Language of document : ECLI:EU:C:2019:1012

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 26 de novembro de 2019(1)

Processos apensos C566/19 PPU e C626/19 PPU

Parquet général du GrandDuché de Luxembourg

contra

JR

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Cour d’appel (Chambre du conseil) (Tribunal de Recurso, Câmara do Conselho, Luxemburgo)]

e

Openbaar Ministerie

contra

YC

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão, Países Baixos)]

«Reenvio prejudicial — Cooperação policial e judiciária em matéria penal — Decisão‑Quadro 2002/584/JAI — Mandado de detenção europeu — Autoridade judiciária de emissão — Independência do Ministério Público — Mandado de detenção europeu emitido por um procurador francês — Ministério Público responsável, por um lado, pela ação penal e, por outro, pelo controlo dos requisitos de emissão e de proporcionalidade de um mandado de detenção europeu — Requisito da existência de um recurso jurisdicional efetivo da decisão de emissão de um mandado de detenção europeu emitido por um procurador»





1.        O Tribunal de Justiça é novamente confrontado com reenvios prejudiciais nos quais há que decidir se o Ministério Público (neste caso, da República Francesa) pode ser qualificado de «autoridade judiciária de emissão» de um mandado de detenção europeu (MDE), na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI (2).

2.        As dúvidas submetidas por um tribunal do Luxemburgo (processo C‑566/19 PPU) e outro dos Países Baixos (processo C‑627/19 PPU) referem‑se, designadamente, à interpretação a dar ao Acórdão do Tribunal de Justiça OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau) (3).

3.        Essas mesmas dúvidas também se suscitaram no que respeita aos Ministérios Públicos da Suécia (processo C‑625/19 PPU) e da Bélgica (processo C‑627/19 PPU), sobre os quais apresento as minhas conclusões nesta mesma data.

4.        Embora a minha posição de princípio continue a ser a que defendi nos processos OG (Procuradoria de Lübeck) e PI (Procuradoria de Zwickau) (4) e no processo PF (Procurador‑Geral da Lituânia) (5), devo proceder agora à exegese daquele acórdão, bem como do proferido em 9 de outubro de 2019 (6) noutro processo idêntico.

I.      Quadro jurídico

A.      Direito da União

5.        Remeto para a transcrição dos considerandos 5, 6, 8, 10 e 12, bem como dos artigos 1.o e 9.o da decisão‑quadro, que consta das Conclusões OG e PI (Procuradorias de Lübeck e Zwickau).

B.      Direito nacional. Code de procédure pénale (7)

6.        No capítulo I‑A («Das atribuições do ministro da Justiça») do título I («Das autoridades encarregadas de conduzir a política criminal, a ação penal e a instrução») do livro I do CPP, o artigo 30.o dispõe:

«O ministro da Justiça conduz a política criminal definida pelo Governo, assegurando a aplicação coerente da mesma no território da República.

Para esse efeito, emite instruções gerais destinadas aos magistrados do ministério público.

Não lhes pode ser endereçada qualquer instrução em processos individuais.

Todos os anos publica um relatório sobre a aplicação da política criminal definida pelo Governo, especificando as condições de execução da mesma e as instruções gerais emitidas em aplicação do segundo parágrafo. Este relatório é enviado ao Parlamento e pode dar lugar a um debate na Assembleia Nacional e no Senado.»

7.        Na secção 2 («Atribuições do Procurador‑Geral nos tribunais de recurso») do capítulo II do referido título I do livro I, o artigo 36.o estabelece:

«O Procurador‑Geral [nos tribunais de recurso] pode ordenar aos procuradores da República, mediante instruções escritas e juntas aos autos, que instaurem ou determinem a instauração de processos penais ou dirijam ao tribunal competente os requerimentos escritos que considere oportunos.»

II.    Litígios e questões prejudiciais

A.      Processo C566/19 PPU

8.        Em 24 de abril de 2019, a Vice‑Procuradora‑Geral junto do tribunal de grande instance (Tribunal de Primeira Instância) de Lyon (França) emitiu um MDE para efeitos de procedimento penal contra JR.

9.        Por decisão de 19 de junho de 2019, a Chambre du conseil (Câmara do Conselho) do Tribunal d’arrondissement (Tribunal de Primeira Instância) do Luxemburgo ordenou a entrega de JR às autoridades francesas.

10.      JR interpôs recurso dessa decisão no órgão jurisdicional de reenvio, requerendo, no que ora releva, a nulidade do MDE porque a autoridade que o tinha emitido não é uma «autoridade judiciária», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da decisão‑quadro. Alegava que o Ministério Público francês pode estar sujeito a instruções indiretas do poder executivo, o que não se compadece com os critérios estabelecidos pelo Tribunal de Justiça na matéria.

11.      Nestas circunstâncias, a Cour d’appel (chambre du conseil) (Tribunal de Recurso, Câmara do Conselho, Luxemburgo) decidiu submeter a seguinte questão prejudicial:

«Pode o Ministério Público francês junto do tribunal de instrução ou de julgamento, competente para a emissão de um mandado de detenção europeu ao abrigo do direito francês, ser considerado uma autoridade judiciária de emissão, na aceção autónoma referida no artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro […], no caso em que, além de dever verificar o cumprimento dos requisitos necessários para a emissão de um [MDE] e examinar a sua proporcionalidade à luz das circunstâncias do processo penal, seja simultaneamente a autoridade responsável pela ação penal no mesmo processo?»

B.      Processo C626/19 PPU

12.      Em 27 de março de 2019, o procurador do tribunal de grande instance (Tribunal de Primeira Instância) de Tours (França) emitiu um MDE para efeitos de procedimento penal contra YC, o qual foi detido nos Países Baixos em 5 de abril de 2019.

13.      O rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão, Países Baixos), que tem de se pronunciar sobre a execução do MDE, submete esta questão prejudicial:

«I.      Pode um magistrado do Ministério Público que participa na administração da justiça no Estado‑Membro de emissão, que atua de forma independente no exercício das suas funções inerentes à emissão de um mandado de detenção europeu e que emitiu um MDE, ser considerado uma autoridade judiciária de emissão na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da decisão‑quadro […], se um juiz do Estado‑Membro de emissão tiver apreciado as condições para a emissão de um MDE e, nomeadamente, o seu caráter proporcionado antes de esse magistrado do Ministério Público ter tomado a decisão efetiva de emitir o MDE?

II.      Em caso de resposta negativa à primeira questão: é satisfeita a condição de que a decisão do magistrado do Ministério Público de emitir um mandado de detenção e, nomeadamente, o caráter proporcionado dessa decisão dev[e]m poder estar sujeitos, no referido Estado‑Membro, a um recurso judicial que cumpra plenamente as exigências inerentes a uma proteção judicial efetiva, na aceção do n.o 75 do Acórdão [OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau)], se, após a sua entrega efetiva, a pessoa procurada tiver ao dispor uma via de recurso no âmbito da qual possa invocar a nulidade do MDE perante o órgão jurisdicional do Estado‑Membro de emissão e esse órgão jurisdicional examinar, nomeadamente, o caráter proporcionado da decisão de emitir esse MDE?»

III. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça e posições das partes

14.      O processo C‑566/19 deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 25 de julho de 2019, não tendo o órgão jurisdicional de reenvio requerido a sua tramitação urgente.

15.      O processo C‑626/19 PPU deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 22 de agosto de 2019. Tendo em conta a detenção de YC, ordenada no processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio requereu a tramitação urgente do pedido de decisão prejudicial.

16.      O Tribunal de Justiça ordenou a tramitação urgente em ambos os processos e a respetiva apensação para efeitos de apreciação e prolação do acórdão.

17.      Apresentaram observações escritas JR, os Governos francês e neerlandês, o Procurador‑Geral do Luxemburgo, o Ministério Público neerlandês e a Comissão.

18.      A audiência teve lugar em 24 de outubro de 2019, e foi realizada conjuntamente com as dos processos C‑625/19 PPU e C‑627/19 PPU. Nela participaram o Procurador‑Geral do Luxemburgo, o Ministério Público neerlandês, JR, YC, XD, ZB, os Governos neerlandês, francês, sueco, belga, irlandês, espanhol, italiano e finlandês, bem como a Comissão.

IV.    Apreciação

A.      Considerações preliminares

19.      Ambos os reenvios prejudiciais visam determinar se o Ministério Público francês é uma «autoridade judiciária de emissão» na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da decisão‑quadro. Cada um deles coloca essa questão sob uma perspetiva diferente:

–        o tribunal luxemburguês pergunta se o Ministério Público francês cumpre o requisito da independência que deve ser satisfeito pela autoridade de emissão de um MDE;

–        o tribunal neerlandês parte, como premissa, da independência do Ministério Público francês, mas expressa dúvidas quanto ao facto de os MDE por ele emitidos serem objeto de uma fiscalização jurisdicional.

20.      Como já referi, estas questões surgem no contexto das dúvidas que o Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau) suscita nos órgãos jurisdicionais de reenvio, designadamente, quando declara que o conceito de «autoridade judiciária de emissão» do artigo 6.o, n.o 1, «não visa as procuradorias […] que correm o risco de estar sujeitas, direta ou indiretamente, às ordens ou instruções individuais da parte do poder executivo» (8).

21.      Trata‑se, portanto, de esclarecer:

Se o Ministério Público francês é uma instituição independente, como deve sê‑lo qualquer autoridade judiciária de emissão de um MDE (processo C‑566/19).

Em caso de resposta afirmativa, se a apreciação jurisdicional dos requisitos de um MDE pode ter lugar antes da «decisão efetiva» do Ministério Público que o emite (primeira questão do processo C‑626/19 PPU).

Se, na hipótese de essa fiscalização dever revestir a forma de um recurso judicial da decisão do Ministério Público, é suficiente que esse recurso possa ser interposto após a entrega (segunda questão do processo C‑626/19 PPU).

22.      Para responder ao tribunal luxemburguês (processo C‑566/19) é necessário analisar a fundamentação dos Acórdãos OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau) e NJ (Procuradoria de Viena); a solução a apresentar no processo C‑626/19 PPU requer um trabalho de exegese que ponha em sintonia os n.os 68 e 75 do primeiro destes acórdãos.

B.      Quanto à independência do Ministério Público em França

23.      Na minha opinião, o Ministério Público não pode ser qualificado de «autoridade judiciária de emissão» na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da decisão‑quadro, pelos motivos referidos oportunamente, respeitantes, em síntese, à salvaguarda da liberdade dos cidadãos, que só a decisão de um juiz pode sujeitar a restrições(9). Em consequência, nem os procuradores alemães nem o Procurador‑Geral da Lituânia, nem agora o Ministério Público francês, podem emitir um MDE.

24.      O Tribunal de Justiça, embora pressupondo também que a autoridade de emissão de um MDE deve ser independente, adotou uma abordagem diferente, que, penso eu, varia consoante se tenha em consideração o Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário) (10), ou os de 27 de maio de 2019, nos processos OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau) e PF (Procurador‑Geral da Lituânia) (11).

25.      Importa, assim, reproduzir os termos em que essa jurisprudência se pronunciou.

1.      Jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa a esta questão

26.      É suficiente, para o Tribunal de Justiça, que a autoridade judiciária de emissão esteja «em condições de exercer [essa] função de forma objetiva, tendo em conta todos os elementos incriminatórios e ilibatórios, e sem correr o risco de que o seu poder decisório seja objeto de ordens ou de instruções externas, nomeadamente da parte do poder executivo, de forma a que não exista nenhuma dúvida quanto ao facto de a decisão de emitir o mandado de detenção europeu ser da responsabilidade desta autoridade e não, em última análise, do referido poder» (12).

27.      Nesta linha de argumentação:

–        a autoridade judiciária de emissão deve «assegurar à autoridade judiciária de execução que, à luz das garantias dadas pela ordem jurídica do Estado‑Membro de emissão, atua de forma independente no exercício das suas funções inerentes à emissão de um mandado de detenção europeu»;

–        é necessário «que existam regras estatutárias e organizativas adequadas para garantir que a autoridade judiciária de emissão, no âmbito da adoção de uma decisão de emissão desse mandado de detenção, não corra nenhum risco de estar sujeita nomeadamente a uma instrução individual da parte do poder executivo» (13);

–        a possibilidade de uma sujeição a eventuais instruções individuais do poder executivo parece ser o elemento determinante na apreciação da independência do Ministério Público enquanto autoridade judiciária de emissão.

28.      No Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau), foi determinante o facto de o ministro da Justiça da República Federal da Alemanha, ou os seus homólogos nos Länder, poderem dar instruções às procuradorias (14). Esta circunstância pesou mais do que a constatação de que «as procuradorias alemãs estão obrigadas a agir com objetividade e devem investigar com intuito não apenas incriminatório, mas também ilibatório» (15).

29.      No Acórdão NJ (Procuradoria de Viena) declarou‑se, por razões análogas, que os procuradores austríacos não cumpriam os requisitos inerentes à independência exigida para emitir um MDE (16).

30.      Em contrapartida, para o Tribunal de Justiça, o Procurador‑Geral da Lituânia podia ser uma «autoridade judiciária de emissão», pois, sendo responsável pela emissão do MDE, goza de uma independência em relação ao poder executivo garantida pela própria Constituição nacional (17).

31.      Devo realçar que, até ao momento, a jurisprudência não se pronunciou claramente sobre a dependência ou a independência de cada um dos procuradores, sujeitos a instruções dos seus superiores hierárquicos (18).

2.      Ministério Público em França

32.      Segundo as informações prestadas nos autos, até 2013, em França, o ministro da Justiça podia dar instruções aos procuradores em processos individuais. Por conseguinte, a jurisprudência dos acórdãos OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau) e NJ (Procuradoria de Viena) levaria a afirmar que, antes daquela data, o Ministério Público desse Estado‑Membro não podia ser qualificado de «autoridade judiciária de emissão».

33.      A subordinação da procuradoria francesa às eventuais instruções individuais do poder executivo extinguiu‑se, com a reforma do CPP, a partir de 2014. No entanto, mantém‑se a possibilidade de o ministro da Justiça dar instruções gerais (artigo 30.o do CPP). E subsiste, desde logo, a estrutura hierárquica característica da Procuradoria, estando os seus membros subordinados, orgânica e funcionalmente, ao procurador‑geral junto dos respetivos tribunais. Cada um dos procuradores se encontra, assim, «sob a direção e fiscalização dos seus superiores hierárquicos» (19).

34.      Suscitam‑se, portanto, dois problemas:

–        o primeiro, saber se a possibilidade de o poder executivo dar instruções aos procuradores pode afetar a independência destes;

–        o segundo, saber se a estrutura hierárquica característica das Procuradorias é inócua no que respeita à independência dos seus membros.

a)      Instruções individuais e instruções gerais

35.      No dispositivo do Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau) o Tribunal de Justiça só se referiu expressamente às instruções individuais. No entanto, no seu n.o 73, excluiu que o poder decisório do procurador pudesse ser «objeto de ordens ou de instruções externas» sem outra especificação.

36.      Nesse processo, sendo óbvia a possibilidade de instruções individuais do ministro da Justiça aos procuradores alemães, era desnecessário pronunciar‑se sobre a incidência das instruções gerais na sua atuação.

37.      Creio, todavia, que este último tipo de instruções também pode ser relevante. Nas minhas Conclusões OG e PI recordei os termos, absolutamente corretos, em que o Tribunal de Justiça se tinha pronunciado, no Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), sobre a independência da autoridade judicial que emite o MDE. Essa independência pressupõe que «a instância em causa exerça as suas funções com total autonomia, sem estar submetida a nenhum vínculo hierárquico ou de subordinação em relação a quem quer que seja e sem receber ordens ou instruções de qualquer origem, e esteja, assim, protegida contra intervenções ou pressões externas suscetíveis de afetar a independência de julgamento dos seus membros e influenciar as suas decisões» (20).

38.      É inconcebível que um juiz (independente) tenha de seguir instruções emitidas pelo poder executivo, por muito gerais que sejam, quando tem de decidir sobre algo tão valioso como a liberdade dos seus concidadãos. O juiz apenas está subordinado à lei, não às orientações de política criminal emitidas por um Governo (através do ministro da Justiça).

39.      Essas orientações podem, legitimamente, vincular os procuradores nos Estados‑Membros que optem por ter em conta esse tipo de instruções gerais. É justamente esta a razão — ou seja, a restrição da capacidade de atuar de forma autónoma, sem outra subordinação que não seja a devida à lei — que impede o reconhecimento do status de autoridade judiciária de emissão aos magistrados do Ministério Público que estão sujeitos a instruções gerais do Governo quanto à decisão sobre a emissão, ou não, de um MDE.

40.      Não é de excluir que essas instruções gerais concretizem a política criminal de um determinado Governo (21), impondo aos magistrados do Ministério Público, por exemplo, o dever de emitir MDE em relação a determinados crimes, ou em qualquer caso, para certas categorias de infratores. Como é possível falar de independência numa decisão adotada por quem tem de respeitar necessariamente, mesmo contra o seu próprio entendimento, essas instruções (gerais) do Governo ao emitir um MDE?

41.      Poderia contrapor‑se que esta hipótese não é a habitual, mas, insisto, estando em causa a privação da liberdade, a salvaguarda em relação às instruções vinculativas do poder executivo (quer gerais quer, a fortiori, individuais) em matéria de MDE exige que a decisão sobre a liberdade de uma pessoa seja tomada por quem esteja numa posição de independência absoluta, subordinado apenas à lei e não às prescrições ou orientações, particulares ou gerais, do poder executivo.

42.      Entendo, assim, que o Tribunal de Justiça devia recorrer à tese que expôs no n.o 63 do Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário) para confirmar que a instância que tenha de emitir um MDE não pode estar submetida a nenhum vínculo hierárquico ou de subordinação em relação a quem quer que seja nem «receber ordens ou instruções de qualquer origem».

b)      Subordinação hierárquica do Ministério Público em França

43.      Como defendi nas Conclusões OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau), referindo novamente o Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), «a independência é incompatível com qualquer “vínculo hierárquico ou de subordinação em relação a quem quer que seja”». No que respeita aos juízes e órgãos jurisdicionais, pressupõe que «[o]s titulares do poder judicial também são independentes face às instâncias judiciais superiores que, embora possam rever e anular a suas decisões a posteriori, não podem, no entanto, impor‑lhes como decidir» (22).

44.      Na minha opinião, esta característica da independência deve ser igualmente um atributo do Ministério Público enquanto «autoridade judiciária de emissão» na aceção da decisão‑quadro. Por conseguinte, se, como parece estar provado, os procuradores franceses, além de agirem de acordo com as instruções gerais do ministro da Justiça, também estão sujeitos às ordens dos seus superiores hierárquicos no seio da estrutura do Ministério Público (23), dificilmente podem ser qualificados de independentes para atuar como «autoridade judiciária de emissão» de um MDE.

45.      Esta é, além disso, a abordagem do Tribunal de Justiça no Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, Margarit Panicello, n.os 41 e 42, rejeitando que outro funcionário (um secretário judicial) que intervém a título acessório na administração da justiça possa submeter um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça. A sua falta de independência decorria, precisamente, do facto de «recebe[r], e est[ar] obrigado a respeitar, instruções do seu superior hierárquico» (24).

46.      Embora os critérios de interpretação do artigo 267.o TFUE (25) não coincidam totalmente com os que dizem respeito ao artigo 6.o, n.o 1, da decisão‑quadro, creio que expressam fundamentalmente a mesma preocupação.

47.      Recordo, uma vez mais, o n.o 63 do Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário) sobre a ausência de «vínculo[s] hierárquico ou de subordinação», como componente essencial e indissociável da independência.

48.      No processo que deu origem ao Acórdão PF (Procurador‑Geral da Lituânia), o Tribunal de Justiça defendeu que o Procurador‑Geral da Lituânia podia ser qualificado de «autoridade judiciária de emissão» por ter um estatuto constitucional que lhe confere uma garantia de independência em relação ao poder executivo no âmbito da emissão do MDE. Na República Francesa, pelo contrário, não existe uma garantia constitucional equivalente.

c)      Imparcialidade do Ministério Público

49.      O tribunal de reenvio luxemburguês expõe as suas dúvidas quanto a considerar o Ministério Público francês como «autoridade judiciária de emissão» de um MDE, não só devido ao estatuto dessa instituição, mas também porque os procuradores «[…] ao mesmo tempo que […] deve[m] verificar o cumprimento dos requisitos necessários para a emissão de um [MDE] e examinar a sua proporcionalidade à luz dos factos constantes do processo penal, [são] a autoridade encarregada de exercer a ação penal no mesmo processo».

50.      Em meu entender, estas objeções do órgão jurisdicional de reenvio estão mais relacionadas com a imparcialidade do Ministério Público do que com a sua independência.

51.      O Ministério Público é, por definição, a «parte no processo que exerce a ação penal» (26). Na sua qualidade de parte que atua num processo penal contra outra parte (o suspeito ou o arguido), não lhe deveria competir, mas sim ao órgão jurisdicional que conhece desse processo, condicionar a situação pessoal da parte contrária, até ao ponto de a privar de liberdade.

52.      No entanto, esta premissa podia ser matizada se a lei obrigasse o Ministério Público a atuar com total objetividade, apreciando e apresentando ao juiz tanto os elementos incriminatórios como os ilibatórios, contra ou a favor do suspeito ou do arguido.

53.      Em concreto, se o Ministério Público tiver de respeitar esse dever de objetividade durante a fase de instrução de um processo penal, a sua posição é análoga à de um juiz de instrução (nos países em que existe este instituto), entre cujas competências habituais se encontra a de emitir um MDE, se assim estiver previsto no seu direito nacional.

54.      Entendo, assim, que o caráter de parte no processo penal, que cabe ao Ministério Público sob um ponto de vista formal, não é incompatível com o facto de se lhe reconhecer um estatuto de imparcialidade, como regra (não apenas deontológica, mas jurídica) de conduta no processo. Neste sentido, a lei nacional pode especificar, e assim acontece em França, que o Ministério Público exerce a ação penal e requer a aplicação da lei penal «na observância do princípio da imparcialidade a que está obrigado» (27).

55.      De qualquer forma, uma vez que, em meu entender e face ao exposto, a configuração institucional do Ministério Público francês não garante que a sua atuação esteja livre de qualquer influência do poder executivo ao emitir um MDE, considero que à questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑566/19 deve ser dada uma resposta negativa.

56.      Caso assim acontecesse, essa mesma resposta tornaria desnecessário responder às questões do tribunal neerlandês no processo C‑626/19 PPU, uma vez que têm como premissa a independência do Ministério Público em França, que excluo. Contudo, examiná‑las‑ei a título subsidiário.

C.      Quanto à fiscalização judicial do MDE emitido pelo Ministério Público

1.      Considerações preliminares

57.      O rechtbank (Tribunal de Primeira Instância) tem dúvidas quanto ao cumprimento da terceira das exigências previstas no Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau) para que uma autoridade que, não sendo um juiz ou um órgão jurisdicional, participa na administração da justiça e atua de forma independente possa emitir um MDE, ou seja, que a sua decisão seja suscetível de recurso judicial.

58.      Nos termos do n.o 75 do Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck e Zwickau), «quando o direito do Estado‑Membro de emissão atribui a competência para emitir um [MDE] a uma autoridade que, embora participando na administração da justiça desse Estado‑Membro, não é ela mesma um juiz ou um órgão jurisdicional, a decisão de emitir esse [MDE] e, nomeadamente, o caráter proporcionado dessa decisão devem poder estar sujeitos, no referido Estado‑Membro, a um recurso judicial que cumpra plenamente as exigências inerentes a uma proteção judicial efetiva».

59.      A Procuradoria dos Países Baixos defende que o recurso a que alude o n.o 75 do Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck e Zwickau) não é exigido quando, no primeiro dos dois níveis de proteção em que assenta o sistema da decisão‑quadro, já se tinha adotado uma decisão que cumpra as exigências inerentes a uma proteção judicial efetiva (28).

60.      Segundo esta abordagem, as exigências previstas nos n.os 68 e 75 do Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck e Zwickau) excluem‑se mutuamente. No entanto, para o tribunal de reenvio ambas as exigências coexistem e são, por conseguinte, simultaneamente aplicáveis. Partilho deste entendimento.

61.      As afirmações constantes dos n.os 68 e 75 do Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck e Zwickau) suscitam, certamente, algumas dúvidas.

62.      O n.o 68 prevê que a proteção em dois níveis do sistema do MDE «implica que uma decisão que cumpra as exigências inerentes a uma proteção judicial efetiva seja adotada, pelo menos, num dos dois níveis da referida proteção» (29). Esses níveis são:

–        o que vigora «no momento da adoção de uma decisão judiciária nacional, como um mandado de detenção nacional [MDN]» (30);

–        o que opera no momento da emissão do MDE propriamente dito (31).

63.      O sentido exato da expressão «pelo menos, num dos dois níveis da referida proteção», utilizada no n.o 68 do Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck e Zwickau), só é apreendido com a leitura dos números posteriores.

64.      Segundo o n.o 69, do afirmado no n.o 68 «decorre» que, quando o direito nacional atribui a competência para emitir um MDE a uma autoridade que, como a Procuradoria, participa na administração da justiça, mas não é um juiz nem um órgão jurisdicional, o MDE deve basear‑se numa «decisão judiciária nacional, como um mandado de detenção nacional». Este último (o MDN) deve cumprir as exigências referidas no n.o 68: «as inerentes a uma proteção judicial efetiva».

65.      Assim, o MDE emitido por um procurador deve basear‑se num MDN emitido por um juiz ou um órgão jurisdicional, por outras palavras, por uma autoridade judiciária em sentido estrito. Por conseguinte, deve entender‑se que «uma decisão que cumpra as exigências inerentes a uma proteção judicial efetiva», na aceção do n.o 68 do Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck e Zwickau), é a adotada por um juiz ou órgão jurisdicional.

66.      O segundo nível de proteção implica, em conformidade com o n.o 71 do Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck e Zwickau), que a autoridade competente para emitir o MDE «fiscaliza […] o cumprimento das condições necessárias a esta emissão e analisa a questão de saber se, à luz das especificidades de cada caso, a referida emissão reveste caráter proporcionado».

67.      Por conseguinte, o MDE cuja base seja um MDN emitido por um juiz ou órgão jurisdicional pode ser emitido pelo Ministério Público nos Estados‑Membros em que esta instituição participe na administração da justiça e o faça de forma plenamente independente.

68.      Nessa hipótese, as «exigências inerentes a uma proteção judicial efetiva» (isto é, a intervenção de um órgão jurisdicional em sentido estrito) já foram asseguradas no primeiro nível de proteção, quando se emitiu o MDN em que se baseia o MDE.

69.      Ora, nos termos do n.o 75 do Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck e Zwickau), a decisão do Ministério Público de emitir o MDE deve «poder estar sujeit[a] […] a um recurso judicial que cumpra plenamente as exigências inerentes a uma proteção judicial efetiva».

70.      A necessidade desse recurso não constitui um requisito para que o Ministério Público possa emitir um MDE, ou seja, para o qualificar de «autoridade judiciária de emissão» na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da decisão‑quadro. Trata‑se sobretudo de um requisito que se refere à regularidade da emissão do MDE pelo Ministério Público e, por conseguinte, à sua eficácia (32).

71.      Assim resulta do Acórdão PF (Procurador‑Geral da Lituânia), em que o Tribunal de Justiça, depois de constatar que o Procurador‑Geral da Lituânia podia ser qualificado de «autoridade judiciária de emissão» por participar na administração da justiça e ter garantida a independência em relação ao poder executivo, advertiu que não era possível saber se as suas decisões de emitir um MDE podiam ser objeto de um recurso judicial (33). Esta última circunstância não o impediu de decidir que aquele Procurador‑Geral estava abrangido no conceito de «autoridade judiciária de emissão» do artigo 6.o, n.o 1, da decisão‑quadro.

72.      Por outras palavras, deduz‑se da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o Ministério Público pode ser qualificado de «autoridade judiciária de emissão» na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da decisão‑quadro se reunir duas características: a) participar na administração da justiça; e b) gozar de um estatuto orgânico e funcional que garanta a sua independência.

73.      Caso apresente ambas as características, o Ministério Público pode emitir um MDE. No entanto, o MDE assim emitido deve poder ser objeto de um recurso perante um juiz ou órgão jurisdicional em sentido próprio. A inexistência desse recurso não afetaria a sua qualidade de «autoridade judiciária de emissão», mas sim a eficácia do MDE por ele emitido.

2.      Quanto à primeira questão prejudicial do processo C626/19 PPU

74.      Caso esta interpretação for correta, importa reformular a primeira das questões submetidas pelo tribunal de reenvio.

75.      O rechtbank (Tribunal de Primeira Instância) pergunta se pode considerar‑se «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da decisão‑quadro, um procurador que participa na administração da justiça e atua de forma independente, se a sua decisão de emitir um MDE for precedida (não seguida) de uma fiscalização judicial.

76.      Creio, pelas razões expostas, que o relevante não é já se, nas condições indicadas, o procurador é uma «autoridade judiciária de emissão», mas se o MDE que emitiu pode produzir efeitos no Estado‑Membro de execução. Por conseguinte, a fiscalização deve incidir na regularidade do processo da adoção do MDE e não na qualidade de quem o emite.

77.      Assim, importaria reformular a questão da seguinte forma: «Pode a fiscalização do cumprimento dos requisitos de emissão de um MDE adotado por um procurador que possa ser considerado “autoridade judiciária de emissão” na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da decisão‑quadro ser anterior à emissão do MDE?»

78.      Em conformidade com a informação prestada pelo tribunal de reenvio, o MDE, neste processo, foi emitido por um procurador francês na sequência do pedido efetuado pelo órgão jurisdicional que acabava de emitir o MDN. Por conseguinte, no âmbito da adoção do referido MDN, esse órgão jurisdicional tinha apreciado os requisitos da emissão do MDE e, nomeadamente, a sua proporcionalidade.

79.      Desde logo, o facto de o órgão jurisdicional que adota o MDN verificar, já nesse momento, se estão cumpridos os requisitos exigíveis para o procurador emitir, por sua vez, um MDE (designadamente, se a sua emissão é proporcionada), representa uma garantia considerável para a correta aplicação do mecanismo da decisão‑quadro.

80.      Se o MDN e o MDE são adotados de forma simultânea ou quase imediata, exclui‑se o risco de extemporaneidade na apreciação da proporcionalidade do MDE. Esse risco, pelo contrário, é patente se o MDE for emitido muito tempo depois do MDN: é possível que, nessa conjuntura, a apreciação da proporcionalidade já levada a efeito pelo órgão jurisdicional esteja desfasada e se verifiquem circunstâncias ulteriores suficientes para a alterar.

81.      A esta eventualidade alude o Tribunal de Justiça no Acórdão NJ (Procuradoria de Viena) ao sublinhar que a fiscalização da proporcionalidade efetuada pelo juiz (34) também deve ter em consideração a ingerência nos direitos da pessoa em causa que vá além das violações do direito à liberdade desta, para o que deve ter em conta os efeitos do MDE nas relações sociais e familiares estabelecidas por quem já se encontra num Estado‑Membro diferente do de emissão.

82.      Independentemente dessa apreciação oficiosa dos requisitos de emissão de um MDE, o n.o 75 do Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck e Zwickau) refere expressamente «recurso judicial», isto é, uma fiscalização requerida pela pessoa visada pelo MDE.

83.      Aquando da adoção do MDN o juiz efetua uma apreciação própria (oficiosa) das circunstâncias que o levam a emitir o MDN, que será eventualmente seguido de um MDE. Como salientou a Procuradoria‑Geral luxemburguesa, nesse procedimento, por razões óbvias, não terá tido intervenção a pessoa procurada (35).

84.      No entanto, essa atividade judicial não pode cumprir, pela sua própria natureza, «as exigências inerentes a uma proteção judicial efetiva» referidas no n.o 75 do Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck e Zwickau). Esta última é sempre uma proteção requerida pela pessoa em causa e traduz‑se num procedimento no qual esta pode intervir e participar, exercendo o seu direito de defesa.

85.      Por isso, o recurso mencionado no n.o 75 do Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck e Zwickau) não pode ser substituído por uma fiscalização jurisdicional como a que é efetuada aquando da emissão do MDN. Enquanto «recurso», só pode ter por objeto o MDE já emitido, o que leva a verificar quando é que o mesmo pode ser interposto. É sobre este ponto que se debruça a segunda das questões do processo C‑626/19 PPU.

3.      Quanto à segunda questão prejudicial do processo C626/19 PPU

86.      O tribunal de reenvio toma como ponto de partida a existência da possibilidade de um recurso judicial da decisão do Ministério Público de emitir um MDE. Partindo desse pressuposto, pretende saber se a interposição do referido recurso deve ser possível antes da execução do MDE ou é suficiente que possa ser interposto após a entrega efetiva da pessoa em causa.

87.      O Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck e Zwickau) não se pronuncia expressamente sobre essa questão. No entanto, concordo com a Comissão na medida em que, tendo em conta o risco de lesão do direito à liberdade, inerente à emissão de um MDE, a possibilidade de o impugnar mediante recurso judicial deveria ser exequível logo que tenha sido ordenada a sua emissão (36). Seria necessário salvaguardar, contudo, aqueles casos em que, por razões de segredo do inquérito ou para evitar a fuga da pessoa em causa, não seja oportuna a notificação imediata do MDE até aquela ser detida.

88.      É evidente que um recurso interposto após a entrega da pessoa em causa permite‑lhe uma proteção judicial, embora menos ampla do que aquela de que podia ter beneficiado se lhe tivesse sido possível impugnar a medida, para evitar os prejuízos inerentes à execução de um MDE (designadamente, a privação de liberdade).

89.      De qualquer forma, e como salientou o Procurador‑Geral do Luxemburgo (37), a Diretiva 2013/48/UE (38) prevê, no seu artigo 10.o, n.o 5, que o Estado‑Membro de emissão do MDE é obrigado a facilitar à pessoa procurada a constituição de um advogado a partir do Estado‑Membro de execução, com a finalidade óbvia de a ajudar no exercício do seu direito a uma proteção judicial efetiva nos tribunais do Estado‑Membro de emissão sem necessidade de aguardar a sua entrega.

90.      Assim, o silêncio do n.o 75 do Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck y Zwickau) quanto ao momento em que se deve poder recorrer do MDE no Estado‑Membro de emissão não deve ser interpretado no sentido de ser suficiente, para a conformidade com o direito da União, um mero recurso posterior à entrega da pessoa em causa em consequência do MDE.

91.      Em meu entender, um sistema nacional que preveja apenas este recurso ex post e não permita impugnar o MDE na sua origem (39) não cumpre «plenamente as exigências inerentes à proteção judicial efetiva» no Estado‑Membro de emissão, às quais se refere o Tribunal de Justiça. A pessoa em causa deve dispor de um recurso capaz de assegurar uma proteção judicial plena, tendo em conta a gravosa repercussão no seu direito à liberdade.

92.      Importa realçar, todavia, em consonância com a posição defendida pela Comissão (40), que a interposição de um recurso no Estado‑Membro de emissão não pode prejudicar a tramitação do MDE no Estado‑Membro de execução, cuja autoridade judiciária deve cumprir os requisitos da decisão‑quadro e respeitar os prazos ali fixados. Tudo isto, em última instância, também em benefício da pessoa em causa privada de liberdade durante a tramitação do procedimento de entrega.

93.      Em suma, deve ser dada uma resposta única às duas questões prejudiciais formuladas pelo tribunal neerlandês, salientando que deve garantir‑se sempre a possibilidade de a pessoa em causa recorrer, perante um juiz ou um órgão jurisdicional em sentido estrito, do MDE emitido pelo Ministério Público, mesmo quando este é precedido por um MDN emitido por um juiz.

4.      Consideração final

94.      A conclusão anterior é a que, na minha opinião, se impõe inelutavelmente ao levar às suas últimas consequências a exigência prevista no n.o 75 do Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck y Zwickau).

95.      Essa exigência não é condição necessária para que o Ministério Público possa ser considerado «autoridade judiciária de emissão» na aceção da decisão‑quadro, tal como já foi exposto. Mas o certo é que, mesmo tendo essa qualidade, o MDE emitido pelo Ministério Público enfermaria de um vício grave se não fosse suscetível de recurso judicial.

96.      Por último, de pouco valeria reconhecer a qualidade de «autoridade judiciária de emissão» ao Ministério Público se o MDE por ele emitido não pudesse ser executado por ser oriundo de um sistema nacional que não admita recurso judicial daquele.

97.      Para evitar este efeito indesejável, o Tribunal de Justiça podia declarar que, aguardando as pertinentes reformas legislativas (41), os tribunais dos Estados‑Membros de emissão cujas leis autorizem os seus procuradores a emitir MDE devem proceder à interpretação da sua legislação processual de forma a tornar possível um recurso como o previsto no n.o 75 do Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck y Zwickau).

98.      Se essa interpretação em conformidade com o direito da União não fosse viável (por ser contra legem no ordenamento jurídico nacional), na minha opinião, seria ainda possível outra medida para não frustrar a aplicação da decisão‑quadro.

99.      O princípio da confiança entre os Estados‑Membros e o seu corolário do reconhecimento mútuo, apontam para a simplificação dos trâmites do procedimento da decisão‑quadro. Sob este ponto de vista, não creio que se possa acrescentar, sem mais, aos motivos de «não‑execução» de um MDE, um outro, não previsto expressamente na decisão‑quadro, que se traduza no facto de, nos MDE emitidos pelo Ministério Público, ser exigida a prova de que as normas nacionais do Estado de emissão permitem um recurso perante os órgãos jurisdicionais desse Estado.

100. Impondo‑se esta exigência à autoridade judiciária de execução tornar‑se‑ia ainda mais complexa a tramitação do MDE, pois aquela autoridade tinha de estar ciente (de forma bastante detalhada) das especificidades dos sistemas processuais dos restantes Estados‑Membros ou exigir informações adicionais (42).

101. Neste contexto, deviam ser os próprios tribunais do Estado de emissão, uma vez executado o MDE, a retirar as devidas consequências que, no seu direito nacional e à luz das exigências do direito da União, tal como foram interpretadas pelo Tribunal de Justiça, decorrem do facto de não ser possível impugná‑lo nos termos da sua própria legislação nacional.

102. Em suma, se um procurador independente e que não possa ser destinatário das instruções do poder executivo nesta matéria emite um MDE, esse mandado, na medida em que foi emitido por uma «autoridade judiciária de emissão» na aceção da decisão‑quadro, deve ser cumprido pela autoridade judiciária de execução, mesmo não tendo conhecimento de que a respetiva emissão pode ser objeto de um recurso judicial no Estado‑Membro de emissão.

V.      Conclusão

103. Face ao exposto, proponho ao Tribunal de Justiça responder à Cour d’appel (Chambre du conseil) (Tribunal de Recurso, Câmara do Conselho, Luxemburgo) e ao rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão, Países Baixos) nos seguintes termos:

«O artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, deve se interpretado no sentido de que:

Não pode qualificar‑se de “autoridade judiciária de emissão” o Ministério Público se, na decisão respeitante a um mandado de detenção europeu, os seus membros estão subordinados a instruções gerais de política criminal do ministro da Justiça vinculativas em relação a este tipo de mandados e às instruções dadas pelos seus superiores hierárquicos.

A título subsidiário:

A pessoa procurada em aplicação de um mandado de detenção europeu emitido pelo Ministério Público de um Estado‑Membro que participe na administração da justiça e tenha garantido um estatuto de independência deve poder impugná‑lo perante um juiz ou um órgão jurisdicional desse Estado, sem necessidade de aguardar a sua entrega, logo que tenha sido emitido esse mandado (exceto se prejudicar o processo penal) ou o mesmo lhe tenha sido notificado.»


1      Língua original: espanhol.


2      Decisão‑Quadro do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24) (a seguir «decisão‑quadro»).


3      Acórdão de 27 de maio de 2019 (C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456, a seguir «Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau»).


4      Processos C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:337 [a seguir «Conclusões OG e PI (Procuradorias de Lübeck e Zwickau)»].


5      Processo C‑509/18, EU:C:2019:338 [a seguir «Conclusões PF (Procurador‑Geral da Lituânia)»].


6      Processo C‑489/19 PPU, NJ (Procuradoria de Viena), EU:C:2019:849 [a seguir «Acórdão NJ (Procuradoria de Viena)»].


7      Código de processo penal (a seguir «CPP»).


8      Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau), n.o 90.


9      Conclusões PF (Procurador‑Geral da Lituânia) e OG e PI (Procuradorias de Lübeck e Zwickau).


10      Acórdão C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586 [a seguir «Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário»].


11      Acórdão de 27 de maio de 2019, PF (Procurador‑Geral da Lituânia) [processo C‑509/18, EU:C:2019:457, a seguir «Acórdão PF (Procurador‑Geral da Lituânia)»].


12      Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau), n.o 73. O sublinhado é meu.


13      Ibidem, n.o 74.


14      Ibidem, n.o 76.


15      Loc. ult. cit.


16      Acórdão NJ (Procuradoria de Viena), n.o 40, in fine.


17      Acórdão PF (Procurador‑Geral da Lituânia), n.os 55 e 56.


18      À subordinação dos procuradores aos seus superiores hierárquicos faz referência o Acórdão NJ (Procuradoria de Viena), n.o 40: «no que respeita às procuradorias austríacas, resulta […] que estas estão hierarquicamente subordinadas às procuradorias regionais e sujeitas às suas instruções e que estas últimas estão, por sua vez, subordinadas ao ministro federal da Justiça».


19      Artigo 5.o da Lei Orgânica relativa ao estatuto dos magistrados (Ordonnance n.o 58‑1270, de 22 de dezembro de 1958).


20      Conclusões OG e PI, n.o 87, que transcreve o n.o 63 do Acórdão Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), n.o 87. O sublinhado é meu.


21      Na decisão n.o 2017‑680 QPC, de 8 de dezembro de 2017, o Conseil Constitutionnel (Tribunal Constitucional) confirmou que «o Governo [francês] define e conduz a política da Nação, nomeadamente no que respeita aos domínios de atuação do Ministério Público» (n.o 5).


22      Conclusões OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau), n.o 96.


23      O artigo 36.o do CPP prevê, efetivamente, que os procuradores «são obrigados a seguir as instruções que lhes sejam dadas pelos seus superiores hierárquicos», exceto nas suas intervenções orais (observações do Governo francês, n.o 16). A emissão de um MDE não necessita de intervenções orais, pelo que está sujeita à regra geral.


24      Processo C‑503/15, EU:C:2017:126.


25      O Tribunal de Justiça rejeitou no Acórdão de 12 de dezembro de 1996, Processos penais contra X (processos C‑74/95 e C‑129/95, EU:C:1996:491), a legitimidade do Ministério Público italiano para submeter pedidos de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça, pois a sua função «não é resolver com total independência um litígio, mas submetê‑lo, se for caso disso, ao órgão jurisdicional competente, enquanto parte no processo em que se exerce a ação penal» (n.o 19).


26      Acórdão de 12 de dezembro de 1996, Processos penais contra X (processos C‑74/95 e C‑129/95, EU:C:1996:491), n.o 19. O sublinhado é meu.


27      Artigo 31.o do CPP, após a respetiva reforma de 25 de julho de 2013.


28      N.o 2.10, quarto parágrafo, do despacho de reenvio.


29      O sublinhado é meu.


30      Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck e Zwickau), n.o 67.


31      Loc. ult. cit.


32      Assim o entendem também a Comissão (n.os 23 a 26 das suas observações escritas) e o Procurador‑Geral do Luxemburgo (p. 4 das suas observações escritas).


33      Acórdão PF (Procurador‑Geral da Lituânia), n.o 56.


34      A fiscalização da proporcionalidade «incide, no âmbito da homologação de um mandado de detenção nacional, sobre os efeitos apenas da privação de liberdade provocados por este e, no âmbito da homologação de um mandado de detenção europeu, sobre a ingerência nos direitos da pessoa em causa que vá além das violações do direito à liberdade desta já examinadas. Com efeito, o tribunal responsável pela homologação de um mandado de detenção europeu deve ter em conta, nomeadamente, os efeitos do processo de entrega e da transferência da pessoa em causa, residente num Estado‑Membro diferente da República da Áustria, nas suas relações sociais e familiares» (n.o 44).


35      Observações escritas do Procurador‑Geral do Luxemburgo, p. 5.


36      N.os 30 a 32 das observações escritas da Comissão.


37      Observações escritas do Procurador‑Geral do Luxemburgo, p. 5 in fine.


38      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2013, relativa ao direito de acesso a um advogado em processo penal e nos processos de execução de mandados de detenção europeus, e ao direito de informar um terceiro aquando da privação de liberdade e de comunicar, numa situação de privação de liberdade, com terceiros e com as autoridades consulares (JO 2013, L 294, p. 1).


39      Ou que, como no direito francês, limita a possibilidade de antecipar esse recurso ao procurado que já seja parte no processo penal correspondente, conforme declara o Governo francês nos n.os 35 a 37 das suas observações escritas.


40      Observações escritas da Comissão, n.o 33.


41      Na audiência, os Governos francês, neerlandês e sueco defenderam que, a ser necessária a reforma das suas legislações na sequência da decisão do Tribunal de Justiça, se limite a eficácia temporal desta última. Manifestei a minha oposição a um pedido idêntico nas Conclusões do processo Poltorak (C‑452/16 PPU, EU:C:2016:782), para as quais remeto (n.os 69 e 70).


42      Na audiência verificou‑se que os ordenamentos jurídicos dos Estados‑Membros podem disponibilizar vias indiretas — por vezes muito sinuosas — de fiscalização judicial da emissão do ODE. Determinar, casuisticamente, se essa impugnação é possível pressupõe um conhecimento do direito processual do Estado‑Membro de emissão que não seria razoável exigir à autoridade judiciária de execução.