Language of document : ECLI:EU:C:2013:756

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

21 de novembro de 2013 (*)

«Reenvio prejudicial — Artigo 43.° CE — Veículos automóveis — Utilização num Estado‑Membro de um veículo particular motorizado registado noutro Estado‑Membro — Tributação desse veículo no primeiro Estado‑Membro no momento da sua primeira utilização na rede viária nacional e no segundo Estado‑Membro no momento do seu registo — Veículo utilizado pelo cidadão em causa tanto para fins particulares como para se deslocar, a partir do Estado‑Membro de origem, para o local de trabalho situado no primeiro Estado‑Membro»

No processo C‑302/12,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Hoge Raad der Nederlanden (Países Baixos), por decisão de 6 de abril de 2012, entrado no Tribunal de Justiça em 20 de junho de 2012, no processo

X

contra

Minister van Financiën,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: R. Silva de Lapuerta (relatora), presidente de secção, J. L. da Cruz Vilaça, G. Arestis, J.‑C. Bonichot e A. Arabadjiev, juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: A. Calot Escobar,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação de X, por B. Schuver, advocaat,

¾        em representação do Governo neerlandês, por B. Koopman e C. Wissels, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo grego, por M. Tassopoulou e G. Papagianni, na qualidade de agentes,

¾        em representação da Comissão Europeia, por C. Barslev e W. Roels, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 5 de setembro de 2013,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 43.° CE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe X ao Minister van Financiën (Ministério das Finanças) a respeito de um aviso de liquidação enviado à interessada devido ao não pagamento do imposto sobre os veículos automóveis ligeiros de passageiros e os motociclos (a seguir «imposto VM»), no momento da primeira utilização de um veículo automóvel particular na rede viária dos Países Baixos.

 Quadro jurídico

3        O artigo 1.°, n.° 1, da Lei de 1992 do imposto sobre veículos automóveis ligeiros de passageiros e motociclos (Wet op de belasting van personenauto’s en motorrijwielen 1992, Stb. 1992, n.° 709, a seguir «Lei de 1992») dispõe que estes veículos particulares motorizados estão sujeitos a esse imposto.

4        Segundo o artigo 1.°, n.os 2 e 5, da Lei de 1992, o imposto VM é devido pela inscrição do veículo no registo automóvel neerlandês. No entanto, quando um veículo automóvel ligeiro ou um motociclo, não registado nos Países Baixos, é colocado à disposição de uma pessoa singular ou coletiva, residente ou estabelecida nesse Estado‑Membro, esse imposto é devido a contar da primeira utilização desse veículo motorizado na rede viária dos Países Baixos.

5        O artigo 5.°, n.° 2, dessa lei prevê que, para os veículos automóveis ligeiros ou os motociclos não registados, o sujeito passivo do imposto VM é quem tem a disposição efetiva do veículo.

6        Por força do artigo 9.°, n.° 1, da referida lei, para um veículo automóvel ligeiro, a taxa do referido imposto ascende, sem prejuízo das reduções e dos agravamentos previstos nessa disposição, a 45,2% do preço líquido de catálogo desse veículo. Este preço corresponde ao preço de venda recomendado pelo fabricante ou importador aos revendedores, deduzido o imposto sobre o valor acrescentado.

7        Tratando‑se de veículos automóveis novos, o seu preço líquido de catálogo é determinado em função do dia em que lhes foi atribuído um número de matrícula nos Países Baixos. Tratando‑se de veículos automóveis usados, o seu preço líquido de catálogo é determinado em função da data da sua primeira utilização, independentemente de esta ter ou não lugar no território dos Países Baixos.

8        Quando da primeira utilização na rede viária dos Países Baixos de veículos automóveis ligeiros ou de motociclos não registados nos Países Baixos e colocados à disposição de uma pessoa singular ou coletiva, residente ou estabelecida nesse Estado‑Membro, a legislação nacional em questão no processo principal prevê a aplicação, para efeitos do pagamento do imposto VM, do preço líquido de catálogo que corresponde aos veículos usados.

9        Para cobrar o referido imposto sobre esses veículos usados, é tido em conta o período de utilização já decorrido, reduzindo o montante do imposto numa percentagem determinada.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

10      X é cidadã belga. Tem, desde 1998, um gabinete de ortodontia nos Países Baixos e possui nesse Estado‑Membro uma casa onde mora juntamente com o seu companheiro nos períodos de abertura desse gabinete. Fora destes períodos, o casal mora num apartamento arrendado na Bélgica.

11      X possui uma viatura que adquiriu na Bélgica no ano de 2004 e que utiliza tanto nesse Estado‑Membro como nos Países Baixos, quer para fins privados quer profissionais. Resulta dos autos que, por ano, metade das distâncias percorridas por X nessa viatura são efetuadas na Bélgica e a outra metade nos Países Baixos.

12      X registou a sua viatura na Bélgica e pagou, a título de imposto sobre o início da utilização belga, a quantia de 4 957 euros.

13      Em 19 de julho de 2006, a Administração Fiscal neerlandesa constatou que X utilizava a sua viatura na rede viária dos Países Baixos sem ter pagado o imposto VM. Consequentemente, foi emitido um aviso de liquidação na quantia de 17 315 euros.

14      X apresentou reclamação desse aviso de liquidação, o qual foi, todavia, confirmado pelo Belastinginspecteur (Inspetor tributário), uma vez que a interessada residia nos Países Baixos e utilizava a sua viatura na via pública desse país.

15      Apesar de o Rechtbank te Leeuwarden ter dado provimento ao recurso que X interpôs da decisão do Belastinginspecteur, o Gerechtshof te Leeuwarden deu provimento ao recurso do Minister van Financiën e revogou a decisão do Rechtbank te Leeuwarden.

16      Segundo o Gerechtshof te Leeuwarden, X não podia invocar o princípio da proporcionalidade, uma vez que o seu automóvel é usado permanente e principalmente nos Países Baixos e que o imposto VM não constitui um entrave ao exercício das liberdades garantidas pelo direito da União. A este respeito, o facto de ter pagado o imposto sobre o início da utilização belga não obsta a que X seja sujeito passivo do imposto VM sobre esse veículo, na sua qualidade de residente nos Países Baixos, na aceção da legislação neerlandesa.

17      X interpôs recurso de cassação do acórdão do Gerechtshof te Leeuwarden no órgão jurisdicional de reenvio. Segundo este último órgão jurisdicional, é pacífico que X reside nos Países Baixos, na aceção da legislação neerlandesa, ainda que não se possa excluir que X possa ser igualmente considerada residente na Bélgica, na aceção da legislação belga. A este respeito, na medida em que este último ponto não é contestado, o órgão jurisdicional de reenvio parte da premissa de que X também tem residência na Bélgica e que o seu automóvel também se destina a ser usado de forma permanente nesse Estado‑Membro.

18      Nestas circunstâncias, o Hoge Raad der Nederlanden decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O exercício de competências fiscais por dois Estados‑Membros, em especial a cobrança de um imposto sobre o registo, é ilimitado numa situação em que um cidadão da União, à luz das [suas] legislações nacionais, é residente em dois Estados‑Membros, e em que efetivamente usa, de modo permanente, em ambos os Estados‑Membros, um veículo [motorizado] de sua propriedade?

2)      Em caso de resposta negativa à primeira questão, o princípio da proporcionalidade no âmbito da cobrança de um imposto sobre o registo tem um efeito corretor num caso como o vertente, e, se assim for, esse princípio implica que um ou ambos os Estados‑Membros devem limitar o exercício da sua competência fiscal, e de que forma deve essa limitação ser efetuada?»

 Quanto às questões prejudiciais

19      A título preliminar, há que salientar que, nas suas questões, o órgão jurisdicional de reenvio não fornece nenhuma indicação sobre que disposição ou disposições do direito da União o Tribunal de Justiça deve basear a sua apreciação.

20      A este respeito, em circunstâncias semelhantes, o Tribunal de Justiça precisou que lhe cabe extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, nomeadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos de direito da União relevantes, tendo em conta o objeto do litígio no processo principal (acórdão de 5 de maio de 2011, Bartlett e o., C‑537/09, Colet., p. I‑3417, n.° 36).

21      No caso vertente, tendo em consideração o facto de X ser uma cidadã belga que exerce uma atividade independente de ortodontista nos Países Baixos e de o aviso de liquidação em questão no processo principal lhe ter sido enviado em julho de 2006, o Tribunal de Justiça deve apreciar as questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio à luz da liberdade de estabelecimento prevista no artigo 43.° CE.

22      Por conseguinte, as questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, que cabe examinar em conjunto, devem ser entendidas como visando saber, no essencial, se o artigo 43.° CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que sujeita a um imposto, no momento da primeira utilização na rede viária nacional, um veículo automóvel registado e que já foi objeto de imposto sobre o registo noutro Estado‑Membro, quando esse veículo se destina essencialmente a ser usado de modo efetivo e permanente nesses dois Estados‑Membros ou é, de facto, usado dessa forma.

23      A este respeito, importa recordar, sem prejuízo de determinadas exceções não relevantes para o processo principal, que a tributação dos veículos automóveis não foi harmonizada a nível da União Europeia. Os Estados‑Membros são, portanto, livres de exercer a sua competência fiscal neste domínio, na condição de o fazerem respeitando o direito da União (v. acórdão de 26 de abril de 2012, van Putten e o., C‑578/10 a C‑580/10, n.° 37 e jurisprudência referida, e despacho de 27 de abril de 2012, Notermans‑Boddenberg, C‑114/11, n.° 21).

24      No que diz respeito aos impostos sobre o registo de veículos, é jurisprudência constante que um Estado‑Membro pode sujeitar a um imposto sobre o registo um veículo automóvel matriculado noutro Estado‑Membro quando o referido veículo se destina a ser essencialmente utilizado no território do primeiro Estado‑Membro a título permanente ou quando for, de facto, utilizado dessa maneira (v. acórdão van Putten e o., já referido, n.° 46, e despacho Notermans‑Boddenberg, já referido, n.° 26).

25      Em particular, quanto ao imposto VM, o Tribunal de Justiça teve a oportunidade de constatar que, se veículos não matriculados nos Países Baixos se destinam a ser essencialmente utilizados no território dos Países Baixos a título permanente ou se são, de facto, utilizados desta maneira, a diferença de tratamento entre a pessoa que reside nos Países Baixos e que utilize tal veículo e a pessoa que utilize, nas mesmas condições, um veículo matriculado nesse Estado‑Membro não existe, dado que esse veículo, que está igualmente destinado a ser essencialmente utilizado no território dos Países Baixos a título permanente, foi já objeto do imposto VM ao ser matriculado nos Países Baixos (v. acórdão van Putten e o., já referido, n.° 50, e despacho Notermans‑Boddenberg, já referido, n.° 27).

26      De igual modo, declarou que, nestas condições, a exigência do imposto VM, quando da primeira utilização na rede viária dos Países Baixos, de veículos não matriculados nos Países Baixos é justificada do mesmo modo que o imposto devido pela matrícula do veículo nos Países Baixos, sempre que o referido imposto tenha em conta, como parece resultar da Lei de 1992, a depreciação do veículo no momento dessa primeira utilização (v. acórdão van Putten e o., já referido, n.° 51, e despacho Notermans‑Boddenberg, já referido, n.° 28).

27      O órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o simples facto de um veículo se destinar essencialmente a ser usado de modo efetivo e permanente ou seja, de facto, usado desse modo, não apenas em território dos Países Baixos mas também no território do Estado‑Membro do seu registo, deve implicar limites ao exercício das competências fiscais desses dois Estados‑Membros.

28      A este respeito, importa recordar que, não havendo harmonização ao nível da União, os inconvenientes que podem resultar do exercício paralelo das competências fiscais dos diferentes Estados‑Membros, desde que esse exercício não seja discriminatório, não constituem restrições às liberdades de circulação (v. acórdão de 8 de dezembro de 2011, Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, C‑157/10, Colet., p. I‑13023, n.° 38).

29      Por outro lado, conforme salientou a advogada‑geral no n.° 48 das suas conclusões, remetendo para o acórdão Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, já referido (n.° 39), mesmo admitindo que o facto gerador do imposto VM e do imposto sobre o início da utilização belga é o mesmo, importa recordar que os Estados‑Membros não são obrigados a adaptar o seu próprio sistema fiscal aos diferentes sistemas de tributação dos outros Estados‑Membros, nomeadamente para eliminar a dupla tributação.

30      Neste caso, ainda que a viatura em questão no processo principal seja utilizada por X tanto para fins privados como para se deslocar para o seu lugar de trabalho, situado noutro Estado‑Membro, a legislação em questão no processo principal não implica uma desvantagem para a interessada relativamente às pessoas que exercem uma atividade independente que já eram sujeitos passivos do imposto VM, dado que todos as pessoas residentes nos Países Baixos, quer exerçam ou não tal atividade, estão sujeitas a esse imposto, seja no momento da inscrição de um veículo motorizado no registo automóvel neerlandês seja a partir da primeira utilização de tal veículo, registado noutro Estado‑Membro, na rede viária dos Países Baixos (v., neste sentido, relativamente ao artigo 39.° CE, despacho Notermans‑Boddenberg, já referido, n.° 30).

31      Daqui resulta que a desvantagem fiscal sofrida por X, atendendo à situação em que aquela exercia as suas atividades anteriormente ao exercício da sua liberdade de estabelecimento nos Países Baixos, que decorre apenas do exercício não discriminatório, por parte dos dois Estados‑Membros em questão, das suas competências fiscais, não contraria o artigo 43.° CE.

32      Atendendo às considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que o artigo 43.° CE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à legislação de um Estado‑Membro que sujeita a imposto, no momento da primeira utilização na rede viária nacional, um veículo automóvel já registado e sujeito ao imposto sobre o registo noutro Estado‑Membro, quando esse veículo se destina essencialmente a ser usado de modo efetivo e permanente nesses dois Estados‑Membros ou é, de facto, usado desse modo, desde que esse imposto não seja discriminatório.

 Quanto às despesas

33      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

O artigo 43.° CE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à legislação de um Estado‑Membro que sujeita a imposto, no momento da primeira utilização na rede viária nacional, um veículo automóvel já registado e sujeito ao imposto sobre o registo noutro Estado‑Membro, quando esse veículo se destina essencialmente a ser usado de modo efetivo e permanente nesses dois Estados‑Membros ou é, de facto, usado desse modo, desde que esse imposto não seja discriminatório.

Assinaturas


* Língua do processo: neerlandês.