Language of document : ECLI:EU:C:2009:183

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

YVES BOT

apresentadas em 24 de Março de 2009 1(1)

Processo C‑123/08

Processo Penal

contra

Dominic Wolzenburg

[pedido de decisão prejudicial apresentado Rechtbank Amesterdão (Países Baixos)]

«Cooperação policial e judiciária em matéria penal – Decisão‑quadro 2002/584/JAI – Motivos de não execução facultativa de um mandado de detenção europeu – Conceitos de ‘se encontrar’ e ‘residente’ no Estado‑Membro de execução – Tratamento diferenciado entre nacionais do Estado‑Membro de execução e nacionais de outros Estados‑Membros – Princípio da igualdade de tratamento»





1.        No presente processo, o Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar‑se, novamente, sobre o alcance do artigo 4.°, ponto 6, da Decisão‑quadro 2002/584/JAI do Conselho (2), que prevê um motivo de não execução facultativa de um mandado de detenção europeu.

2.        De acordo com esta disposição, a autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução (3) pode recusar a execução de um mandado emitido para efeitos de cumprimento de uma pena privativa de liberdade quando a pessoa procurada «se encontrar no Estado‑Membro de execução, for sua nacional ou sua residente» e este Estado se comprometa a assegurar a execução dessa pena.

3.        O Rechtbank Amsterdam (Países Baixos) (4) pretende saber em que medida este motivo de não execução pode ser aplicado a um cidadão alemão em relação ao qual existe um mandado de detenção emitido pela República Federal da Alemanha para efeitos de execução de uma pena de prisão e que, desde o mês de Junho de 2005, trabalha nos Países Baixos, onde vive com o seu cônjuge.

4.        Aquele órgão jurisdicional confronta‑se, igualmente, com o facto de o interessado não possuir uma autorização de residência nos Países Baixos por tempo indeterminado e não poder beneficiar, de acordo com o direito neerlandês, do referido motivo de não execução porque a regra segundo a qual a entrega de um cidadão neerlandês para efeitos de execução de uma pena deve ser recusada, só é aplicável aos nacionais de outros Estados‑Membros que possuam tal autorização de residência.

5.        Assim, o referido órgão jurisdicional pretende, por um lado, saber qual deve ser a duração da permanência no Estado‑Membro de execução da pessoa em relação à qual existe um mandado de detenção europeu para que possa considerar‑se que essa pessoa se encontra ou reside nesse Estado na acepção do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro.

6.        Em segundo lugar, pergunta se a aplicação do motivo de não execução que consta desta disposição pode estar sujeita a requisitos administrativos adicionais, como a posse de uma autorização de residência por tempo indeterminado.

7.        Em terceiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o princípio da não discriminação se opõe a uma legislação nacional de acordo com a qual a norma que prevê que a entrega de um cidadão nacional deve ser recusada sempre que a mesma é pedida para efeitos de execução de uma pena, só é aplicável aos nacionais de outros Estados‑Membros que são titulares de uma autorização de residência por tempo indeterminado.

8.        Estas três questões são muito semelhantes às que, num contexto diferente, foram submetidas ao Tribunal de Justiça no processo que deu origem ao acórdão de 17 de Julho de 2008, Kozłowski (5), proferido posteriormente à recepção da decisão de reenvio em apreço.

9.        Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça definiu os conceitos de «se encontrar» e «residente» no Estado‑Membro de execução na acepção do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro. Forneceu, igualmente, elementos para responder à segunda pergunta, relativa à questão de saber se a aplicação do motivo de não execução que consta desta disposição pode estar sujeita a requisitos administrativos, como a posse de uma autorização nacional de residência. Em contrapartida, não se pronunciou sobre a última questão, respeitante à conformidade com o princípio da não discriminação de uma legislação nacional que proíbe a entrega de um cidadão nacional mas não a de um nacional de outro Estado‑Membro.

10.      O presente processo deverá levar o Tribunal de Justiça a precisar e a completar as respostas dadas no acórdão Kozlowski, já referido, quanto ao alcance do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro.

11.      No que respeita à primeira pergunta colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio, proporemos ao Tribunal de Justiça que responda que, tanto no conceito de «residente» como no de «se encontrar», o requisito determinante é o de saber se entre a pessoa em relação à qual existe o mandado de detenção europeu e o Estado‑Membro de execução existem laços suficientes que permitam pensar que a execução da pena nesse Estado aumenta as possibilidades de reinserção dessa pessoa. Concluiremos que a duração da permanência nesse Estado constitui um dos elementos relevantes que o órgão jurisdicional competente deve ter em consideração para determinar se esse requisito se verifica.

12.      Quanto à segunda pergunta, proporemos ao Tribunal de Justiça que responda que a aplicação do motivo de não execução que consta do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro não pode estar sujeita a requisitos administrativos adicionais, como a posse de uma autorização de residência por tempo indeterminado.

13.      Por último, em resposta à terceira pergunta do órgão jurisdicional de reenvio, proporemos ao Tribunal de Justiça que decida que a legislação nacional em causa viola o princípio da não discriminação que consta do artigo 12.° CE.

14.      Antes de examinar em pormenor a nossa apreciação, parece‑nos útil expor os princípios essenciais que encontraremos ao longo da nossa análise e que guiaram o nosso raciocínio:

–        O procedimento do mandado de detenção europeu estabelecido pela decisão‑quadro substituiu, entre os Estados‑Membros, o procedimento de extradição, o qual se mantém nas relações de cooperação com Estados terceiros, bem como entre Estados‑Membros quando o procedimento do mandado de detenção europeu não seja, excepcionalmente, aplicável, nomeadamente por motivos relativos à aplicação no tempo da decisão‑quadro

–        as disposições do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro impõem que sejam abordadas questões que, na verdade, fazem parte do direito penal material na medida em que a sua aplicação tem, necessariamente, uma relação directa com o conceito de reinserção do condenado. Resulta do desenvolvimento moderno do direito penal, comum aos Estados‑Membros, que considera a reinserção uma finalidade fundamental da pena que, por força do princípio da individualização da sanção, do qual faz parte o regime de execução desta, cada decisão deve ser tomada tendo em conta as circunstâncias específicas da situação individual de cada condenado

–        quando se trate de uma pena ou de uma medida análoga, como a «medida de segurança privativa de liberdade», tanto a sua execução como a decisão da sua aplicação, dizem respeito à liberdade individual. Por isso, as regras específicas do sistema judiciário, que são o garante, em todos os Estados‑Membros, do respeito por essa liberdade, devem ser salvaguardadas, nomeadamente quanto à necessária liberdade de apreciação de que o juiz deve beneficiar para a implementação efectiva dos princípios que tem por missão aplicar.

I –    Direito comunitário

A –    Disposições relevantes da decisão‑quadro

15.      A decisão‑quadro tem como objecto a supressão, entre os Estados‑Membros, do procedimento formal de extradição previsto nas diversas convenções nas quais esses Estados são partes e a sua substituição por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias (6). O considerando quinto desta decisão‑quadro dispõe, a este respeito:

«O objectivo que a União [Europeia] fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduz à supressão da extradição entre os Estados‑Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias. Acresce que a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal permite suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos actuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que até ao momento prevaleceram entre Estados‑Membros devem dar lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase anterior à sentença, como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.»

16.      A decisão‑quadro assenta no princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais em matéria penal, que constitui a «pedra angular» da cooperação judiciária (7), e num «elevado grau de confiança» entre os Estados‑Membros (8).

17.      O artigo 1.° da decisão‑quadro tem como epígrafe «Definição de mandado de detenção europeu e obrigação de o executar». Dispõe:

«1.      O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2.      Os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.

3.      A presente decisão‑quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.° do Tratado da União Europeia.»

18.      Sempre que um mandado de detenção europeu é emitido para efeitos de execução de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, deve corresponder, nos termos do artigo 2.° da decisão‑quadro, a uma sanção de duração não inferior a quatro meses.

19.      O mesmo artigo 2.° estabelece uma lista de 32 infracções em relação às quais, caso sejam puníveis no Estado‑Membro de emissão com pena privativa de liberdade de duração máxima não inferior a três anos, o mandado de detenção europeu deve ser executado mesmo que os factos em causa não constituam uma infracção no Estado‑Membro de execução. Quanto às outras infracções, a entrega da pessoa em relação a qual existe um mandado de detenção europeu pode ser submetida, pelo Estado‑Membro de execução, ao controlo da dupla incriminação.

20.      Os artigos 3.° e 4.° da decisão‑quadro são dedicados, respectivamente, aos motivos de não execução obrigatória e aos motivos de não execução facultativa do mandado de detenção europeu. O artigo 4.°, ponto 6, desta decisão‑quadro dispõe:

«A autoridade judiciária de execução pode recusar a execução de um mandado de detenção europeu:

[…]

se o mandado de detenção europeu tiver sido emitido para efeitos de execução de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, quando a pessoa procurada se encontrar no Estado‑Membro de execução, for sua nacional ou sua residente e este Estado se comprometa a executar essa pena ou medida de segurança nos termos do seu direito nacional.»

21.      Este motivo de não execução facultativa é completado pelo artigo 5.°, n.° 3, da decisão‑quadro, aplicável sempre que o mandado de detenção europeu é emitido para efeitos de procedimento penal. Nos termos desta disposição, a entrega da pessoa em relação a qual existe tal mandado de detenção europeu pode ficar sujeita à condição de que essa pessoa, quando for nacional ou residente do Estado‑Membro de execução, seja entregue a este Estado, após ter sido ouvida, para nele cumprir a pena ou medida de segurança privativas de liberdade proferida contra ela no Estado‑Membro de emissão.

B –    Alcance destas disposições da decisão‑quadro de acordo com o acórdão Kozlowski

22.      O acórdão Kozlowski, já referido, tem como contexto as circunstâncias factuais e jurídicas seguintes.

23.      As autoridades judiciárias alemãs foram chamadas a pronunciar‑se sobre um pedido de entrega de um nacional polaco, S. Kozlowski, na sequência de um mandado de detenção europeu emitido por um órgão jurisdicional polaco para efeitos de execução de uma pena de prisão de cinco meses aplicada por uma sentença transitada em julgado.

24.      S. Kozlowski encontrava‑se preso no Centro Penitenciário de Estugarda (Alemanha), onde cumpria uma pena privativa da liberdade de três anos e seis meses, na qual foi condenado por órgãos jurisdicionais alemães por vários crimes de burla cometidos na Alemanha.

25.      Era solteiro e não tinha filhos. Pouco ou nada conhecia da língua alemã. Viajara para a Alemanha em Fevereiro de 2005 e aí permanecera até à data da sua detenção, em 10 de Maio de 2006, com algumas interrupções, nomeadamente nas férias de Natal. Aí trabalhara, ocasionalmente, na construção civil. Opunha‑se à sua entrega às autoridades judiciárias polacas e desejava permanecer na Alemanha após ser libertado.

26.      No direito alemão, o artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro foi transposto para disposições diferentes, consoante a pessoa em causa seja um cidadão alemão ou um estrangeiro.

27.      No que respeita aos cidadãos alemães, a sua extradição para cumprimento de uma pena só é possível se a pessoa julgada der o seu consentimento (9). No que respeita aos estrangeiros que tenham residência habitual no território nacional, tanto nacionais de outro Estado‑Membro como de um país terceiro, a sua extradição para execução de uma pena pode ser recusada se a pessoa em causa não der o seu consentimento à sua entrega e se o seu interesse legítimo prevalecer sobre o cumprimento da pena no território nacional (10).

28.      Esta legislação vem na sequência de uma sentença do Bundesverfassungsgericht (Alemanha), proferida em 18 de Julho de 2005, na qual se declara inconstitucional a lei anterior, uma vez que violava, de forma desproporcionada, o direito fundamental de não ser extraditado (11).

29.      O Oberlandesgericht (Alemanha) viu‑se confrontado com as duas questões seguintes: Por um lado, devia determinar se S. Kozlowski residia ou se encontrava no território alemão na acepção do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro. Mais precisamente, questionava‑se sobre as consequências a retirar para esta apreciação, em primeiro lugar, das interrupções da permanência de S. Kozlowski na Alemanha em 2005 e 2006, em segundo lugar, do facto de S. Kozlowski, mais de três meses após a sua entrada na Alemanha, não exercer aí qualquer actividade e assegurar o essencial da sua subsistência com a prática de infracções, de tal modo que a regularidade da sua permanência na Alemanha parecia duvidosa e, em terceiro lugar, do facto de S. Kozłowski se encontrar detido.

30.      Por outro lado, o Oberlandesgericht questionava‑se sobre a conformidade das normas do direito alemão que asseguram a transposição do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro com o princípio da não discriminação. Pretendia, em especial, que o Tribunal de Justiça se pronunciasse sobre a questão de saber se, e em que medida, seria possível distinguir entre cidadãos nacionais e cidadãos estrangeiros que são cidadãos da União.

31.      Assim, colocou ao Tribunal de Justiça as duas questões seguintes:

«1)      É possível considerar que uma pessoa ‘reside’ ou ‘se encontra’ no Estado‑Membro [de execução], na acepção do artigo 4.°, ponto 6, [da decisão‑quadro], quando

a)      a sua permanência no Estado‑Membro [de execução] não seja ininterrupta,

b)      a sua permanência nesse Estado não seja conforme com a legislação que regula o direito de residência,

c)      aí faça da prática de crimes o seu modo de vida e/ou

d)      aí cumpra uma pena privativa de liberdade?

2)      Uma transposição do artigo 4.°, ponto 6, da [decisão‑quadro] no sentido de que a entrega por o Estado‑Membro [de execução] dos seus próprios nacionais contra a vontade destes com vista ao cumprimento de uma pena é sempre inadmissível, ao passo que a entrega de nacionais de outros Estados‑Membros contra a sua vontade pode ser autorizada pelas autoridades competentes ao abrigo de um poder discricionário, é compatível com o direito da União Europeia, em especial com os princípios da não discriminação e da cidadania da União, consagrados no artigo 6.°, n.° 1,UE, em conjugação com os artigos 12.° CE e 17.° CE e seguintes e, em caso afirmativo, devem, pelo menos, ser observados os referidos princípios no exercício desse poder discricionário?»

32.      No acórdão Kozlowski, referido, o Tribunal de Justiça respondeu apenas à primeira questão. Decidiu que:

«[o] artigo 4.°, ponto 6, da [decisão‑quadro] deve ser interpretado no sentido de que:

–        uma pessoa procurada ‘é residente’ no Estado‑Membro de execução quando tiver fixado a sua residência real neste último e ‘encontra‑se’ aí quando, na sequência de uma permanência estável de uma certa duração nesse Estado‑Membro, criou laços com esse Estado num grau semelhante aos que resultam da residência;

–        para determinar se entre a pessoa procurada e o Estado‑Membro de execução existem laços que permitam considerar que essa pessoa está abrangida pela expressão ‘se encontrar’, na acepção do referido artigo 4.°, ponto 6, cabe à autoridade judiciária de execução fazer uma apreciação global de vários dos elementos objectivos que caracterizam a situação dessa pessoa, entre os quais, nomeadamente, a duração, a natureza e as condições da sua permanência, bem como os seus laços familiares e económicos com o Estado‑Membro de execução.»

33.      O Tribunal de Justiça baseou esta resposta nos seguintes motivos:

–        A decisão‑quadro não define o significado e o alcance das expressões «se encontrar» e «residente»;

–        a expressão «se encontrar» não pode ser interpretada de uma forma extensiva que implique que a autoridade judiciária de execução possa recusar a execução de um mandado de detenção europeu pelo simples facto de a pessoa procurada se encontrar temporariamente no território do Estado‑Membro de execução; porém, também não pode ser interpretada no sentido de que uma pessoa procurada, que aí se encontre há algum tempo, em caso algum pode ter criado com esse Estado laços susceptíveis de justificar a possibilidade de se invocar esse motivo de não execução facultativa;

–        a expressão «se encontrar» é, por isso, relevante, para determinar o âmbito de aplicação do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro;

–        as expressões «se encontrar» e «residente» devem ser objecto de uma definição uniforme no âmbito da União e os Estados‑Membros não podem dar‑lhes um alcance mais amplo do que o decorrente dessa definição;

–        numa situação concreta, para saber se o motivo de não execução previsto no artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro é aplicável, a autoridade judiciária de execução deve, em primeiro lugar, determinar unicamente se a pessoa é nacional, residente ou se encontra nesse Estado e, se for esse o caso, num segundo momento, verificar se existe um interesse legítimo que justifique que a pena aplicada no Estado‑Membro de emissão seja executada no território do Estado‑Membro de execução;

–        a este respeito, o artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro tem, nomeadamente, por objectivo permitir que a autoridade judiciária de execução dê especial importância à possibilidade de aumentar as oportunidades de reinserção social da pessoa procurada;

–        assim, as expressões «residente» e «se encontrar» têm em vista, respectivamente, as situações em que a pessoa em relação à qual existe um mandado de detenção europeu fixou a sua residência real no Estado‑Membro de execução ou criou, na sequência de uma permanência estável de uma certa duração nesse Estado, determinados laços com este último de grau semelhante aos resultantes de uma residência;

–        para determinar se, numa situação concreta, uma pessoa criou tais laços, há que efectuar uma apreciação global de vários dos elementos objectivos que caracterizam a sua situação, entre os quais, nomeadamente, a duração, a natureza e as condições da sua permanência, bem como os laços familiares e económicos que mantém com o Estado‑Membro de execução;

–        no quadro desta apreciação global, cada um desses elementos não pode ser determinante só por si;

–        no que respeita às circunstâncias invocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, o facto de a pessoa procurada não ter permanecido ininterruptamente no Estado‑Membro de execução e o facto de essa pessoa não se encontrar neste último Estado em conformidade com a legislação nacional relativa à entrada e permanência de estrangeiros não excluem, só por si, que essa pessoa «se encontr[a]» nesse Estado‑Membro, mas podem contudo ter relevância, e

–        o facto de essa pessoa cometer habitualmente infracções no Estado‑Membro de execução e o facto de aí estar presa são irrelevantes para determinar se a pessoa em causa «se encontr[a]» nesse Estado, mas podem ser relevantes, se essa pessoa aí se encontra, para apreciar se existe um motivo legítimo de não execução.

34.      Aplicados à situação especial de S. Kozlowski, estes critérios levaram o Tribunal de Justiça a considerar, por um lado, que aquele não era residente na Alemanha e, por outro lado, que também não se podia considerar que ele aí se encontrava, tendo em conta a duração, a natureza e as condições da sua permanência, bem como a inexistência de laços familiares e a existência de laços económicos muito ténues com esse Estado‑Membro.

II – Quadro factual e jurídico da decisão de reenvio

A –    Situação da pessoa procurada

35.      D. Wolzenburg foi condenado por vários órgãos jurisdicionais alemães a cumprir uma pena de prisão efectiva de um ano e nove meses por ter cometido vários crimes, nomeadamente por ter importado marijuana para a Alemanha.

36.      Em 13 de Julho de 2006, o Ministério Público de Aachen (Alemanha) emitiu um mandado de detenção europeu contra D. Wolzenburg para execução desta pena, que enviou em 3 de Agosto de 2006.

37.      D. Wolzenburg viajou para os Países Baixos no princípio do mês de Junho de 2005. Desde 16 de Junho de 2005 que aí reside, num apartamento situado em Venlo, tendo celebrado um contrato de arrendamento em seu nome e do seu cônjuge. Está inscrito na base de dados pessoais da administração desse município. Na audiência de 30 de Novembro de 2007, comunicou que a sua mulher, que tem, igualmente, a nacionalidade alemã, estava grávida.

38.      D. Wolzenburg prestou trabalho por conta de outrem nos Países Baixos desde 2005 a 2007. Em 24 de Julho de 2005, foi‑lhe atribuído um número de contribuinte fiscal e da segurança social. Apresentou uma apólice de seguro contra despesas de saúde que cobre o período entre 1 de Janeiro de 2006 e 31 de Dezembro de 2008.

39.      Em 20 de Setembro de 2006, apresentou‑se no Serviço da Imigração e das Naturalizações para se registar como cidadão da União Europeia. O órgão jurisdicional de reenvio informou de que goza de um direito de permanência que lhe é conferido pelo direito comunitário e que, apesar das infracções pelas quais foi condenado, não perderá o direito de permanência nos Países Baixos.

40.      Afirma, ainda, que os factos relativos à importação de marijuana para a Alemanha foram praticados parcialmente nos Países Baixos, pelo que o interessado poderia ter sido alvo de processo penal, igualmente, nesse Estado‑Membro.

B –    Direito neerlandês

41.      O artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro foi implementado nos Países Baixos pelo artigo 6.° da Overleveringswet (Lei sobre a entrega de pessoas), de 29 de Abril de 2004 (12) (a seguir «OLW»), que dispõe:

«1.   Será autorizada a entrega de um cidadão neerlandês desde que a mesma seja pedida para efeitos de um inquérito penal contra esse cidadão e que, na opinião da autoridade judiciária de execução, esteja garantido que, se for condenado a uma pena privativa de liberdade incondicional no Estado‑Membro de emissão pelos factos pelos quais a entrega pode ser autorizada, poderá cumprir esta pena nos Países Baixos.

2.     Não será autorizada a entrega de um cidadão neerlandês se a mesma for pedida para efeitos da execução de uma pena privativa da liberdade aplicada a esse cidadão por sentença transitada em julgado.

3.     Se a entrega for recusada exclusivamente com fundamento no disposto no n.° 2, o Ministério Público dará conhecimento à autoridade judiciária de emissão da disponibilidade para tomar a cargo a execução da sentença, segundo o procedimento previsto no artigo 11.° da Convenção relativa à transferência de pessoas condenadas, celebrada em 21 de Março de 1983 (Tractatenblad 1983, p. 74) ou com base noutro tratado aplicável.

[…]

5.     O disposto nos n.os 1 a 4 aplica‑se também ao estrangeiro que possua uma autorização de residência por tempo indeterminado, desde que, nos Países Baixos, aquele possa ser arguido num processo penal pelos factos que servem de base ao mandado de detenção europeu e desde que não seja de esperar que aquele perca o seu direito de permanência nos Países Baixos em consequência da pena ou medida de segurança que lhe for aplicada após a entrega.»

III – Questões prejudiciais

42.      O órgão jurisdicional de reenvio explica que as disposições do artigo 6.°, n.° 5, da OLW são aplicáveis sempre que o mandado de detenção europeu tiver por objecto a execução de uma pena, de modo que há que recusar a entrega quando se verificarem os requisitos estabelecidos nessas disposições, de acordo com o artigo 6.°, n.° 2, da OLW.

43.      Indica, igualmente, que aquelas disposições têm por objectivo facilitar a reinserção da pessoa condenada, permitindo que esta cumpra a sua pena o mais próximo possível do ambiente social em que se reinserirá.

44.      O órgão jurisdicional de reenvio salienta, contudo, que, por força do artigo 6.°, n.° 5, da OLW, os nacionais de outro Estado‑Membro que tenham um direito de permanência nos Países Baixos ao abrigo do artigo 18.° CE mas não possuam uma autorização de residência por tempo indeterminado não podem beneficiar desta disposição da OLW.

45.      O órgão jurisdicional de reenvio precisa que a obtenção desta autorização de residência por tempo indeterminado está sujeita ao duplo requisito de ter residido ininterruptamente nos Países Baixos durante cinco anos e ao pagamento de uma taxa de 201 euros.

46.      De acordo com o órgão jurisdicional de reenvio, a impossibilidade de os nacionais de outros Estados‑Membros que não possuam tal autorização de residência beneficiarem do motivo de não entrega previsto no artigo 6.°, n.° 5, da OLW, afecta os seus direitos resultantes da sua qualidade de cidadãos da União.

47.      Após recordar que, do acórdão do Tribunal de Justiça de 16 de Junho de 2005, Pupino (13), decorre que o juiz nacional é obrigado a interpretar a legislação nacional em conformidade com a decisão‑quadro, sem chegar a uma interpretação contra legem, o Rechtbank Amsterdam decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as questões prejudiciais seguintes:

«1)      Deve entender‑se por pessoas que se encontram ou são residentes no Estado‑Membro de execução, na acepção do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro, as pessoas que não têm a nacionalidade do Estado‑Membro de execução, mas de outro Estado‑Membro, e que, ao abrigo do artigo 18.°, n.° 1, CE, residem legalmente no Estado‑Membro de execução, independentemente da duração dessa residência legal?

2)      a)     Em caso de resposta negativa à primeira questão, os conceitos referidos na primeira questão devem ser interpretados no sentido de que se referem a pessoas que não têm a nacionalidade do Estado‑Membro de execução, mas de outro Estado‑Membro, e que, antes de serem detidas com base no mandado de detenção europeu, residiram legalmente no Estado‑Membro de execução, ao abrigo do artigo 18.°, n.° 1, CE durante, pelo menos, um período determinado?

b)      Em caso de resposta afirmativa à alínea a) da segunda questão, quais são os requisitos, em termos de duração, a que pode ser sujeita a residência legal?

3)      Em caso de resposta afirmativa à alínea a) da segunda questão, pode o Estado‑Membro de execução, além de sujeitar a residência legal a um requisito de duração, fixar ainda requisitos administrativos adicionais, como a posse de uma autorização de residência por tempo indeterminado?

4)      Cai no âmbito de aplicação (material) do Tratado CE uma medida nacional que fixa as condições em que o mandado de detenção europeu emitido para efeitos de execução de uma pena privativa da liberdade é recusado [pelas autoridades judiciárias de execução]?

5)      [Considerando] que:

–        o artigo 6.°, n.os 2 e 5, da OLW estabelece um regime segundo o qual as pessoas que não têm a nacionalidade neerlandesa mas possuem uma autorização de residência nos Países Baixos por tempo indeterminado são equiparadas aos neerlandeses

e que

–        esse regime leva a que, relativamente a esse grupo de pessoas, a entrega tenha de ser recusada se o mandado de detenção europeu se destinar à execução de uma pena privativa da liberdade efectiva,

o artigo 6.°, n.os 2 e 5, da OLW consubstancia uma discriminação proibida pelo artigo 12.° CE, porquanto a referida equiparação não se aplica aos nacionais de outros Estados‑Membros que tenham um direito de permanência ao abrigo do artigo 18.° CE e não venham a perder esse direito em consequência da pena privativa da liberdade aplicada, mas não possuam uma autorização de residência nos Países Baixos por tempo indeterminado?»

IV – Análise

48.      As questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio abarcam três perguntas que iremos analisar sucessivamente. Trata‑se, em primeiro lugar, de saber qual deve ser a duração da permanência da pessoa procurada no Estado‑Membro de execução para que possa considerar‑se que essa pessoa «se encontra» ou é «residente» nesse Estado, na acepção do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro, em segundo lugar, de saber se a aplicação do motivo de não execução previsto nesta disposição pode estar sujeita a requisitos administrativos, como a posse de uma autorização de residência por tempo indeterminado e, em terceiro lugar, de saber se o princípio da não discriminação que consta do artigo 12.° CE se opõe à legislação de um Estado‑Membro por força da qual a entrega de cidadãos nacionais deve ser sempre recusada enquanto que a de nacionais de outros Estados‑Membros só pode ser recusada se estes forem titulares de uma autorização de residência por tempo indeterminado.

A –    Quanto à duração da permanência no Estado‑Membro de execução

49.      Através da sua primeira e também da segunda questões, alíneas a) e b), o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, essencialmente, qual deve ser a duração da permanência da pessoa procurada no Estado‑Membro de execução para que possa considerar‑se que essa pessoa se encontra ou reside nesse Estado, na acepção do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro.

50.      A resposta a esta pergunta retira‑se, de forma bastante clara, na nossa opinião, do acórdão Kozlowski, já referido. Nesse acórdão, recorde‑se, o Tribunal de Justiça, decidiu que uma pessoa é residente no Estado‑Membro de execução quando tiver fixado a sua residência real neste último e encontra‑se aí quando, na sequência de uma permanência estável de uma certa duração nesse Estado‑Membro, criou laços com esse Estado num grau análogo aos da residência.

51.      O Tribunal de Justiça precisou que, para se determinar, numa situação concreta, se uma pessoa criou tais laços, há que fazer uma apreciação global de vários dos elementos objectivos que caracterizam a situação dessa pessoa, entre os quais, nomeadamente, a duração, a natureza e as condições da sua permanência no Estado‑Membro de execução, bem como os laços familiares e económicos que mantém com esse Estado.

52.      Deduziu esta afirmação do facto de a decisão‑quadro não definir o significado e o alcance dos conceitos de «se encontrar» e de «residente», de deverem ser objecto de uma definição uniforme no âmbito da União e não extensiva, determinada tendo em conta os objectivos visados pelo artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro, entre os quais, nomeadamente, o de aumentar as oportunidades de reinserção da pessoa procurada.

53.      Podemos, então, retirar destas orientações as seguintes indicações para o presente processo.

54.      Por um lado, a duração da permanência da pessoa procurada no Estado‑Membro de execução constitui um dos elementos que devem ser tomados em consideração para determinar se existem laços suficientes entre essa pessoa e esse Estado. Esta análise vale tanto no que respeita ao conceito de «residente» como ao de «se encontrar», como confirma a definição deste último conceito, de acordo com a qual uma pessoa encontra‑se no Estado‑Membro de execução quando, na sequência de uma permanência estável de uma certa duração nesse Estado, criou «laços com [este último] de grau análogo aos resultantes da residência».

55.      Por outro lado, essa permanência deve ser de uma «certa duração» (14), quer dizer, de uma duração significativa que demonstre, atendendo à situação gobal da pessoa procurada, a existência de uma verdadeira ligação dessa pessoa ao Estado‑Membro de execução.

56.      Daqui resulta que não é possível considerar que uma pessoa se encontra ou reside no território do Estado‑Membro de execução, na acepção do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro, independentemente da duração da sua permanência nesse Estado. De facto, da mesma forma que não é suficiente que a pessoa procurada permaneça temporariamente no território do Estado‑Membro de execução para que se considere que aí se encontra (15), também não é suficiente que essa pessoa aí tenha a sua residência real ou principal há muito pouco tempo, sem ter ainda outros laços com esse Estado, como uma actividade profissional ou a presença de membros da sua família.

57.      Contudo, resulta, igualmente, da expressão «uma certa duração» utilizada no acórdão Kozlowski, já referido, que também não é necessário que a pessoa procurada tenha residido naquele Estado ininterruptamente durante um determinado período, de cinco anos, por exemplo, como é exigido no artigo 16.° da Directiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho (16), para que possa beneficiar de um direito de residência permanente. Dado que os conceitos de «ser residente» e de «se encontrar» devem ser objecto de uma interpretação uniforme na União, um Estado‑Membro não pode exigir uma duração de permanência legal obrigatória. A lei neerlandesa, na medida em que leva a que se faça depender a não entrega de um nacional de outro Estado‑Membro da condição de esse nacional ter permanecido ininterruptamente durante cinco anos nos Países Baixos, é, na nossa opinião, contrária, neste aspecto, à decisão‑quadro.

58.      A questão de saber se a duração da permanência da pessoa procurada no Estado‑Membro de execução é suficiente para lhe permitir beneficiar do motivo de não execução previsto no artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro depende, por isso, de uma apreciação concreta dessa duração, atendendo ao conjunto dos outros elementos objectivos relevantes que caracterizam a situação dessa pessoa.

59.      Mais concretamente, o Tribunal de Justiça descreveu o método de análise que a autoridade judiciária de execução deve seguir para determinar se esse motivo de não execução deve ser aplicado. Essa autoridade deve, em primeiro lugar, determinar unicamente se a pessoa procurada é nacional, desse Estado, nele residente ou ai se encontra e depois, se tal for o caso, num segundo momento, verificar se existe um interesse legítimo que justifique que a pena aplicada no Estado‑Membro de emissão seja executada no território do Estado‑Membro de execução (17). Nesta perspectiva, a reinserção da pessoa procurada será apenas um desses interesses legítimos.

60.      Esta interpretação do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro não nos convence.

61.      Por um lado, não descortinamos, à luz dos requisitos constantes desse artigo e do sistema da decisão‑quadro, que outro interesse legítimo pode ser prosseguido através desta disposição. Além disso, há que recordar que o artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro prevê uma excepção ao princípio da entrega, constante do artigo 1.°, n.° 2, da decisão‑quadro, de modo que não deve ser objecto de interpretação extensiva, como o Tribunal de Justiça referiu a propósito do conceito de «se encontrar» (18).

62.      Por outro lado, esse método de análise para aplicação do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro parece não estar em conformidade com o método de interpretação de um conceito referido num acto comunitário, de acordo com o qual, sempre que esse conceito não seja definido nesse acto e que este último não contenha uma remissão para o direito dos Estados‑Membros, deve ser definido tendo em atenção o seu contexto e o objectivo prosseguido (19). Por conseguinte, os conceitos que condicionam a aplicação de uma disposição comunitária devem ser apreciados, em cada caso concreto, tendo em conta o objectivo prosseguido pela disposição em causa.

63.      Entendemos, por isso, que em cada situação concreta, a autoridade judiciária de execução, para determinar se a pessoa procurada «se encontr[a]» ou «[é] residente» no Estado‑Membro de execução na acepção do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro, deve analisar se entre essa pessoa e esse Estado existem laços que permitam considerar que o cumprimento da pena nesse Estado é necessária para favorecer a sua reinserção. Foi tendo em conta este objectivo que o conteúdo desses conceitos foi definido pelo Tribunal de Justiça no acórdão Kozlowski, já referido, e deve ser apreciado em cada caso concreto.

64.      O lugar onde uma pessoa que deve cumprir uma pena de prisão ou uma medida de segurança se encontra ou reside é importante para a sua reinserção, pois a reinserção visa permitir que essa pessoa reencontre o seu lugar na sociedade, ou seja, o meio familiar, social e profissional no qual vivia antes da execução da sanção que lhe foi aplicada e ao qual é provável que regresse após o cumprimento da pena.

65.      Assim, nas suas recomendações relativas às regras penitenciárias (20), os Estados‑Membros do Conselho da Europa exprimiram o desejo de que a detenção seja organizada, na medida do possível, em condições que permitam ao detido manter e reforçar os laços com a sua família. A detenção deve, igualmente, dar ao detido a impressão de que não está excluído da sociedade. A detenção deve, por último, facilitar a obtenção ou a retoma de um emprego após o cumprimento da pena, através de um programa de preparação para a colocação em liberdade elaborado no estabelecimento prisional ou da liberdade condicional controlada (21).

66.      A aplicação destas recomendações exige, por conseguinte, que a execução de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade rompa o menos possível os laços do detido com a sua família, e com o seu ambiente social e profissional.

67.      Tendo em conta estas considerações, a autoridade judiciária de execução deve apreciar, numa situação concreta, se a pessoa procurada «se encontra» ou é «residente» no Estado‑Membro de execução na acepção do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro.

68.      Daqui resulta que pode considerar‑se, na nossa opinião, que essa pessoa reside no Estado‑Membro de execução na acepção do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro, ainda que aí permaneça há muito pouco tempo, se, todavia, tem com esse Estado outros laços suficientemente estreitos, como o facto de ter aí o seu domicílio principal, de aí viver com a sua família e de exercer uma actividade profissional no referido Estado.

69.      No que respeita à situação de D. Wolzenburg, entendemos que pode considerar‑se que este reside nos Países Baixos, na acepção do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro, porquanto no momento da recepção, pelas autoridades neerlandesas, do seu mandado de detenção europeu, fixara o seu domicílio principal nesse Estado há pouco mais de um ano, aí vivia com o seu cônjuge e exercia uma actividade profissional.

70.      Face a estes elementos, propomos que o Tribunal de Justiça responda que a duração da permanência no Estado‑Membro de execução da pessoa procurada por força de um mandado de detenção europeu, para determinar se essa pessoa se encontra ou reside nesse Estado na acepção do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro, deve ser suficiente para estabelecer que, à luz dos outros elementos objectivos que caracterizam a situação concreta dessa pessoa, esta tem com o referido Estado laços que permitem pensar que o cumprimento da pena de prisão no Estado‑Membro de execução irá favorecer a sua reinserção.

B –     Quanto à possibilidade de sujeitar a aplicação do motivo de não execução que consta do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro a requisitos administrativos adicionais, como a posse de uma autorização de residência por tempo indeterminado

71.      Através da sua terceira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro deve ser interpretado no sentido de que a aplicação do motivo de não execução constante desta disposição pode estar sujeita a requisitos administrativos adicionais, como a posse de uma autorização de residência por tempo indeterminado.

72.      O acórdão Kozłowski, referido, fornece já uma indicação sobre a resposta a dar a esta questão. Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça pronunciou‑se sobre a questão de saber se é possível considerar que a pessoa procurada «reside» ou «se encontra» no Estado‑Membro de execução quando a sua permanência nesse Estado não seja conforme com a legislação que regula o direito de residência. O Oberlandesgericht Stuttgart colocou esta questão porque S. Kozlowski, mais de três anos após a sua entrada na Alemanha, não exercia aí qualquer actividade e assegurava o essencial da sua subsistência com a prática de infracções (22).

73.      De acordo com o Tribunal de Justiça, esta circunstância não exclui, só por si, que possa considerar‑se que a pessoa procurada se encontra no Estado‑Membro de execução, mas pode constituir um elemento relevante para apreciar se este requisito se verifica.

74.      Deduz‑se destes elementos que, para responder à questão em análise e como refere o próprio órgão jurisdicional de reenvio, há que partir do facto de que o direito de permanência no Estado‑Membro de execução de um nacional de outro Estado‑Membro decorre do artigo 18.° CE ou, se for o caso, do exercício de uma actividade económica em resultado da liberdade de circulação prevista no Tratado CE, e que esse direito só pode ser posto em causa por aquele Estado em conformidade com o direito comunitário.

75.      De facto, de acordo com o artigo 17.°, n.° 1, CE, é cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado‑Membro e, nos termos do artigo 18.°, n.° 1, CE, qualquer cidadão da União goza do direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros, sem prejuízo das limitações e condições previstas no Tratado CE e nas disposições adoptadas em sua aplicação. É, igualmente, um dado assente que a qualidade de cidadão da União constitui o estatuto de base de cada nacional de um Estado‑Membro e que o direito, reconhecido pelo Tratado CE, de exercer uma actividade económica no Estado‑Membro da sua escolha, como trabalhador independente ou assalariado, tem como corolário o direito de permanecer nesse Estado.

76.      Como refere o próprio órgão jurisdicional de reenvio, esse direito de permanência não está sujeito a requisitos administrativos, como a posse de uma autorização de residência por tempo indeterminado. Tal requisito não se está previsto no Tratado CE nem na Directiva 2004/38, ao contrário do requisito da disposição de recursos suficientes para uma permanência por um período superior a três meses e da obrigação de não representar uma ameaça para a ordem pública e segurança pública do Estado‑Membro de acolhimento, em causa no processo que deu origem ao acórdão Kozlowski, referido.

77.      De igual forma, a posse de uma autorização de residência por tempo indeterminado também não consta das condições de aplicação do motivo de não execução previsto no artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro.

78.      Daqui resulta que a falta de tal autorização não deve excluir a aplicação deste motivo de não execução, nem constituir um elemento relevante que possa ser tido em consideração na aplicação deste motivo.

79.      Face a estes elementos, propomos que o Tribunal de Justiça responda à terceira questão que o artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro deve ser interpretado no sentido de que a aplicação do motivo de não execução previsto nesta disposição não pode estar sujeito a requisitos administrativos adicionais, como a posse de uma autorização de residência por tempo indeterminado.

80.      A título complementar, realçamos que o direito neerlandês sujeita, igualmente, a aplicação daquele motivo de não execução a dois requisitos adicionais. É, igualmente, necessário, por um lado, que a pessoa procurada possa ser arguida num processo penal nos Países Baixos pelos factos que servem de base ao mandado de detenção europeu e, por outro lado, que não seja de esperar que essa pessoa perca o seu direito de permanência nesse Estado‑Membro em consequência da pena ou medida de segurança que lhe for aplicada após a entrega.

81.      O órgão jurisdicional de reenvio não questionou o Tribunal de Justiça relativamente à conformidade desses requisitos com a decisão‑quadro, uma vez que verificou que tais requisitos se verificavam no presente processo. Indicaremos, contudo, que o primeiro destes requisitos, de acordo com o qual a pessoa procurada deve poder ser arguida num processo penal no Estado‑Membro de execução pelos factos que servem de base ao mandado de detenção europeu, não está, na nossa opinião, de acordo com decisão‑quadro.

82.      De facto, o artigo 4, n.° 6, desta decisão apenas prevê como requisitos de aplicação, em primeiro lugar, que a pessoa procurada seja nacional do Estado‑Membro de execução, aí se encontre ou aí resida, e, em segundo lugar, que este Estado se comprometa a executar essa pena ou medida de segurança nos termos do seu direito nacional. O Tribunal de Justiça, como vimos, decidiu que os conceitos de «se encontrar» e de «residente» devem ser objecto de uma interpretação uniforme em todos os Estados‑Membros. Esta análise dos conceitos que condicionam a aplicação do motivo de não execução previsto no artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro tem como consequência, na nossa opinião, que um Estado‑Membro não pode sujeitar essa aplicação a um requisito adicional não previsto nesta disposição.

83.      Por outro lado, o requisito adicional em causa não pode ser justificado pelo objectivo prosseguido pelo artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro, relativo à reinserção da pessoa procurada. Não existe qualquer ligação, a priori, entre o local onde a infracção é cometida e o local onde uma pessoa fixa o centro dos seus interesses e onde a sua detenção é, consequentemente, mais susceptível de favorecer a sua reinserção.

84.      No que respeita ao segundo requisito, de acordo com o qual a pessoa procurada não deve perder o seu direito de permanência no Estado‑Membro de execução, parece estar, claramente, de acordo com a decisão‑quadro na medida em que o objectivo de reinserção prosseguido pelo artigo 4.°, ponto 6, desta decisão pressupõe, implicitamente, que a pessoa procurada pode continuar a residir nesse Estado e que o direito de permanência de um cidadão da União num Estado‑Membro do qual não é nacional não é incondicional.

85.      Recordamos, simplesmente, que se em consequência da prática de uma infracção num Estado‑Membro, um cidadão da União pode ser privado do seu direito de permanência nesse Estado, essa privação só pode resultar de uma decisão de afastamento adoptada de acordo com as condições muito restritivas previstas nos artigos 27.° a 33.° da Directiva 2004/38.

86.      Assim, tal decisão só pode ser tomada em circunstâncias excepcionais, isto é, quando o comportamento da pessoa em questão constitua uma ameaça real, actual e suficientemente grave que afecte um interesse fundamental da sociedade. Por outro lado, antes de tomar uma decisão de afastamento do território por razões de ordem pública ou de segurança pública, o Estado‑Membro de acolhimento deve tomar em consideração, nomeadamente, a duração da permanência da pessoa em questão no seu território, a sua idade, o seu estado de saúde, a sua situação familiar e económica, a sua integração social e cultural nesse Estado e a importância dos laços com o seu país de origem.

C –    Conclusão intercalar

87.      Face às considerações que antecedem, deve, por conseguinte, poder considerar‑se que uma pessoa procurada que se encontre na situação de D. Wolzenburg se encontra ou reside nos Países Baixos na acepção do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro e pode, assim, beneficiar do motivo de não execução previsto nesta disposição.

88.      Como decorre do acórdão Pupino, referido, e como recordou o órgão jurisdicional de reenvio, cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais, de acordo com o princípio da interpretação conforme, interpretar o seu direito nacional, na medida do possível, à luz do teor e das finalidades da decisão‑quadro, a fim de atingir o resultado visado por esta última (23). Contudo, essa obrigação cessa quando o direito nacional não possa ser objecto de uma interpretação que conduza a um resultado compatível com o pretendido por essa decisão‑quadro, não podendo o princípio da interpretação conforme servir de fundamento a uma interpretação contra legem (24).

89.      No acórdão de 5 de Outubro de 2004, Pfeiffer e o. (25), o Tribunal de Justiça precisou, contudo, em que medida este obstáculo poderia ser superado graças ao princípio da equivalência. De acordo com o Tribunal de Justiça, se o direito nacional, mediante a aplicação dos métodos de interpretação por ele reconhecidos, permite, em determinadas circunstâncias, interpretar uma disposição da ordem jurídica interna de forma a evitar um conflito com outra norma de direito interno ou, para esse efeito, reduzir o seu alcance, aplicando‑a somente na medida em que seja compatível com a referida norma, o órgão jurisdicional nacional tem a obrigação de utilizar os mesmos métodos com vista a atingir o resultado pretendido pela directiva em questão (26). Esta interpretação do alcance do princípio da interpretação conforme pode ser transposta no caso de uma decisão‑quadro.

90.      No presente processo, o órgão jurisdicional de reenvio não explicou se, e em que medida, os métodos de interpretação reconhecidos pelo seu direito nacional lhe permitem resolver o conflito entre o artigo 6.° da OLW e o artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro, de forma a permitir a uma pessoa na situação de D. Wolzenburg ser objecto de uma decisão de não entrega e cumprir a sua pena nos Países Baixos.

91.      Não referiu qual a relevância, neste aspecto, das quarta e quinta questões, através das quais pretendia saber se a legislação nacional controvertida contraria o princípio da não discriminação que consta do artigo 12.° CE. Contudo, não pode excluir‑se que, em consequência da aplicação dos métodos de interpretação do seu direito nacional, a possibilidade de o órgão jurisdicional de reenvio chegar ao resultado pretendido pela decisão‑quadro depende da resposta a esta pergunta. As quarta e quinta questões, cuja admissibilidade não é contestada, não podem, por isso, ser consideradas como manifestamente desprovidas de interesse para a solução do litígio no processo principal, pelo que propomos que o Tribunal de Justiça as analise.

D –    Quanto à conformidade do regime controvertido com o princípio da não discriminação

92.      Através das suas quarta e quinta questões, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se a sua legislação nacional é compatível com o artigo 12.° CE, que proíbe qualquer discriminação em razão da nacionalidade no domínio de aplicação do Tratado CE.

93.      Assim, pergunta, essencialmente, se o artigo 12.° CE, em conjugação com o artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro, se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que prevê que a entrega dos nacionais desse país em execução de um mandado de detenção europeu deve ser recusada, enquanto a entrega de nacionais de outros Estados‑Membros que se encontrem ou residam no Estado‑Membro de execução na acepção dessa disposição da decisão‑quadro só pode ser recusada se estes forem titulares de uma autorização de residência por tempo indeterminado.

94.      Vários Estados‑Membros que intervieram no presente processo pedem ao Tribunal de Justiça que responda negativamente a esta questão por diversos motivos que podem ser resumidos do seguinte modo:

95.      Em primeiro lugar, de acordo com os Governos dinamarquês, alemão e austríaco, o artigo 4.° da decisão‑quadro concede aos Estados‑Membros o direito de decidir que a entrega pode ser recusada nos casos previstos nesta disposição, mas esses Estados não são obrigados a transpor estes casos para o direito nacional. Dispõem, assim, de uma ampla margem de apreciação sempre que decidam aplicar o motivo de não execução previsto no artigo 4.°, ponto 6, deste acto, de forma que têm o direito de submeter a sua aplicação no que respeita aos cidadãos nacionais e aos de outros Estados‑Membros a requisitos diferentes.

96.      Em segundo lugar, de acordo com o Governo neerlandês, tal regulamentação não pode ser apreciada à luz do artigo 12.° CE porque não resulta do Tratado CE mas pertence ao domínio da cooperação policial e judiciária em matéria penal. Além disso, as circunstâncias em que se encontra D. Wolzenburg não estão abrangidas pelo Tratado CE, uma vez que o interessado foi detido em 1 de Agosto de 2006 com base numa indicação no quadro do Sistema de Informação Schengen para execução de uma pena privativa de liberdade.

97.      Em terceiro lugar, um Estado‑Membro poderá proibir a entrega dos seus nacionais. De acordo com o Governo austríaco, esta proibição não viola os artigos 4.°, n.° 6, e 5.°, n.° 3, da decisão‑quadro, nos quais se presume, de forma inilidível, que existe uma relação de proximidade entre os nacionais do Estado‑Membro de execução e esse Estado.

98.      Além disso, a proibição de extradição, por um Estado, dos seus próprios nacionais consta do artigo 3.° do Protocolo n.° 4 (27). Trata‑se, igualmente, de um princípio fundamental aplicado noutros diplomas adoptados no quadro do Título VI do Tratado UE, relativo à cooperação policial e judiciária em matéria penal (28).

99.      De igual modo, em vários acórdãos, o Tribunal de Justiça admitiu que um Estado‑Membro pode adoptar medidas diferentes relativamente aos seus nacionais e aos nacionais de outros Estados‑Membros, desde que essa diferença de tratamento seja justificada de forma objectiva (29). Uma legislação nacional que, como no presente processo, recuse a entrega dos cidadãos nacionais e só estenda esta recusa aos nacionais dos outros Estados‑Membros que possuam uma autorização de residência por tempo indeterminado é objectivamente justificada, uma vez que estas duas categorias de cidadãos da União têm uma ligação mais estreita com o Estado‑Membro de execução.

100. Além disso, ao adoptar o artigo 5.°, n.° 3, da decisão‑quadro, o legislador da União decidiu que os cidadãos da União que residem no Estado‑Membro de execução não devem ser tratados da mesma forma que aqueles que permanecem nesse Estado sem aí terem a sua residência.

1.      Quanto à faculadade de os Estados‑Membros não procederem à transposição do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro e à sua margem de apreciação em caso de transposição.

101. Não nos parece que o tratamento diferente previsto na legislação nacional em causa possa ser justificado pela margem de apreciação de que os Estados‑Membros dispõem quando transpõem o artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro, pelos dois motivos seguintes:

102. A título principal, entendemos que a transposição para o direito nacional do motivo de não execução previsto no artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro não é deixada à discricionariedade dos Estados‑Membros, mas tem carácter obrigatório. A título subsidiário, mesmo que se admita que essa transposição não tem carácter obrigatório, um Estado‑Membro não pode adoptar uma medida que comporte uma discriminação em razão da nacionalidade.

103. Quanto à primeira questão, como o Tribunal de Justiça considerou no acórdão Kozlowski, já referido, o motivo de não execução previsto no artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro tem por finalidade favorecer a reinserção da pessoa condenada. Na medida em que esta pessoa, se se tratar de um cidadão da União, tem o direito de circular e de residir em todos os Estados‑Membros, o sucesso da sua reinserção não diz respeito apenas ao Estado‑Membro de execução mas, igualmente, a todos os outros Estados‑Membros e às pessoas que aí vivem.

104. Idêntica análise pode ser efectuada relativamente aos nacionais de Estados terceiros. Devido à supressão dos controlos nas fronteiras internas no espaço Schengen, esses nacionais podem circular livremente no interior desse espaço. Podem, igualmente, circular e permanecer em toda a União na qualidade de membros da família de um nacional de um Estado‑Membro.

105. Daqui decorre que a abertura das fronteiras tornou os Estados‑Membros solidariamente responsáveis pela luta contra a criminalidade. É por esta razão que a criação do espaço penal europeu surgiu como uma necessidade, a fim de que as liberdades de circulação não sejam exercidas em detrimento da segurança pública.

106. Por conseguinte, a transposição para a ordem jurídica de cada Estado‑Membro do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro, é absolutamente necessária, em nossa opinião, para que o mandado de detenção europeu não seja aplicado com prejuízo da reinserção da pessoa condenada e, consequentemente, do interesse legítimo de todos os Estados‑Membros na prevenção da criminalidade, que o motivo de não execução que consta desta disposição visa assegurar.

107. É por isso que entendemos, como a Comissão, que as primeiras palavras do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro, ou seja «[a] autoridade judiciária de execução pode recusar a execução de um mandado de detenção europeu», devem ser entendidas no sentido de que a autoridade judiciária de execução deve poder dispor, no direito nacional, da possibilidade de se opor à entrega sempre que os requisitos constantes desta disposição se verifiquem. Está análise é confirmada, em nossa opinião, pela Decisão‑quadro 2008/909/JAI do Conselho (30), que tem por objectivo favorecer a execução das penas de prisão no Estado em que essa execução é mais susceptível de favorecer a reinserção da pessoa condenada.

108. Quanto à segunda questão, ainda que se reconheça aos Estados‑Membros a liberdade de transporem ou não o artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro, se procederem a tal transposição não podem deixar de tomar em consideração o princípio da não discriminação.

2.      Quanto à aplicação do princípio da não discriminação

109. É um facto que a decisão‑quadro foi adoptada com base no Tratado UE e não com base no Tratado CE. É, igualmente, verdade que a legislação em matéria de nacionalidade continua a ser da competência soberana dos Estados‑Membros e que o direito comunitário não visa abolir as diferenças de tratamento, na legislação de um Estado‑Membro, entre os nacionais desse Estado e os dos outros Estados da União. Os deveres e os direitos recíprocos que ligam um Estado‑Membro e cada um dos seus nacionais não têm, por isso, de ser aplicados, sistematicamente, a cada nacional dos outros Estados‑Membros (31).

110. Contudo, não pode deduzir‑se desta premissa que as disposições adoptadas por um Estado‑Membro para aplicar um acto previsto no Tratado UE escapam a qualquer controlo de legalidade à luz do princípio da não discriminação.

111. Por um lado, de facto, resulta da jurisprudência que as pessoas que tenham exercido uma liberdade de circulação reconhecida pelo Tratado CE têm o direito de invocar o artigo 12.° CE. O exercício de uma liberdade de circulação constitui o elemento de conexão com o direito comunitário necessário à aplicação deste artigo (32). A legislação de um Estado‑Membro pode, pois, ver apreciada a sua conformidade com aquele artigo desde que se aplique a uma pessoa que tenha exercido uma liberdade de circulação, ainda que esta legislação integre uma matéria de competência reservada (33).

112. Assim, no acórdão Cowan, já referido, o Tribunal de Justiça admitiu que um cidadão britânico, agredido em França quando aí estava em turismo, tinha o direito de invocar o princípio da não discriminação contra a lei francesa sobre indemnização de vítimas de infracções, ainda que, na ordem jurídica nacional, esta tivesse a natureza de norma de processo penal. Também no acórdão Garcia Avello, referido, o Tribunal de Justiça decidiu que duas crianças espanholas que residiam legalmente na Bélgica na qualidade de cidadãos da União, podiam invocar o mesmo princípio contra as normas belgas relativas ao apelido.

113. Estes acórdãos constituem jurisprudência assente, segundo a qual, ao exercer as suas competências reservadas, um Estado‑Membro não pode violar as normas do Tratado CE (34), entre as quais consta a proibição de toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade, prevista no artigo 12.° CE. Esta jurisprudência deve aplicar‑se, a fortiori, sempre que um Estado‑Membro executa um acto do direito da União, como uma decisão‑quadro, como é confirmado pelo artigo 47.° UE, nos termos do qual nenhuma disposição do Tratado UE pode afectar as normas do Tratado CE.

114. Daqui resulta que D. Wolzenburg, que se encontra nos Países Baixos em consequência do exercício das liberdades de circulação atribuídas pelo Tratado CE, na qualidade de cidadão da União ou de operador económico, pode invocar o artigo 12.° CE contra a legislação neerlandesa que determina em que condições ele pode beneficiar do motivo de não execução previsto no artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro.

115. Por outro lado, um Estado‑Membro não pode, no quadro da execução de uma decisão‑quadro, violar o princípio da não discriminação, enquanto princípio fundamental reconhecido, nomeadamente, no artigo 14.° da Convenção Europeia para Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), e no artigo 21.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada em Nice em 7 de Dezembro de 2000 (35).

116. De facto, é jurisprudência assente que os Estados‑Membros, quando executam o direito da União, estão vinculados pelos direitos fundamentais tal como os garante a CEDH e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros, enquanto princípios gerais do direito comunitário (36).

117. Os requisitos aos quais um Estado‑Membro submete a aplicação do motivo de não execução previsto no artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro não podem, por isso, ser subtraídos ao controlo da sua conformidade com o princípio da não discriminação.

3.      Quanto à existência de discriminação

118. É pacífico que a legislação neerlandesa em causa consagra uma diferença de tratamento em razão da nacionalidade. De facto, como salienta a Comissão, enquanto os nacionais neerlandeses beneficiam, obrigatória e incondicionalmente, do motivo de não‑execução, os nacionais dos outros Estados‑Membros que se encontrem ou residam nos Países Baixos na acepção do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro só beneficiam deste motivo se preencherem requisitos administrativos adicionais.

119. De acordo com a jurisprudência, o princípio da não discriminação exige que situações comparáveis não sejam tratadas de modo diferente, excepto se esse tratamento for objectivamente justificado (37). É, igualmente, necessário que a diferença de tratamento em causa seja necessária e adequada para atingir o objectivo pretendido (38).

120. Vários Estados‑Membros entenderam que tinham o direito de excluir, de forma sistemática, a entrega dos seus nacionais e que, nesta medida, a situação destes e a dos nacionais de outros Estados‑Membros no quadro da execução do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro não seriam comparáveis. Não partilhamos dessa análise, pelas razões seguintes:

121. Em primeiro lugar, entendemos que a impossibilidade absoluta de entrega de nacionais do Estado‑Membro de execução não é compatível com a decisão‑quadro.

122. Por um lado, constatamos que a qualidade de nacional do Estado‑Membro de execução é abrangida pelo artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro da mesma forma que o são as situações de «se encontrar» ou de «residente» nesse Estado, as quais só podem dar lugar a uma decisão de não entrega após uma apreciação da situação concreta da pessoa procurada, efectuada, caso a caso, pela autoridade judiciária de execução.

123. Por outro lado, o motivo de não execução que consta do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro tem por fim aumentar as possibilidades de reinserção da pessoa procurada. Ao referir‑se, nesta disposição, à qualidade de nacional do Estado‑Membro de execução, o legislador da União considerou que esta qualidade constituía uma presunção da existência de laços entre a pessoa procurada e o Estado‑Membro de execução, que permitia pensar que o cumprimento da pena nesse Estado era susceptível de favorecer essa reinserção.

124. Contudo, não consideramos que essa presunção possa ser considerada inilidível por um Estado‑Membro. Invocamos como prova a enorme variedade de situações humanas com as quais as autoridades judiciárias de um Estado‑Membro se confrontam diariamente. Assim, podemos imaginar o caso de um nacional neerlandês que resida há vários anos num Estado‑Membro, que não seja o Reino dos Países Baixos, onde tem uma família e um emprego, e que deixa esse Estado unicamente para se furtar à execução de uma sanção que aí lhe tenha sido aplicada. Não cremos que, em tal situação, seja possível presumir de forma inilidível que a reinserção do interessado será assegurada de forma necessariamente melhor através da execução da pena nos Países Baixos.

125. Por isso, entendemos que o objectivo de reinserção, prosseguido pelo artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro, não pode ser atingido sem a individualização do regime de execução da pena que pressupõe que o juiz beneficia da plenitude dos seus poderes jurisdicionais e da sua total liberdade de apreciação. Aquele objectivo não pode, por conseguinte, na nossa opinião, justificar que um Estado‑Membro prive a autoridade judiciária competente de todo o poder de apreciação sempre que um mandado de detenção europeu seja emitido contra um nacional desse Estado. Assim, a autoridade judiciária deve poder deferir um pedido de entrega sempre que a pessoa em causa, como no exemplo referido, não tenha outros laços com o Estado‑Membro de execução para além da nacionalidade.

126. Em segundo lugar, a impossibilidade absoluta de entrega de nacionais do Estado‑Membro de execução não nos parece conforme com a economia e os objectivos da decisão‑quadro.

127. A não extradição, por um Estado, dos seus nacionais constitui um princípio tradicional do direito da extradição. É reconhecido pela Convenção Europeia de Extradição, assinada pelos Estados‑Membros do Conselho da Europa em Paris, em 13 de Dezembro de 1957, que prevê, no seu artigo 6.°, n.° 1, alínea a), que as partes contratantes terão a faculdade de recusar a extradição dos seus cidadãos nacionais.

128. O princípio da não extradição dos cidadãos nacionais tem as suas origens na soberania dos Estados relativamente aos seus nacionais, nas obrigações recíprocas que os ligam e na falta de confiança nos sistemas jurídicos dos outros Estados. Assim, entre os motivos que são invocados como fundamento deste princípio figura, nomeadamente, o dever do Estado de proteger os seus nacionais contra a aplicação de um sistema penal estrangeiro, do qual desconhecem as regras de processo e a língua, e no quadro do qual dificilmente se podem defender (39).

129. A decisão‑quadro marca, claramente, o abandono daquele princípio nas relações entre os Estados‑Membros. Esta tem, expressamente, como objectivo, como resulta dos seus considerandos e do seu articulado, nomeadamente do artigo 31.°, suprimir, nas relações entre os Estados‑Membros, o processo de extradição e substituí‑lo por um sistema de entrega, no quadro do qual a autoridade judiciária de execução só pode opor‑se a essa entrega através de uma decisão fundamentada especificamente num dos motivos de não‑execução enumerados taxativamente nos artigos 3.° e 4.° da decisão‑quadro.

130. A decisão‑quadro assenta no princípio do reconhecimento mútuo. O mandado de detenção europeu, como consta do considerando sexto desta decisão‑quadro, constitui a primeira concretização, no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo que o Conselho Europeu realizado em Tampere em 15 e 16 de Outubro de 1990, qualificou de «pedra angular» da cooperação judiciária.

131. Por força deste princípio, desde que uma decisão seja tomada por uma autoridade judiciária em conformidade com o direito do Estado a que pertence, tem um efeito pleno e directo em toda a União, de tal modo que as autoridades competentes de qualquer outro Estado‑Membro devem prestar o seu contributo à execução dessa decisão como se fosse proveniente de uma autoridade judiciária do seu próprio Estado (40). O âmbito de aplicação de uma decisão judiciária já não está, por isso, limitado ao território do Estado‑Membro de emissão mas abrange toda a União.

132. Daqui resulta que, sempre que a autoridade judiciária de um Estado‑Membro requeira a entrega de uma pessoa, seja na sequência da execução de uma sanção definitiva, seja porque essa pessoa é arguida em processos penais, a sua decisão deve ser reconhecida e executada automaticamente em todos os Estados‑Membros, sem que possa opor‑se qualquer outro motivo de não execução que não seja um dos que estão previstos na decisão‑quadro. Por outras palavras, ao aceitarem constituir um espaço judiciário europeu e, em especial, o sistema do mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo, os Estados‑Membros renunciaram ao seu poder soberano de excluir os seus próprios nacionais das investigações e das sanções das autoridades judiciárias dos outros Estados‑Membros.

133. Esta renúncia tornou‑se possível porque, como refere o considerando décimo da decisão‑quadro, «o mecanismo do mandado de detenção europeu é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados‑Membros».

134. Esta confiança traduziu‑se, em primeiro lugar, na renúncia, pelos Estados‑Membros, ao exercício do seu direito de acção penal, contida no princípio «ne bis in idem», consagrado no artigo 54.° da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen (41), por força do qual uma pessoa definitivamente julgada num Estado‑Membro não pode, pelos mesmos factos, ser submetida a nova acção judicial intentada noutro Estado‑Membro.

135. Como o Tribunal de Justiça realçou no acórdão de 11 de Fevereiro de 2003, Gözütok e Brügge (42), aquele princípio implica, necessariamente, que, sejam quais forem as modalidades nos termos dos quais a sanção é aplicada, exista uma confiança mútua dos Estados‑Membros nos respectivos sistemas de justiça penal e que cada um aceite a aplicação do direito penal em vigor noutros Estados‑Membros, ainda que a aplicação do seu direito nacional leve a uma solução diferente (43).

136. Esta confiança resulta de vários factores. Por um lado, todos os Estados‑Membros demonstraram, quando constituíram as Comunidades Europeias ou a elas aderiram, que eram Estados de Direito, respeitadores dos direitos fundamentais, tal como constam da CEDH e, desde 7 de Dezembro de 2000, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Acresce ainda que, para além da ratificação desta convenção e da proclamação desta carta, todos esses Estados partilham uma concepção exigente do Estado de Direito, como afirmou a Comissão no n.° 1 da exposição de motivos da sua proposta de decisão‑quadro (44).

137. Apesar de, até hoje, não existir uma harmonização total do direito penal material e processual na União, os Estados‑Membros conseguiram convencer‑se de que as condições nas quais os seus nacionais são objecto de procedimento penal e julgados nos outros Estados‑Membros respeitam os direitos dos seus nacionais e permitir‑lhes‑ão defender‑se adequadamente, não obstante as diferenças linguísticas e a ausência de familiaridade com as regras de processo.

138. Por outro lado, a confiança que cada Estado‑Membro e os seus nacionais devem ter na justiça dos outros Estados‑Membros surge como o resultado lógico e inevitável da criação do mercado único, bem como da cidadania europeia.

139. De facto, cada Estado‑Membro tem a obrigação, em execução das liberdades de circulação instituídas pelo Tratado CE, de permitir que os nacionais dos outros Estados‑Membros exerçam uma actividade económica no seu território, por conta própria ou por conta de outrem, nas mesmas condições que os seus próprios nacionais.

140. Com a criação da cidadania da União, atingiu‑se mais uma etapa, uma vez que todos os Estados‑Membros têm um dever comum de receber no seu território os nacionais dos outros Estados‑Membros que aí queiram permanecer, desde que esses nacionais disponham, pelo menos durante os cinco primeiros anos, de recursos suficientes e de protecção social. Devem, também, permitir‑lhes participar nas eleições municipais e nas eleições para o Parlamento Europeu. Devem, por último, estender a protecção por parte das suas autoridades diplomáticas ou consulares aos cidadãos da União que se encontrem num Estado terceiro, se o Estado‑Membro de que são nacionais os interessados não se encontrar aí representado.

141. A realização do Mercado Único e a cidadania da União conduziram, pois, progressivamente, a que os Estados‑Membros tivessem de tratar, cada vez mais, os nacionais dos outros Estados‑Membros como seus nacionais, na vida económica, social e política. Permitem, igualmente, que cada cidadão vá viver ou trabalhar para um Estado‑Membro da União à sua escolha, nas mesmas condições que qualquer outro nacional desse Estado.

142. Parece, por isso, que chegou o momento de acrescentar a esta construção jurídica a igualdade de tratamento perante a justiça. Por outras palavras, uma vez que um cidadão da União tem, a partir de agora, em qualquer Estado‑Membro, direitos, em grande medida, iguais aos dos nacionais desse Estado, é justo que se sujeite às mesmas obrigações em matéria penal. Tal implica que, se esse cidadão cometer uma infracção no Estado‑Membro de acolhimento, seja objecto de processo penal e julgado nos tribunais desse Estado, como os cidadãos nacionais, e que aí cumpra a sua pena, salvo se o cumprimento desta no Estado de que é nacional for claramente susceptível de aumentar as suas possibilidades de reinserção.

143. O abandono, pela decisão‑quadro, do princípio da não extradição dos cidadãos nacionais é ainda confirmado, se necessário for, pelas disposições transitórias previstas no seu artigo 33.° relativas à República da Áustria, que autorizam este Estado‑Membro a manter tal princípio o tempo necessário para alterar a sua Constituição e, o mais tardar, até 31 de Dezembro de 2008.

144. É certo que, na Decisão‑quadro 2002/946, adoptada posteriormente à decisão‑quadro, o artigo 5.° refere, expressamente, o caso em que um Estado‑Membro, cujo ordenamento jurídico «não prev[ê] a extradição dos seus nacionais» e prevê que, neste caso, a pessoa suspeita de ter cometido a infracção mencionada nesse acto num outro Estado‑Membro deve ser objecto de processos no Estado‑Membro de que é nacional, nos termos do sistema previsto no artigo 6.° da Convenção Europeia de Extradição de 13 de Dezembro de 1957. Contudo, estas disposições, constantes de um texto cujo objecto é reforçar a repressão de uma determinada infracção, não devem influenciar a interpretação da decisão‑quadro.

145. Por último, entendemos que a entrega, por um Estado‑Membro, de um dos seus nacionais em execução de um mandado de detenção europeu não viola os direitos fundamentais e, em especial, o artigo 3.°, n.° 1, do Protocolo n.° 4, por força do qual ninguém pode ser expulso do território do Estado de que é nacional.

146. Por um lado, a entrega às autoridades judiciárias de outro Estado‑Membro não pode ser considerada expulsão na acepção desta disposição.

147. Por outro lado, o abandono do princípio da não extradição dos cidadãos nacionais, consagrado na decisão‑quadro, não priva as autoridades judiciárias de execução de qualquer meio de protecção da pessoa em causa se, excepcionalmente, se verificar que um pedido de entrega é susceptível de atentar contra os seus direitos fundamentais.

148. Assim, ainda que a validade da decisão‑quadro, como de qualquer acto de direito derivado, dependa da sua conformidade com os direitos fundamentais (45) e que os Estados‑Membros, na aplicação daquela, como de qualquer acto de direito comunitário, tenham um dever comum de respeitar esses direitos, o Conselho da União Europeia teve o cuidado de precisar, no artigo 1.°, n.° 3, da decisão‑quadro, que a obrigação de entrega por ela imposta não deve, de modo algum, violar os direitos fundamentais e os princípios consagrados no artigo 6.° UE.

149. A autoridade judiciária de execução poderá, por isso, numa situação especial, e a título excepcional, recusar a execução de um mandado de detenção europeu se, como se refere no considerando décimo segundo da decisão‑quadro, se verificarem «elementos objectivos que confortem a convicção de que o mandado de detenção europeu é emitido para mover procedimento contra ou punir uma pessoa em virtude do sexo, da sua raça, da sua religião, da sua ascendência étnica, da sua nacionalidade, da sua língua, da sua opinião política ou da sua orientação sexual, ou de que a posição dessa pessoa possa ser lesada por alguns desses motivos».

150. Além disso, deve recordar‑se, que, se um Estado‑Membro adoptar disposições penais, materiais ou processuais, que violem os princípios consagrados no artigo 6.° UE, o Conselho poderá suspender a execução da decisão‑quadro nos termos do artigo 7.° UE, como se refere no considerando décimo desta decisão.

151. A referência a estas diferentes garantias na decisão‑quadro, que não é, em si mesma, criadora de direito, dado que estas garantias integram já o ordenamento jurídico comunitário, demonstra até que ponto o legislador da União quis que as inovações contidas nesta decisão‑quadro relativamente ao sistema tradicional da extradição, como o abandono do princípio da não extradição dos cidadãos nacionais, não implicassem uma diminuição da protecção dos direitos fundamentais.

152. Os Estados‑Membros não podem, por isso, sem comprometer o efeito útil da decisão‑quadro, adoptar disposições no respectivo direito nacional que, de uma forma ou de outra, tenham por efeito reintroduzir uma excepção sistemática em benefício dos seus nacionais.

153. Em todo o caso, ainda que se admita que o artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro possa ser interpretado no sentido de que um Estado‑Membro pode excluir sistematicamente a entrega dos seus nacionais, tal interpretação não justifica a diferença de tratamento contida na disposição neerlandesa em apreço.

154. De acordo com o artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro, um nacional de outro Estado‑Membro que se encontre ou resida no Estado‑Membro de execução, na acepção desta disposição, é equiparado a um nacional desse Estado na medida em que deve poder beneficiar de uma decisão de não entrega e da possibilidade de, desse modo, cumprir a sua pena nesse Estado.

155. Excluir esse nacional do âmbito de aplicação daquela disposição tem como consequência que a pessoa procurada deve, obrigatoriamente, cumprir a sua pena no Estado‑Membro de emissão, sejam quais forem a duração dessa pena e a distância que separa o Estado‑Membro de execução do Estado‑Membro de emissão.

156. Tal solução pode, assim, ter como consequência tornar praticamente impossível, ou muito difícil, a manutenção de contactos entre a pessoa condenada e os que lhe são próximos, através de visitas no local de detenção, bem como a continuidade da actividade profissional dessa pessoa, no quadro, por exemplo, do cumprimento da pena em regime de semidetenção.

157. Tal diferença de tratamento parece manifestamente desproporcionada à luz da diferença de situações que poderá existir entre os nacionais do Estado‑Membro de execução e os nacionais dos outros Estados‑Membros que se encontrem ou residam naquele Estado, na acepção do artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro se esta disposição for interpretada de acordo com a posição defendida pelo Governo neerlandês.

158. A legislação neerlandesa em causa viola, por isso, na nossa opinião, o princípio da não discriminação.

159. Em face destes elementos, propomos que o Tribunal de Justiça declare que o artigo 12.° CE, em conjugação com o artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro, se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que prevê que a entrega dos seus nacionais em execução de um mandado de detenção europeu deve ser recusada enquanto a entrega de nacionais de outros Estados‑Membros que se encontrem ou residam no Estado‑Membro de execução na acepção desta disposição da decisão‑quadro só pode ser recusada se aqueles forem titulares de uma autorização de residência por tempo indeterminado.

V –    Conclusão

160. Dadas as considerações que precedem, propomos que o Tribunal de Justiça responda da seguinte forma às questões submetidas pelo Rechtbank Amsterdam:

«1)      A duração da permanência no Estado‑Membro de execução da pessoa procurada por força de um mandado de detenção europeu, para determinar se essa pessoa se encontra ou reside nesse Estado na acepção do artigo 4.°, ponto 6, da Decisão‑quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, deve ser suficiente para estabelecer que, à luz dos outros elementos objectivos que caracterizam a situação concreta dessa pessoa, esta tem com o referido Estado laços que permitem pensar que o cumprimento da pena de prisão no Estado‑Membro de execução irá favorecer a sua reinserção.

2)      O artigo 4.°, ponto 6, da decisão‑quadro 2002/584/JAI deve ser interpretado no sentido de que a aplicação do motivo de não‑execução previsto nesta disposição não pode ser sujeito a requisitos administrativos adicionais, como a posse de uma autorização de residência por tempo indeterminado.

3)      O artigo 12.° CE, em conjugação com o artigo 4.°, ponto 6, da Decisão‑quadro 2002/584/JAI, opõe‑se a uma legislação de um Estado‑Membro que prevê que a entrega dos seus nacionais em execução de um mandado de detenção europeu deve ser recusada, enquanto que a entrega de nacionais de outros Estados‑Membros se encontrem ou residam no Estado‑Membro de execução na acepção desta disposição da Decisão‑quadro 2002/584/JAI só pode ser recusada se aqueles forem titulares de uma autorização de residência por tempo indeterminado.»


1 – Língua original: francês.


2 – Decisão‑quadro de 13 de Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO L 190, p. 1, a seguir «decisão‑quadro»).


3 – A seguir «autoridade judiciária de execução».


4 – Por força da declaração emitida pelo Reino dos Países Baixos de acordo com o artigo 35.° UE, este órgão jurisdicional é competente para pedir ao Tribunal de Justiça que se pronuncie a título prejudicial sobre a interpretação de um acto adoptado no quadro da cooperação policial e judiciária em matéria penal, como é o caso da decisão‑quadro [informação relativa à data de entrada em vigor do Tratado de Amesterdão (JO 1999, L 114, p. 56)].


5 – C‑66/08, ainda não publicado na Colectânea.


6 – Considerandos primeiro e quinto da decisão‑quadro.


7 – Considerando sexto da decisão‑quadro.


8 – Considerando décimo da decisão‑quadro.


9 – Artigo 80.°, n.°3, da Gesetz über die internationale Rechtshilfe in Strafsachen (Lei da cooperação judiciária internacional em matéria penal), de 23 de Dezembro de 1982, na redacção dada pela Europäisches Haftbefehlsgesetz (Lei do mandado de detenção europeu), de 20 de Julho de 2006 (BGBl. 2006 I, p. 1721).


10 – Artigo 83.°‑b), n.° 2, da Gesetz über die internationale Rechtshilfe in Strafsachen.


11 – Artigo 16.°, n.° 2, da Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland (Lei Fundamental da República Federal da Alemanha) dispõe:


«Nenhum alemão pode ser extraditado. A lei pode dispor de forma diferente para a extradição para um Estado‑Membro da União Europeia ou para um Tribunal internacional, desde que fiquem salvaguardados os princípios do Estado de Direito.»


12 – Staatsblad 2004, n.° 195, na versão alterada posteriormente.


13 – C‑105/03, Colect., p. I‑5285.


14 – Acórdão Kozlowski, referido (n.° 46).


15 – Ibidem (n.° 36).


16 – Directiva de 29 de Abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.° 1612/68 e que revoga as Directivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE (JO L 158, p. 77).


17 – Acórdão Kozłowski, referido (n.° 44).


18 – Ibidem (n.° 36).


19 – Ibidem (n.° 42).


20 – V., nomeadamente, Recomendação n.° R(87) 3 do Comité de Ministros aos Estados‑Membros, relativa às regras penitenciárias europeias, adoptada em 12 de Fevereiro de 1987 e substituída pela recomendação Rec(2006) 2, adoptada em 11 de Janeiro de 2006. Ver, igualmente, Convenção do Conselho da Europa relativa à transferência das pessoas condenadas, de 21 Março de 1983. A função ressocializante é igualmente referida na Resolução do Parlamento Europeu sobre o respeito pelos Direitos do Homem na União Europeia (1997) (JO 1999, C 98, p. 279), na qual essa Instituição recordou que a pena exerce uma função correccional e de ressocialização, e que, assim sendo, o seu objectivo consiste na reinserção humana e social do preso (n.° 78).


21 – Recomendações n.° R (87) 3 [n.os 65, alínea c), 70.1 e 88] e Rec(2006) 2 (n.os 24, 103 e 107).


22 – Há que recordar que, por força do artigo 7.°, n.° 1, alínea b), da directiva 2004/38, um Estado‑Membro pode sujeitar a permanência de um cidadão da União no seu território por um período superior a três meses à condição de esse cidadão dispor de recursos suficientes para si próprio e para os membros da sua família, a fim de não se tornar uma sobrecarga para o regime de segurança social do Estado‑Membro de acolhimento.


23 – Acórdão Pupino, referido (n.° 43).


24 – Ibidem (n.° 47).


25 – C‑397/01a C‑403/01, Colect. p. I‑8835.


26 – N.° 116.


27 – Protocolo n.° 4 à Convenção Europeia para Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 16 de Setembro de 1963, em que se reconhecem certos direitos e liberdades além dos que já figuram na Convenção e no primeiro Protocolo Adicional à Convenção, modificado pelo Protocolo n.°11 (a seguir «protocolo n.° 4»).


28 – O Governo dinamarquês refere, nomeadamente, o artigo 5.° da Decisão‑quadro 2002/946/JAI do Conselho, de 28 de Novembro de 2002, relativa ao reforço do quadro penal para a prevenção do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares (JO L 328, p. 1).


29 – O Governo dinamarquês refere os acórdãos do Tribunal de Justiça de 23 de Janeiro de 1997, Pastoors e Trans‑Cap (C‑29/95, Colect. p. I‑285) e de 29 de Abril de 2004, Orfanopoulos e Oliveri (C‑482/01 e C‑493/01, Colect. p. I‑5257).


30 – Decisão‑quadro, de 27 de Novembro de 2008, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças em matéria penal que imponham penas ou outras medidas privativas de liberdade para efeitos da execução dessas sentenças na União Europeia (JO L 327, p. 27).


31 – De resto, a ligação especial que existe entre cada Estado‑Membro e os seus nacionais foi recordada no artigo 17.°, n.° 1, CE, nos termos do qual a cidadania da União é complementar da cidadania nacional e não a substitui.


32 – V., nomeadamente, acórdãos do Tribunal de Justiça de 2 de Fevereiro de 1989, Cowan (186/87, Colect. p. 195, n.° 19) e de 2 de Outubro de 2003, Garcia Avello (C‑148/02, Colect. p. I‑11613, n.° 29). Ver, a contrario, acórdão do Tribunal de Justiça de 23 de Setembro de 2008, Bartsch (C‑427/06, ainda não publicado na Colectânea, n.° 25).


33 – V., no que concerne às normas de processo penal, acórdão Cowan, referido, e, quanto às normas relativas ao apelido, acórdão Garcia Avello, referido.


34 – V., nomeadamente, em matéria de fiscalidade directa, acórdão de 12 de Setembro de 2006, Cadbury Schweppes e Cadbury Schweppes Overseas (C‑196/04, Colect., p. I‑7995, n.° 40) e, em matéria de segurança pública, acórdão de 11 de Janeiro de 2000, Kreil (C‑285/98, Colect., p. I‑69, n.os 15 e 16).


35 – JO C 364, p. 1. Recordemos que o artigo 21.°, n.° 2, desta Carta dispõe que «[n]o âmbito de aplicação do Tratado [CE] e do Tratado [UE], e sem prejuízo das disposições especiais destes Tratados, é proibida toda a discriminação em razão da nacionalidade».


36 – Acórdão do Tribunal de Justiça de 3 de Maio de 2007, Advocaten voor de Wereld (C‑303/05, Colect., p. I‑3633, n.° 45 e jurisprudência referida).


37 – Ibidem (n.° 56 e jurisprudência referida).


38 – Acórdão Pastoors e Trans‑Cap, referido (n.° 26).


39 – Deen‑Racsmány, Z., e Blekxtoon, R., «The Decline of the Nationality Exception in European Extradition?», European Journal of Crime, Criminal Law and Criminal Justice, vol. 13/3, p. 317 a 363, Koninklijke Brill NV, Países Baixos, 2005.


40 – V., a este respeito, Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu, de 26 de Julho de 2000, respeitante ao reconhecimento mútuo das decisões finais em matéria penal [COM(2000) 495 final, especialmente, p. 8].


41 – Convenção de aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de Junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa, relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns (JO 2000, L 239, p. 19), assinado em Schengen, em 19 de Junho de 1990.


42 – C‑187/01 e C‑385/01, Colect. p. I‑1345.


43 – N.° 33.


44 – Proposta de Decisão‑quadro do Conselho, de 25 de Setembro de 2001, relativa ao mandado de captura europeu e aos procedimentos de entrega entre Estados‑Membros [COM(2001) 522 final/2].


45 – A conformidade da decisão‑quadro com os princípios enunciados no artigo 6.°, UE, no que respeita à supressão do requisito da dupla incriminação relativamente às 32 infracções referidas no artigo 2.° desta decisão‑quadro foi, de resto, confirmada pelo Tribunal de Justiça no quadro de um reenvio prejudicial para apreciação da validade, no acórdão Advocaten voor de Wereld, já referido.