Language of document : ECLI:EU:C:2012:662

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

25 de outubro de 2012 (*)

«Incumprimento de Estado ― Transportes ― Desenvolvimento dos caminhos de ferro comunitários ― Diretiva 91/440/CEE ― Artigo 5.°, n.° 3 ― Empresas de transporte ferroviário ― Independência de gestão ― Decisões relativas ao pessoal, aos ativos e às aquisições próprias ― Artigo 7.°, n.° 3 ― Concessão do financiamento ao gestor da infraestrutura ― Diretiva 2001/14/CE ― Artigo 6.°, n.° 1 ― Equilíbrio das contas ― Condições adequadas ― Transposição incompleta»

No processo C‑557/10,

que tem por objeto uma ação por incumprimento ao abrigo do artigo 258.° TFUE, entrada em 26 de novembro de 2010,

Comissão Europeia, representada por H. Støvlbæk e M. França, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

contra

República Portuguesa, representada por L. Inez Fernandes e A. Pereira de Miranda, na qualidade de agentes,

demandada,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Tizzano, presidente de secção, A. Borg Barthet (relator), E. Levits, J.‑J. Kasel e M. Berger, juízes,

advogado‑geral: N. Jääskinen,

secretário: K. Malacek, administrador,

vista a fase escrita,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 6 de setembro de 2012,

profere o presente

Acórdão

1        Com a sua petição, a Comissão Europeia pede ao Tribunal de Justiça que declare que, ao fazer depender de autorização governamental as decisões individuais de aquisição ou de alienação de participações no capital de sociedades pela empresa pública de transporte ferroviário CP ― Comboios de Portugal, EPE (a seguir «CP»), e ao não tomar as medidas nacionais necessárias para dar cumprimento à obrigação de definir as condições adequadas para assegurar que as contas do gestor da infraestrutura, a Rede Ferroviária Nacional ― REFER, EP (a seguir «REFER»), apresentem equilíbrio, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força, por um lado, do artigo 5.°, n.° 3, da Diretiva 91/440/CEE do Conselho, de 29 de julho de 1991, relativa ao desenvolvimento dos caminhos de ferro comunitários (JO L 237, p. 25), conforme alterada pela Diretiva 2001/12/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2001 (JO L 75, p. 1, a seguir «Diretiva 91/440»), e, por outro, do artigo 7.°, n.° 3, da Diretiva 91/440 e do artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2001, relativa à repartição de capacidade da infraestrutura ferroviária à aplicação de taxas de utilização da infraestrutura ferroviária e à certificação da segurança (JO L 75, p. 29), conforme alterada, pela última vez, pela Diretiva 2007/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2007 (JO L 315, p. 44, a seguir «Diretiva 2001/14»).

 Quadro jurídico

 Direito da União

2        Nos termos do artigo 3.° da Diretiva 91/440:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

¾        ‘empresa de transporte ferroviário’: qualquer empresa de estatuto privado ou público, detentora de licença nos termos da legislação comunitária aplicável, cuja atividade principal consista na prestação de serviços de transporte de mercadorias e/ou de passageiros por caminho de ferro, devendo a tração ser obrigatoriamente assegurada por essa empresa, incluindo empresas que apenas aprestem serviços de tração,

[...]»

3        O artigo 4.°, n.° 1, desta diretiva, que figura na sua secção II, epigrafada «Independência de gestão», dispõe:

«Os Estados‑Membros devem tomar as medidas necessárias para assegurar que as empresas de transporte ferroviário sejam dotadas de um estatuto autónomo em matéria de gestão, administração e controlo administrativo, económico e contabilístico interno, por força do qual disponham, nomeadamente, de um património, um orçamento e uma contabilidade separados dos do Estado.»

4        O artigo 5.°, n.° 3, da referida diretiva prevê:

«No âmbito das linhas de orientação de política geral adotadas pelo Estado e tendo em conta os planos ou contratos nacionais, eventualmente plurianuais, incluindo os planos de investimento e de financiamento, as empresas de transporte ferroviário podem, nomeadamente:

[...]

―      tomar decisões relativamente ao pessoal, aos ativos e às aquisições próprias;

[...]»

5        O artigo 7.°, n.° 3, da mesma diretiva dispõe:

«Os Estados‑Membros podem, além disso, conceder ao gestor da infraestrutura, na observância dos artigos 73.°, 87.° e 88.° do Tratado, um financiamento proporcional às funções, à dimensão e às necessidades financeiras, designadamente para cobrir novos investimentos.»

6        Nos termos do artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14:

«Os Estados‑Membros devem definir as condições necessárias, incluindo, se for caso disso, pagamentos adiantados, para assegurar que, em condições normais de atividade e ao longo de um período de tempo razoável, as contas do gestor da infraestrutura apresentem pelo menos um equilíbrio entre as receitas provenientes das taxas de utilização da infraestrutura, os excedentes provenientes de outras atividades comerciais e o financiamento estatal, por um lado, e as despesas da infraestrutura, por outro.

Sem prejuízo do eventual objetivo, a longo prazo, de cobertura pelo utilizador dos custos de infraestrutura de todos os modos de transporte com base numa concorrência intermodal equitativa e não discriminatória, sempre que o transporte ferroviário esteja em condições de concorrer com outros modos, no quadro da tarificação prevista nos artigos 7.° e 8.°, os Estados‑Membros podem exigir ao gestor da infraestrutura que equilibre as suas contas sem beneficiar de financiamento estatal.»

 Direito português

7        O Decreto‑Lei n.° 104/97, de 29 de abril de 1997 (Diário da República, I série‑A, n.° 99, de 29 de abril de 1997), procedeu à criação da REFER. Os seus estatutos estão publicados no Anexo I deste decreto‑lei.

8        O artigo 12.°, n.° 2, do referido decreto‑lei determina, segundo a sua epígrafe, o objeto e o âmbito de aplicação dos referidos estatutos, nos seguintes termos:

«O Governo acompanhará a evolução futura da situação da empresa, por forma a salvaguardar o seu equilíbrio económico‑financeiro, bem como o serviço das dívidas constituídas para a construção, instalação e renovação da infraestrutura ferroviária, em termos que não importem prejuízo para a prossecução de adequadas políticas de modernização ferroviária.»

9        O Decreto‑Lei n.° 270/2003, de 28 de outubro de 2003 (Diário da República, I série‑A, n.° 250, de 28 de outubro de 2003), define as condições da prestação dos serviços de transporte ferroviário por caminho de ferro e de gestão da infraestrutura ferroviária. Este decreto‑lei rege, em especial, o equilíbrio das contas do gestor da infraestrutura em conformidade com as disposições do seu artigo 63.°, que prevê que:

«1.      As contas do gestor da infraestrutura devem apresentar um equilíbrio entre:

a)      Os proveitos provenientes das tarifas pela utilização da infraestrutura, os excedentes provenientes de outras atividades comerciais e o financiamento estatal, se necessário por via de pagamentos adiantados; e

b)      Os custos do serviço público de gestão, manutenção e conservação da infraestrutura.

2.      Sem prejuízo do eventual objetivo a longo prazo, de cobertura tendencial, pelo utilizador, dos custos de infraestrutura, em todos os modos de transporte com base numa concorrência intermodal equitativa e não discriminatória, sempre que o transporte ferroviário esteja em condições de concorrer com outros modos de transporte, nomeadamente quando exista um nível equivalente de internalização dos custos ambientais nos outros modos de transporte, no quadro da tarifação prevista no presente capítulo, o gestor da infraestrutura deve atingir o equilíbrio referido no n.° 1 sem beneficiar de financiamento estatal.

3.      Para aferição do equilíbrio referido no n.° 1 e como forma de determinar a necessidade de compensações por parte do Estado ao serviço público de gestão da infraestrutura deve ser adotado um método de imputação que demonstre, de forma transparente, que são apenas considerados os custos com a atividade de gestão, manutenção, conservação e disponibilização da infraestrutura.

[...]

7.      Para efeitos da alínea b) do n.° 1 do presente artigo, não são considerados como custos do serviço público de gestão da infraestrutura os custos financeiros e extraordinários.

8.      Os custos extraordinários decorrentes de calamidade natural deverão ser compensados pelo Estado.»

10      O Decreto‑Lei n.° 300/2007, de 23 de agosto de 2007 (Diário da República, 1.a série‑A, n.° 162, de 23 de agosto de 2007), alterou o regime aplicável ao setor concorrencial do Estado e às empresas públicas em Portugal.

11      O artigo 10.° deste decreto‑lei dispõe:

«1.      Os direitos do Estado como acionista são exercidos através da Direção‑Geral do Tesouro e Finanças, sob a direção do Ministro das Finanças, que pode delegar, em conformidade com as orientações previstas no artigo seguinte e mediante a prévia coordenação, por despacho conjunto, com os ministros responsáveis pelo setor.

[...]

3.      Os direitos referidos nos números anteriores podem ser exercidos indiretamente, através de sociedades de capitais exclusivamente públicos.»

12      O artigo 37.°, n.° 1, do referido decreto‑lei precisa, no que diz respeito à constituição de sociedades e à aquisição ou à alienação de partes de capital:

«[A] participação do Estado ou de outras entidades públicas estaduais, bem como das empresas públicas, na constituição de sociedades e na aquisição ou alienação de partes de capital está sujeita a autorização do Ministro das Finanças e do ministro responsável pelo setor [...].

[...]»

13      O Decreto‑Lei n.° 137‑A/2009, de 12 de junho de 2009 (Diário da República, 1.a série, n.° 112, suplemento, de 12 de junho de 2009), determina o objeto social e o regime jurídico aplicável à CP. Este decreto‑lei fixa, no seu Anexo I, os estatutos que regem a referida empresa.

14      O artigo 2.° do referido decreto‑lei está redigido nos seguintes termos:

«Natureza jurídica

A [CP] é uma entidade pública empresarial com personalidade jurídica, dotada de autonomia administrativa e financeira e de património próprio, estando sujeita a tutela e superintendência dos membros do Governo responsáveis pela área das finanças e pelo setor dos transportes.»

15      O artigo 1.°, n.° 1, dos Estatutos da CP, sob a epígrafe «Denominação e sede», dispõe:

«A [CP] é uma entidade pública empresarial, dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial, com capacidade jurídica que abrange todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu objeto.»

16      O objeto social da CP está definido no artigo 2.° dos Estatutos. Nos termos desta disposição:

«1.      A [CP] tem por objeto principal a prestação de serviços de transporte ferroviário de passageiros e de mercadorias em linhas férreas, troços de linha e ramais que integram ou venham a integrar a rede ferroviária nacional.

[...]

3.      A [CP] pode ainda, acessoriamente, exercer as seguintes atividades [...]

4.      No exercício do objeto definido no número anterior, a [CP] pode:

a)      Constituir sociedades ou adquirir partes de capital, nos termos da lei;

[...]»

17      Por força do artigo 9.° dos referidos Estatutos, a CP detém as competências seguintes:

«1.      Compete ao conselho de administração exercer os mais amplos poderes de gestão e representação da empresa, nos termos da lei e dos Estatutos.

2.      Compete, em especial, ao conselho de administração:

[...]

l)      Deliberar sobre a constituição de sociedades e sobre a aquisição ou alienação de partes de capital, nos termos da lei;

[...]»

18      O artigo 21.° faz parte do capítulo IV, intitulado «Tutela», dos mesmos Estatutos. Este artigo prevê, sob a epígrafe «Orientações de gestão»:

«1.      Cabe ao Governo definir, nos termos da lei, os objetivos gerais a prosseguir pela [CP], de modo a assegurar a sua harmonização com as políticas globais e setoriais definidas na lei.

2.      O Governo acompanha a evolução da situação da empresa, por forma a assegurar os níveis adequados da satisfação das necessidades da coletividade, a salvaguardar o seu equilíbrio económico‑financeiro, de modo a garantir a prossecução de adequadas políticas de modernização do transporte ferroviário.»

 Procedimento pré‑contencioso

19      Na sua notificação para cumprir de 26 de janeiro de 2008, a Comissão chamou a atenção das autoridades portuguesas para as dúvidas que tinha a propósito da compatibilidade com o direito da União da legislação nacional que transpôs, designadamente, as Diretivas 91/440 e 2001/14. As autoridades portuguesas responderam à notificação para cumprir, apresentando informações e argumentos relativos à observância destas diretivas pela legislação portuguesa.

20      Por carta de 9 de outubro de 2009, a Comissão dirigiu às autoridades portuguesas um parecer fundamentado, no qual considerava, porém, que a República Portuguesa não tinha cumprido as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 5.°, n.° 3, e 7.°, n.° 3, da Diretiva 91/440 e do artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14.

21      Em 14 de dezembro de 2009, as autoridades portuguesas responderam ao parecer fundamentado, prestando diversos esclarecimentos.

22      Não tendo ficado satisfeita com a resposta das autoridades portuguesas, a Comissão decidiu intentar a presente ação.

 Quanto à ação

 Quanto ao pedido de suspensão da instância

23      O Governo português apresentou, a título principal, argumentos destinados a contestar o incumprimento alegado e pediu ao Tribunal de Justiça, a título subsidiário, que suspendesse a instância até 31 de dezembro de 2011, data em que deveriam entrar em vigor as medidas legislativas e contratuais que, segundo este Estado‑Membro, reforçariam a independência da gestão das empresas de transporte ferroviário em relação ao Estado e alterariam o regime de tarificação da infraestrutura ferroviária.

24      Há que recordar que, segundo jurisprudência constante, a existência de um incumprimento deve ser apreciada em função da situação do Estado‑Membro tal como se apresentava no termo do prazo fixado no parecer fundamentado e que as alterações verificadas posteriormente não podem ser tomadas em consideração pelo Tribunal (v., nomeadamente, acórdãos de 27 de setembro de 2007, Comissão/França, C‑9/07, n.° 8, e de 18 de novembro de 2010, Comissão/Espanha, C‑48/10).

25      Assim, os argumentos apresentados pelo Governo português devem ser examinados em função da situação existente no termo do prazo fixado no parecer fundamentado e ser afastados na medida em que se referem ao desenvolvimento posterior da legislação nacional.

26      Por conseguinte, o pedido de suspensão da instância deve ser indeferido.

 Quanto à primeira acusação, relativa à violação do artigo 5.°, n.° 3, da Diretiva 91/440

 Argumentação das partes

27      A Comissão alega que a legislação portuguesa que sujeita a CP à tutela e à superintendência dos membros do Governo é contrária ao artigo 5.°, n.° 3, da Diretiva 91/440.

28      Esta instituição baseia‑se, em especial, no facto de que, por força da legislação nacional, o Estado português obriga a que as decisões individuais de aquisição ou de alienação de participações no capital de sociedades pela CP dependam da aprovação do Governo.

29      A exigência de uma autorização prévia do Governo para que as empresas de transporte ferroviário pratiquem certo tipo de atos não permite considerar que essas empresas sejam independentes ou gozem de um estatuto de autonomia em relação ao Estado e de liberdade de ação para gerir as suas atividades internas, como exigido pelo direito da União.

30      Com efeito, resulta claramente do artigo 5.°, n.° 3, da Diretiva 91/440 que as decisões individuais de alienação ou de aquisição de ativos não podem ser influenciadas pelo Estado. É certo que o mesmo artigo declara que tais decisões devem ser tomadas no âmbito das linhas de orientação de política geral adotadas pelo Estado, mas estas linhas de orientação podem apenas definir os critérios a ter em conta nas decisões.

31      A Comissão considera igualmente que a intervenção do Governo na gestão da CP transcende o mero exercício dos direitos como acionista, uma vez que o Estado acionista intervém através do controlo exercido pelos Ministros das Finanças e dos Transportes, com base num conjunto separado de regras aplicáveis à totalidade do setor público.

32      O Governo português contesta as conclusões da Comissão. Sustenta que a exigência de autorização ministerial para a aquisição ou a alienação de partes de capital se aplica a todo o tipo de empresas públicas. Essa exigência está ligada ao papel do Estado enquanto detentor de capital. O Governo português acrescenta que a deliberação de compra ou venda de participações sociais se desenvolve no seio das instâncias próprias da empresa, de modo que a autonomia de gestão da empresa ferroviária é garantida em conformidade com as exigências do artigo 5.°, n.° 3, da Diretiva 91/440.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

33      Importa observar, como salientou o advogado‑geral no n.° 28 das suas conclusões, que as Diretivas 91/440 e 2001/14 não impõem a privatização dos caminhos de ferro. Pelo contrário, o artigo 3.° da Diretiva 91/440 define a «empresa de transporte ferroviário» como «qualquer empresa de estatuto privado ou público». Consequentemente, o operador histórico do setor ferroviário pode continuar a ser público.

34      Por outro lado, o artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 91/440, que figura na secção II desta, intitulada «Independência de gestão», prevê que as empresas de transporte ferroviário são «dotadas de um estatuto autónomo [...], por força do qual disponham, nomeadamente, de um património, um orçamento e uma contabilidade separados dos do Estado».

35      Em substância, a Comissão acusa a República Portuguesa de ter um sistema que faz depender de autorização prévia do Ministro dos Transportes a aquisição ou a alienação de ações pela CP, tendo esta conservado um estatuto exclusivamente público, como resulta do artigo 37.°, n.° 1, do Decreto‑Lei n.° 300/2007. Ora, sendo necessária uma autorização prévia do Governo para que as empresas de transporte ferroviário pratiquem certo tipo de atos, não se pode considerar que essas empresas sejam independentes ou gozem de um estatuto de autonomia em relação ao Estado, pelo que não são livres de gerir as suas próprias atividades.

36      A Comissão considera que do artigo 5.°, n.° 3, da Diretiva 91/440 resulta claro que decisões individuais sobre a alienação ou a aquisição de ativos não podem ser influenciadas pelo Estado. Com efeito, a referida disposição prevê que as empresas ferroviárias podem, em especial, tomar livremente decisões relativas ao pessoal, aos ativos e às aquisições próprias.

37      A este propósito, o terceiro considerando da Diretiva 91/440, bem como o considerando 8 da Diretiva 2001/12, que altera a Diretiva 91/440, estabelecem a necessidade de garantir às empresas de transporte ferroviário um estatuto independente do Estado e a liberdade de gerir as suas próprias atividades.

38      Ora, como o advogado‑geral sublinha no n.° 33 das suas conclusões, embora o artigo 5.°, n.° 3, da Diretiva 91/440 permita aos Estados‑Membros estabelecer linhas de orientação de política geral, também é verdade que, tendo em conta o objetivo da independência de gestão das empresas de transporte ferroviário, o Estado não deve influenciar as decisões individuais destas no que respeita à alienação ou à aquisição de ativos.

39      Acrescente‑se que, ao subordinar qualquer decisão individual de aquisição ou de alienação de participações no capital de sociedades à aprovação do Governo, a legislação portuguesa sujeitou a CP a um controlo externo de natureza política, que de modo nenhum corresponde às modalidades e aos meios de ação e de controlo de que dispõem os acionistas de uma sociedade de ações de direito privado.

40      Consequentemente, há que concluir que o Estado português conservou um papel determinante nos processos decisórios internos das empresas ferroviárias, que não é compatível com a liberdade reconhecida à empresa de transporte ferroviário de tomar decisões relativas aos ativos por ela geridos.

41      Por outro lado, embora a República Portuguesa tenha suprimido, numa proposta de lei que ainda não tinha sido adotada no termo do prazo fixado no parecer fundamentado, a condição da autorização prévia, recorde‑se que, segundo a jurisprudência referida no n.° 24 do presente acórdão, a existência de um incumprimento deve ser apreciada em função da situação do Estado‑Membro tal como se apresentava no termo do prazo fixado no parecer fundamentado, e as alterações verificadas não podem ser tomadas em consideração pelo Tribunal.

42      Nestas condições, há que considerar procedente a primeira acusação da Comissão.

 Quanto à segunda acusação, relativa à violação do artigo 7.°, n.° 3, da Diretiva 91/440 e do artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14

 Argumentação das partes

43      A Comissão recorda que o artigo 7.°, n.° 3, da Diretiva 91/440 e o artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14 impõem aos Estados‑Membros a obrigação de definir as condições adequadas para assegurar que as contas do gestor da infraestrutura apresentem equilíbrio. Ora, a Comissão considera que, em Portugal, as receitas provenientes das taxas de utilização da infraestrutura, o financiamento estatal e os rendimentos de outras atividades comerciais são insuficientes para equilibrar as contas do gestor da infraestrutura, a REFER.

44      A Comissão afirma que, apesar das disposições legais nacionais que impõem ao Estado português a obrigação de acompanhar a evolução da empresa gestora da infraestrutura com vista a salvaguardar o seu equilíbrio económico‑financeiro bem como a obrigação de acompanhar a evolução da situação financeira do gestor da infraestrutura, a situação de desequilíbrio financeiro da REFER não evoluiu de forma positiva.

45      O Governo português confirma que se comprometeu a estabelecer com a REFER, por via de contratualização plurianual, níveis de serviço público em matéria de gestão da infraestrutura e a determinar a correspondente compensação financeira. Seria, deste modo, possível atingir o equilíbrio das contas da REFER, que definiria determinados níveis de qualidade operacional e técnica, enquanto o poder público se comprometeria a atribuir montantes compatíveis com o volume de investimento necessário e a natureza do serviço público.

46      O Governo português salienta que está previsto contratualizar com a CP e a REFER os serviços públicos, tendo em conta, em primeiro lugar, a definição clara das obrigações de serviço público, em segundo lugar, a necessidade de racionalizar ou de reduzir os custos operacionais e, em terceiro lugar, a necessária convergência, gradual e progressiva, do serviço público em causa e da respetiva compensação financeira.

47      Por último, o Governo português sustenta que lançou um procedimento que levará à aprovação de medidas legislativas destinadas, por um lado, a reforçar a independência da gestão da empresa de transporte ferroviário em relação ao Estado e, por outro, a promover o equilíbrio das contas do gestor da infraestrutura através da adoção das medidas necessárias, designadamente alterando o regime de tarificação da infraestrutura ferroviária e fixando contratualmente com a REFER os direitos e obrigações relativos à construção, à manutenção e ao financiamento da infraestrutura.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

48      Importa observar que a República Portuguesa não contesta que, no termo do prazo fixado no parecer fundamentado, não tinha tomado as medidas necessárias para dar cumprimento às obrigações referidas no artigo 7.°, n.° 3, da Diretiva 91/440 e no artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14, que impõem aos Estados‑Membros a obrigação de definir as condições adequadas para assegurar que as contas do gestor da infraestrutura apresentem equilíbrio.

49      Ora, como já se afirmou nos n.os 24 e 25 do presente acórdão, o Tribunal deve apreciar os factos, tendo em conta a situação no termo do prazo fixado no parecer fundamentado.

50      Nestas condições, há que considerar procedente a segunda acusação da Comissão.

 Quanto às despesas

51      Por força do disposto no artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da República Portuguesa nas despesas e tendo esta sido vencida, há que a condenar nas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) decide:

1)      Ao fazer depender de aprovação governamental as decisões individuais de aquisição ou de alienação de participações no capital de sociedades pela empresa pública de transporte ferroviário CP ― Comboios de Portugal, EPE, e ao não tomar as medidas nacionais necessárias para dar cumprimento à obrigação de definir as condições adequadas para assegurar que as contas do gestor da infraestrutura, a Rede Ferroviária Nacional ― REFER, EP, apresentem equilíbrio, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força, por um lado, do artigo 5.°, n.° 3, da Diretiva 91/440/CEE do Conselho, de 29 de julho de 1991, relativa ao desenvolvimento dos caminhos de ferro comunitários, conforme alterada pela Diretiva 2001/12/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2001, e, por outro, do artigo 7.°, n.° 3, da Diretiva 91/440, conforme alterada pela Diretiva 2001/12, e do artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2001, relativa à repartição de capacidade da infraestrutura ferroviária, à aplicação de taxas de utilização da infraestrutura ferroviária e à certificação da segurança, conforme alterada pela Diretiva 2007/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2007.

2)      A República Portuguesa é condenada nas despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: português.