito maltês, ao Primeiro‑Ministro francês a respeito de uma decisão tácita deste último de não revogar as medidas nacionais que atribuem o monopólio da gestão das apostas hípicas fora dos hipódromos, em França, ao Groupement d’intérêt économique Pari Mutuel Urbain (a seguir «PMU»).

 Quadro jurídico

 Regulamentação da União

3        Nos termos do seu segundo considerando, a Directiva 90/428/CEE do Conselho, de 26 de Junho de 1990, relativa às trocas de equídeos destinados a concursos e que estabelece as condições de participação nesses concursos (JO L 224, p. 60), tem por objectivo fixar, a nível comunitário, as regras relativas às trocas comerciais intracomunitárias de equídeos destinados a concursos.

4        O quinto considerando da referida directiva tem a seguinte redacção:

«Considerando que as trocas de equídeos destinados a concursos e a participação nesses concursos podem ser comprometidas pelas disparidades existentes nas regulamentações relativamente à afectação de uma percentagem do montante dos ganhos e benefícios à protecção, promoção e melhoramento da criação nos Estados‑Membros; [...]»

5        O artigo 1.° da mesma directiva dispõe que esta «define as condições das trocas de equídeos destinados a concursos e as condições de participação desses equídeos nesses concursos».

6        Nos termos do artigo 2.°, segundo parágrafo, da Directiva 90/428, «entende‑se por ‘concurso’ qualquer competição hípica».

7        O artigo 3.° da referida directiva proíbe qualquer discriminação, nas regras do concurso, entre os equídeos registados num Estado‑Membro e os originários de um Estado‑Membro diferente daquele em que o concurso é organizado.

8        O artigo 4.° da mesma directiva dispõe:

«1.      As obrigações referidas no artigo 3.° valem em especial no que se refere:

[...]

c)      Aos ganhos ou benefícios eventualmente resultantes do concurso.

2.      Contudo,

[...]

–        em cada concurso ou tipo de concurso, os Estados‑Membros ficam autorizados a reservar, por intermédio dos organismos oficialmente aprovados ou reconhecidos para o efeito, uma certa percentagem do montante dos ganhos ou benefícios referidos na alínea c) do n.° 1 à protecção, promoção e melhoramento da criação.

[...]»

 Legislação nacional

 Organização das corridas de cavalos

9        O artigo 1.° da Lei de 2 de Junho de 1891 que regulamenta a autorização e o funcionamento das corridas de cavalos (Bulletin des lois 1891, n.° 23707), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Lei de 1891»), prevê:

«Nenhum campo de corridas pode ser aberto sem autorização prévia do Ministro da Agricultura.»

10      O artigo 2.° da Lei de 1891 dispõe:

«Só são autorizadas corridas de cavalos que tenham como objectivo exclusivo o melhoramento da raça equina, organizadas por sociedades cujos estatutos sociais tenham sido aprovados pelo Ministro da Agricultura, após parecer do conseil supérieur des haras (conselho superior das coudelarias).»

11      O artigo 1.° do Decreto n.° 97‑456, de 5 de Maio de 1997, relativo às sociedades de corridas de cavalos e às apostas mútuas (JORF de 8 Maio de 1997, p. 7012), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Decreto de 1997»), tem a seguinte redacção:

«As sociedades de corridas de cavalos são regidas pelas disposições da Lei de 1 de Julho de 1901 relativa ao contrato de associação, na medida em que essas disposições não sejam contrárias às da Lei [de 1891] e aos regulamentos adoptados em sua aplicação.

As sociedades de corridas têm por objecto a organização de corridas de cavalos e actividades directamente relacionadas com este objecto ou para as quais estejam legalmente habilitadas.

Os estatutos das sociedades são aprovados pelo Ministro responsável pela agricultura devendo, nomeadamente, preencher os requisitos previstos no presente título. Os estatutos das sociedades de corridas [...] devem ser conformes aos estatutos‑tipo aprovados pelo Ministro.»

12      À data dos factos no processo principal, as sociedades de corridas tinham de submeter ao Ministro da Agricultura estatutos conformes com os estatutos‑tipo constantes do anexo ao Despacho de 26 de Dezembro de 1997 relativo aos estatutos‑tipo das sociedades de corridas de cavalos (JORF de 14 de Fevereiro de 1998, p. 2344).

13      O artigo 3.° do Decreto de 1997 prevê:

«A autorização para organizar corridas de cavalos é concedida por um período de um ano, após parecer do prefeito, pelo Ministro responsável pela agricultura; pode ser revogada, antes do seu termo, às sociedades que tenham violado disposições legislativas ou regulamentares ou desrespeitado as obrigações decorrentes dos seus estatutos.

Os estatutos devem prever que a sociedade de corridas à qual não seja concedida autorização para organizar corridas de cavalos em três anos consecutivos será dissolvida de pleno direito.»

 Organização das apostas hípicas

14      As apostas hípicas estão sujeitas ao princípio geral de proibição que decorre do artigo 4.° da Lei de 1891, nos termos do qual quem tiver proposto receber, ou tenha recebido, apostas para corridas de cavalos, directamente ou através de intermediário, independentemente do local ou da forma, será punido com pena de prisão e com multa.

15      Contudo, o Estado autoriza certas sociedades de corridas de cavalos a organizar apostas hípicas. Assim, o artigo 5.°, primeiro parágrafo, da Lei de 1891 enuncia:

«[...] as sociedades que preencherem os requisitos previstos no artigo 2.° poderão organizar apostas mútuas, com base em autorização especial, revogável a todo o momento, do Ministro da Agricultura, e mediante uma contribuição fixa que reverte a favor de obras locais de solidariedade e da criação, sem que, no entanto, esta autorização possa contrariar o disposto nas demais disposições do artigo 4.°»

16      No que diz respeito a esta possibilidade de as sociedades de corridas organizarem apostas hípicas, o artigo 27.° do Decreto de 1997 cria um monopólio a favor do PMU para a aceitação de apostas fora dos hipódromos nos seguintes termos:

«As sociedades de corridas autorizadas a organizar apostas mútuas fora dos hipódromos, nas condições previstas no artigo 5.° da Lei [de 1891] acima referida, confiarão a gestão das apostas, por sua conta, a um agrupamento de interesse económico que constituirão entre elas, nas condições previstas no Despacho de 23 de Setembro de 1967, acima referido. Os estatutos deste organismo, denominado Pari mutuel urbain (PMU), serão aprovados pelo Ministro responsável pela agricultura e pelo Ministro responsável pelo orçamento.

As sociedades‑mãe definidas no artigo 2.° também podem confiar a este agrupamento de interesse económico a gestão, por sua conta, das apostas mútuas nos seus hipódromos.

Caso este agrupamento de interesse económico autorize particulares a explorar postos de registo de apostas, esta autorização deve ser precedida de inquérito e parecer favorável do Ministro da Administração Interna.»

17      O Despacho de 13 de Setembro de 1985 que regulamenta as apostas mútuas (JORF de 18 de Setembro de 1985, p. 10714), conforme alterado pelo Despacho de 29 de Agosto de 2001 (JORF de 28 de Setembro de 2001, p. 15333, a seguir «Despacho de 1985»), acrescentou a possibilidade de apostar através da Internet. O sítio Internet do PMU é um dos cinco maiores sítios comerciais em França.

 Organização do PMU e enquadramento das suas actividades

18      O artigo 3.° dos estatutos do PMU prevê:

«O [PMU] tem por objecto a implementação, em benefício de cada uma das sociedades de corridas que é membro do [PMU], de um conjunto de meios técnicos, administrativos, jurídicos, financeiros e de pessoal, necessários ao serviço permanente e contínuo de apostas mútuas fora dos hipódromos e nos hipódromos das sociedades‑mãe, para a totalidade ou uma parte dos eventos que organizam.

Pode assumir e assegurar a gestão de todas as participações em sociedades, grupos, ou entidades jurídicas francesas ou estrangeiras que participem, em França ou no estrangeiro, directa ou indirectamente, na organização de apostas mútuas e em qualquer serviço conexo com esta actividade.

Implementará qualquer actividade complementar e directamente útil ao cumprimento do seu objecto principal.

Tal como acontece com cada uma das sociedades membros, o objecto do [PMU] é desinteressado, não lucrativo e tem carácter civil.»

19      O artigo 29.° do Decreto de 1997 dispõe o seguinte no que respeita à composição do conselho de administração do PMU:

«O [PMU] é administrado por um conselho composto por dez membros nomeados pela assembleia:

O presidente do conselho de administração do [PMU], proposto pelas sociedades membros, que pode ser nomeado fora dos membros da assembleia, e deve ter o acordo do Ministro responsável pela agricultura e do Ministro responsável pelo orçamento;

O administrador delegado, proposto pelo presidente e que deve ter o acordo do Ministro responsável pela agricultura e do Ministro responsável pelo orçamento;

Quatro representantes das sociedades membros do [PMU];

Quatro representantes do Estado, dois dos quais propostos pelo Ministro responsável pela agricultura e dois pelo Ministro responsável pelo orçamento.

O mandato do presidente do conselho de administração do [PMU] é de quatro anos, renovável. O mandato do administrador delegado termina ao mesmo tempo que o mandato do presidente do conselho de administração que o propôs.

Cada membro dispõe de um voto nas deliberações do conselho de administração; contudo, o presidente dispõe de um voto de qualidade em caso de empate. O inspector nomeado pelo Estado e o comissário do governo assistem às reuniões do conselho de administração sem participar na votação.»

20      O artigo 40.° do Decreto de 1997 prevê a fiscalização das corridas de cavalos e das apostas hípicas nos seguintes termos:

«A fiscalização e supervisão das corridas de cavalos e das apostas mútuas serão conjuntamente asseguradas por agentes da Direcção do espaço rural e da floresta do Ministério da Agricultura, pelos funcionários do serviço da polícia encarregado das corridas de cavalos no Ministério da Administração Interna e pelos técnicos superiores de contabilidade do Tesouro ou pelos seus representantes.

Os agentes encarregados da fiscalização e supervisão das corridas de cavalos e das apostas mútuas podem exigir que lhes sejam apresentados todos os documentos relacionados com estas actividades. Têm acesso antes, durante e depois das corridas a todos os locais e instalações onde se efectue a aceitação e centralização das apostas nos hipódromos e fora deles. [...]»

21      Quanto às modalidades e tipos de apostas que o PMU pode oferecer, o artigo 39.° do Decreto de 1997 dispõe:

«O regulamento das apostas mútuas será adoptado pelo Ministro responsável pela agricultura e pelo Ministro responsável pelo orçamento, sob proposta do [PMU] e após parecer do Ministro da Administração Interna. É publicado no Journal officiel de la République française

22      Nos termos do artigo 1.° do Despacho de 1985:

«As apostas que são objecto do presente despacho consistem na previsão de um acontecimento relativo ao resultado de uma ou várias corridas de cavalos organizadas por sociedades habilitadas para esse efeito pelo Ministro da Agricultura, em hipódromos com autorização de abertura, sendo o desenrolar das provas regulado pelos diferentes códigos das corridas.

O tipo de apostas autorizadas para cada sociedade é precisado por despacho do Ministro da Agricultura.»

23      O artigo 2.°, primeiro parágrafo, do Despacho de 1985 prevê:

«O princípio das apostas mútuas implica que os montantes investidos pelos apostadores num determinado tipo de aposta sejam redistribuídos pelos apostadores vencedores desse mesmo tipo de aposta, após dedução das retenções previstas pela legislação em vigor.»

24      O artigo 8.°, primeiro parágrafo, do Despacho de 1985 reafirma o princípio da proibição geral das apostas hípicas nos seguintes termos:

«É proibido efectuar ou aceitar apostas em corridas organizadas em França sem passar pelos serviços do pari mutuel français.»

25      Aproximadamente 74% das apostas efectuadas junto do PMU são redistribuídas pelos apostadores. Cerca de 12% são objecto de retenção pelo Estado, aproximadamente 8% beneficiam o sector equino e perto de 5% cobrem os custos da colecta e processamento das apostas pelo PMU.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

26      A Zeturf é uma sociedade prestadora de serviços de apostas hípicas na Internet. Tem uma licença concedida pela autoridade reguladora dos jogos de fortuna e azar maltesa e oferece, nomeadamente, apostas em corridas hípicas francesas a partir do seu sítio Internet.

27      Em 18 de Julho de 2005, a Zeturf pediu ao Ministro da Agricultura francês a revogação do artigo 27.° do Decreto de 1997, em particular o primeiro parágrafo desta disposição, que confere ao PMU o monopólio da gestão das apostas hípicas fora dos hipódromos.

28      Da falta de reposta a este pedido por parte do dito Ministro resultou uma decisão tácita de indeferimento que a Zeturf impugnou no órgão jurisdicional de reenvio. Esta sociedade requereu igualmente ao órgão jurisdicional de reenvio que notificasse o Primeiro‑Ministro e o Ministro da Agricultura no sentido de revogarem o primeiro parágrafo do referido artigo 27.°, sob pena de sanção pecuniária compulsória de 150 euros por cada dia de atraso a contar da notificação da decisão a proferir.

29      O recurso interposto pela Zeturf para o Conseil d’État é baseado, nomeadamente, numa violação da livre prestação de serviços garantida pelo artigo 49.° CE.

30      A este propósito, o órgão jurisdicional de reenvio declarou que o artigo 27.°, primeiro parágrafo, do Decreto de 1997 constitui uma restrição à livre prestação de serviços na medida em que, em relação aos prestadores de um Estado‑Membro diferente da República Francesa, é susceptível de limitar a exploração das apostas hípicas fora dos hipódromos em França.

31      Reconhece, contudo, que tal restrição pode ser admitida com base nas medidas derrogatórias previstas pelo Tratado CE ou justificada por razões imperiosas de interesse geral, caso responda às exigências impostas pelo direito da União quanto à sua proporcionalidade.

32      Perante o órgão jurisdicional de reenvio, a Zeturf alegou, nomeadamente, que as autoridades nacionais competentes não demonstraram a existência de uma razão imperiosa de interesse geral que justificasse a referida restrição, que, mesmo admitindo que tal razão imperiosa possa ser demonstrada, a restrição em causa não é proporcionada aos objectivos prosseguidos e que o PMU leva a cabo uma política comercial expansionista fundada no incentivo ao jogo e à despesa que não é coerente com os objectivos da legislação nacional aplicável.

33      Em contrapartida, perante o órgão jurisdicional de reenvio, as mesmas autoridades alegaram que o monopólio concedido ao PMU tem por objectivo a protecção da ordem social, atendendo aos efeitos do jogo nos indivíduos e na sociedade, e a protecção da ordem pública, com vista à luta contra a utilização dos jogos a dinheiro para fins criminosos ou fraudulentos, e que, além disso, o referido monopólio contribui para o desenvolvimento rural através do financiamento do sector equino. Por outro lado, a política de crescimento do PMU é justificada pelo objectivo de lutar eficazmente contra a tentação do jogo mantendo uma oferta legal atractiva para que os jogadores se orientem para actividades autorizadas e regulamentadas.

34      Nestas condições, o Conseil d’État decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Os artigos 49.° [CE] e 50.° [CE] devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que consagra um regime de exclusividade das apostas hípicas fora dos hipódromos a favor de um operador único sem fins lucrativos, legislação essa que, embora pareça adequada a garantir o objectivo de luta contra a criminalidade e de protecção da ordem pública de uma forma mais eficaz do que seria assegurado por medidas menos restritivas, é acompanhada, a fim de neutralizar o risco de eclosão de circuitos de jogo não autorizados e de canalizar os jogadores para a oferta legal, de uma política comercial dinâmica do operador, que, [por] consequência, não alcança completamente o objectivo de reduzir as oportunidades de jogo?

2)      Para apreciar se uma legislação nacional como a que está em vigor em França, que consagra um regime de exclusividade de gestão das apostas mútuas fora dos hipódromos a favor de um operador único sem fins lucrativos, viola os artigos 49.° [CE] e 50.° [CE], é necessário apreciar a violação da livre prestação de serviços apenas na perspectiva das restrições à oferta de apostas hípicas em linha ou há que tomar em consideração todo o sector das apostas hípicas, seja qual for a forma sob a qual estas são propostas e facultadas aos jogadores?»

 Quanto às questões prejudiciais

35      Como foi referido no n.° 30 do presente acórdão, o órgão jurisdicional de reenvio declarou que a legislação francesa em matéria de apostas hípicas em causa no processo principal constitui um entrave à livre prestação de serviços. Por conseguinte, as questões submetidas apenas dizem respeito ao carácter justificado ou não desse entrave.

 Quanto à primeira questão

36      Para responder à primeira questão, importa analisar, em primeiro lugar, as condições nas quais o artigo 49.° CE permite a criação de um regime de exclusividade para a organização das apostas hípicas fora dos hipódromos a favor de um operador único, como o que está em causa no processo principal, e, em segundo lugar, em que medida a prossecução de uma política comercial dinâmica por parte do operador que beneficia desse direito exclusivo pode ser coerente com os objectivos prosseguidos por esse regime de exclusividade.

 Requisitos de criação de um regime de exclusividade para a organização de apostas hípicas

37      A título preliminar, importa recordar que uma restrição à livre prestação de serviços, como a declarada pelo órgão jurisdicional de reenvio, pode ser admitida como derrogação expressamente prevista nos artigos 45.° CE e 46.° CE, aplicáveis nesta matéria nos termos do artigo 55.° CE, ou pode ser justificada, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, por razões imperiosas de interesse geral (acórdão de 8 de Setembro de 2009, Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, C‑42/07, Colect., p. I‑7633, n.° 55).

38      No que respeita, mais concretamente, às justificações que podem ser admitidas, o Tribunal de Justiça observou que os objectivos prosseguidos pelas legislações nacionais adoptadas no domínio dos jogos e das apostas, vistos no seu conjunto, estão mais frequentemente ligados à protecção dos destinatários dos serviços em causa e, mais em geral, dos consumidores e à protecção da ordem social. Salientou igualmente que esses objectivos fazem parte das razões imperiosas de interesse geral que podem justificar restrições da livre prestação de serviços (acórdão de 8 de Setembro de 2010, Stoß e o., C‑316/07, C‑358/07 a C‑360/07, C‑409/07 e C‑410/07, ainda não publicado na Colectânea, n.° 74 e jurisprudência referida).

39      Por outro lado, o Tribunal de Justiça tem repetidamente sublinhado que as particularidades de ordem moral, religiosa ou cultural e as consequências moral e financeiramente prejudiciais para o indivíduo e para a sociedade que envolvem os jogos e as apostas podem ser susceptíveis de justificar a existência de um poder suficiente de apreciação das autoridades nacionais para determinarem, segundo a sua própria escala de valores, as exigências da protecção do consumidor e da ordem social (acórdão Stoß e o., já referido, n.° 76 e jurisprudência referida).

40      Por conseguinte, os Estados‑Membros têm, em princípio, a faculdade de fixar os objectivos da sua política em matéria de jogos de fortuna e azar e, eventualmente, de definir com precisão o nível de protecção pretendido (v., neste sentido, acórdão Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, já referido, n.° 59).

41      Um Estado‑Membro que procure garantir um nível particularmente elevado de protecção pode, por conseguinte, como o Tribunal de Justiça admitiu na sua jurisprudência, ter razões para considerar que só a concessão de direitos exclusivos a um organismo único, sujeito a um controlo estreito por parte dos poderes públicos, é susceptível de lhes permitir controlar os riscos ligados ao sector dos jogos de fortuna e azar e prosseguir o objectivo legítimo de prevenção do incentivo a despesas excessivas ligadas aos jogos e de luta contra a dependência do jogo de uma forma suficientemente eficaz (v., neste sentido, acórdão Stoß e o., já referido, n.os 81 e 83).

42      Com efeito, as autoridades públicas nacionais podem considerar que o facto de, na sua qualidade de fiscalizadoras do organismo titular do monopólio, disporem de meios adicionais que lhes permitem ter influência na conduta desse organismo, fora dos mecanismos legais de regulação e de vigilância, é susceptível de lhes garantir um melhor controlo da oferta de jogos de fortuna e azar e melhores garantias de eficácia na execução da sua política do que no caso de exercício dessas actividades por operadores privados em situação de concorrência, mesmo estando estes sujeitos a um regime de autorização, bem como a um regime de controlo e de sanções (acórdão Stoß e o., já referido, n.° 82).

43      As restrições impostas devem, no entanto, preencher as condições que resultam da jurisprudência do Tribunal de Justiça a respeito da sua proporcionalidade, o que cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais verificar (acórdãos, já referidos, Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, n.os 59 e 60, e Stoß e o., n.os 77 e 78).

44      No contexto do processo principal e à luz das observações apresentadas ao Tribunal de Justiça, devem ser feitas a este respeito algumas precisões relativas, por um lado, à verificação dos objectivos prosseguidos pela legislação nacional e, por outro, à fiscalização efectivamente exercida pelos poderes públicos sobre o PMU.

–       Quanto aos objectivos prosseguidos pela legislação nacional

45      Decorre dos autos enviados pelo órgão jurisdicional de reenvio ao Tribunal de Justiça, bem como das observações do Governo francês apresentadas neste último, que a legislação nacional prossegue três objectivos, sendo os dois principais, por um lado, a luta contra a fraude e contra o branqueamento de dinheiro no sector das apostas hípicas e, por outro, a protecção da ordem social atendendo aos efeitos dos jogos de fortuna e azar nos indivíduos e na sociedade. O terceiro objectivo, invocado a título meramente subsidiário pelo PMU e pelo Governo francês, é o de contribuir para o desenvolvimento rural através do financiamento do sector equino.

46      Os dois primeiros desses objectivos figuram, como foi salientado no n.° 38 do presente acórdão, entre aqueles que foram reconhecidos como podendo justificar entraves à livre prestação de serviços em matéria de jogos de fortuna e azar. Contudo, como foi acima recordado no n.° 41, a instituição de uma medida tão restritiva como um monopólio só pode ser justificada no caso de se pretender assegurar um nível de protecção particularmente elevado no que respeita a esses objectivos.

47      Incumbe, por conseguinte, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se as autoridades nacionais visavam verdadeiramente, à data dos factos no processo principal, assegurar um nível de protecção particularmente elevado e se, atendendo a esse nível de protecção pretendido, a instituição de um monopólio podia efectivamente ser considerada necessária.

48      Neste contexto, há que recordar que é irrelevante o mero facto de a autorização e fiscalização de um certo número de operadores privados se poder revelar mais onerosa para as autoridades nacionais do que a tutela exercida sobre um operador único. Com efeito, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que os inconvenientes administrativos não são motivo susceptível de justificar um entrave a uma liberdade fundamental garantida pelo direito da União (v., neste sentido, acórdãos de 14 de Setembro de 2006, Centro di Musicologia Walter Stauffer, C‑386/04, Colect., p. I‑8203, n.° 48, e de 27 de Janeiro de 2009, Persche, C‑318/07, Colect., p. I‑359, n.° 55).

49      No que respeita ao nível de protecção pretendido pelas autoridades nacionais tendo em conta os objectivos invocados, a Zeturf alega nomeadamente que elevados montantes em dinheiro são regularmente branqueados através do tráfico de bilhetes premiados do PMU, o que apenas é possível pelo facto de as apostas serem efectuadas anonimamente junto do PMU, sendo, por conseguinte, impossível identificar o apostador. A Zeturf acrescenta, por outro lado, que esta técnica de branqueamento de dinheiro é notória e comprovada por relatórios de actividade da célula francesa de luta antibranqueamento, denominada «Tracfin», dependente dos Ministros da Economia, das Finanças e do Emprego, bem como do Orçamento, das Finanças e da Função Pública.

50      Incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar em que medida estas alegações são provadas e se uma eventual tolerância para com essas práticas é compatível com a prossecução de um nível de protecção elevado.

51      No que respeita ao terceiro objectivo da legislação em causa no processo principal, invocado a título subsidiário pelo Governo francês, importa referir que o desenvolvimento rural, conforme foi identificado por esse governo, pode ser equiparado, no âmbito do processo principal, ao financiamento de actividades sem fins lucrativos ou de interesse geral no contexto que deu origem ao acórdão de 24 de Março de 1994, Schindler (C‑275/92, Colect., p. I‑1039).

52      A este propósito, o Tribunal de Justiça já precisou por várias vezes que, embora não seja indiferente que a retenção sobre as receitas provenientes de jogos de fortuna e azar autorizados possa participar significativamente no financiamento dessas actividades, tal motivo constitui apenas uma consequência benéfica acessória, e não a justificação real, da política restritiva adoptada (v., neste sentido, acórdãos Schindler, já referido, n.° 60, e de 21 de Outubro de 1999, Zenatti, C‑67/98, Colect., p. I‑7289, n.° 36). Com efeito, é jurisprudência assente que os motivos de natureza económica não fazem parte dos motivos previstos nos artigos 45.° CE e 46.° CE e não constituem uma razão imperiosa de interesse geral que possa ser invocada para justificar uma restrição à liberdade de estabelecimento ou à livre prestação de serviços (v., neste sentido, acórdãos de 6 de Novembro de 2003, Gambelli e o., C‑243/01, Colect., p. I‑13031, n.° 61 e jurisprudência referida, e de 6 de Outubro de 2009, Comissão/Espanha, C‑153/08, Colect., p. I‑9735, n.° 43).

53      Daqui decorre a fortiori que esse objectivo não pode justificar a instituição de uma medida tão restritiva como um monopólio. O objectivo subsidiário, segundo o qual a instituição de um monopólio no domínio das apostas hípicas fora dos hipódromos visa contribuir para o desenvolvimento rural, não pode, por conseguinte, constituir uma justificação para o entrave à livre prestação de serviços criado pela legislação nacional em causa no processo principal.

54      Além disso, cumpre observar que, contrariamente ao que alega o Governo francês, o artigo 4.°, n.° 2, da Directiva 90/428 não autoriza, nem implícita nem explicitamente, a afectação do produto das apostas hípicas à salvaguarda, promoção e melhoria da criação de cavalos. Esta directiva não tem como objectivo regulamentar os jogos de fortuna e azar relacionados com as corridas hípicas. Apenas visa eliminar toda e qualquer discriminação em relação a cavalos registados num Estado‑Membro ou originários de um Estado‑Membro diferente daquele no qual participam em concursos. Esses concursos são definidos no artigo 2.°, segundo parágrafo, da mesma directiva, disposição a que se referem os artigos 3.° e 4.° desta. A possibilidade reconhecida aos Estados‑Membros pelo dito artigo 4.° de reservar uma percentagem do montante dos ganhos ou benefícios resultantes destes concursos faz directamente referência às obrigações visadas no referido artigo 3.° Por conseguinte, é dos ganhos e dos benefícios gerados por estes cavalos que trata o artigo 4.°, n.° 2, da dita directiva, e não do produto das apostas hípicas organizadas por ocasião desses concursos.

–       Quanto à fiscalização das actividades do PMU

55      Como salientaram o PMU e os Governos francês e português, os elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional de reenvio, resumidos nos n.os 19 a 22 do presente acórdão, nomeadamente no que diz respeito à composição do conselho de administração do PMU, à fiscalização e à supervisão das corridas de cavalos e das apostas mútuas por dois ministérios, por um lado, bem como às modalidades e aos tipos de apostas oferecidas pelo PMU, por outro, parecem indicar, sem prejuízo da verificação por parte do órgão jurisdicional de reenvio, que o sistema de controlo das apostas em causa no litígio no processo principal é análogo aos que deram origem aos acórdãos de 21 de Setembro de 1999, Läärä e o. (C‑124/97, Colect., p. I‑6067), e Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, já referido.

56      Se tal for o caso, parece existir um grau particularmente apertado de controlo estatal da organização das apostas hípicas. Com efeito, o Estado exerce uma fiscalização directa do funcionamento do operador exclusivo, da organização dos eventos relativamente aos quais as apostas são efectuadas, dos tipos de apostas autorizados e dos seus canais de distribuição, incluindo a proporção dos ganhos em relação aos montantes investidos, bem como do desenrolar e da supervisão das actividades regulamentadas. O órgão jurisdicional de reenvio pode, portanto, em princípio, ser levado a declarar que a legislação em causa no processo principal é adequada para garantir o objectivo de luta contra as actividades criminosas e fraudulentas ligadas aos jogos de fortuna e azar, bem como o objectivo de protecção da ordem social, tendo em conta os efeitos dos jogos de fortuna e azar nos indivíduos e na sociedade.

57      Neste contexto, deve contudo recordar‑se que uma legislação nacional só é apta a garantir a realização do objectivo invocado se responder verdadeiramente à intenção de o alcançar de maneira coerente e sistemática (acórdão de 10 de Março de 2009, Hartlauer, C‑169/07, Colect., p. I‑1721, n.° 55).

58      A este respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que a instituição de uma medida tão restritiva como um monopólio deve ser acompanhada da criação de um quadro normativo adequado a garantir que o titular desse monopólio poderá prosseguir, de maneira coerente e sistemática, o objectivo fixado por meio de uma oferta quantitativamente comedida e qualitativamente adequada em função desse objectivo e sujeita a um controlo rigoroso das autoridades públicas (acórdão Stoß e o., já referido, n.° 83).

59      Com efeito, pode considerar‑se que qualquer operador, incluindo os que têm a qualidade de organismo público ou caritativo, está perante um certo conflito de interesses entre a necessidade de aumentar os seus rendimentos e o objectivo de reduzir as oportunidades de jogo. Um operador público ou sem fins lucrativos, à semelhança de qualquer operador privado, pode ser tentado a maximizar as suas receitas e a desenvolver o mercado dos jogos de fortuna e azar, contrariando desse modo o objectivo de reduzir as oportunidades de jogo.

60      Esse é em particular o caso quando os rendimentos gerados se destinam a concretizar objectivos reconhecidos como sendo de interesse geral, sendo o operador encorajado a aumentar as receitas decorrentes dos jogos de fortuna e azar para melhor atingir tais objectivos. A afectação de receitas a estes objectivos pode, além disso, conduzir a uma situação na qual é difícil renunciar aos montantes resultantes dos jogos de fortuna e azar, dado que a propensão natural será, então, de aumentar a oferta de jogos e de atrair novos jogadores.

61      Estas considerações aplicam‑se com maior pertinência aos casos em que o operador único detém simultaneamente, como no processo principal, os direitos exclusivos sobre a organização das corridas hípicas e sobre as apostas efectuadas nestas corridas. Assim sendo, esse operador encontra‑se numa situação privilegiada para, sendo caso disso, aumentar as actividades de apostas através da multiplicação do número de eventos relativamente aos quais as mesmas podem ser efectuadas.

62      Por conseguinte, incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, nomeadamente à luz da evolução do mercado dos jogos de fortuna e azar em França, se os controlos estatais aos quais as actividades do PMU estão, em princípio, sujeitas são efectivamente levados a cabo num contexto de prossecução coerente e sistemática dos objectivos visados pela instituição do sistema de exclusividade a favor do PMU (v., neste sentido, acórdão de 3 de Junho de 2010, Ladbrokes Betting & Gaming e Ladbrokes International, C‑258/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 37).

63      A este respeito, importa salientar que, neste contexto, o aspecto que é particularmente realçado na segunda parte da primeira questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio, respeitante à política comercial prosseguida pelo PMU, é certamente relevante para a apreciação da maneira como esses objectivos são prosseguidos.

 Quanto à prossecução de uma política comercial dinâmica

64      A segunda parte da primeira questão visa averiguar em que medida a prossecução de uma política comercial dinâmica por parte de um operador que beneficia de um direito exclusivo para a organização de jogos de fortuna e azar pode ser considerada compatível com as exigências do artigo 49.° CE.

65      Decorre do pedido de decisão prejudicial e das observações apresentadas ao Tribunal de Justiça que a política comercial dinâmica a que se refere o órgão jurisdicional de reenvio é caracterizada por vários elementos. Nomeadamente, é pacífico que o PMU recorre a publicidade constante e crescente para os seus produtos, incluindo na Internet, e que aumenta o número de pontos de venda de apostas e de produtos oferecidos aos jogadores. Além disso, utiliza uma estratégia comercial que visa captar novos públicos para os jogos propostos.

66      Importa desde já recordar neste contexto que, na medida em que incentivam e encorajam os consumidores a participar em jogos de fortuna e azar para que o Tesouro Público daí retire benefícios no plano financeiro, as autoridades de um Estado‑Membro não podem invocar a ordem pública social no que respeita à necessidade de reduzir as ocasiões de jogo para justificar entraves à livre prestação de serviços (acórdão Gambelli e o., já referido, n.° 69).

67      O Tribunal de Justiça decidiu, todavia, que uma política de expansão controlada das actividades de jogos de fortuna e azar pode ser coerente com o objectivo de canalizar as mesmas para circuitos controlados atraindo jogadores que levam a cabo actividades de jogos e de apostas clandestinas proibidas para actividades autorizadas e regulamentadas. Com efeito, essa política pode ser simultaneamente coerente tanto com o objectivo de evitar a exploração das actividades de jogos de fortuna e azar para fins criminosos ou fraudulentos como com o objectivo de prevenção do incentivo a despesas excessivas ligadas aos jogos e de luta contra a dependência do jogo, orientando os consumidores para a oferta do titular do monopólio público, oferta essa que se presume simultaneamente protegida de elementos criminosos e concebida para melhor defender os consumidores contra despesas excessivas e a dependência do jogo (acórdão Stoß e o., já referido, n.os 101 e 102).

68      Para atingir este objectivo de canalização para circuitos controlados, é pacífico que os operadores autorizados devem constituir uma alternativa fiável, mas simultaneamente atraente, a actividades não regulamentadas, o que pode em si mesmo implicar a oferta de uma extensa gama de jogos, uma publicidade de certa envergadura e o recurso a novas técnicas de distribuição (v. acórdãos de 6 de Março de 2007, Placanica e o., C‑338/04, C‑359/04 e C‑360/04, Colect., p. I‑1891, n.° 55, e Stoß e o., já referido, n.° 101).

69      Incumbe concretamente ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar, perante as circunstâncias do litígio que lhe foi submetido, se se pode considerar que a política comercial do PMU, quer ao nível da amplitude da publicidade efectuada quer da criação de novos jogos, se inscreve no âmbito dessa política de expansão controlada no sector dos jogos de fortuna e azar, que se destina efectivamente a canalizar a vontade de jogar para os circuitos controlados (acórdão Ladbrokes Betting & Gaming e Ladbrokes International, já referido, n.° 37).

70      No âmbito dessa apreciação, cabe nomeadamente ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se, por um lado, as actividades criminosas e fraudulentas ligadas ao jogo e, por outro, a dependência do jogo podiam, à data dos factos do processo principal, constituir um problema em França e se uma expansão das actividades autorizadas e regulamentadas podia solucionar esse problema (acórdão Ladbrokes Betting & Gaming e Ladbrokes International, já referido, n.° 29). O Tribunal de Justiça sublinhou nomeadamente que, se um Estado‑Membro invocar um objectivo adequado para legitimar o entrave à livre prestação de serviços resultante de uma medida nacional restritiva, cabe‑lhe apresentar ao órgão jurisdicional que apreciar essa questão todos os elementos susceptíveis de permitir que este se assegure de que essa medida preenche efectivamente os requisitos resultantes do princípio da proporcionalidade (acórdão Stoß e o., já referido, n.° 71). A este respeito, a Comissão alega que as autoridades nacionais, contrariamente ao que aconteceu nos processos que deram origem aos acórdãos, já referidos, Placanica e o. e Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, não demonstraram a existência de um mercado negro de apostas hípicas.

71      De qualquer modo, a publicidade eventualmente feita pelo titular de um monopólio público deve ser comedida e estritamente limitada ao necessário para canalizar dessa forma os consumidores para as redes de jogo controladas. Em contrapartida, essa publicidade não pode, nomeadamente, ter por fim encorajar a propensão natural dos consumidores para o jogo, estimulando‑os a participar activamente, designadamente banalizando o jogo ou dando deste uma imagem positiva ligada ao facto de as receitas recolhidas serem afectadas a actividades de interesse geral ou ainda aumentando o poder de atracção do jogo por meio de mensagens publicitárias cativantes anunciando ganhos significativos (acórdão Stoß e o., n.° 103).

72      Tendo em conta o conjunto das considerações acima expostas, há que responder à primeira questão submetida que o artigo 49.° CE deve ser interpretado no sentido de que:

a)      um Estado‑Membro que procure assegurar um nível particularmente elevado de protecção dos consumidores no sector dos jogos de fortuna e azar pode considerar, fundadamente, que apenas a concessão de direitos exclusivos a um organismo único, sujeito a uma apertada fiscalização dos poderes públicos, permite controlar os riscos ligados ao referido sector e prosseguir o objectivo de prevenção do incentivo a despesas excessivas ligadas aos jogos e de luta contra a dependência do jogo de forma suficientemente eficaz;

b)      incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se:

–        as autoridades nacionais visavam verdadeiramente, à data dos factos no processo principal, assegurar o referido nível particularmente elevado de protecção e se, atendendo a este nível de protecção pretendido, a criação de um monopólio podia efectivamente ser considerada necessária; e

–        as fiscalizações estatais, a que as actividades do organismo que beneficia dos direitos exclusivos estão, em princípio, sujeitas, são efectivamente levadas a cabo de maneira coerente e sistemática no contexto da prossecução dos objectivos atribuídos a este organismo;

c)      para que seja coerente com os objectivos de luta contra a criminalidade e de redução das oportunidades de jogo, uma legislação nacional que institui um monopólio em matéria de jogos de fortuna e azar deve:

–        ter por fundamento a constatação de que as actividades criminosas e fraudulentas ligadas aos jogos e a dependência do jogo constituem um problema no território do Estado‑Membro em questão, que pode ser evitado através da expansão das actividades autorizadas e regulamentadas; e

–        apenas permitir que seja feita uma publicidade comedida e estritamente limitada ao necessário para canalizar os consumidores para as redes de jogo controladas.

 Quanto à segunda questão

73      Com a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, como deve ser apreciado o alcance da violação da livre prestação de serviços por um sistema que consagra um regime de exclusividade para a organização das apostas hípicas em benefício de um operador único e, nomeadamente, se o mercado das apostas hípicas em linha pode ser considerado distinto do conjunto do sector das apostas.

74      A título preliminar, impõe‑se observar que qualquer restrição relativa à oferta de jogos de fortuna e azar pela Internet prejudica sobretudo os operadores situados fora do Estado‑Membro em que os destinatários beneficiam dos serviços, operadores esses que, deste modo, são privados de uma modalidade de comercialização particularmente eficaz para o acesso directo a este mercado em relação aos operadores estabelecidos no mesmo Estado‑Membro (v., neste sentido, acórdãos de 11 de Dezembro de 2003, Deutscher Apothekerverband, C‑322/01, Colect., p. I‑14887, n.° 74, e de 2 de Dezembro de 2010, Ker‑Optika, C‑108/09, ainda não publicado na Colectânea, n.° 54).

75      Além disso, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a Internet constitui um simples canal de oferta em matéria de jogos de fortuna e azar (acórdão de 8 de Setembro de 2010, Carmen Media Group, C‑46/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 100).

76      Dado que os objectivos da legislação nacional em causa no processo principal visam sobretudo garantir a protecção dos consumidores de jogos de fortuna e azar e, em particular, a protecção contra as fraudes cometidas pelos operadores e contra o incentivo às despesas excessivas ligadas aos jogos e a dependência destes últimos, é certamente importante tomar em consideração em que medida, do ponto de vista do consumidor, os diversos canais de comercialização são substituíveis entre si. Caso, por exemplo, se provasse que os consumidores consideram que a realização de uma aposta hípica concreta pela Internet substitui a realização dessa mesma aposta através dos canais tradicionais, tal facto militaria a favor de uma apreciação global, e não efectuada separadamente, para cada canal de distribuição do sector.

77      Por conseguinte, em princípio, o mercado das apostas hípicas deve ser considerado no seu conjunto, independentemente da questão de saber se as apostas em causa são oferecidas pelos canais tradicionais, por meio de locais físicos, ou pela Internet, devendo uma restrição à actividade de recolha de apostas ser analisada independentemente do suporte no qual as mesmas são efectuadas.

78      O Tribunal de Justiça já teve, no entanto, ocasião de salientar determinadas especificidades da oferta de jogos de fortuna e azar pela Internet (v. acórdãos, já referidos, Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, n.° 72, e Carmen Media Group, n.° 101).

79      Assim, observou nomeadamente que, devido à falta de contacto directo entre o consumidor e o operador, os jogos de fortuna e azar acessíveis pela Internet comportam riscos de natureza diferente e de importância acrescida face aos mercados tradicionais desses jogos no que respeita a eventuais fraudes cometidas pelos operadores contra os consumidores (acórdãos, já referidos, Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, n.° 70, e Carmen Media Group, n.° 102).

80      Além disso, o Tribunal de Justiça salientou que as características próprias da oferta de jogos de fortuna e azar pela Internet se podem, do mesmo modo, revelar uma fonte de riscos de natureza diferente e de importância acrescida em matéria de protecção dos consumidores, em especial dos jovens e das pessoas com particular propensão para o jogo ou susceptíveis de a desenvolver, relativamente aos mercados tradicionais desses jogos. Além da falta de contacto directo entre o consumidor e o operador, acima referida, a particular facilidade e o constante acesso aos jogos propostos na Internet, bem como o volume e a frequência potencialmente elevados dessa oferta de carácter internacional, num ambiente que, além disso, é caracterizado pelo isolamento do jogador, pelo anonimato e pela inexistência de controlo social, constituem igualmente factores susceptíveis de favorecer um desenvolvimento da dependência do jogo e de despesas excessivas a ele ligadas e, portanto, de agravar as consequências sociais e morais negativas a ela associadas, tal como foram realçadas por jurisprudência assente (acórdão Carmen Media Group, já referido, n.° 103).

81      Por conseguinte, há que tomar em conta o conjunto dos canais de comercialização substituíveis, a menos que o recurso à Internet tenha como consequência o agravamento dos riscos ligados aos jogos de fortuna e azar para além dos existentes no que respeita aos jogos comercializados pelos canais tradicionais.

82      Perante uma legislação nacional como a que está na origem do pedido de decisão prejudicial, aplicável da mesma forma à oferta de apostas em linha e à oferta efectuada através dos canais tradicionais, a propósito da qual o legislador nacional não considerou ser necessário fazer uma distinção entre os diferentes canais de comercialização, importa, portanto, apreciar a violação da livre prestação de serviços do ponto de vista das restrições feitas ao conjunto do sector em questão.

83      Consequentemente, deve responder‑se à segunda questão no sentido de que, para apreciar a violação da livre prestação de serviços por um sistema que consagra um regime de exclusividade para a organização das apostas hípicas, incumbe aos órgãos jurisdicionais nacionais tomar em conta o conjunto dos canais de comercialização substituíveis destas apostas, a menos que o recurso à Internet tenha como consequência o agravamento dos riscos ligados aos jogos de fortuna e azar para além dos existentes no que respeita aos jogos comercializados pelos canais tradicionais. Perante uma legislação nacional que é aplicável do mesmo modo à oferta de apostas hípicas em linha e à oferta efectuada pelos canais tradicionais, importa apreciar a violação da livre prestação de serviços do ponto de vista das restrições feitas ao conjunto do sector em questão.

 Quanto às despesas

84      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Oitava Secção) declara:

1)      O artigo 49.° CE deve ser interpretado no sentido de que:

a)      um Estado‑Membro que procure assegurar um nível particularmente elevado de protecção dos consumidores no sector dos jogos de fortuna e azar pode considerar, fundadamente, que apenas a concessão de direitos exclusivos a um organismo único, sujeito a uma apertada fiscalização dos poderes públicos, permite controlar os riscos ligados ao referido sector e prosseguir o objectivo de prevenção do incentivo a despesas excessivas ligadas aos jogos e de luta contra a dependência do jogo de forma suficientemente eficaz;

b)      incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se:

–        as autoridades nacionais visavam verdadeiramente, à data dos factos no processo principal, assegurar o referido nível particularmente elevado de protecção e se, atendendo a este nível de protecção pretendido, a criação de um monopólio podia efectivamente ser considerada necessária; e

–        as fiscalizações estatais, a que as actividades do organismo que beneficia dos direitos exclusivos estão, em princípio, sujeitas, são efectivamente levadas a cabo de maneira coerente e sistemática no contexto da prossecução dos objectivos atribuídos a este organismo;

c)      para que seja coerente com os objectivos de luta contra a criminalidade e de redução das oportunidades de jogo, uma legislação nacional que institui um monopólio em matéria de jogos de fortuna e azar deve:

–        ter por fundamento a constatação de que as actividades criminosas e fraudulentas ligadas aos jogos e a dependência do jogo constituem um problema no território do Estado‑Membro em questão, que pode ser evitado através da expansão das actividades autorizadas e regulamentadas; e

–        apenas permitir que seja feita uma publicidade comedida e estritamente limitada ao necessário para canalizar os consumidores para as redes de jogo controladas.

2)      Para apreciar a violação da livre prestação de serviços por um sistema que consagra um regime de exclusividade para a organização das apostas hípicas, incumbe aos órgãos jurisdicionais nacionais tomar em conta o conjunto dos canais de comercialização substituíveis destas apostas, a menos que o recurso à Internet tenha como consequência o agravamento dos riscos ligados aos jogos de fortuna e azar para além dos existentes no que respeita aos jogos comercializados pelos canais tradicionais. Perante uma legislação nacional que é aplicável do mesmo modo à oferta de apostas hípicas em linha e à oferta efectuada pelos canais tradicionais, importa apreciar a violação da livre prestação de serviços do ponto de vista das restrições feitas ao conjunto do sector em questão.

Assinaturas


* Língua do processo: francês.