Language of document : ECLI:EU:C:2018:738

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 19 de setembro de 2018(1)

Processo C388/17

Konkurrensverket

contra

SJ AB

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Högsta förvaltningsdomstolen (Supremo Tribunal Administrativo, Suécia)]

«Reenvio prejudicial — Contratos públicos no setor de transporte ferroviário — Atividades de disponibilização ou exploração de redes — Conceito de «rede» — Adjudicação de contrato de limpeza de comboios por uma empresa ferroviária de capital detido integralmente pelo Estado — Ausência de concurso público prévio»






1.        A SJ AB (a seguir «SJ») é uma sociedade anónima que presta serviços de transporte ferroviário de passageiros, cujo capital é integralmente detido pelo Estado sueco. Em 2012, celebrou dois contratos de limpeza para os seus comboios sem os ter previamente sujeitado a concurso público, conduta que a Konkurrensverket (Autoridade da Concorrência, Suécia) considera contrária à Diretiva 2004/17/CE (2).

2.        A disputa entre a empresa pública e a Autoridade da Concorrência assenta na interpretação do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2004/17. Em especial, o órgão jurisdicional de reenvio, que deve decidir esta controvérsia, pretende clarificar as definições previstas no referido artigo, cuja interpretação lhe permitirá determinar se uma empresa pública que presta serviços de transporte ferroviário se encontra abrangida pelo âmbito de aplicação da referida diretiva.

3.        Neste contexto, são duas as questões debatidas:

—      Por um lado, o conceito de «rede» de transporte ferroviário, na aceção da referida norma.

—      Por outro lado, para os casos em que exista uma rede, o significado das referências «disponibilização ou exploração de redes», utilizadas na referida disposição.

I.      Quadro legislativo

A.      Direito da União

1.      Diretiva 2004/17

4.        Nos termos do artigo 2.o da Diretiva 2004/17:

«1.      Para efeitos do disposto na presente diretiva, entende‑se por:

[…]

b)      “Empresa pública”: qualquer empresa em relação à qual os poderes públicos possam exercer, direta ou indiretamente, uma influência dominante, por motivos de propriedade, participação financeira ou regras que lhe sejam aplicáveis.

Presume‑se a existência de influência dominante quando, direta ou indiretamente, em relação a uma empresa, os poderes públicos:

–        detenham uma participação maioritária no capital subscrito da empresa; ou

[…]

2.      A presente diretiva é aplicável às entidades adjudicantes:

a)      Que sejam poderes públicos ou empresas públicas e exerçam uma das atividades definidas nos artigos 3.o a 7.o;

[…]»

5.        O artigo 5.o da Diretiva 2004/17 dispõe:

«1.      A presente diretiva aplica‑se às atividades que visam a disponibilização ou exploração de redes de prestação de serviços ao público no domínio dos transportes por caminho de ferro, sistemas automáticos, elétricos, tróleis, autocarros ou cabo.

No que diz respeito aos serviços de transporte, considera‑se que existe uma rede quando o serviço é prestado nas condições estabelecidas por uma autoridade competente de um Estado‑Membro, tais como, por exemplo, as condições relativas a itinerários a seguir, capacidade de transporte disponível ou frequência do serviço.

[…]»

6.        O artigo 30.o da Diretiva 2004/17 dispõe:

«1.      Os contratos destinados a permitir a prestação de uma das atividades referidas nos artigos 3.o a 7.o não estão abrangidos pela presente diretiva se, no Estado‑Membro em que a atividade se realiza, esta última estiver diretamente exposta à concorrência em mercados de acesso não limitado.

[…]

5.      Quando a legislação do Estado‑Membro interessado o previr, as entidades adjudicantes podem solicitar à Comissão que determine que o n.o 1 é aplicável a uma determinada atividade através de uma decisão adotada em conformidade com o n.o 6. Nesse caso, a Comissão informa de imediato o Estado‑Membro em causa. […]

[…]»

2.      Diretiva 2012/34/UE

7.        Nos termos do artigo 1.o da Diretiva 2012/34/UE (3):

«1.      A presente diretiva estabelece:

a)      As regras aplicáveis à gestão da infraestrutura ferroviária e às atividades de transporte por caminho de ferro das empresas ferroviárias que se encontrem estabelecidas ou que venham a estabelecer‑se num Estado‑Membro, constantes do capítulo II;

b)      Os critérios aplicáveis à concessão, prorrogação ou alteração, por um Estado‑Membro, das licenças destinadas às empresas ferroviárias que se encontrem estabelecidas ou que venham a estabelecer‑se na União, constantes do capítulo III;

c)      Os princípios e procedimentos aplicáveis à fixação e cobrança das taxas de utilização da infraestrutura ferroviária e à repartição da capacidade da infraestrutura ferroviária, constantes do capítulo IV.

2.      A presente diretiva aplica‑se à utilização da infraestrutura ferroviária para os serviços ferroviários nacionais e internacionais.»

8.        O artigo 3.o da Diretiva 2012/34 prescreve:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

1)      “Empresa ferroviária”, uma empresa de estatuto privado ou público, detentora de uma licença nos termos da presente diretiva, cuja atividade principal consiste na prestação de serviços de transporte de mercadorias e/ou de passageiros por caminho de ferro, desde que a tração seja assegurada pela própria empresa; incluem‑se nesta definição as empresas que apenas prestem serviços de tração;

2)      “Gestor de infraestrutura”, uma entidade ou empresa concretamente responsável pela instalação, gestão e manutenção da infraestrutura ferroviária, incluindo a gestão do tráfego e o controlo‑comando e sinalização; as funções do gestor de infraestrutura de uma rede, ou de parte de uma rede, podem ser repartidas por diferentes entidades ou empresas;

3)      “Infraestrutura ferroviária”, o conjunto dos elementos referidos no anexo I;

[…]

24)      “Capacidade de infraestrutura”, a possibilidade de programar canais horários solicitados para um elemento da infraestrutura durante um determinado período;

25)      “Rede”, o conjunto da infraestrutura ferroviária gerida por um gestor de infraestrutura;

[…]

27)      “Canal horário”, a capacidade de infraestrutura necessária para a circulação de um comboio entre dois pontos em determinado momento;

28)      “Horário de serviço”, o conjunto de dados que definem todos os movimentos programados de comboios e demais material circulante, numa determinada infraestrutura, durante o seu período de vigência;

[…]»

9.        O artigo 10.o da Diretiva 2012/34 determina:

«1.      As empresas ferroviárias beneficiam do direito de acesso, em condições equitativas, não discriminatórias e transparentes, às infraestruturas ferroviárias de todos os Estados‑Membros para fins de exploração de todo o tipo de serviços de transporte ferroviário de mercadorias. Esse direito inclui o acesso às infraestruturas de ligação aos portos marítimos e fluviais e a outras instalações de serviço a que se refere o anexo II, ponto 2, e às infraestruturas que sirvam ou possam servir mais de um cliente final.

[…]»

10.      Nos termos do artigo 27.o da Diretiva 2012/34:

«1.      Após consulta às partes interessadas, o gestor de infraestrutura deve elaborar e publicar as especificações da rede […]

2.      As especificações da rede devem enunciar as características da infraestrutura à disposição das empresas de transporte ferroviário e conter informações que precisem as condições de acesso à infraestrutura ferroviária em causa e às instalações de serviço em causa. As especificações da rede devem também estabelecer as condições de acesso às instalações de serviço ligadas à rede do gestor de infraestrutura e as condições de prestação de serviços nessas instalações, ou indicar um sítio Web em que essas informações sejam disponibilizadas gratuitamente, em formato eletrónico. O conteúdo das especificações da rede consta do anexo IV.

[…]»

11.      O artigo 44.o da Diretiva 2012/34 dispõe:

«1.      Os candidatos podem apresentar ao gestor de infraestrutura, no âmbito do direito público ou privado, pedidos de celebração de acordos para a concessão de direitos de utilização da infraestrutura, em contrapartida de uma taxa prevista no capítulo IV, secção 2.

[…]»

12.      Lê‑se no artigo 45.o da Diretiva 2012/34:

«1.      Na medida do possível, o gestor de infraestrutura deve satisfazer todos os pedidos de capacidade de infraestrutura […].

2.      O gestor de infraestrutura pode dar prioridade a serviços específicos no quadro dos processos de planificação e coordenação, mas unicamente nos termos dos artigos 47.o e 49.o

3.      O gestor de infraestrutura deve consultar as partes interessadas sobre o projeto de horário de serviço e dar‑lhes a oportunidade de apresentarem as suas observações durante pelo menos um mês. Incluem‑se nas partes interessadas todos aqueles que tiverem apresentado pedidos de capacidade de infraestrutura, bem como outras partes que desejem formular observações sobre as incidências do horário de serviço na sua capacidade de prestação de serviços ferroviários durante o período de vigência do horário de serviço.

[…]»

13.      O artigo 46.o da Diretiva 2012/34 determina:

«1.      Caso surjam conflitos entre diferentes pedidos durante a planificação a que se refere o artigo 45.o, o gestor de infraestrutura deve esforçar‑se por assegurar, através da coordenação dos pedidos, o melhor ajustamento possível de todos eles.

2.      Em situações que exijam coordenação, o gestor de infraestrutura tem o direito de propor, dentro de limites razoáveis, capacidades de infraestrutura diferentes da solicitada.

[…]»

B.      Direito sueco

1.      Lei relativa à adjudicação de contratos públicos

14.      Nos termos do capítulo 2, artigo 20.o, da lagen (2007:1092) om upphandling inom områdena vatten, energi, enlighet och posttjänster (4) [Lei (2007:1092) relativa à adjudicação de contratos nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais, a seguir «Lei relativa à adjudicação de contratos públicos»] constituem entidades adjudicantes, em particular, qualquer empresa sobre a qual as autoridades adjudicantes possam exercer influência dominante. Presume‑se que existe influência dominante, direta ou indireta, sobre uma empresa quando as autoridades adjudicantes detenham mais de metade das ações da empresa, disponham da maioria dos votos devido à sua detenção de ações, ou situação similar, ou possam designar mais de metade dos membros do órgão de administração da empresa ou do órgão de direção equivalente.

15.      À luz do capítulo 1 da Lei relativa à adjudicação de contratos públicos, o artigo 8.o, primeiro parágrafo, indica que a referida lei é aplicável a uma atividade que consista na disponibilização ou exploração de redes públicas sob a forma de transporte, designadamente, por caminho de ferro.

16.      Com base no capítulo 1, artigo 8.o, segundo parágrafo, da Lei relativa à adjudicação de contratos públicos, considera‑se que existe uma rede de serviços de transporte se o serviço for prestado em conformidade com as condições estabelecidas por uma autoridade competente, relativas a itinerários a seguir, à capacidade de transporte disponível, à frequência do serviço ou a condições semelhantes.

2.      Lei relativa aos caminhos de ferro

17.      De acordo com o capítulo 5, artigo 2.o, da Järnvägslagen (2004:519) (5) [Lei (2004:519) relativa aos caminhos de ferro, a seguir «Lei relativa aos caminhos de ferro»] uma empresa ferroviária com sede social num Estado do Espaço Económico Europeu ou na Suíça, pode explorar e organizar serviços na rede ferroviária sueca.

18.      No capítulo 6 da Lei relativa aos caminhos de ferro, o artigo 7.o salienta que qualquer entidade legitimada a explorar ou organizar serviços na rede ferroviária sueca pode pedir a um gestor de infraestrutura a adjudicação da capacidade de estrutura relativamente a traçados ferroviários em conformidade com a sua descrição da rede ferroviária.

19.      No capítulo 6 da Lei relativa aos caminhos de ferro, os artigos 1.o, 7.o e 9.o dizem respeito a pedidos de informação sobre a capacidade de infraestrutura, bem como da gestão e da decisão de repartição relativamente aos pedidos de capacidade de infraestrutura.

20.      No capítulo 6 da Lei relativa aos caminhos de ferro, o artigo 9.o, determina que o gestor de infraestrutura deve elaborar uma proposta de horário de serviço com base nos pedidos recebidos.

21.      Resulta das disposições do capítulo 6, artigo 10.o, da Lei relativa aos caminhos de ferro que o gestor de infraestrutura deve procurar resolver, através da coordenação, quaisquer conflitos de interesses que possam surgir durante a repartição da capacidade. Se não for possível, o gestor de infraestrutura tem de proporcionar um procedimento de resolução rápida de litígios (capítulo 6, artigo 12.o).

22.      No capítulo 6 da Lei relativa aos caminhos de ferro, os artigos 14.o e 15.o dizem respeito aos critérios de prioridade estabelecidos na descrição da rede ferroviária.

II.    Os factos e as questões prejudiciais

23.      A SJ celebrou dois contratos, em janeiro de 2012, para a adjudicação de serviços de limpeza dos seus comboios (no valor de 56 e 60 milhões de coroas suecas, respetivamente), sem os submeter a concurso público.

24.      A Autoridade da Concorrência apresentou, em janeiro de 2013, uma ação junto do Förvaltningsrätten i Stockholm (Tribunal Administrativo de Estocolmo, Suécia), pedindo a aplicação de uma coima à SJ, por considerar que esta empresa exerceu uma atividade incluída no capítulo 1, artigo 8.o, da Lei relativa à adjudicação de contratos públicos. A SJ opôs‑se aos pedidos da Autoridade da Concorrência, que foram indeferidos.

25.      A Autoridade da Concorrência recorreu da decisão de primeira instância para o Kammarrätten i Stockholm (Tribunal Administrativo de Recurso de Estocolmo, Suécia), que negou provimento ao recurso.

26.      Recorrido o Acórdão do tribunal de segunda instância para o Högsta förvaltningsdomstolen (Supremo Tribunal Administrativo, Suécia), este órgão jurisdicional submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 5.o, n.o 1, [primeiro] parágrafo, da Diretiva 2004/17 ser interpretado no sentido de que existe uma rede de serviços de transporte quando são prestados serviços de transporte numa rede ferroviária para o tráfego ferroviário nacional e internacional, gerida pelo Estado, em conformidade com as disposições de direito nacional que transpõem a Diretiva 2012/34 que determinam que a repartição da capacidade de infraestrutura ferroviária se baseia nos pedidos das empresas ferroviárias e que, na medida do possível, todos esses pedidos devem ser satisfeitos?

2)      Deve o artigo 5.o, n.o 1, [primeiro] parágrafo, da Diretiva 2004/17 ser interpretado no sentido de que uma atividade exercida por uma empresa ferroviária, como definida na Diretiva 2012/34, que consiste na prestação de serviços de transporte ao público numa rede ferroviária, constitui a disponibilização ou a exploração de uma rede para efeitos da referida disposição?»

III. Síntese das observações das partes

A.      Quanto à primeira questão prejudicial

27.      Para a Autoridade da Concorrência, a Diretiva 2004/17 não define o que se deve entender por «rede» de serviço de transporte nem por «disponibilização ou exploração de redes», pelo que o significado e o alcance destes termos são os que correspondem ao seu sentido habitual na linguagem comum, segundo o contexto em que são utilizados e com os objetivos prosseguidos.

28.      A Autoridade da Concorrência destaca o risco de as entidades adjudicantes públicas, sob a influência dos Estados, tenderem a favorecer as empresas nacionais, violando as regras do Tratado FUE, relativas à livre circulação e à defesa da concorrência. Os processos de concurso previstos pela Diretiva 2004/17 procuram neutralizar este risco. Sem essa previsão, a diminuição da concorrência, que resulta dos limites inerentes à capacidade de rede, permitiria às entidades adjudicantes afastar os critérios económicos na adjudicação de um contrato, para se concentrarem em critérios de preferência nacional.

29.      A Diretiva 2012/34, segundo alega, regula o acesso das empresas ferroviárias (tais como a SJ) a uma rede técnica de capacidade limitada. O gestor de infraestrutura, ao atribuir canais horários dessa rede, estabelece as condições aplicáveis, entre outras, aos itinerários a seguir, à capacidade de transporte disponível ou à frequência do serviço. O facto de o operador da rede dever procurar satisfazer a procura das empresas ferroviárias não afeta as limitações de capacidade da rede.

30.      A Autoridade da Concorrência reconhece que o artigo 30.o da Diretiva 2004/17 permite que esta deixe de ser aplicável às atividades, abrangidas pelo seu âmbito de aplicação, que estejam diretamente expostas à concorrência em mercados de acesso não limitado. Esta possibilidade exige, no entanto, uma decisão da Comissão, após instrução do respetivo processo, o que ora não acontece.

31.      A SJ defende que, ao contrário de outros países onde o transporte ferroviário se conserva numa situação de monopólio, na Suécia encontra‑se totalmente liberalizado e opera em regime de concorrência.

32.      A SJ assinala que, apesar de ser uma sociedade cujo capital é detido na totalidade pelo Estado sueco, não beneficia de nenhum financiamento ou de outros benefícios estatais. As suas receitas provêm da venda de bilhetes e não beneficia de nenhuma preferência na atribuição dos canais horários.

33.      A SJ defende que o artigo 5.o, n.o 1, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/17 deve ser interpretado de forma restrita, nos termos que resultam da jurisprudência (6). Não é suficiente que uma entidade se encontre sujeita a uma influência dominante, como a que se verifica no artigo 2.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2004/17. É necessário que os requisitos previstos no artigo 5.o, n.o 1, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/17 sejam estipulados de forma unilateral pela autoridade competente do Estado‑Membro com competência, que afetem de forma imediata e essencial o potencial utilizador, incidindo de forma direta e concreta na forma de prestação do serviço de transporte ferroviário por parte da empresa ferroviária.

34.      A SJ acrescenta que, quer ela própria quer as outras empresas ferroviárias que operam na Suécia determinam, por si mesmas, em função de critérios comerciais, os trajetos, os comboios que utilizam, os horários, o número de saídas, as paragens e os preços dos bilhetes. O gestor de infraestrutura não detém mais poderes do que os reconhecidos pela Diretiva 2012/34 e as suas funções limitam‑se a garantir o acesso à infraestrutura ferroviária em igualdade de condições, mas não a regular as condições específicas dos serviços de transporte das empresas de transporte ferroviário.

35.      Para a Comissão, a redação do artigo 5.o, n.o 1, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/17 teve como objetivo mostrar um conceito lato de rede. Esta pode existir não só quando exista uma infraestrutura física (como é o caso das vias‑férreas para comboios ou elétricos), mas também na sua ausência, desde que se trate de um conjunto de linhas conectadas e utilizadas por veículos de acordo com as condições impostas pelas autoridades (7).

36.      A Comissão cita a Diretiva 2012/34 como o instrumento que, para além de definir os intervenientes no tráfego ferroviário, permite garantir às empresas ferroviárias um acesso transparente e não discriminatório à infraestrutura. Destaca, em particular, a secção 3 do capítulo IV que, ao tratar da adjudicação da capacidade de infraestrutura, descreve a forma como se devem estabelecer condições como as previstas no artigo 5.o, n.o 1, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/17.

37.      Segundo a Comissão, como a Trafikverket (Autoridade em Matéria de Transporte, Suécia) aprova as especificações da rede, decide sobre a atribuição dos canais horários e determina o horário de serviço, fixa as condições relativas à utilização da infraestrutura ferroviária. Em nada contraria o anteriormente referido que essa autoridade deva, na medida do possível, satisfazer os pedidos dos requerentes.

B.      Quanto à segunda questão prejudicial:

38.      A Autoridade da Concorrência considera que existe uma rede de serviços de transporte na aceção do artigo 5.o, n.o 1, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/17 quando a circulação de comboios pressupõe o acesso a uma rede técnica de capacidade limitada. O conceito de «exploração» significaria a execução propriamente dita do tráfego sobre a rede ferroviária (8).

39.      A SJ sustenta que não é responsável pela infraestrutura ferroviária e que a sua atividade se limita a oferecer ao público os serviços de transporte que circulam nessa infraestrutura. Por conseguinte, não participa nem na disponibilização nem na exploração da rede ferroviária sueca, pelo que as suas atividades não são abrangidas pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2004/17.

40.      A Comissão salienta que o artigo 5.o, n.o 1, primeiro parágrafo, estabelece uma distinção entre a disponibilização e a exploração de redes. Nem a Primeira Diretiva relativa aos contratos públicos (Diretiva 90/531/CEE) (9) nem a Diretiva 93/38/CEE (10) dizem respeito à «disponibilização». Foi a Diretiva 2004/17 que incluiu esta menção, com o objetivo de abranger a gestão da rede física e distinguir as duas atividades normalmente atribuídas a operadores diferentes, garantindo que ambas recaiam no âmbito de aplicação da diretiva.

41.      Para a Comissão, a «exploração de redes» cobre a prestação efetiva do transporte ferroviário, ao passo que a «disponibilização» faria referência à possibilidade de acesso à rede para utilização por outrem.

IV.    Processo no Tribunal de Justiça

42.      O despacho de reenvio prejudicial deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça a 29 de junho de 2017.

43.      Apresentaram observações escritas a Autoridade da Concorrência, a SJ e a Comissão Europeia, que compareceram na audiência realizada a 13 de junho de 2018.

V.      Apreciação

44.      Tanto as partes no processo como o órgão jurisdicional de reenvio recorrem à Diretiva 2012/34 para delimitar a controvérsia e decifrar o significado das expressões constantes do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2004/17.

45.      Considera‑se que essa abordagem é correta. Não obstante, enquanto tal, a Diretiva 2012/34, de 21 de novembro de 2012, não poderia ser aplicável ratione temporis aos contratos como os que estão em causa no presente processo, assinados em janeiro do mesmo ano. A objeção é acertada tendo em consideração que a Diretiva 2012/34 veio «reformular e fundir num único ato por razões de clareza» (11) outras diretivas anteriores, em vigor quando os contratos foram celebrados.

46.      No restante, não é contestado que a SJ seja uma empresa ferroviária na aceção do artigo 3.o, ponto 1, da Diretiva 2012/34 nem que, como sociedade de capital inteiramente público, possa ser uma entidade adjudicante [em particular, uma empresa pública, na aceção do artigo 2.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2004/17].

47.      O tribunal a quo tem, no entanto, dúvidas de que a atividade da SJ se possa encaixar na descrição constante do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2004/17. Apenas em caso afirmativo esta diretiva seria aplicável, na medida em que o seu artigo 2.o, n.o 2, alínea a), exige que as entidades adjudicantes efetuem alguma das atividades previstas nos seus artigos 3.o a 7.o

A.      Quanto à primeira questão prejudicial

48.      O artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2004/17 vincula o conceito de rede de transporte («considera‑se que existe uma rede») à prestação de um «serviço […] prestado nas condições estabelecidas por uma autoridade competente de um Estado‑Membro, tais como, por exemplo, as condições relativas a itinerários a seguir, capacidade de transporte disponível ou frequência do serviço».

49.      Com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende esclarecer se, através do exercício das suas competências, o gestor de infraestrutura, a quem compete a atribuição dos canais horários ferroviários, impõe, na realidade, condições às empresas ferroviárias, que podem ter impacto em aspetos como os itinerários, a capacidade disponível ou a frequência do serviço.

50.      A questão diz respeito a um contexto em que as empresas ferroviárias, públicas ou privadas, prestam o serviço de transporte com critérios comerciais (12), mas que não são elas próprias sociedades gestoras da rede ferroviária. Convém pois analisar, em primeiro lugar, o que se entende por rede para, em seguida, avaliar o seu reflexo na presente ação (13).

1.      A gestão da rede e a repartição da capacidade de infraestrutura

51.      A Diretiva 2012/34 contém as regras aplicáveis à gestão de infraestruturas ferroviárias, por um lado, e às atividades das empresas ferroviárias, por outro. Entre essas regras figuram as que regulam o regime jurídico da concessão de licenças e da atribuição de capacidade de infraestrutura para as empresas que têm de pagar taxas pela sua utilização.

52.      As infraestruturas ferroviárias possuem, naturalmente, uma capacidade limitada (14), atendendo a que se trata de um «monopólio natural» (15), cuja segmentação não teria sentido multiplicar. A Diretiva 2012/34, em vez de as definir, prefere descrever os elementos que as compõem, especificados no seu anexo I (16). O conceito de rede está associado a essas infraestruturas: a rede ferroviária é «o conjunto da infraestrutura ferroviária gerida por um gestor de infraestrutura» (17).

53.      A infraestrutura ferroviária (que está ligada ao conceito de canal horário) (18) é gerida pelo seu administrador, responsável pela sua exploração, manutenção e renovação. Aqueles que tiverem anteriormente obtido uma licença que os qualifique como empresas ferroviárias devem requerer o reconhecimento do direito de utilizar uma certa capacidade dessa infraestrutura.

54.      O processo de repartição da capacidade de infraestrutura ferroviária é precedido pela designada «especificações da rede», na qual o gestor de infraestrutura estabelece as regras gerais, os prazos, os procedimentos e os critérios da repartição. A Diretiva 2012/34 deixa em mãos desse administrador a concretização de uma grande variedade de especificidades neste domínio (19).

55.      O princípio básico é o de que o gestor de infraestrutura deve procurar, na medida do possível, satisfazer todos os pedidos de capacidade de infraestrutura que receber. Se tal não for possível, aplicará outros critérios de repartição (20). Deve, além disso, elaborar o projeto de horário de serviço e comunicá‑lo aos interessados, para que estes apresentem as suas observações.

56.      O conjunto das decisões (21) sobre a repartição da capacidade de infraestrutura permitirá o encerramento do horário de serviço, através do planeamento dos movimentos de comboios e do material circulante na infraestrutura, durante o período em que o mesmo vigorar. O anexo VII, ponto 2, da Diretiva 2012/34 prevê a eventualidade de alterações ou ajustes no horário de serviço, refletindo a sua flexibilidade e a sua capacidade de adaptação à evolução das circunstâncias.

2.      Aplicação ao presente caso

57.      Como já se referiu, a SJ alega que, na Suécia, as empresas ferroviárias determinam os trajetos que os comboios irão fazer, os seus horários, o número de saídas e os pontos de paragem. Argumenta que se essa capacidade é limitada é simplesmente porque assim o impõe a limitação da capacidade física da infraestrutura e não pelo facto de o gestor de infraestrutura estar investido do poder de determinar unilateralmente a forma de gerir a prestação do serviço das empresas ferroviárias.

58.      Na minha opinião, o raciocínio da SJ não é convincente. O gestor de infraestrutura trabalha com uma realidade que oferece possibilidades restritas (espácio‑temporais) para satisfazer os pedidos das empresas requerentes. Uma vez que os trajetos são limitados às linhas das vias‑férreas e dependem do desempenho das estações de serviço, o gestor deve necessariamente coordenar a prestação de serviços de transporte por todas as empresas ferroviárias. O mesmo acontece na rede estatal sueca.

59.      Com efeito, a liberdade das empresas de transporte ferroviário, como a SJ, para oferecer ao público os trajetos preferidos e os horários dos comboios mais convenientes é compatível com o facto de que essas ofertas sejam subordinadas às decisões de coordenação do gestor de infraestrutura. É este, por conseguinte, quem no fim «estabelece» (embora assentindo aos pedidos das empresas), as denominadas «condições» do serviço.

60.      Na Diretiva 2012/34 são muitos os casos em que foram atribuídos ao gestor de infraestrutura poderes que dizem respeito a essas condições. As definições previstas no artigo 3.o relativas ao «itinerário alternativo», à «alternativa viável» ou à «infraestrutura congestionada» são posteriormente refletidas na regulação, ao abrigo da qual o gestor de infraestrutura pode — e deve — intervir na fixação dos termos de utilização da rede de vias‑férreas, quer se trate da «capacidade disponível», dos «itinerários» ou da «frequência do serviço», para evitar sobreposições ou o congestionamento (22).

61.      As especificações da rede que o gestor de infraestrutura deve publicar permitem‑lhe igualmente alterar elementos que não são identificáveis a priori. Pode, ainda, repartir capacidades diferentes das solicitadas, o que demonstra que a margem de decisão das empresas prestadoras do transporte ferroviário está condicionada por possibilidades finitas, decorrentes da escassez de recursos disponíveis, que o gestor de infraestrutura tem de gerir.

62.      Por último, é permitida a imposição de obrigações de serviço público no transporte ferroviário, que podem ter um impacto ainda maior nas condições de acesso à infraestrutura. A Diretiva 2012/34 prevê a convivência, nas redes ferroviárias dos Estados‑Membros, de prestações de serviços de acesso livre e de serviços objeto de contratos de serviço público, com a possibilidade de definir critérios de prioridade no caso de infraestruturas congestionadas (23).

63.      Em suma, a necessidade de gerir e distribuir recursos ferroviários limitados implica que o gestor de infraestrutura possa ter a possibilidade de impor, às empresas que os utilizam, condições de prestação dos seus serviços que afetam a capacidade disponível, os itinerários e a frequência desses serviços. Tal é, precisamente, o que vem exigido pelo artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2004/17 para considerar que existe uma rede de transporte.

B.      Quanto à segunda questão prejudicial:

64.      O tribunal a quo precisa de esclarecer o significado das expressões «colocar à disposição ou exploração de redes» que são utilizadas pelo artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2004/17. Em concreto, precisa de saber se, por prestar serviços de transporte ferroviário, a atividade das empresas ferroviárias se enquadra nalgum destes dois conceitos.

65.      As dúvidas concentram‑se na «exploração de redes». Parece existir consenso em que a «disponibilização de redes» é um poder do gestor de infraestrutura, não das empresas de transporte. Analisaremos, portanto, a interpretação da «exploração».

66.      A proposta da Comissão vem sugerir, de forma clara que: a «disponibilização» se enquadra nas funções do gestor de infraestrutura, ao passo que a «exploração de redes» será a atividade própria das empresas ferroviárias. A evolução legislativa que levou à redação do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2004/17 veio corroborar esta interpretação: diversamente aos respetivos artigos das diretivas relativas aos contratos nos setores especiais (24), que referiam apenas «exploração de redes», em 2004 foi acrescentada «a disponibilização [dessas mesmas redes]».

67.      Segundo a Comissão, a «disponibilização» foi introduzida para incluir a gestão da rede física e para separar duas atividades distintas: a «exploração de redes» cobriria a prestação efetiva do transporte ferroviário, realizada pelas empresas, ao passo que a «disponibilização» faria referência à possibilidade de acesso à rede para utilização por outrem.

68.      A tese da Comissão enfrenta, no entanto, um obstáculo: a Diretiva 2012/34 distingue, de forma clara, a «prestação de serviços de transporte», por um lado, e a «exploração da infraestrutura», por outro (25). Esta última é da responsabilidade do administrador da infraestrutura, enquanto a prestação dos serviços de transporte é levada a cabo pelas empresas licenciadas para esse fim.

69.      A Diretiva 2012/34 utiliza várias vezes o conceito de «exploração de serviços de transporte ferroviário», identificando‑a com a atividade das entidades que, contando com uma licença de empresa ferroviária, prestam tais serviços ao público. Mas, na terminologia desta diretiva, a «exploração do serviço» e a «exploração das infraestruturas» são conceitos distintos.

70.      A «exploração das infraestruturas», à luz da Diretiva 2012/34, é uma tarefa própria e exclusiva do gestor da rede, que não só a coloca à disposição das empresas que prestam o serviço de transporte, mas como a mantém (26) e gere, através da rede, em cumprimento das funções que lhe são atribuídas por força do artigo 7.o da referida diretiva.

71.      Este esquema bipartido constava já das definições que se encontravam previstas na versão original da Diretiva 2012/34. Do conceito de «rede» desta diretiva (27) inferia‑se que a exploração cabia ao administrador de infraestrutura. As normas posteriores prosseguiram na mesma linha:

—      Por um lado, o Regulamento de Execução 2015/909, aplicável no cálculo dos custos de exploração que são cobertos pelas taxas (28), vincula as empresas ferroviárias à exploração dos serviços ferroviários (considerando 18), por oposição ao binómio infraestruturas‑exploração da rede, para o qual remete o considerando 2 («os gestores de infraestrutura têm a obrigação de explorar as redes»).

—      Por outro lado, na reforma da Diretiva 2012/34, realizada em 2016, foi acrescentado um novo ponto ao artigo 3.o, o ponto 2‑B, em conformidade com o que se entende por «exploração das infraestruturas ferroviárias […] a repartição dos canais horários, a gestão do tráfego e a tarifação da utilização da infraestrutura» (29). Atribuições que cabem ao gestor de infraestrutura e não às empresas de transporte.

72.      Neste contexto, são duas as opções interpretativas. A primeira consiste em interpretar o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2004/17 à luz dos textos normativos posteriores que regem, mais especificamente, o espaço ferroviário único (nomeadamente, Diretiva 2012/34 e respetivas alterações).

73.      Caso seja acolhida esta posição, deverá ser feita alusão ao conceito «exploração de redes [ferroviárias]», previsto no artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2004/17, em conjunção com o de «exploração de infraestrutura ferroviária» da Diretiva 2012/34. Não se incluirá neste o conceito de exploração do serviço ferroviário caso seja considerado o significado definido (agora) pelo artigo 3.o, ponto 2‑B, da Diretiva 2012/34, na redação dada pela Diretiva 2016/2370. Por outras palavras, a exploração da rede não abrangeria a exploração do serviço ferroviário, que corresponde à prestação de serviços de transporte por empresas de transporte ferroviário.

74.      A segunda opção advoga uma leitura autónoma do conceito «exploração de redes» constante do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2004/17, que não é afetada pelas vicissitudes normativas a que anteriormente se fez referência (30). À luz desta interpretação, nada obstaria a que as empresas ferroviárias «explorassem» também a rede, no sentido de retirarem benefícios, que a aproveitassem ou a utilizassem para realizar o transporte ferroviário.

75.      Em defesa desta segunda opção militam vários argumentos. Em primeiro lugar, o argumento avançado pela Comissão, referente à génese do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2004/17, que, ao introduzir a «disponibilização da rede» como conceito próprio, distinto da sua exploração, parece ampliar o campo semântico deste último.

76.      Em segundo lugar, do ponto de vista literal, de entre as diferentes aceções do termo «exploração» encontra‑se aquela que o identifica com a ação de retirar partido de uma coisa, operando com ela. As empresas que prestam o serviço ferroviário de passageiros «exploram» a rede em que circulam os seus comboios, isto é, usam‑na ou retiram proveito desta para obter os benefícios inerentes à sua atividade de serviço público.

77.      Em terceiro lugar, utilizando uma abordagem sistemática, não faria muito sentido que o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2004/17 excluísse a aplicação, com caráter geral, às empresas que prestam serviços de transporte, por não considerar esta atividade como uma exploração da rede, para, imediatamente a seguir (n.o 2 desta disposição), declarar que não é aplicável «às entidades que forneçam serviços públicos de transporte em autocarro, que já se encontravam excluídos do âmbito da Diretiva 93/38/CEE, nos termos do n.o 4 do seu artigo 2.o». Se faz esta previsão expressa é, justamente, porque as outras empresas que prestam serviços de transporte são abrangidas, em princípio, pela Diretiva 2004/17.

78.      Em quarto e último lugar, na Diretiva 2004/17 encontram‑se «as listas, não taxativas, de entidades adjudicantes na aceção da presente diretiva [que] constam dos anexos I a X» (31). Deste modo, no anexo IV, que respeita às entidades adjudicantes no domínio dos serviços de transporte ferroviário, surgem as empresas públicas dos diferentes Estados‑Membros que os fornecem. Em especial, no que se refere à Suécia, são consideradas como tal, nomeadamente, as «entidades públicas prestadoras de serviços de transportes ferroviários nos termos da järnvägslagen (2004:519) e järnvägsförordningen (2004:526)» (32).

79.      A inclusão deste género de entidades (ao qual pertence a SJ) no anexo IV da Diretiva 2004/17 revela que, para o legislador da União, a atividade das empresas que efetuam serviços de transporte ao público utilizando a rede ferroviária está abrangida pelo conceito de exploração da referida rede, na aceção do artigo 5.o, n.o 1, de modo que, caso estejam preenchidas as outras condições, terão de recorrer aos processos de adjudicação previstos na Diretiva 2004/17 (33).

80.      Em suma, embora reconhecendo que há uma certa falta de coerência entre os conceitos utilizados pelas disposições relativas ao espaço ferroviário europeu único (Diretiva 2012/34 e normas conexas) e os utilizados pela Diretiva 2004/17, a interpretação da expressão «exploração de redes», na aceção do artigo 5.o, n.o 1, desta última, não tem origem nos conceitos definidos nas primeiras.

81.      Por último, a SJ insistiu no facto de que é uma empresa que atua com propósitos estritamente comerciais, em concorrência com outros operadores ferroviários, o que, no seu entender, exclui que possa ser considerada entidade adjudicante sujeita ao regime da Diretiva 2004/17.

82.      A Diretiva 2004/17 prevê essa eventualidade, no artigo 30.o («Procedimento para determinar se uma determinada atividade está diretamente exposta à concorrência»). Basta dizer que, no caso em apreço, não consta que tenha sido acionado o referido procedimento e, por conseguinte, não se exclui a aplicação da referida diretiva.

VI.    Conclusão

83.      Atendendo a todas estas considerações, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Högsta förvaltningsdomstolen (Supremo Tribunal Administrativo, Suécia) da seguinte forma:

O artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2004/17/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais, deve ser interpretado no sentido de que:

–        Existe uma «rede» quando uma infraestrutura ferroviária gerida pelo Estado é colocada à disposição das empresas que fornecem serviços de transporte, nas condições estabelecidas pela autoridade competente desse Estado, mesmo que a referida autoridade tenha de ter em consideração, na medida do possível, todos os pedidos de repartição de capacidade apresentados por essas empresas.

–        A atividade de uma empresa pública que consiste na prestação de serviços públicos de transporte na rede ferroviária constitui uma «exploração de redes», na aceção da Diretiva 2004/17/CE.


1      Língua original: espanhol.


2      Diretiva 2004/17/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais (JO 2004, L 134, p. 1).


3      Diretiva 2012/34/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de novembro de 2012, que estabelece um espaço ferroviário europeu único (JO 2012, L 343, p. 32).


4      SFS 2007, n.o 1092.


5      SFS 2007, n.o 519.


6      Invoca o Acórdão de 10 de abril de 2008, Ing. Aigner (C‑393/06, EU:C:2008:213, n.os 27 e 29).


7      Recorre, nesse sentido, à sua Comunicação sobre o regime comunitário das aquisições nos setores excluídos: água, energia, transportes e telecomunicações [COM(88)376].


8      Baseia‑se no n.o 48 das Conclusões do advogado‑geral J. Mischo apresentadas no processo Concordia Bus Finland (C‑513/99, EU:C:2001:686), segundo as quais «explorar a rede significa fazê‑la funcionar por si mesma com a ajuda, em princípio, do seu próprio pessoal e dos seus próprios autocarros».


9      Diretiva do Conselho, de 17 de setembro de 1990, relativa aos procedimentos de celebração dos contratos de direito público nos setores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações (JO 1990, L 297, p. 1).


10      Diretiva do Conselho, de 14 de junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos nos setores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações (JO 1993, L 199, p. 84).


11      Considerando 1, in fine.


12      O considerando 5 da Diretiva 2012/34 dispõe que, «a fim de tornar os transportes por caminho de ferro eficazes e competitivos em relação aos outros modos de transporte, os Estados‑Membros deverão garantir às empresas ferroviárias um estatuto de empresa independente que lhes permita atuar segundo critérios comerciais e adaptar‑se às necessidades do mercado».


13      Embora a SJ refira a existência de mais de 320 gestores de infraestrutura na Suécia, há que sublinhar que a rede em causa, no presente processo, é do Estado. É o que resulta do artigo 2.o, ponto 9, do förordningen (2010: 185) med instruktion för Trafikverket [Regulamento (2010: 185) de instruções para a Administração dos Transportes da Suécia], segundo o qual, salvo disposição em contrário, o gestor de infraestrutura da rede ferroviária que pertence ao Estado sueco é a autoridade em matéria de transportes. É esta a autoridade competente para a adjudicação da infraestrutura no processo principal (n.o 27 do despacho de reenvio).


14      O considerando 58 da Diretiva 2012/34 vem a destacar esse sentido, indicando que «os regimes de tarifação e de repartição da capacidade deverão ter em conta os efeitos da crescente saturação da capacidade de infraestrutura, e mesmo a escassez de capacidade».


15      Considerando 71 da Diretiva 2012/34.


16      Incluem a base física necessária para o estabelecimento do quadro ferroviário e o seu serviço, tais como terrenos, obras de exploração e plataforma da via, cais de passageiros e de mercadorias; bermas e pistas, cercas, proteções, obras civis (pontes ou túneis), passagens de nível, superstruturas, calçadas dos pátios das estações de passageiros e mercadorias, instalações de segurança, sinalização e telecomunicações das vias, das estações e vias de manobra, instalações de iluminação e de transformação e de transporte da corrente elétrica para a tração dos comboios ou edifícios afetos ao serviço das infraestruturas.


17      Artigo 3.o, ponto 25, da Diretiva 2012/34.


18      Entende‑se por capacidade de infraestrutura «a possibilidade de programar canais horários solicitados para um elemento da infraestrutura durante um determinado período» (artigo 3.o, n.os 24 e 27).


19      Como por exemplo, a fixação de regras de aplicação de taxas (artigo 29.o, n.o 3), a definição dos requisitos a satisfazer pelos candidatos (artigo 41.o, n.o 2), o estabelecimento dos princípios do processo de coordenação e de um sistema de resolução de conflitos (artigo 46.o, n.os 4 e 6) ou, por fim, no que se refere à infraestrutura congestionada, os procedimentos e critérios a seguir e a definição da percentagem mínima de utilização (artigo 47.o, n.o 6, e artigo 52.o, n.o 2).


20      Sempre que verifique que existem pedidos incompatíveis entre si, o gestor de infraestrutura deve procurar assegurar, através da coordenação dos pedidos, o melhor ajustamento entre eles, podendo propor, dentro de limites razoáveis, uma capacidade de infraestrutura diferente da solicitada.


21      Embora a diretiva não se refira explicitamente às decisões sobre a repartição da capacidade de infraestrutura, a adoção destas é compreensível. O artigo 46.o, n.o 6, prevê um sistema de resolução de conflitos (sem prejuízo do respetivo recurso, nos termos previstos no artigo 56.o).


22      A Diretiva (UE) 2016/2370 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de dezembro de 2016, que altera a Diretiva 2012/34/UE no que respeita à abertura do mercado nacional de serviços de transporte ferroviário de passageiros e à governação da infraestrutura ferroviária (JO 2016, L 352, p. 1), confirma esta abordagem. No seu considerando 28 estabelece que «os Estados‑Membros podem impor determinadas condições ao direito de acesso à infraestrutura, a fim de permitir a aplicação de um regime de horários integrados dos serviços nacionais de transporte ferroviário de passageiros».


23      O artigo 47.o, n.o 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2012/34 faz referência às exigências do serviço público. No mesmo sentido, o considerando 24 da Diretiva 2016/2370 confirma a faculdade de os Estados‑Membros limitarem o direito de acesso «sempre esse direito possa comprometer o equilíbrio económico desses contratos de serviço público».


24      A Diretiva 90/531 e a Diretiva 93/38.


25      Considerando 6 da Diretiva 2012/34. No mesmo sentido, o considerando 26 assinala que «importa distinguir a prestação dos serviços de transporte da exploração das instalações de serviço».


26      O artigo 7.o, n.o 1, permite, contudo, aos Estados‑Membros «atribuir às empresas ferroviárias, ou a qualquer outra entidade, a responsabilidade de contribuir para o desenvolvimento da infraestrutura ferroviária, nomeadamente através de investimentos, da manutenção e do financiamento».


27      «Conjunto da infraestrutura ferroviária gerida por um gestor de infraestrutura.»


28      Regulamento de Execução da Comissão, de 12 de junho de 2015, relativo às modalidades de cálculo dos custos diretamente imputáveis à exploração do serviço ferroviário (JO 2015, L 148, p. 17).


29      Artigo 3.o, ponto 2‑B), introduzido pela Diretiva (UE) 2016/2370 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de dezembro de 2016 (JO 2016, L 352, p. 1).


30      Na audiência, a Comissão perfilhou esta tese.


31      Artigo 8.o («Lista das entidades adjudicantes») da Diretiva 2004/17.


32      Decisão 2008/963/CE da Comissão, de 9 de dezembro de 2008, que altera as listas de entidades adjudicantes e de poderes públicos que constam dos anexos às Diretivas 2004/17/CE e 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho relativas aos processos de adjudicação de contratos públicos (JO 2008, L 349, p. 1).


33      Embora, no Acórdão de 5 de outubro de 2017, LitSpecMet (C‑567/15, EU:C:2017:736), não tenha conseguido resolver o problema aqui suscitado, que não constituía o objeto do reenvio prejudicial, o Tribunal de Justiça declarou que, nas condições do caso e sob determinadas reservas, estava sujeita à Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos públicos de obras, de fornecimentos e de serviços (JO 2004, L 134, p. 114), a atividade de uma empresa filial, propriedade da Sociedade de Caminhos de Ferro Lituanos, à qual fornecia o material ferroviário essencial para exercício da sua atividade de transporte ferroviário, destinada a satisfazer necessidades de interesse geral. Nas Conclusões no referido processo (C‑567/15, EU:C:2017:319), sustentámos, perante a alegação de uma das partes que invocava a Diretiva 2004/17, que, «dado que tanto o artigo 2.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2004/17 como o artigo 1.o, n.o 9, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/18 contêm uma definição idêntica de “organismos de direito público” […] é possível responder às questões do Vilniaus apygardos teismas (Tribunal Regional de Vílnius, Lituânia) sem afastar, à partida, a aplicabilidade de uma ou da outra».