Language of document : ECLI:EU:C:2012:531

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

6 de setembro de 2012 (*)

«Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (CE) n.° 44/2001 — Execução — Fundamentos de recurso — Falta de notificação do ato que iniciou a instância — Controlo pelo juiz requerido — Alcance — Valor das informações que figuram na certidão — Violação da ordem pública — Decisão judiciária desprovida de fundamentação»

No processo C‑619/10,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Augstākās tiesas Senāts (Letónia), por decisão de 10 de dezembro de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 29 de dezembro de 2010, no processo

Trade Agency Ltd

contra

Seramico Investments Ltd,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Tizzano (relator), presidente de secção, M. Safjan, M. Ilešič, E. Levits e M. Berger, juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 8 de fevereiro de 2012,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação da Trade Agency Ltd, por V. Tihonovs, zvērināts advokāts,

¾        em representação da Seramico Investments Ltd, por J. Salims, zvērināts advokāts,

¾        em representação do Governo letão, por M. Borkoveca, A. Nikolajeva e I. Kalniņš, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo alemão, por T. Henze e J. Kemper, na qualidade de agentes,

¾        em representação da Irlanda, por D. O’Hagan, na qualidade de agente, assistido por A. Collins, SC,

¾        em representação do Governo francês, por G. de Bergues, B. Beaupère‑Manokha e N. Rouam, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por P. Gentili, avvocato dello Stato,

¾        em representação do Governo lituano, por D. Kriaučiūnas e R. Krasuckaitė, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo neerlandês, por C. M. Wissels e B. Koopman, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo polaco, por M. Szpunar, M. Arciszewski e B. Czech, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo do Reino Unido, por S. Hathaway, na qualidade de agente, assistido por A. Henshaw, barrister,

¾        em representação da Comissão Europeia, por A.‑M. Rouchaud‑Joët e A. Sauka, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 26 de abril de 2012,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 34.°, n.os 1 e 2, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Trade Agency Ltd (a seguir «Trade Agency») à Seramico Investments Ltd (a seguir «Seramico») a propósito do reconhecimento e da execução, na Letónia e ao abrigo do Regulamento n.° 44/2001, de uma decisão proferida à revelia pela High Court of Justice (England & Wales), Queen’s Bench Division (Reino Unido).

 Quadro jurídico

Regulamento n.° 44/2001

3        O décimo sexto a décimo oitavo considerandos do Regulamento n.° 44/2001 enunciam:

«(16) A confiança recíproca na administração da justiça no seio da Comunidade justifica que as decisões judiciais proferidas num Estado‑Membro sejam automaticamente reconhecidas, sem necessidade de recorrer a qualquer procedimento, exceto em caso de impugnação.

(17)      A mesma confiança recíproca implica a eficácia e a rapidez do procedimento para tornar executória num Estado‑Membro uma decisão proferida noutro Estado‑Membro. Para este fim, a declaração de executoriedade de uma decisão deve ser dada de forma quase automática, após um simples controlo formal dos documentos fornecidos, sem a possibilidade de o tribunal invocar por sua própria iniciativa qualquer dos fundamentos previstos pelo presente regulamento para uma decisão não ser executada.

(18) O respeito pelos direitos de defesa impõe, todavia, que o requerido possa interpor recurso, examinado de forma contraditória, contra a declaração de executoriedade, se entender que é aplicável qualquer fundamento para a não execução. Também deve ser dada ao requerente a possibilidade de recorrer, se lhe for recusada a declaração de executoriedade.»

4        O artigo 34.°, n.os 1 e 2, deste regulamento dispõe:

«Uma decisão não será reconhecida:

1.      Se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro requerido;

2.      Se o ato que iniciou a instância, ou ato equivalente, não tiver sido comunicado ou notificado ao requerido revel, em tempo útil e de modo a permitir‑lhe a defesa, a menos que o requerido não tenha interposto recurso contra a decisão embora tendo a possibilidade de o fazer.»

5        O artigo 35.° do referido regulamento prevê:

«1.      As decisões não serão igualmente reconhecidas se tiver sido desrespeitado o disposto nas secções 3, 4 e 6 do título II ou no caso previsto no artigo 72.°

2.      Na apreciação das competências referidas no parágrafo anterior, a autoridade requerida estará vinculada às decisões sobre a matéria de facto com base nas quais o tribunal do Estado‑Membro de origem tiver fundamentado a sua competência.

3.      Sem prejuízo do disposto nos primeiros e segundo parágrafos, não pode proceder‑se ao controlo da competência dos tribunais do Estado‑Membro de origem. As regras relativas à competência não dizem respeito à ordem pública a que se refere o ponto 1 do artigo 34.°»

6        O artigo 36.° do mesmo regulamento dispõe:

«As decisões estrangeiras não podem, em caso algum, ser objeto de revisão de mérito.»

7        O artigo 41.° do Regulamento n.° 44/2001 tem a seguinte redação:

«A decisão será imediatamente declarada executória quando estiverem cumpridos os trâmites previstos no artigo 53.°, sem verificação dos motivos referidos nos artigos 34.° e 35.° A parte contra a qual a execução é promovida não pode apresentar observações nesta fase do processo.»

8        O artigo 42.° deste regulamento prevê:

«1.      A decisão sobre o pedido de declaração de executoriedade será imediatamente levada ao conhecimento do requerente, na forma determinada pela lei do Estado‑Membro requerido.

2.      A declaração de executoriedade será notificada à parte contra quem é pedida a execução, e será acompanhada da decisão, se esta não tiver sido já notificada a essa parte.»

9        O artigo 43.° do mesmo regulamento dispõe:

«1.      Qualquer das partes pode interpor recurso da decisão sobre o pedido de declaração de executoriedade.

2.      O recurso é interposto junto do tribunal indicado na lista constante do Anexo III.

3.      O recurso é tratado segundo as regras do processo contraditório.

4.      Se a parte contra a qual a execução é promovida não comparecer perante o tribunal de recurso nas ações relativas a um recurso interposto pelo requerente, aplica‑se o disposto nos n.os 2 a 4 do artigo 26.°, mesmo que a parte contra a qual a execução é promovida não tenha domicílio no território de um Estado‑Membro.

5.      O recurso da declaração de executoriedade é interposto no prazo de um mês a contar da sua notificação. Se a parte contra a qual a execução é promovida tiver domicílio num Estado‑Membro diferente daquele onde foi proferida a declaração de executoriedade, o prazo será de dois meses e começará a correr desde o dia em que tiver sido feita a citação pessoal ou domiciliária. Este prazo não é suscetível de prorrogação em razão da distância.»

10      O artigo 45.° do Regulamento n.° 44/2001 prevê:

«1.      O tribunal onde foi interposto o recurso ao abrigo dos artigos 43.° ou 44.° apenas recusará ou revogará a declaração de executoriedade por um dos motivos especificados nos artigos 34.° e 35.° Este tribunal decidirá sem demora.

2.      As decisões estrangeiras não podem, em caso algum, ser objeto de revisão de mérito.»

11      O artigo 54.° do referido regulamento tem a seguinte redação:

«O tribunal ou a autoridade competente do Estado‑Membro onde tiver sido proferida uma decisão emitirá, a pedido de qualquer das partes interessadas, uma certidão segundo o formulário uniforme constante do Anexo V ao presente regulamento.»

12      O artigo 55.° do mesmo regulamento enuncia:

«1.      Na falta de apresentação da certidão referida no artigo 54.°, o tribunal ou a autoridade competente pode fixar um prazo para a sua apresentação ou aceitar documentos equivalentes ou, se se julgar suficientemente esclarecida, dispensá‑los.

2.      Deve ser apresentada uma tradução dos documentos desde que o tribunal ou a autoridade competente a exija; a tradução deve ser autenticada por pessoa habilitada para o efeito num dos Estados‑Membros.»

13      O Anexo V do Regulamento n.° 44/2001 prevê, no ponto 4.4, que a certidão redigida pelos tribunais do Estado‑Membro onde uma decisão tenha sido proferida indica a «[d]ata da citação ou notificação do ato que determinou o início da instância, no caso de a decisão ter sido proferida à revelia».

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

14      A Seramico intentou, na High Court, uma ação visando a condenação da Trade Agency e da Hill Market Management LLP no pagamento de uma quantia de 289 122,10 GBP.

15      Como resulta dos autos e segundo as informações prestadas pela High Court, o ato que iniciou a instância tinha sido notificado às demandadas em 10 de setembro de 2009.

16      Todavia, não tendo a Trade Agency apresentado qualquer contestação, a High Court, em 8 de outubro de 2009, proferiu uma decisão à revelia, condenando a referida sociedade com base nos seguintes fundamentos: «A demandada não contestou a ação para a qual foi citada. Consequentemente, é condenada a pagar à demandante 289 122,10 GBP, acrescid[a]s dos juros vencidos até à data da presente decisão, e das despesas, no valor de 130 GBP. A demandada deve pagar à demandante um valor total de 293 582,98 GBP».

17      Em 28 de outubro de 2009, o Rīgas pilsētas Ziemļu rajona tiesa (Tribunal da área Norte da cidade de Riga) (Letónia) foi chamado a pronunciar‑se pela Seramico a respeito de um pedido de reconhecimento e execução, na Letónia, da decisão proferida pela High Court. Seguiu em anexo a esse pedido uma cópia da referida decisão, acompanhada da certidão redigida em conformidade com o artigo 54.° do Regulamento n.° 44/2001 (a seguir «certidão»).

18      O Rīgas pilsētas Ziemļu rajona tiesa julgou procedente o referido pedido por decisão de 5 de novembro de 2009.

19      Em 3 de março de 2010, o Rīgas apgabaltiesas Civillietu tiesas kolēģija (secção cível do Tribunal Regional de Riga) (Letónia) negou provimento ao recurso interposto desta decisão pela Trade Agency.

20      Esta sociedade recorreu então para o Augstākās tiesas Senāts [Senado do Supremo Tribunal (instância de cassação)], alegando que o pedido de reconhecimento e execução, na Letónia, da decisão da High Court devia ser julgado improcedente, pelo facto de, por um lado, terem sido violados os seus direitos de defesa durante a tramitação do processo no Reino Unido, uma vez que não tinha sido informada da propositura da ação na High Court, e, por outro, de a decisão adotada por esta última ser manifestamente contrária à ordem pública letã, na medida em que não tinha qualquer fundamentação.

21      A este respeito, o Augstākās tiesas Senāts observou, em primeiro lugar, que se afigura claro, à luz da ratio do artigo 54.° do Regulamento n.° 44/2001, que, quando uma decisão estrangeira é acompanhada da certidão, o juiz chamado a pronunciar‑se sobre o pedido de execução deve limitar‑se, tendo em conta designadamente o princípio da confiança recíproca na justiça, enunciado no décimo sexto e décimo sétimo considerandos do referido regulamento, a fazer referência às informações que figuram nessa certidão no que respeita à notificação do requerido, sem exigir outras provas.

22      Todavia, referindo‑se ao acórdão de 14 de dezembro de 2006, ASML (C‑283/05, Colet., p. I‑12041, n.° 29), esse tribunal observa que tal conclusão parece contrariar a jurisprudência do Tribunal de Justiça que admite, à luz do sistema estabelecido pelo Regulamento n.° 44/2001, que o respeito dos direitos do demandado revel seja assegurado pelo duplo controlo, efetuado igualmente pelo tribunal competente para se pronunciar sobre o pedido de reconhecimento ou de execução da decisão estrangeira.

23      Em segundo lugar, quanto à violação da ordem pública letã, o Augstākās tiesas Senāts constatou a existência de uma relação entre esta e os direitos fundamentais protegidos quer pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH») quer pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

24      Em particular, considerando que o artigo 6.°, n.° 1, da CEDH, a que corresponde o artigo 47.° da Carta, foi interpretado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no sentido de que impõe aos juízes nacionais uma obrigação de indicar nas suas decisões os motivos pelos quais estas últimas foram adotadas, o órgão jurisdicional de reenvio considera que devia ser possível, na aceção do artigo 34.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, recusar reconhecer uma decisão estrangeira que viole tal obrigação. Todavia, subsistem dúvidas quanto ao facto de saber se uma decisão, como a que está em causa no processo principal, desprovida de qualquer argumento quanto ao mérito do pedido, é efetivamente contrária ao referido artigo 47.°

25      Nestas condições, o Augstākās tiesas Senāts decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)       No caso de uma decisão de um tribunal estrangeiro ser acompanhada pela certidão, […] mas, apesar disso, o demandado deduzir oposição alegando que não foi citado na ação intentada no Estado‑Membro de origem, o tribunal do Estado‑Membro requerido é competente, no âmbito da apreciação do motivo de recusa de reconhecimento previsto no artigo 34.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001, para verificar ele próprio a conformidade da informação constante da certidão com os elementos de prova? A atribuição de uma competência tão ampla a um tribunal do Estado‑Membro requerido é compatível com o princípio da confiança recíproca na administração da justiça constante [do] décimo sexto e décimo sétimo considerandos do Regulamento n.° 44/2001?

2)       Uma decisão proferida à revelia, através da qual se decide do mérito de um litígio sem analisar o objeto da ação nem os respetivos fundamentos e que não apresenta qualquer argumentação sobre a respetiva fundamentação de mérito, está em conformidade com o artigo 47.° da Carta e não viola o direito do demandado a um processo equitativo, previsto na referida disposição?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

26      Com a sua primeira questão, o Augstākās tiesas Senāts pergunta, no essencial, se o artigo 34.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001, para o qual remete o artigo 45.°, n.° 1, deste regulamento, lido em conjugação com o décimo sexto e décimo sétimo considerandos do referido regulamento, deve ser interpretado no sentido de que, quando o requerido interponha recurso da declaração de executoriedade de uma decisão proferida à revelia no Estado‑Membro de origem e acompanhada da certidão, alegando que não tinha recebido notificação do ato que dá início à instância, o juiz do Estado‑Membro requerido, competente para apreciar o recurso, é competente para verificar a concordância entre as informações que figuram na referida certidão e as provas.

27      A fim de responder a esta questão, há que interpretar o artigo 34.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001 à luz não apenas da redação desta disposição mas igualmente do sistema estabelecido por este regulamento e dos objetivos que o mesmo prossegue.

28      No que diz respeito ao sistema estabelecido pelo referido regulamento, resulta do décimo sétimo considerando deste último que o procedimento que visa atribuir força executória, no Estado‑Membro requerido, a uma decisão proferida noutro Estado‑Membro apenas pode implicar um simples controlo formal dos documentos exigidos para a atribuição da força executória no Estado‑Membro requerido (v. acórdão de 13 de outubro de 2011, Prism Investments, C‑139/10, Colet., p. I‑9511, n.° 28).

29      Na sequência da apresentação desse pedido, como resulta do artigo 41.° do Regulamento n.° 44/2001, as autoridades do Estado‑Membro requerido devem, numa primeira fase do processo, limitar‑se a controlar o cumprimento destas formalidades para efeitos da emissão da declaração de executoriedade dessa decisão. Consequentemente, neste procedimento, não podem efetuar nenhuma análise dos elementos de facto e de direito do litígio dirimido pela decisão cuja execução é requerida (v. acórdão Prism Investments, já referido, n.° 30).

30      Em aplicação do artigo 42.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001, esta declaração de executoriedade deve contudo ser comunicada ou notificada à parte contra a qual a execução é pedida, acompanhada, eventualmente, da decisão proferida no Estado‑Membro de origem se esta não foi ainda transmitida ou notificada a essa parte.

31      Assim, em conformidade com o artigo 43.° do Regulamento n.° 44/2001, a referida declaração de executoriedade pode ser objeto, numa segunda fase do processo, de um recurso jurisdicional interposto pelo demandado em causa. Os fundamentos de recurso que podem ser invocados são expressamente enunciados, de forma exaustiva, nos artigos 34.° e 35.° deste regulamento, para os quais remete o artigo 45.° deste último (v., neste sentido, acórdão Prism Investments, já referido, n.os 32 e 33).

32      Tratando‑se precisamente do fundamento mencionado no artigo 34.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001, para o qual remete o artigo 45.°, n.° 1, deste último, há que concluir que visa assegurar o respeito dos direitos do requerido revel na pendência do processo iniciado no Estado‑Membro de origem através de um sistema de dupla fiscalização (v. acórdão ASML, já referido, n.° 29). Por força deste sistema, o juiz do Estado‑Membro requerido deve recusar ou revogar, em caso de recurso, a execução de uma decisão estrangeira proferida à revelia, se o ato que iniciou a instância ou ato equivalente não tiverem sido comunicados ou notificados ao requerido revel, em tempo útil e de modo a permitir‑lhe a defesa, a menos que o requerido não tenha interposto recurso da decisão nos tribunais do Estado‑Membro de origem, embora tivesse tido a possibilidade de o fazer.

33      Ora, neste contexto, é pacífico que o facto de saber se o referido requerido recebeu notificação do ato que dá início à instância constitui um elemento pertinente da apreciação global, de natureza factual (v., neste sentido, acórdão de 16 de junho de 1981, Klomps, 166/80, Recueil, p. 1593, n.os 15 e 18), que deve ser conduzida pelo juiz do Estado‑Membro requerido, a fim de verificar se esse demandado dispôs do tempo necessário para preparar a sua defesa ou levar a cabo as diligências necessárias para evitar uma decisão proferida à revelia.

34      Como tal, importa ter presente que o facto de a decisão estrangeira ser acompanhada da certidão não pode limitar o alcance da apreciação que deve ser efetuada, por força do duplo controlo, pelo juiz do Estado‑Membro requerido, uma vez que analisa o fundamento de recurso mencionado no artigo 34.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001.

35      Com efeito, antes de mais, impõe‑se concluir que, como observou a advogada‑geral no n.° 31 das suas conclusões, nenhuma disposição do Regulamento n.° 44/2001 proíbe expressamente ao tribunal do Estado‑Membro requerido verificar a exatidão das informações factuais contidas na certidão, dado que os artigos 36.° e 45.°, n.° 2, deste regulamento limitam a proibição da revisão de mérito unicamente à decisão judicial do Estado‑Membro de origem.

36      Em seguida, há que observar, como sublinhou a advogada‑geral no n.° 35 das suas conclusões, que, na medida em que o tribunal ou a autoridade competente para emitir essa certidão não coincide necessariamente com o órgão que proferiu a decisão cuja execução é pedida, estas mesmas informações só podem apresentar um caráter puramente indicativo, tendo valor de mera informação. Tal decorre igualmente da natureza eventual da apresentação da referida certidão, na falta da qual, em conformidade com o artigo 55.° do Regulamento n.° 44/2001, o tribunal do Estado‑Membro requerido, competente para emitir a declaração de executoriedade, pode aceitar um documento equivalente ou, se se considerar suficientemente esclarecido, dispensar tal apresentação.

37      Por último, como observou igualmente a advogada‑geral no n.° 44 das suas conclusões, importa precisar que, como resulta da própria letra do Anexo V do referido regulamento, as informações contidas na certidão limitam‑se à indicação da «[d]ata da citação ou da notificação do ato que determinou o início da instância, no caso de a decisão ter sido proferida à revelia», sem, contudo, fazer referência a outras indicações úteis a fim de verificar se o demandado foi colocado em posição de se defender, como as modalidades de citação ou notificação ou o endereço deste último.

38      Daqui decorre que, no quadro da análise do fundamento de recurso referido no artigo 34.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001, para o qual remete o artigo 45.°, n.° 1, deste último, o juiz do Estado‑Membro requerido é competente para proceder a uma apreciação autónoma do conjunto dos elementos de prova e para verificar assim, se for caso disso, a concordância entre estes e as informações que figuram na certidão, a fim de avaliar, em primeiro lugar, se o demandado revel recebeu a comunicação ou notificação do ato que deu início à instância e, em segundo lugar, se esta eventual citação ou notificação foi efetuada em tempo útil e de tal maneira que este se possa defender.

39      Essa conclusão é confirmada pelos objetivos prosseguidos pelo Regulamento n.° 44/2001.

40      Com efeito, há que precisar a este propósito que, como decorre do décimo sexto e décimo sétimo considerandos do referido regulamento, o regime de reconhecimento e de execução previsto por este se baseia na confiança recíproca na justiça na União Europeia. Esta confiança implica que as decisões judiciais proferidas num Estado‑Membro sejam não apenas reconhecidas de pleno direito noutro Estado‑Membro mas também que o procedimento para tornar executórias essas decisões neste último seja eficaz e rápido (v. acórdão Prism Investments, já referido, n.° 27).

41      Neste contexto, a função atribuída à certidão consiste precisamente em facilitar a adoção, numa primeira fase do processo, da declaração de executoriedade da decisão adotada no Estado‑Membro de origem, tornando a sua emissão quase automática, como foi expressamente enunciado no décimo sétimo considerando do Regulamento n.° 44/2001.

42      Todavia, como resulta de jurisprudência constante, o objetivo assim prosseguido não pode ser alcançado à custa de um enfraquecimento, seja qual for a forma que assume, de direitos de defesa (v., neste sentido, acórdão ASML, já referido, n.os 23, 24 e jurisprudência referida).

43      Com efeito, o Tribunal de Justiça já declarou que resulta expressamente do décimo sexto a décimo oitavo considerandos do Regulamento n.° 44/2001 que o sistema de recurso previsto contra o reconhecimento ou a execução de uma decisão visa estabelecer um justo equilíbrio entre, por um lado, a confiança recíproca na justiça na União e, por outro, o respeito dos direitos de defesa, que implica que o demandado possa, se for caso disso, interpor recurso contraditório, da declaração de executoriedade, se entender que se verifica um motivo de não execução (v., neste sentido, acórdão de 28 de abril de 2009, Apostolides, C‑420/07, Colet., p. I‑3571, n.° 73).

44      Ora, é nesta segunda fase do processo iniciado no Estado‑Membro requerido, que apenas tem lugar se o demandado interpuser recurso da declaração de executoriedade, que o Regulamento n.° 44/2001 estabeleceu, como foi recordado no n.° 32 do presente acórdão, um mecanismo de duplo controlo, que visa assegurar, designadamente, o respeito dos direitos do demandado revel não apenas durante o processo inicial no Estado‑Membro de origem (v., neste sentido, acórdão ASML, já referido, n.° 30) mas também durante o processo de execução no Estado‑Membro requerido (v., neste sentido, acórdão ASML, já referido, n.° 31).

45      Assim, o facto de limitar o alcance do poder de exame de que dispõe nessa fase o juiz do Estado‑Membro requerido, pelo único motivo de a certidão ter sido apresentada, equivaleria a esvaziar de efeito útil o controlo que este mesmo juiz deve efetuar e, assim, a impedir a realização do objetivo que consiste em assegurar o respeito dos direitos de defesa, visado pelo referido regulamento e enunciado no décimo oitavo considerando deste.

46      Tendo em conta as considerações precedentes, importa responder à primeira questão que o artigo 34.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001, para o qual remete o artigo 45.°, n.° 1, deste regulamento, lido em conjugação com o décimo sexto e décimo sétimo considerandos do referido regulamento, deve ser interpretado no sentido de que, quando o demandado interpõe recurso da declaração de executoriedade de uma decisão proferida à revelia no Estado‑Membro de origem e acompanhada da certidão, alegando que não recebeu notificação do ato que deu início à instância, o tribunal do Estado‑Membro requerido, chamado a pronunciar‑se sobre o dito recurso, é competente para verificar a concordância entre as informações que figuram na referida certidão e as provas.

 Quanto à segunda questão

47      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 34.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, para o qual remete o artigo 45.°, n.° 1, deste último, permite ao tribunal do Estado‑Membro requerido recusar, nos termos da cláusula relativa à ordem pública, a execução de uma decisão judiciária proferida à revelia e que decide do mérito da ação, que não inclui uma apreciação nem sobre o objeto nem sobre o fundamento de recurso e que é desprovida de qualquer argumento sobre o mérito deste, pelo motivo de que viola o direito do demandado a um processo justo como previsto no artigo 47.° da Carta.

48      A título liminar, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, devendo o artigo 34.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 ser objeto de interpretação estrita na medida em que constitua um obstáculo à realização de um dos objetivos fundamentais do referido regulamento, o recurso à cláusula de ordem pública constante do artigo 34.°, n.º 1, só deve ter lugar em casos excecionais (v., neste sentido, acórdão Apostolides, já referido, n.° 55 e jurisprudência referida).

49      Neste contexto, como decorre de jurisprudência igualmente constante, embora os Estados‑Membros permaneçam, em princípio, livres para determinar, ao abrigo da reserva constante do referido artigo 34.°, n.° 1, em conformidade com as suas conceções nacionais, as exigências da sua ordem pública, os limites desse conceito decorrem da interpretação deste regulamento (v. acórdãos de 28 de março de 2000, Krombach, C‑7/98, Colet., p. I‑1935, n.° 22; de 11 de maio de 2000, Renault, C‑38/98, Colet., p. I‑2973, n.° 27; e Apostolides, já referido, n.° 56). Assim, embora não caiba ao Tribunal de Justiça definir o conteúdo da ordem pública de um Estado‑Membro, incumbe‑lhe contudo controlar os limites no quadro dos quais o tribunal de um Estado‑Membro pode recorrer a esse conceito para não reconhecer uma decisão de outro Estado‑Membro (v. acórdãos, já referidos, Krombach, n.° 23; Renault, n.° 28; e Apostolides, n.° 57).

50      A este respeito, importa sublinhar que, ao proibirem a revisão de mérito de uma decisão estrangeira, os artigos 36.° e 45.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001 não permitem que o juiz do Estado‑Membro requerido recuse o reconhecimento ou a execução dessa decisão com base apenas no facto de haver uma divergência entre a norma jurídica aplicada pelo juiz do Estado‑Membro de origem e a que seria aplicada pelo juiz do Estado‑Membro requerido, se fosse ele a decidir o litígio. Do mesmo modo, o juiz do Estado‑Membro requerido não pode controlar a exatidão das apreciações jurídicas ou da matéria de facto levadas a cabo pelo juiz do Estado‑Membro de origem (v. acórdãos, já referidos, Krombach, n.° 36; Renault, n.° 29; e Apostolides, n.° 58).

51      Assim, o recurso à cláusula de ordem pública, constante do artigo 34.°, n.º 1, do Regulamento n.° 44/2001, só é concebível quando o reconhecimento ou a execução da decisão proferida noutro Estado‑Membro violem de forma inaceitável a ordem jurídica do Estado‑Membro requerido, por infringirem um princípio fundamental. Esse desrespeito deve constituir uma violação manifesta de uma norma jurídica considerada essencial no ordenamento jurídico do Estado‑Membro requerido ou de um direito reconhecido como fundamental nesse ordenamento (v. acórdãos, já referidos, Krombach, n.° 37; Renault, n.° 30; e Apostolides, n.° 59).

52      Quanto ao direito a um processo justo, a que a questão submetida faz referência, importa recordar que esse direito resulta das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros e foi reafirmado no artigo 47.°, segundo parágrafo, da Carta, que corresponde, como resulta das explicações relativas a este artigo, ao artigo 6.°, n.° 1, da CEDH (v. acórdão de 22 de dezembro de 2010, DEB, C‑279/09, Colet., p. I‑13849, n.° 32).

53      Ora, a este propósito, o Tribunal de Justiça declarou que o respeito do direito a um processo justo exige que qualquer decisão judiciária seja fundamentada, e isso a fim de permitir ao requerido compreender as razões da sua condenação e interpor um recurso de forma útil e efetiva de tal decisão (v., neste sentido, acórdão ASML, já referido, n.° 28).

54      Daqui decorre que um tribunal de um Estado‑Membro requerido tem o direito de considerar, em princípio, que uma decisão proferida à revelia e desprovida de apreciação no que diz respeito ao objeto, ao fundamento e ao mérito do recurso constitui uma restrição de um direito fundamental na ordem jurídica desse Estado‑Membro.

55      A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou porém que os direitos fundamentais não constituem prerrogativas absolutas, mas podem comportar restrições, na condição de que estas correspondam efetivamente a objetivos de interesse geral prosseguidos pela medida em causa e não constituam, à luz da finalidade prosseguida, uma ingerência desmedida e manifesta nos direitos assim garantidos (v., neste sentido, acórdãos de 15 de junho de 2006, Dokter e o., C‑28/05, Colet., p. I‑5431, n.° 75; de 2 de abril de 2009, Gambazzi, C‑394/07, Colet., p. I‑2563, n.° 29; e de 18 de março de 2010, Alassini, C‑317/08 a C‑320/08, Colet., p. I‑2213, n.° 63).

56      No caso em apreço, o Governo do Reino Unido precisou que uma decisão proferida à revelia, como a da High Court em causa no processo principal, só pode ser adotada quando, por um lado, o requerente notifica e apresenta a petição inicial («claim form») assim como uma exposição pormenorizada dos pedidos («particulars of claim») que inclua uma apresentação aprofundada dos fundamentos de direito e dos factos na origem do litígio, a que se refere implicitamente a própria decisão, e, por outro, o demandado, tendo sido regularmente informado da ação judicial intentada contra si, não apresenta ou não faz conhecer a sua intenção de apresentar contestação no prazo previsto.

57      Nesse sistema processual, a adoção dessa decisão à revelia tem por objetivo garantir um desenvolvimento rápido, eficaz e menos dispendioso dos processos intentados para cobrança de créditos não contestados, com vista a uma boa administração da justiça.

58      Ora, há que admitir que tal objetivo é suscetível, em si mesmo, de justificar uma restrição do direito a um processo equitativo, na medida em que este direito exige que as decisões judiciárias sejam fundamentadas.

59      No entanto, compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, à luz das circunstâncias concretas do processo principal, se a restrição instituída pelo sistema processual do Reino Unido não é manifestamente desproporcionada em relação ao fim prosseguido (v., neste sentido, acórdão Gambazzi, já referido, n.° 34).

60      Nesta perspetiva, há que concluir que, como observou igualmente a advogada‑geral no n.° 83 das suas conclusões, o alcance do dever de fundamentação pode variar em função da natureza da decisão judicial em causa e deve ser analisado, tendo em consideração o processo globalmente considerado e à luz do conjunto das circunstâncias pertinentes, tendo em conta as garantias processuais que rodeiam essa decisão, a fim de verificar se estas últimas asseguram às pessoas em causa a possibilidade de interpor um recurso de forma útil e efetiva dessa decisão (v., neste sentido, acórdãos de 2 de maio de 2006, Eurofood IFSC, C‑341/04, Colet., p. I‑3813, n.° 66, e Gambazzi, já referido, n.os 40, 45 e 46).

61      Isso implica, no processo principal, que o órgão jurisdicional de reenvio pode apreciar, como observou a advogada‑geral nos n.os 88 e 89 das suas conclusões, designadamente se, e em que medida, a Trade Agency teve conhecimento da exposição detalhada dos pedidos da Seramico, bem como as vias de recurso de que a Trade Agency dispunha, após a prolação da referida decisão, a fim de requerer a respetiva alteração ou revogação.

62      Em face das considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o artigo 34.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, para o qual remete o artigo 45.°, n.° 1, deste regulamento deve ser interpretado no sentido de que o tribunal do Estado‑Membro requerido não pode recusar, ao abrigo da cláusula de ordem pública, a execução de uma decisão judiciária proferida à revelia e que decide do mérito do litígio, que não inclua uma apreciação sobre o objeto nem sobre o fundamento do recurso e que é desprovida de fundamentação quanto ao mérito deste, a menos que entenda, no termo de uma apreciação global do processo e vistas todas as circunstâncias pertinentes, que essa decisão implica uma violação manifesta e excessiva do direito do requerido a um processo justo, referido no artigo 47.°, segundo parágrafo, da Carta, em razão da impossibilidade de interpor recurso de forma útil e efetiva dessa decisão.

 Quanto às despesas

63      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

1)      O artigo 34.°, n.° 2, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, para o qual remete o artigo 45.°, n.° 1, deste regulamento, lido em conjugação com o décimo sexto e décimo sétimo considerandos do referido regulamento, deve ser interpretado no sentido de que, quando o demandado interpõe recurso da declaração de executoriedade de uma decisão proferida à revelia no Estado‑Membro de origem e acompanhada da certidão redigida em conformidade com o artigo 54.º do mesmo regulamento, alegando que não recebeu notificação do ato que deu início à instância, o tribunal do Estado‑Membro requerido, chamado a pronunciar‑se sobre o dito recurso, é competente para verificar a concordância entre as informações que figuram na referida certidão e as provas.

2)      O artigo 34.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, para o qual remete o artigo 45.°, n.° 1, deste regulamento, deve ser interpretado no sentido de que o tribunal do Estado‑Membro requerido não pode recusar, ao abrigo da cláusula de ordem pública, a execução de uma decisão judiciária proferida à revelia e que decide do mérito do litígio, que não inclua uma apreciação sobre o objeto nem sobre o fundamento do recurso e que é desprovida de fundamentação quanto ao mérito deste, a menos que entenda, no termo de uma apreciação global do processo e vistas todas as circunstâncias pertinentes, que essa decisão implica uma violação manifesta e excessiva do direito do requerido a um processo justo, referido no artigo 47.°, segundo parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, em razão da impossibilidade de interpor recurso de forma útil e efetiva dessa decisão.

Assinaturas


** Língua do processo: letão.