Language of document : ECLI:EU:C:2012:526

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

6 de setembro de 2012 (*)

«Reenvio prejudicial — Aproximação das legislações — Saúde pública — Informação e proteção dos consumidores — Rotulagem e apresentação dos géneros alimentícios — Conceitos de ‘alegações nutricionais’ e de ‘saúde’ — Regulamento (CE) n.° 1924/2006 — Qualificação de um vinho como ‘digestível’ — Indicação de um teor de acidez reduzido — Bebidas com um título alcoométrico superior a 1,2% — Proibição de alegações de saúde — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 15.°, n.° 1 — Liberdade profissional — Artigo 16.° — Liberdade de empresa — Compatibilidade»

No processo C‑544/10,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Bundesverwaltungsgericht (Alemanha), por decisão de 23 de setembro de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 23 de novembro de 2010, no processo

Deutsches Weintor eG

contra

Land Rheinland‑Pfalz,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente de secção, J. Malenovský (relator), R. Silva de Lapuerta, E. Juhász e D. Šváby, juízes,

advogado‑geral: J. Mazák,

secretário: A. Impellizzeri, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 19 de janeiro de 2012,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação da Deutsches Weintor eG, por H. Eichele e B. Goebel, Rechtsanwälte,

¾        em representação do Land Rheinland‑Pfalz, por C. Grewing, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo checo, por M. Smolek e D. Hadroušek, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo estónio, por M. Linntam, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo francês, por G. de Bergues, B. Cabouat e R. Loosli‑Surrans, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo húngaro, por M. Z. Fehér e K. Szíjjártó, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo finlandês, por H. Leppo, na qualidade de agente,

¾        em representação do Parlamento Europeu, por I. Anagnostopoulou e E. Waldherr, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Conselho da União Europeia, por M. Simm, na qualidade de agente,

¾        em representação da Comissão Europeia, por L. Pignataro‑Nolin e S. Grünheid, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 29 de março de 2012,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 2.°, n.° 2, ponto 5, e 4.º, n.° 3, primeiro parágrafo, do Regulamento (CE) n.° 1924/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de dezembro de 2006, relativo às alegações nutricionais e de saúde sobre os alimentos (JO L 404, p. 9), com a última redação que lhe foi dada pelo Regulamento (UE) n.° 116/2010 da Comissão, de 9 de fevereiro de 2010 (JO L 37, p. 16, a seguir «Regulamento n.° 1924/2006»). O pedido tem também por objeto a validade destas disposições à luz dos artigos 15.°, n.° 1, e 16.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Deutsches Weintor eG (a seguir «Deutsches Weintor»), uma cooperativa vinícola alemã, aos serviços encarregados da fiscalização do comércio de bebidas alcoólicas no Land da Renânia‑Palatinado, a respeito da qualificação de um vinho como «digestível», acompanhada da indicação de um teor de acidez reduzido.

 Quadro jurídico

3        Os considerandos 1 a 3, 5, 10, 14 a 16 e 18 do Regulamento n.° 1924/2006 enunciam:

«(1)      Existe um número cada vez maior de alimentos rotulados e publicitados na Comunidade com alegações nutricionais e de saúde. Por forma a assegurar um elevado nível de proteção dos consumidores e a facilitar as suas escolhas, os produtos colocados no mercado, incluindo os que são importados, deverão ser seguros e devidamente rotulados. Um regime alimentar variado e equilibrado é uma condição indispensável para a manutenção da saúde e os produtos considerados individualmente têm uma importância relativa no contexto do regime alimentar geral.

(2)      As diferenças entre as disposições nacionais relativas a essas alegações podem entravar a livre circulação dos alimentos e criar condições de concorrência desiguais, tendo, assim, um impacto direto no funcionamento do mercado interno. É, pois, necessário adotar normas comunitárias relativas à utilização das alegações nutricionais e de saúde sobre os alimentos.

(3)      A Diretiva 2000/13/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de março de 2000, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes à rotulagem, apresentação e publicidade dos géneros alimentícios [(JO L 109, p. 29)], inclui disposições gerais em matéria de rotulagem. A Diretiva 2000/13/CE proíbe, de forma geral, a utilização de informações que induzam em erro o comprador ou que atribuam propriedades medicinais aos alimentos. O presente regulamento deverá complementar os princípios gerais estabelecidos na Diretiva 2000/13/CE e definir disposições específicas referentes à utilização das alegações nutricionais e de saúde relativas aos alimentos a fornecer como tais ao consumidor.

[…]

(5)      Os descritores genéricos (denominações) que são tradicionalmente utilizados para indicar uma particularidade de uma categoria de alimentos ou bebidas suscetível de ter efeitos na saúde humana, como ‘digestivos’ ou ‘pastilhas para a tosse’, deverão ser excluídos do âmbito de aplicação do presente regulamento.

[...]

(10) Os alimentos promovidos por meio de alegações podem ser considerados pelo consumidor como possuidores de uma vantagem nutricional, fisiológica ou outra para a saúde em comparação com outros produtos ou produtos semelhantes a que não foram adicionados nutrientes e outras substâncias. Os consumidores podem, assim, ser levados a efetuar escolhas que influenciem diretamente a quantidade total dos vários nutrientes ou outras substâncias que ingerem, de uma forma contrária ao que é cientificamente aconselhável. Para combater este potencial efeito indesejável, é necessário impor determinadas restrições no que se refere aos produtos que ostentam alegações. […]

[...]

(14)      Uma grande variedade de alegações atualmente utilizadas na rotulagem e na publicidade dos alimentos nalguns Estados‑Membros diz respeito a substâncias que não se provou serem benéficas ou para as quais não existe, presentemente, consenso científico suficiente. É necessário assegurar que as substâncias alvo de uma alegação tenham provado possuir um efeito nutricional ou fisiológico benéfico.

(15)      Para garantir a veracidade das alegações, é necessário que a substância alvo da alegação se encontre presente no produto final em quantidades suficientes, ou que a substância esteja ausente ou presente em quantidades devidamente reduzidas, para produzir o efeito nutricional ou fisiológico alegado. A substância deverá também ser assimilável pelo organismo. […]

(16)      É importante que as alegações relativas aos alimentos possam ser entendidas pelo consumidor e é conveniente proteger todos os consumidores das alegações enganosas. […]

[...]

(18)      Nenhuma alegação nutricional ou de saúde poderá ser incompatível com os princípios de nutrição e saúde geralmente aceites, incentivar ou justificar o consumo excessivo de um alimento ou depreciar as boas práticas alimentares.»

4        O objeto e o âmbito de aplicação do Regulamento n.° 1924/2006 são expostos no seu artigo 1.°, do seguinte modo:

«1.      O presente regulamento harmoniza as disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros em matéria de alegações nutricionais e de saúde, a fim de garantir o funcionamento eficaz do mercado interno, assegurando ao mesmo tempo um elevado nível de proteção dos consumidores.

2.      O presente regulamento é aplicável às alegações nutricionais e de saúde feitas em comunicações comerciais, quer na rotulagem, quer na apresentação ou na publicidade dos alimentos a fornecer como tais ao consumidor final.

[...]»

5        O artigo 2.° do Regulamento n.° 1924/2006 contém as seguintes definições:

«1.      Para efeitos do presente regulamento, são aplicáveis:

a)      As definições de ‘género alimentício’ (no presente regulamento, ‘alimento’), ‘operador de uma empresa do setor alimentar’, ‘colocação no mercado’ e ‘consumidor final’ constantes do artigo 2.° e dos pontos 3, 8 e 18 do artigo 3.° do Regulamento (CE) n.° 178/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de janeiro de 2002, que determina os princípios e normas gerais da legislação alimentar, cria a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos e estabelece procedimentos em matéria de segurança dos géneros alimentícios [(JO L 31, p. 1)];

[...]

2.      São igualmente aplicáveis as seguintes definições:

1)      ‘Alegação’, qualquer mensagem ou representação, não obrigatória nos termos da legislação comunitária ou nacional, incluindo qualquer representação pictórica, gráfica ou simbólica, seja qual for a forma que assuma, que declare, sugira ou implique que um alimento possui características particulares;

[…]

4)      ‘Alegação nutricional’, qualquer alegação que declare, sugira ou implique que um alimento possui propriedades nutricionais benéficas particulares [...]

5)      ‘Alegação de saúde’, qualquer alegação que declare, sugira ou implique a existência de uma relação entre uma categoria de alimentos, um alimento ou um dos seus constituintes e a saúde;

6)      ‘Alegação de redução de um risco de doença’, qualquer alegação de saúde que declare, sugira ou implique que o consumo de uma categoria de alimentos, de um alimento ou de um dos seus constituintes reduz significativamente um fator de risco de aparecimento de uma doença humana;

[…]»

6        O capítulo II (artigos 3.° a 7.°) do Regulamento n.° 1924/2006 fixa as condições gerais de utilização das alegações nutricionais e de saúde.

7        O artigo 3.° do Regulamento n.° 1924/2006, intitulado «Princípios gerais aplicáveis a todas as alegações», tem a seguinte redação:

«Só podem ser utilizadas na rotulagem, na apresentação e na publicidade dos alimentos colocados no mercado comunitário as alegações nutricionais e de saúde que cumpram as disposições do presente regulamento.

Sem prejuízo das Diretivas 2000/13/CE e 84/450/CEE, as alegações nutricionais e de saúde não devem:

a)      Ser falsas, ambíguas ou enganosas;

b)      Suscitar dúvidas acerca da segurança e/ou da adequação nutricional de outros alimentos;

c)      Incentivar ou justificar o consumo excessivo de um dado alimento;

[…]»

8        O artigo 4.° do Regulamento n.° 1924/2006, intitulado «Condições de utilização das alegações nutricionais e de saúde», dispõe, no seu n.° 3:

«As bebidas com um título alcoométrico superior a 1,2% não devem ostentar alegações de saúde.

No que respeita a alegações nutricionais, só são permitidas as que refiram baixos níveis de álcool, a redução do teor de álcool ou a redução do teor energético de bebidas com um título alcoométrico superior a 1,2%.»

9        O artigo 5.°, n.° 1, deste regulamento, relativo às condições gerais, dispõe:

«1.      A utilização de alegações nutricionais e de saúde só é permitida se estiverem preenchidas as seguintes condições:

a)      Ter sido demonstrado que a presença, a ausência ou o teor reduzido, num alimento ou numa categoria de alimentos, de um nutriente ou de outra substância objeto de alegação, têm um efeito nutricional ou fisiológico benéfico, estabelecido por provas científicas geralmente aceites;».

10      O artigo 6.° do referido regulamento, intitulado «Fundamento científico das alegações», dispõe:

«As alegações nutricionais e de saúde devem ser baseadas e fundamentadas em provas científicas geralmente aceites.»

11      Os artigos 10.° a 19.°, que constam do capítulo IV do Regulamento n.° 1924/2006, preveem disposições particulares aplicáveis às alegações de saúde.

12      O artigo 10.°, n.os 1 e 3, deste regulamento, relativo às condições específicas, dispõe:

«1.      São proibidas as alegações de saúde que não cumpram os requisitos gerais do capítulo II nem os requisitos específicos do presente capítulo e que não estejam autorizadas em conformidade com o presente regulamento nem incluídas nas listas das alegações permitidas previstas nos artigos 13.° e 14.°

[...]

3.      Só pode ser feita referência a efeitos benéficos gerais, não específicos do nutriente ou do alimento, para a boa saúde geral ou para o bem‑estar ligado à saúde se essa referência for acompanhada de uma alegação de saúde específica incluída nas listas previstas nos artigos 13.° ou 14.°»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

13      A Deutsches Weintor é uma cooperativa vinícola estabelecida em Ilbesheim (Alemanha), no Land da Renânia‑Palatinado. Comercializa vinhos das castas Dornfelder e Grauer/Weißer Burgunder, com a indicação de «Edition Mild» (edição suave), acompanhada da menção «acidez suave». O rótulo contém, nomeadamente, a seguinte indicação: «sabor agradável graças ao nosso processo especial de conservação ‘LO3’ (LO3 Schonverfahren zur biologischen Säurereduzierung) para redução biológica da acidez». No rótulo do gargalo das garrafas figura a inscrição: «Edition Mild bekömmlich» (Edição suave, digestível). Na lista de preços, o vinho é designado pela seguinte expressão: «Edition Mild — sanfte Säure/bekömmlich» (Edição suave — acidez suave/digestível).

14      A autoridade encarregada da fiscalização do comércio de bebidas alcoólicas na Renânia‑Palatinado contestou a utilização da indicação «digestível», com o fundamento de que constitui uma «alegação de saúde», na aceção do artigo 2.°, n.° 2, ponto 5, do Regulamento n.° 1924/2006, não autorizada para as bebidas alcoólicas, por força do artigo 4.°, n.° 3, primeiro parágrafo, deste regulamento.

15      As partes estão em desacordo sobre a questão de saber se a qualificação do vinho como «digestível», associada à indicação de um teor de acidez suave, constitui uma «alegação de saúde» na aceção do artigo 4.°, n.° 3, primeiro parágrafo, do Regulamento n.° 1924/2006, normalmente proibida para as bebidas alcoólicas.

16      A Deutsches Weintor intentou uma ação no Verwaltungsgericht (Tribunal Administrativo), pedindo que fosse declarado que estava autorizada a utilizar a indicação «digestível» nos rótulos dos vinhos em causa e na publicidade feita a seu respeito.

17      Em apoio do seu pedido, a Deutsches Weintor argumentou, por um lado, que a indicação «digestível» não tem nenhuma relação com a saúde e diz unicamente respeito ao bem‑estar geral. Por outro lado, alega que Regulamento n.° 1924/2006 não se aplica às indicações tradicionalmente utilizadas para os alimentos ou as bebidas suscetíveis de ter efeitos no bem‑estar geral, como a indicação «digestivo» para uma bebida que facilita a digestão. Por conseguinte, segundo a Deutsches Weintor, o conceito de alegações de saúde deve ser entendido em sentido restrito, limitado aos efeitos de longo prazo produzidos pelo alimento em causa.

18      O Verwaltungsgericht julgou a ação improcedente, por acórdão de 23 de abril de 2009. O recurso interposto desta decisão foi declarado improcedente, por um acórdão do Oberverwaltungsgericht Rheinland‑Pfalz (Tribunal Administrativo Regional Superior do Land da Renânia‑Palatinado), em 19 de agosto de 2009.

19      O órgão jurisdicional de recurso considerou que o conceito de «alegação de saúde» abrange, em qualquer caso, os efeitos de um alimento no organismo do consumidor e nas respetivas funções orgânicas. A indicação «digestível» estabelece, no que ao vinho diz respeito, uma relação com processos do organismo e está relacionada com o bem‑estar geral associado à saúde. Podem ser associadas a esta indicação expressões sinónimas como «saudável», «de digestão fácil» ou «bom para o estômago».

20      Segundo o referido órgão jurisdicional, este aspeto reveste uma certa importância no âmbito do consumo de vinho, porque este é frequentemente associado a dores de cabeça e de estômago. Eventualmente, o vinho pode mesmo exercer um efeito prejudicial no organismo humano e causar dependência. A utilização da expressão «digestível», associada à indicação relativa a um processo especial de redução da acidez e a um teor de acidez suave, cria, na perspetiva do consumidor, uma relação entre o vinho e a ausência de efeitos adversos no processo digestivo, por vezes associados ao consumo do vinho.

21      A recorrente no processo principal interpôs recurso de cassação desta decisão para o Bundesverwaltungsgericht (Tribunal Administrativo Federal).

22      O órgão jurisdicional de reenvio considera que a interpretação lata do conceito de «alegação de saúde» usada pelos órgãos jurisdicionais inferiores é questionável. Em sua opinião, atendendo à função comum de todos os alimentos, que consiste em fornecer nutrientes e outras substâncias ao corpo humano, uma indicação relativa à manutenção meramente temporária das funções orgânicas ou ao bem‑estar geral associado à saúde não é suficiente para estabelecer uma relação com a saúde, na aceção do artigo 2.°, n.° 2, ponto 5, do Regulamento n.° 1924/2006.

23      Na opinião do Bundesverwaltungsgericht, alguns elementos parecem indicar, pelo contrário, que a qualificação como «alegação de saúde» só se justifica quando sejam descritos efeitos mais prolongados, duradouros, no estado do organismo ou na condição física, por oposição a meros efeitos passageiros em processos metabólicos, que não têm nenhuma influência na constituição e, por conseguinte, no estado de saúde propriamente dito.

24      A indicação de digestibilidade dos vinhos comercializados pela recorrente no processo principal esgota‑se, portanto, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, na afirmação de que o vinho não provoca dores de estômago durante a digestão ou de que provoca menos dores comparativamente com o que é de esperar de um vinho deste tipo e desta qualidade. Além disso, o Bundesverwaltungsgericht interroga‑se sobre se o simples facto de um alimento ser menos nocivo do que outros produtos comparáveis da mesma categoria é suficiente para lhe reconhecer um efeito benéfico para a saúde.

25      Por último, o Bundesverwaltungsgericht exprime dúvidas quanto à questão de saber se a proibição das alegações de saúde relativamente ao vinho é compatível com os direitos fundamentais que são a liberdade profissional e a liberdade de empresa, na medida em que seria proibido a um produtor ou a um distribuidor de vinhos indicarem que o seu produto é digestível em virtude de uma acidez suave, mesmo que esta alegação seja verdadeira.

26      Nestas condições, o Bundesverwaltungsgericht decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve uma alegação de saúde, na aceção do artigo 4.°, n.° 3, primeiro [parágrafo], em conjugação com o artigo 2.°, n.° 2, ponto 5, ou na aceção do artigo 10.°, n.° 3, do Regulamento (CE) n.° 1924/2006 […], produzir obrigatoriamente um efeito nutricional ou fisiológico benéfico que vise uma melhoria sustentável da condição física, ou é suficiente que produza um efeito temporário, designadamente limitado ao período que decorre entre a ingestão e a digestão do alimento?

2)      No caso de uma afirmação de efeito benéfico temporário poder ser considerada uma alegação de saúde:

É suficiente para assumir que esse efeito é fundamentado pela ausência ou pelo teor reduzido de uma substância na aceção do artigo 5.°, n.° 1, alínea a), e do décimo quinto considerando do regulamento, que essa alegação afirme apenas que um efeito, em regra causado por este tipo de alimentos e frequentemente percecionado como adverso, é diminuto no caso concreto?

3)      Em caso de resposta afirmativa à segunda questão:

É compatível com o artigo 6.°, n.° 1, primeiro parágrafo, do Tratado da União Europeia, com a redação que lhe foi dada em 13 de dezembro de 2007 (JO [2008,] C 115, […] [p. 1]), em conjugação com o artigo 15.°, n.° 1 (Liberdade profissional), e com o artigo 16.° (Liberdade de empresa) da [Carta], com a redação que lhe foi dada em 12 de dezembro de 2007 (JO C 303, p. 1), que um produtor ou [distribuidor] de vinhos seja proibido, sem exceção, de fazer publicidade com uma alegação de saúde do tipo em causa no presente processo, se essa alegação for verdadeira?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto às duas primeiras questões

27      Através das suas duas primeiras questões, que devem ser examinadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.°, n.° 3, primeiro parágrafo, do Regulamento n.° 1924/2006 deve ser interpretado no sentido de que a expressão «alegação de saúde» abrange uma indicação como a indicação «digestível», acompanhada da referência ao reduzido teor de substâncias consideradas negativas por um grande número de consumidores.

28      O artigo 2.°, n.° 2, ponto 5, do Regulamento n.° 1924/2006 define «alegação de saúde» como «qualquer alegação que declare, sugira ou implique a existência de uma relação entre uma categoria de alimentos, um alimento ou um dos seus constituintes e a saúde».

29      Além disso, o artigo 5.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 1924/2006 precisa que a utilização de alegações de saúde só é permitida se tiver sido demonstrado que a presença, a ausência ou o teor reduzido, num alimento ou numa categoria de alimentos, de um nutriente ou de outra substância objeto de alegação têm um efeito nutricional ou fisiológico benéfico, estabelecido por provas científicas geralmente aceites.

30      No âmbito do litígio no processo principal, as questões prejudiciais são colocadas por referência ao vinho. Dado que o vinho entra na categoria das bebidas com um título alcoométrico superior a 1,2%, importa desde logo realçar que, nos termos do artigo 4.°, n.° 3, primeiro parágrafo, do Regulamento n.° 1924/2006, o legislador da União pretendeu proibir, sem exceção, qualquer «alegação de saúde» no que respeita a esta categoria de bebidas.

31      No caso em apreço, a alegação controvertida sugere que, tendo em conta a acidez reduzida, o vinho em causa é adequado e agradável para a digestão. Assim, este vinho produziria um efeito nutricional ou fisiológico benéfico.

32      É pacífico que, estando associada à ingestão pontual de um alimento, a digestão deve ser entendida como um processo fisiológico, por definição limitado no tempo, com efeitos meramente temporários ou passageiros.

33      Partindo desta constatação, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se uma indicação como «digestível» pode ser qualificada de «alegação de saúde», apesar de não implicar que o efeito nutricional ou fisiológico benéfico que o vinho em questão é suscetível de produzir leve a uma melhoria sustentada da condição física.

34      A este respeito, decorre da redação do artigo 2.°, n.° 2, ponto 5, do Regulamento n.° 1924/2006 que a «alegação de saúde», na aceção do referido regulamento, é definida a partir da relação que deve existir entre um alimento ou um de seus componentes e a saúde. Sendo assim, deve concluir‑se que esta definição não fornece nenhuma precisão quanto ao caráter direto ou indireto que esta relação deve revestir, nem quanto à sua intensidade ou à sua duração. Nestas condições, o termo «relação» deve ser entendido em sentido amplo.

35      Assim, por um lado, o conceito de «alegação de saúde» deve abranger não apenas uma relação que implique uma melhoria do estado de saúde, graças ao consumo de um alimento, mas também qualquer relação que implique a ausência ou a redução dos efeitos negativos ou prejudiciais para a saúde, que acompanham ou que são consequência, noutros casos, de tal consumo, e, portanto, a simples preservação do bom estado de saúde, apesar desse consumo potencialmente prejudicial.

36      Por outro lado, considera‑se que o conceito de «alegação de saúde» abrange não apenas os efeitos de um consumo ocasional de uma determinada quantidade de um alimento, que normalmente é suscetível de provocar efeitos meramente temporários e passageiros, mas também os efeitos de um consumo reiterado, regular, ou mesmo frequente, desse alimento, cujos efeitos, em contrapartida, não são necessariamente apenas temporários e passageiros.

37      Com efeito, como resulta da leitura conjugada dos considerandos 1 e 10 do Regulamento n.° 1924/2006, é um dado adquirido que as alegações apostas em alimentos com vista à sua promoção, ao relatarem uma vantagem nutricional ou fisiológica ou qualquer outra vantagem associada à saúde em comparação com outros produtos semelhantes, orientam as escolhas dos consumidores. Estas escolhas influenciam diretamente a quantidade total dos vários nutrientes ou de outras substâncias que os consumidores escolhem ingerir, o que justifica as restrições impostas pelo referido regulamento no que diz respeito à utilização destas alegações.

38      Por conseguinte, face a estes objetivos, é necessário ter em consideração tanto os efeitos temporários e passageiros como os efeitos acumulados, na condição física, dos consumos reiterados e prolongados de um determinado alimento.

39      No caso em apreço, a indicação controvertida, que sugere que o vinho é bem absorvido e digerido, implica, designadamente, que o aparelho digestivo, portanto, uma parte do corpo humano, não é afetado ou é pouco afetado por isso e que este aparelho se mantém relativamente saudável e intacto, mesmo após o consumo reiterado, ou seja, após o consumo de quantidades acumuladas e ao longo de muito tempo, na medida em que tal vinho se caracteriza por uma acidez reduzida.

40      Deste modo, a alegação em questão é suscetível de sugerir um efeito fisiológico benéfico sustentável, consistente na preservação do bom estado do aparelho digestivo, contrariamente a outros vinhos que se presume provocarem, em resultado do seu consumo reiterado, efeitos negativos duradouros para o aparelho digestivo e, consequentemente, para a saúde.

41      Vistas as precedentes considerações, há que responder às duas primeiras questões que o artigo 4.°, n.° 3, primeiro parágrafo, do Regulamento n.° 1924/2006 deve ser interpretado no sentido de que a expressão «alegação de saúde» abrange uma indicação como «digestível», acompanhada da menção do teor reduzido de substâncias consideradas negativas por um grande número de consumidores.

 Quanto à terceira questão

42      Através da sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o facto de se proibir, sem exceção, no Regulamento n.° 1924/2006, a um produtor ou a um distribuidor de vinhos, a utilização de uma alegação do tipo da em causa no processo principal, ainda que esta alegação seja verdadeira em si mesma, é compatível com o artigo 6.°, n.° 1, primeiro parágrafo, TUE.

43      Por força do artigo 6.°, n.° 1, primeiro parágrafo, TUE, a União Europeia reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta, que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados.

44      De entre os direitos fundamentais pertinentes no tocante à proibição em questão, o órgão jurisdicional de reenvio refere os consagrados no artigo 15.°, n.° 1, da Carta, por força do qual todas as pessoas têm o direito de trabalhar e de exercer uma profissão livremente escolhida ou aceite, e no artigo 16.° da mesma Carta, que garante a liberdade de empresa.

45      Porém, importa ter também em consideração o artigo 35.°, segundo período, da Carta, que exige que seja assegurado um elevado nível de proteção da saúde humana na definição e na implementação de todas as políticas e medidas da União. Com efeito, como resulta dos considerandos 1 e 18 do Regulamento n.° 1924/2006, a proteção da saúde figura entre os principais objetivos deste regulamento.

46      Nestas condições, há que avaliar a compatibilidade da proibição, sem exceções, de uma alegação do tipo da que está em causa no processo principal, não apenas à luz da liberdade profissional e da liberdade de empresa mas também à luz da proteção da saúde.

47      Donde decorre que esta apreciação deve ser efetuada no respeito da conciliação necessária das exigências ligadas à proteção destes diversos direitos fundamentais protegidos pela ordem jurídica da União, por um lado, com um justo equilíbrio entre eles, por outro (v., neste sentido, acórdão de 29 de janeiro de 2008, Promusicae, C‑275/06, Colet., p. I‑271, n.os 65 e 66).

48      No que se refere, em primeiro lugar, à proteção da saúde, importa realçar que, tendo em conta os riscos de dependência e de abuso, bem como os efeitos nocivos complexos demonstrados, que estão associados ao consumo de álcool, designadamente o surgimento de doenças graves, as bebidas alcoólicas representam uma categoria especial de alimentos sujeita a uma regulamentação particularmente restritiva.

49      A este respeito, o Tribunal de Justiça já reconheceu, em várias ocasiões, que as medidas que limitam as possibilidades de publicidade a bebidas alcoólicas, procurando, assim, combater o abuso de álcool, respondem a preocupações de saúde pública e que a proteção desta constitui, conforme resulta também do artigo 9.° TFUE, um objetivo de interesse geral de natureza a, se necessário for, justificar uma restrição a uma liberdade fundamental (v., neste sentido, acórdãos de 10 de julho de 1980, Comissão/França, 152/78, Recueil, p. 2299, n.° 17; de 25 de julho de 1991, Aragonesa de Publicidad Exterior e Publivía, C‑1/90 e C‑176/90, Colet., p. I‑4151, n.° 15; e de 13 de julho de 2004, Comissão/França, C‑262/02, Colet., p. I‑6569, n.° 30, e Bacardi France, C‑429/02, Colet., p. I‑6613, n.° 37).

50      Além disso, embora já resulte, em termos gerais, do artigo 3.°, alínea a), do Regulamento n.° 1924/2006 que as alegações nutricionais e de saúde não devem ser falsas, ambíguas ou enganosas, esta exigência é, por maioria de razão, aplicável às bebidas alcoólicas. Com efeito, é essencial que todas as alegações a respeito destas bebidas sejam desprovidas de qualquer ambiguidade, para que os consumidores possam regular o seu consumo tendo em conta todos os perigos intrínsecos associados ao referido consumo e, desta forma, proteger efetivamente a sua saúde.

51      Ora, num caso como o do processo principal, a alegação controvertida, admitindo que possa ser considerada em si mesma materialmente verdadeira na medida em que indica um teor reduzido de acidez, revela‑se, porém, incompleta. Com efeito, esta alegação põe em evidência uma determinada qualidade que facilita a digestão, ao passo que ignora o facto de que, independentemente do bom funcionamento da digestão, os perigos inerentes ao consumo de bebidas alcoólicas não são de maneira nenhum eliminados nem mesmo limitados.

52      Assim, o legislador da União pôde corretamente considerar que alegações como a em causa no processo principal são ambíguas, ou até mesmo enganosas, quando se reportam a uma bebida alcoólica. Com efeito, ao destacar unicamente a sua fácil digestão, a alegação controvertida é suscetível de incentivar o consumo do vinho em questão e, no fim de contas, aumentar os riscos para a saúde dos consumidores, inerentes a um consumo não moderado de qualquer bebida alcoólica. Por conseguinte, a proibição de alegações deste tipo pode ser justificada pela necessidade de assegurar um elevado nível de proteção da saúde dos consumidores.

53      Face ao exposto, a proibição total de uma alegação do tipo da em causa no processo principal pode ser considerada necessária para assegurar o cumprimento das obrigações decorrentes do artigo 35.° da Carta.

54      No que se refere, em segundo lugar, às liberdades profissional e de empresa, há que recordar que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o livre exercício de uma atividade profissional assim como o direito de propriedade não devem ser entendidos como prerrogativas absolutas, antes devendo ser tomados em consideração com referência à sua função na sociedade (v., neste sentido, acórdão de 14 de dezembro de 2004, Swedish Match, C‑210/03, Colet., p. I‑11893, n.° 72). Por conseguinte, podem ser introduzidas restrições ao exercício dessas liberdades, desde que estas restrições correspondam, efetivamente, a objetivos de interesse geral prosseguidos pela União e não constituam, face a esses objetivos, uma intervenção desproporcionada e intolerável, suscetível de atentar contra a própria essência desses direitos (acórdãos de 15 de abril de 1997, Irish Farmers Association e o., C‑22/94, Colet., p. I‑1809, n.° 27, e de 10 de julho de 2003, Booker Aquaculture e Hydro Seafood, C‑20/00 e C‑64/00, Colet., p. I‑7411, n.° 68).

55      No que diz respeito aos referidos objetivos, resulta dos n.os 48 a 53 do presente acórdão que o regulamento em causa se destina a proteger a saúde, o que constitui um objetivo reconhecido pelo artigo 35.° da Carta.

56      Quanto ao respeito do princípio da proporcionalidade, sendo embora verdade que a proibição das alegações em causa impõe determinadas restrições à atividade profissional dos operadores económicos relativamente a um aspeto específico, o respeito por tal liberdade está, no entanto, assegurado nos seus aspetos essenciais.

57      Assim, longe de proibir a produção e a comercialização das bebidas alcoólicas, a regulamentação controvertida limita‑se, num domínio bem delimitado, a enquadrar a respetiva rotulagem e publicidade.

58      Assim, num caso como o do processo principal, a proibição controvertida não afeta de modo algum a própria essência da liberdade profissional e da liberdade de empresa.

59      Resulta do exposto que a proibição total, no Regulamento n.° 1924/2006, de uma alegação do tipo da em causa no processo principal deve ser considerada compatível com a exigência destinada a conciliar os diferentes direitos fundamentais em presença e a estabelecer um justo equilíbrio entre eles.

60      À luz do conjunto das precedentes considerações, há que responder à terceira questão que o facto de um produtor ou de um distribuidor de vinhos estarem, nos termos do Regulamento n.° 1924/2006, proibidos, sem exceção, de utilizar uma alegação do tipo da em causa no processo principal, ainda que esta alegação seja verdadeira em si mesma, é compatível com o artigo 6.°, n.° 1, primeiro parágrafo, TUE.

 Quanto às despesas

61      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

1)      O artigo 4.°, n.° 3, primeiro parágrafo, do Regulamento (CE) n.° 1924/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de dezembro de 2006, relativo às alegações nutricionais e de saúde sobre os alimentos, com a última redação que lhe foi dada pelo Regulamento (UE) n.° 116/2010 da Comissão, de 9 de fevereiro de 2010, deve ser interpretado no sentido de que a expressão «alegação de saúde» abrange uma indicação como «digestível», acompanhada da menção do teor reduzido de substâncias consideradas negativas por um grande número de consumidores.

2)      O facto de um produtor ou de um distribuidor de vinhos estarem, nos termos do Regulamento n.° 1924/2006, com a redação que lhe foi dada pelo Regulamento n.° 116/2010, proibidos, sem exceção, de utilizar uma alegação do tipo da em causa no processo principal, ainda que esta alegação seja verdadeira em si mesma, é compatível com o artigo 6.°, n.° 1, primeiro parágrafo, TUE.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.