Language of document : ECLI:EU:C:2013:249

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

18 de abril de 2013 (*)

«Segurança social — Regulamento (CEE) n.° 1408/71 — Artigo 1.°, alínea r) — Conceito de ‘períodos de seguro’ — Artigo 46.° — Cálculo da pensão de reforma — Períodos de seguro a tomar em consideração — Trabalhador fronteiriço — Período de incapacidade para o trabalho — Cúmulo de prestações semelhantes pagas por dois Estados‑Membros — Não tomada em conta deste período como período de seguro — Requisito de residência — Regras nacionais anticumulação»

No processo C‑548/11,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Arbeidshof te Antwerpen (Bélgica), por decisão de 27 de outubro de 2011, entrado no Tribunal de Justiça em 31 de outubro de 2011, no processo

Edgard Mulders

contra

Rijksdienst voor Pensioenen,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: M. Ilešič, presidente de secção, E. Jarašiūnas, A. Ó Caoimh (relator), C. Toader e C. G. Fernlund, juízes,

advogado‑geral: P. Cruz Villalón,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do Governo belga, por M. Jacobs e L. Van den Broeck, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por V. Kreuschitz e M. van Beek, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 1.°, alínea r), e 46.° do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, na sua versão alterada e atualizada pelo Regulamento (CE) n.° 118/97 do Conselho, de 2 de dezembro de 1996 (JO 1997, L 28, p. 1, a seguir «Regulamento n.° 1408/71»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe E. Mulders ao Rijksdienst voor Pensioenen (Serviço Nacional de Pensões belga, a seguir «RVP»), a respeito da não tomada em conta, para efeitos do cálculo da sua pensão de reforma na Bélgica, de um período de incapacidade para o trabalho a título do qual beneficiou de uma prestação de seguro de doença noutro Estado‑Membro, concretamente, nos Países Baixos.

 Quadro jurídico

 Regulamentação da União

3        O artigo 1.° do Regulamento n.° 1408/71 dispõe:

«Para efeitos da aplicação do presente regulamento:

[...]

r)      A expressão ‘períodos de seguro’ designa os períodos de contribuições, de emprego ou de atividade não assalariada definidos ou considerados como períodos de seguro pela legislação ao abrigo da qual foram cumpridos, bem como quaisquer períodos equiparados na medida em que sejam considerados por essa legislação como equivalentes a períodos de seguro;

[...]»

4        O artigo 13.° deste regulamento, que consta do título II deste último, sob a epígrafe «Determinação da legislação aplicável», prevê, no seu n.° 2, uma série de regras com vista a determinar a legislação aplicável em matéria de segurança social. Aí se refere que essas regras são aplicáveis sem prejuízo do disposto nos artigos 14.° a 17.° do referido regulamento, as quais incluem diversas regras especiais.

5        O artigo 13.°, n.° 2, alínea a), do Regulamento n.° 1408/71 dispõe:

«A pessoa que exerça uma atividade assalariada no território de um Estado‑Membro está sujeita à legislação desse Estado, mesmo se residir no território de outro Estado‑Membro ou se a empresa ou entidade patronal que a emprega tiver a sua sede ou domicílio no território de outro Estado‑Membro».

6        O artigo 13.°, n.° 2, alínea f), deste regulamento, inserido neste último pelo Regulamento (CEE) n.° 2195/91 do Conselho, de 25 de junho de 1991 (JO L 206, p. 2), com efeitos a contar de 29 de julho de 1991, prevê:

«A pessoa à qual a legislação de um Estado‑Membro deixa de ser aplicável, sem que lhe seja aplicável a legislação de um outro Estado‑Membro em conformidade com uma das regras enunciadas nas alíneas precedentes ou com uma das exceções ou regras especiais constantes dos artigos 14.° a 17.°, está sujeita à legislação do Estado‑Membro no território do qual reside, de acordo com as disposições desta legislação.»

7        Nos termos do terceiro considerando do Regulamento n.° 2195/91:

«considerando que é preciso, na sequência do acórdão [de 12 de junho de 1986, Ten Holder, 302/84, Colet., p. 1821], introduzir uma nova alínea f) no n.° 2 do artigo 13.° do Regulamento […] n.° 1408/71, de forma a determinar a legislação aplicável às pessoas às quais a legislação de um Estado‑Membro deixa de ser aplicável sem que lhes seja aplicável a legislação de um outro Estado‑Membro, em conformidade com uma das regras enunciadas nas alíneas precedentes do referido n.° 2 do artigo 13.° ou com uma das exceções previstas nos artigos 14.° a 17.° do regulamento em causa; [...]».

8        Figurando no título III do Regulamento n.° 1408/71, intitulado «Disposições especiais relativas às diferentes categorias de prestações», e no capítulo 3 deste regulamento, intitulado «Velhice e Morte (Pensões)», o artigo 46.° do referido regulamento, sob a epígrafe «Liquidação das prestações», tem a seguinte redação:

«1.      Quando as condições exigidas pela legislação de um Estado‑Membro para haver direito às prestações se encontrem preenchidas sem que seja necessário aplicar o disposto no artigo 45.° nem no n.° 3 do artigo 40.°, aplicar‑se‑ão as seguintes regras:

a)      A instituição competente calcula o montante da prestação devida:

i)      Por um lado, unicamente por força das disposições da legislação por ela aplicada;

ii)      Por outro lado, em aplicação das disposições do n.° 2;

b)      A instituição competente pode, porém, renunciar ao cálculo a efetuar em conformidade com o disposto na alínea a), subalínea ii), se o resultado deste for igual ou inferior ao do cálculo efetuado de acordo com a alínea a), subalínea i), abstraindo as diferenças devidas aos arredondamentos, na medida em que essa instituição não aplique uma legislação que contenha cláusulas de cumulações como as referidas nos artigos 46.°‑B e 46.°‑C ou se a legislação as contiver no caso referido no artigo 46.°‑C, desde que preveja a tomada em consideração das prestações de natureza diferente apenas em função da relação entre a duração dos períodos de seguro ou de residência cumpridos unicamente nos termos da sua legislação e a duração dos períodos de seguro e de residência exigidos por essa legislação para beneficiar de uma prestação completa.

[...]

2.      Quando as condições exigidas pela legislação de um Estado‑Membro para a obtenção do direito às prestações só estiverem preenchidas tendo em conta o disposto no artigo 45.° e/ou no n.° 3 do artigo 40.°, aplicar‑se‑ão as seguintes regras:

a)      A instituição competente calcula o montante teórico da prestação que o interessado poderia pretender se todos os períodos de seguro e/ou de residência cumpridos ao abrigo das legislações dos Estados‑Membros às quais esteve sujeito o trabalhador assalariado ou não assalariado tivessem sido cumpridos no Estado‑Membro em causa e ao abrigo da legislação por ela aplicada à data da liquidação da prestação. Se, nos termos desta legislação, o montante da prestação não depender da duração dos períodos cumpridos, considera‑se este montante como o montante teórico referido na presente alínea;

b)      Em seguida, a instituição competente determina o montante efetivo da prestação com base no montante teórico referido na alínea anterior, na proporção da duração dos períodos de seguro ou de residência cumpridos antes da ocorrência do risco ao abrigo da legislação que aplica, em relação à duração total dos períodos de seguro e de residência cumpridos, antes da ocorrência do risco, ao abrigo das legislações de todos os Estados‑Membros em causa.

3.      O interessado tem direito, por parte da instituição competente de cada Estado‑Membro em causa, ao montante mais elevado calculado em conformidade com o disposto nos n.os 1 e 2, sem prejuízo, se for caso disso, da aplicação das cláusulas de redução, de suspensão ou de supressão previstas pela legislação por força da qual esta prestação é devida.

Se assim for, a comparação a efetuar incide sobre os montantes calculados após a aplicação das referidas cláusulas.

[...]»

9        Nos termos do artigo 86.° do Regulamento n.° 1408/71, que figura no título VI deste último, intitulado «Disposições diversas»:

«1.      Os pedidos, declarações ou recursos que deveriam ser apresentados, em aplicação da legislação de um Estado‑Membro, num determinado prazo, a uma autoridade, instituição ou órgão jurisdicional deste Estado[…] são admissíveis se forem apresentados no mesmo prazo, a uma autoridade, instituição ou órgão jurisdicional correspondente de outro Estado‑Membro. Neste caso, a autoridade, instituição ou órgão jurisdicional ao qual tenha sido submetido o assunto transmite imediatamente aqueles pedidos, declarações ou recursos à autoridade, instituição ou órgão jurisdicional competente do primeiro Estado, quer diretamente quer por intermédio das autoridades competentes dos Estados‑Membros em causa. [...]

[...]»

 Regulamentação neerlandesa

10      O artigo 6.° da Lei relativa ao regime geral do seguro de velhice (Algemene Ouderdomswet, a seguir «AOW neerlandesa») dispõe no seu n.° 1:

«1.      Está segurado em conformidade com as disposições da presente lei quem ainda não tiver cumprido os 65 anos de idade e [...]

a.      for residente, ou

b.      não sendo residente, esteja, porém, sujeito ao imposto sobre os rendimentos por trabalho prestado no quadro de uma relação laboral nos Países Baixos ou na plataforma continental.»

11      Os Decretos Reais n.° 557, de 19 de outubro de 1976, e n.° 164, de 3 de maio de 1999, excluem, para efeitos da constituição de uma pensão com base na AOW neerlandesa, o cúmulo das prestações recebidas ao abrigo da Lei relativa ao regime geral do seguro contra a incapacidade para o trabalho (Wet op de arbeidsongeschiktheidsverzekering, a seguir «WAO neerlandesa») com as prestações recebidas em conformidade com uma regulamentação estrangeira, não sendo os beneficiários de tal cúmulo considerados segurados ao abrigo da AOW neerlandesa.

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

12      E. Mulders, nacional belga residente na Bélgica, trabalhou nesse Estado‑Membro a partir de 25 de janeiro de 1957.

13      Na sequência de um acidente de trabalho ocorrido em 2 de outubro de 1962, foi reconhecida ao interessado uma percentagem de invalidez permanente de 10%. A contar de 1 de janeiro de 1969, o Fundo para os acidentes de trabalho belga atribuiu‑lhe uma prestação a título desta invalidez permanente.

14      A partir de 14 de novembro de 1966, E. Mulders esteve empregado como trabalhador fronteiriço em Maastricht (Países Baixos).

15      Em 10 de fevereiro de 1982, E. Mulders foi declarado incapacitado para o trabalho nos Países Baixos e, consequentemente, recebeu, a título das prestações do seguro de doença, a prestação prevista pela WAO neerlandesa, correspondente a uma percentagem de incapacidade para o trabalho de 80% a 100% (a seguir «prestação WAO»). Foram retidas contribuições desta prestação, incluindo contribuições para o seguro de velhice do regime da AOW neerlandesa, a favor do regime de segurança social neerlandesa.

16      E. Mulders recebeu a prestação WAO até 25 de outubro de 1997.

17      No decurso do ano de 1996, E. Mulders requereu a liquidação da sua pensão tanto nos Países Baixos, à Sociale Verzekeringsbank van Amstelveen (Caixa da Segurança Social de Amstelveen, a seguir «SV neerlandesa»), como na Bélgica, ao RVP.

18      Por decisão de 20 de novembro de 1997, o RVP atribuiu uma pensão de reforma a E. Mulders. Todavia, para o cálculo desta pensão, não tomou em conta o período compreendido entre 10 de fevereiro de 1982, data em que foi reconhecida ao interessado a incapacidade para o trabalho nos Países Baixos, e 25 de outubro de 1997. O RVP baseou a sua decisão na síntese transmitida pela SV neerlandesa que indicava os períodos durante os quais E. Mulders tinha estado segurado nos Países Baixos.

19      Em 13 de janeiro de 1998, no quadro do exame do pedido de pensão apresentado por E. Mulders nos Países Baixos, a SV neerlandesa concluiu que, durante o período acima mencionado, E. Mulders não tinha estado segurado pelo regime da AOW neerlandesa, visto que tinha recebido, juntamente com a prestação WAO, uma renda ao abrigo do regime de seguro dos acidentes de trabalho na Bélgica. Este cúmulo não é autorizado pela legislação neerlandesa e exclui a possibilidade de beneficiar do seguro previsto pelo regime da AOW neerlandesa.

20      Por petição de 12 de fevereiro de 1998, E. Mulders interpôs recurso da decisão do RVP no Arbeidsrechtbank te Tongeren (Tribunal de Trabalho de Tongres).

21      Por sentença de 9 de junho de 1999, esse órgão jurisdicional negou provimento a este recurso. Todavia, remeteu para o órgão jurisdicional neerlandês competente, nos termos do artigo 86.° do Regulamento n.° 1408/71, o pedido de E. Mulders relativo ao reconhecimento do período compreendido entre 10 de fevereiro de 1982 e 25 de outubro de 1997, inclusive, como período de seguro para efeitos da pensão de reforma.

22      Em 8 de julho de 1999, E. Mulders interpôs recurso da sentença proferida em 9 de junho de 1999 pelo Arbeidsrechtbank te Tongeren no Arbeidshof te Antwerpen (Tribunal de Trabalho de Segunda Instância de Antuérpia). Alegou que a não tomada em conta do período da incapacidade para o trabalho subsequente à cessação definitiva das suas atividades assalariadas nos Países Baixos é suscetível de afetar o seu direito de livre circulação reconhecido pelo direito da União, fazendo‑lhe perder vantagens que lhe são garantidas pela legislação de um Estado‑Membro.

23      Em 24 de novembro de 1999, com base nos documentos transmitidos pelo Arbeidsrechtbank te Tongeren, a SV neerlandesa considerou que, durante o período em questão, E. Mulders não tinha estado segurado ao abrigo do regime da AOW neerlandesa. Segundo essa autoridade, uma vez que E. Mulders tinha cessado definitivamente de trabalhar nos Países Baixos em 10 de fevereiro de 1982, a sua situação, relativamente ao seguro de velhice, devia ser apreciada, a contar desta data, exclusivamente com base na regulamentação neerlandesa, tendo deixado, a seu respeito, de produzir efeitos as regras de determinação da legislação aplicável previstas pelo Regulamento n.° 1408/71. Além disso, a SV neerlandesa alegou que, no tocante ao período compreendido entre 10 de fevereiro de 1982 e 25 de outubro de 1997, E. Mulders não cumpria o exigido pelo artigo 6.°, n.° 1, alínea b, da AOW neerlandesa — o qual prevê que, para estar segurada ao abrigo da referida lei, a pessoa que não resida nos Países Baixos deve exercer, nesse Estado‑Membro, uma atividade assalariada sujeita ao imposto sobre o rendimento — nem pela regulamentação neerlandesa, a qual exclui o cúmulo da prestação WAO com prestações recebidas em conformidade com uma regulamentação estrangeira.

24      Resulta das observações da Comissão Europeia, a qual se refere às indicações fornecidas pelo RVP no processo principal, que E. Mulders não interpôs recurso desta decisão da SV neerlandesa.

25      Nestas condições, o Arbeidshof te Antwerpen decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 46.° do Regulamento [...] n.° 1408/71 [...] é violado quando, para efeitos do cálculo da pensão de um trabalhador migrante, um período de incapacidade para o trabalho durante o qual foram pagas uma prestação por incapacidade para o trabalho e contribuições ao abrigo da [AOW neerlandesa] não é considerado ‘período de seguro’ na aceção do artigo 1.°, alínea r), do mesmo regulamento?»

 Quanto à questão prejudicial

 Quanto à admissibilidade

26      O Governo belga considera que o presente pedido de decisão prejudicial deve ser julgado inadmissível, visto que a decisão de reenvio não expõe de modo bastante o quadro factual nem as regulamentações belga e neerlandesa com base nas quais foi adotada a decisão do RVP e também não indica as razões que levaram a que o órgão jurisdicional de reenvio concluísse ser necessário submeter uma questão prejudicial.

27      Importa recordar que, segundo jurisprudência assente, as questões relativas à interpretação do direito da União colocadas pelo juiz nacional no quadro factual e regulamentar que o mesmo define sob sua responsabilidade, e cuja exatidão não compete ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não disponha dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (acórdão de 22 de junho de 2010, Melki e Abdeli, C‑188/10 e C‑189/10, Colet., p. I‑5667, n.° 27 e jurisprudência referida).

28      Resulta igualmente de jurisprudência assente que a necessidade de se chegar a uma interpretação do direito da União que seja útil ao órgão jurisdicional nacional exige que este defina o quadro factual e regulamentar no qual se inserem as questões que coloca ou que, pelo menos, explique as hipóteses factuais em que assentam essas questões. Por outro lado, a decisão de reenvio deve indicar as razões precisas que conduziram o juiz nacional a interrogar‑se sobre a interpretação do direito da União e a considerar necessário apresentar questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça (acórdão de 8 de setembro de 2009, Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, C‑42/07, Colet., p. I‑7633, n.° 40).

29      Ora, cumpre constatar que a questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio tem por objeto a interpretação de disposições do Regulamento n.° 1408/71 num verdadeiro litígio no quadro do qual, como resulta, designadamente, do n.° 22 do presente acórdão, E. Mulders alega que a não tomada em conta, para efeitos do cálculo da sua pensão de reforma na Bélgica, do período durante o qual recebeu a prestação WAO é suscetível de afetar a livre circulação dos trabalhadores consagrada pelo direito da União. Decorre da decisão de reenvio, na qual está exposto o quadro factual e regulamentar do litígio no processo principal, que o órgão jurisdicional de reenvio se interroga sobre a conformidade com o referido regulamento da não tomada em conta desse período.

30      Nestas condições, o presente pedido de decisão prejudicial é admissível.

 Quanto ao mérito

31      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se os artigos 1.°, alínea r), e 46.° do Regulamento n.° 1408/71 devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que, quando do cálculo da pensão de reforma num Estado‑Membro, um período de incapacidade para o trabalho, durante o qual uma prestação de seguro de doença, sobre a qual foram retidas contribuições a título do seguro de velhice, foi paga noutro Estado‑Membro a um trabalhador migrante, não seja considerado um «período de seguro» na aceção dessas disposições pela legislação desse outro Estado‑Membro, pelo facto de o interessado não ser residente deste último Estado e/ou ter beneficiado de uma prestação semelhante ao abrigo da legislação do primeiro Estado‑Membro, a qual não podia ser objeto de cúmulo com esta prestação de seguro de doença.

32      Importa realçar desde logo que, contrariamente ao que as autoridades neerlandesas alegaram no quadro do processo principal, a circunstância de E. Mulders ter definitivamente cessado de trabalhar nos Países Baixos em 10 de fevereiro de 1982 não implica de modo algum que a sua situação relativamente ao seguro de velhice deva ser apreciada, a contar desta data, exclusivamente com base na regulamentação neerlandesa, pelo facto de as regras de determinação da legislação aplicável previstas no artigo 13.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1408/71 já não produzirem efeitos a seu respeito.

33      Na verdade, no momento em que E. Mulders cessou definitivamente de trabalhar, a saber, em 10 de fevereiro de 1982, o artigo 13.°, n.° 2, alínea f), do Regulamento n.° 1408/71, que determina, nomeadamente, a legislação aplicável às pessoas que tenham cessado definitivamente qualquer atividade (acórdão de 14 de outubro de 2010, van Delft e o., C‑345/09, Colet., p. I‑9879, n.° 46 e jurisprudência referida), ainda não tinha entrado em vigor, pois esta disposição só foi inserida no referido regulamento a contar de 29 de julho de 1991, na sequência da adoção do Regulamento n.° 2195/91.

34      Todavia, cabe constatar que, já antes desta data, como resulta do terceiro considerando do Regulamento n.° 2195/91, o Tribunal de Justiça tinha declarado que, apesar de o artigo 13.°, n.° 2, alínea a), do Regulamento n.° 1408/71 não mencionar expressamente o caso de um trabalhador que não exercia qualquer atividade no momento em que pretendia beneficiar de prestações do seguro de doença, esta disposição visava, quando necessário, a legislação do Estado no território do qual o trabalhador tinha exercido uma atividade em último lugar, pelo que um trabalhador que tivesse cessado de exercer as suas atividades no território de um Estado‑Membro e não fosse trabalhar para o território de outro Estado‑Membro continuava a estar sujeito à legislação do Estado‑Membro no qual tinha exercido uma atividade em último lugar (v., neste sentido, acórdãos de 12 de janeiro de 1983, Coppola, 150/82, Recueil, p. 43, n.° 11, e Ten Holder, já referido, n.os 13 a 15).

35      Daqui resulta que uma pessoa como E. Mulders, o qual, no processo principal, cessou definitivamente de trabalhar antes de 29 de julho de 1991 e não voltou a trabalhar posteriormente, caía no âmbito de aplicação das disposições do artigo 13.°, n.° 2, alínea a), do Regulamento n.° 1408/71, as quais, uma vez que a última atividade de E. Mulders tinha sido exercida nos Países Baixos, designavam a legislação neerlandesa como sendo a legislação aplicável.

36      No caso vertente, resulta da decisão de reenvio que, segundo essa legislação nacional, a tomada em conta enquanto período de seguro, para efeitos do cálculo de uma pensão de reforma, de um período de incapacidade para o trabalho a título do qual foi paga uma prestação do seguro de doença está subordinada ao requisito de o interessado residir no território nacional se tiver cessado, como no processo principal, qualquer atividade assalariada sujeita ao imposto sobre os rendimentos nos Países Baixos e ao de esta prestação não ser objeto de cúmulo com uma prestação semelhante atribuída ao abrigo de uma regulamentação estrangeira, estando excluído o benefício do seguro previsto pela AOW neerlandesa quando não estejam preenchidos qualquer um destes dois requisitos.

37      Importa recordar que, em conformidade com o artigo 1.°, alínea r), do Regulamento n.° 1408/71, os requisitos de que depende a constituição dos períodos de seguro são definidos exclusivamente pela legislação do Estado‑Membro ao abrigo da qual os períodos em causa foram cumpridos (v., designadamente, acórdãos de 17 de setembro de 1997, Iurlaro, C‑322/95, Colet., p. I‑4881, n.° 28, e de 3 de março de 2011, Tomaszewska, C‑440/09, Colet., p. I‑1033, n.° 26).

38      Todavia, resulta de jurisprudência assente que, ao fixar os referidos requisitos, os Estados‑Membros devem respeitar o direito da União e, designadamente, o objetivo prosseguido pelo Regulamento n.° 1408/71, bem como os princípios em que este assenta (acórdão Tomaszewska, já referido, n.° 27), assim como os artigos 45.° TFUE a 48.° TFUE que consagram a livre circulação dos trabalhadores (v., neste sentido, acórdãos Iurlaro, já referido, n.° 28, e de 3 de outubro de 2002, Barreira Pérez, C‑347/00, Colet., p. I‑8191, n.° 23).

39      A este respeito, cabe recordar que, segundo jurisprudência assente, as disposições do Regulamento n.° 1408/71 que determinam a legislação aplicável, das quais o artigo 13.° deste último faz parte, têm por finalidade não só evitar a aplicação simultânea de várias legislações nacionais e as complicações que daí podem resultar mas também impedir que as pessoas abrangidas pelo Regulamento n.° 1408/71 sejam privadas de proteção em matéria de segurança social, por falta de legislação aplicável (acórdãos de 11 de junho de 1998, Kuusijärvi, C‑275/96, Colet., p. I‑3419, n.° 28; de 7 de julho de 2005, van Pommeren‑Bourgondiën, C‑227/03, Colet., p. I‑6101, n.° 34; e de 21 de fevereiro de 2013, Dumont de Chassart, C‑619/11, n.° 38).

40      Assim, estas disposições do Regulamento n.° 1408/71 constituem um sistema completo de normas de conflitos que tem como efeito retirar aos legisladores nacionais o poder de determinar o âmbito e as condições de aplicação da sua legislação nacional sobre a matéria, quanto às pessoas que a ela estão sujeitas e quanto ao território no qual as disposições nacionais produzem efeitos (acórdão van Delft e o., já referido, n.° 51).

41      Consequentemente, os requisitos de cujo preenchimento os Estados‑Membros fazem depender a constituição dos períodos de seguro não podem, em caso algum, ter por efeito excluir do âmbito de aplicação de uma legislação nacional as pessoas às quais, por força do Regulamento n.° 1408/71, esta mesma legislação é aplicável (v., neste sentido, acórdão de 17 de janeiro de 2012, Salemink, C‑347/10, n.° 40 e jurisprudência referida).

42      Ora, como alegou acertadamente a Comissão, é este o efeito produzido pela regulamentação em causa no processo principal, na medida em que subordina o benefício do seguro previsto pela AOW neerlandesa a um requisito de residência, o qual conduz à exclusão da tomada em conta, para o cálculo de uma pensão de reforma, do período de incapacidade para o trabalho sofrido por um não residente.

43      Com efeito, à data em que essa pessoa cessou as suas atividades assalariadas, o artigo 13.°, n.° 2, alínea a), do Regulamento n.° 1408/71 impunha o princípio segundo o qual tal pessoa permanecia sujeita à legislação do Estado‑Membro no qual tinha exercido a sua última atividade, mesmo quando residisse no território de outro Estado‑Membro.

44      Esta disposição não seria respeitada se o requisito de residência imposto pela legislação do Estado‑Membro no território do qual a pessoa em causa cessou a sua atividade assalariada, para efeitos de admissão ao regime de seguro que esta legislação prevê em matéria de pensão de reforma, fosse oponível às pessoas visadas no referido artigo 13.°, n.° 2, alínea a). No que respeita a essas pessoas, esta disposição tem por efeito substituir a condição de residência por uma condição fundada no exercício de uma atividade assalariada no território do Estado‑Membro em causa (v. acórdão Salemink, já referido, n.° 41).

45      Cumpre ainda recordar que, embora o direito primário da União não possa garantir a um segurado que uma deslocação para outro Estado‑Membro seja neutra em matéria de segurança social, designadamente no plano das prestações de doença e das pensões de velhice, podendo tal deslocação, consoante os casos e tendo em conta as divergências existentes entre os regimes e as legislações dos Estados‑Membros, ser mais ou menos vantajosa ou desvantajosa para a pessoa em causa no plano da proteção social, resulta de jurisprudência assente que, no caso em que a sua aplicação é menos favorável, uma regulamentação nacional apenas é conforme com o direito da União desde que, nomeadamente, essa regulamentação nacional não prejudique o trabalhador em causa relativamente aos trabalhadores que exercem todas as suas atividades no Estado‑Membro onde tal regulamentação se aplica e não conduza pura e simplesmente ao pagamento de contribuições para a segurança social a fundo perdido (v., neste sentido, acórdãos de 19 de março de 2002, Hervein e o., C‑393/99 e C‑394/99, Colet., p. I‑2829, n.° 51; de 9 de março de 2006, de 9 de março de 2006, Piatkowski, C‑493/04, Colet., p. I‑2369, n.° 34; van Delft e o., já referido, n.os 100 e 101; e de 30 de junho de 2011, da Silva Martins, C‑388/09, Colet., p. I‑5737, n.os 72 e 73).

46      Como o Tribunal de Justiça decidiu reiteradamente, o objetivo prosseguido pelos artigos 45.° TFUE e 48.° TFUE não seria atingido se, devido ao exercício do seu direito de livre circulação, os trabalhadores migrantes perdessem os benefícios da segurança social conferidos pela legislação de um Estado‑Membro, nomeadamente quando esses benefícios representam a contrapartida de contribuições que pagaram (v., designadamente, acórdãos de 21 de outubro de 1975, Petroni, 24/75, Colet., p. 391, n.° 13, e da Silva Martins, já referido, n.° 74 e jurisprudência referida).

47      Ora, cumpre constatar que estes requisitos não são respeitados quando, como é o caso no processo principal, uma regulamentação de um Estado‑Membro exclui enquanto período de seguro para efeitos do cálculo de uma pensão de reforma de um trabalhador migrante qualquer período no decurso do qual tenham sido pagas por este contribuições a título do seguro de velhice e quando está assente que este período teria sido levado em conta se o interessado tivesse tido a sua residência nesse Estado‑Membro.

48      É irrelevante a este respeito que, devido à existência de uma regra nacional anticumulação, a prestação de seguro de doença sobre a qual foram retidas estas contribuições não podia ser objeto de cúmulo com uma prestação semelhante, a qual, no processo principal, foi paga ao interessado no decurso do referido período ao abrigo da regulamentação de outro Estado‑Membro. Com efeito, para além do facto de esta regra nacional anticumulação não ter sido aplicada pelas autoridades nacionais competentes quando do pagamento das prestações a que esta regra diz respeito, tendo esta sido unicamente invocada a posteriori para efeitos do cálculo de uma prestação distinta, concretamente, uma pensão de reforma, o certo é que, visto que foram efetivamente retidas contribuições a título do seguro de velhice sobre a prestação do seguro de doença paga ao interessado por estas autoridades, estas contribuições seriam pagas a fundo perdido se a referida regra lhe pudesse ser oponível.

49      Atendendo ao conjunto das considerações precedentes, há que responder à questão submetida que os artigos 1.°, alínea r), e 46.° do Regulamento n.° 1408/71, lidos à luz do artigo 13.°, n.° 2, alínea a), deste regulamento e dos artigos 45.° TFUE e 48.° TFUE, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que, quando do cálculo da pensão de reforma num Estado‑Membro, um período de incapacidade para o trabalho, durante o qual uma prestação de seguro de doença, sobre a qual foram retidas contribuições a título do seguro de velhice, foi paga noutro Estado‑Membro a um trabalhador migrante, não seja considerado um «período de seguro» na aceção destas disposições pela legislação desse outro Estado‑Membro, pelo facto de o interessado não ser residente deste último Estado e/ou ter beneficiado de uma prestação semelhante ao abrigo da legislação do primeiro Estado‑Membro, a qual não podia ser objeto de cúmulo com esta prestação de seguro de doença.

 Quanto às despesas

50      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

Os artigos 1.°, alínea r), e 46.° do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, na sua versão alterada e atualizada pelo Regulamento (CE) n.° 118/97 do Conselho, de 2 de dezembro de 1996, lidos à luz do artigo 13.°, n.° 2, alínea a), deste regulamento e dos artigos 45.° TFUE e 48.° TFUE, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que, quando do cálculo da pensão de reforma num Estado‑Membro, um período de incapacidade para o trabalho, durante o qual uma prestação de seguro de doença, sobre a qual foram retidas contribuições a título do seguro de velhice, foi paga noutro Estado‑Membro a um trabalhador migrante, não seja considerado um «período de seguro» na aceção destas disposições pela legislação desse outro Estado‑Membro, pelo facto de o interessado não ser residente deste último Estado e/ou ter beneficiado de uma prestação semelhante ao abrigo da legislação do primeiro Estado‑Membro, a qual não podia ser objeto de cúmulo com esta prestação de seguro de doença.

Assinaturas


* Língua do processo: neerlandês.