Language of document : ECLI:EU:C:2013:820

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

12 de dezembro de 2013 (*)

«Reenvio prejudicial — Diretiva 2008/98/CE — Gestão de resíduos — Artigo 16.°, n.° 3 — Princípio da proximidade — Regulamento (CE) n.° 1013/2006 — Transferência de resíduos — Misturas de resíduos urbanos — Resíduos industriais e resíduos de construção — Concurso público para a adjudicação de uma concessão de serviços de recolha e transporte de resíduos produzidos num município — Obrigação de o futuro concessionário transportar os resíduos recolhidos para as instalações de tratamento designadas pela autoridade concedente — Instalações de tratamento adequadas mais próximas»

No processo C‑292/12,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Tartu ringkonnakohus (Estónia), por decisão de 5 de junho de 2012, entrado no Tribunal de Justiça em 11 de junho de 2012, no processo

Ragn‑Sells AS

contra

Sillamäe Linnavalitsus,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: T. von Danwitz, presidente de secção, E. Juhász, A. Rosas, D. Šváby (relator) e C. Vajda, juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: K. Malacek, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 25 de abril de 2013,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação da Ragn‑Sells AS, por E. Tamm, vandeadvokaat,

¾        em representação do Governo estónio, por M. Linntam, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo helénico, por F. Dedousi, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo austríaco, por C. Pesendorfer, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo polaco, por B. Majczyna e M. Szpunar, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, na qualidade de agente,

¾        em representação da Comissão Europeia, por A. Antoniadis, A. Alcover San Pedro e D. Düsterhaus, na qualidade de agentes, assistidos por C. Ginter, vandeadvokaat,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 35.° TFUE, 49.° TFUE, 56.° TFUE, das regras de concorrência do Tratado FUE e do artigo 16.°, n.° 3, da Diretiva 2008/98/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de novembro de 2008, relativa aos resíduos e que revoga certas diretivas (JO L 312, p. 3).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Ragn‑Sells AS (a seguir «Ragn‑Sells») ao Sillamäe Linnavalitsus (município de Sillamäe) relativamente a certas cláusulas do caderno de encargos estabelecido por este último no âmbito do concurso público para a adjudicação da concessão de serviços de recolha e transporte de resíduos produzidos no seu território.

 Quadro jurídico

 Direito da União

 Diretiva 2008/98

3        Em conformidade com o seu artigo 41.°, a Diretiva 2008/98 revogou e substituiu, a partir de 12 de dezembro de 2010, a Diretiva 2006/12/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril de 2006, relativa aos resíduos (JO L 114, p. 9), e as referências feitas à Segunda Diretiva devem ser entendidas como sendo feitas à primeira destas diretivas.

4        A Diretiva 2008/98 enuncia nos seus considerandos 6, 8, 31 e 32:

«(6)      O objetivo principal de qualquer política em matéria de resíduos deverá consistir em minimizar o impacto negativo da produção e gestão de resíduos na saúde humana e no ambiente. A política no domínio dos resíduos deverá igualmente ter por objetivo reduzir a utilização de recursos e propiciar a aplicação prática da hierarquia de resíduos.

[...]

(8)      […] deverá incentivar‑se a valorização dos resíduos e a utilização dos materiais resultantes da valorização, a fim de preservar os recursos naturais. [...]

[...]

(31)      A hierarquia dos resíduos estabelece uma ordem de prioridades do que constitui geralmente a melhor opção ambiental global na legislação e política de resíduos, embora possa ser necessário que certos fluxos específicos de resíduos se afastem dessa hierarquia sempre que tal se justifique por razões designadamente de exequibilidade técnica e viabilidade económica e de proteção ambiental.

(32)      A fim de permitir que a Comunidade no seu conjunto se torne autossuficiente em matéria de eliminação de resíduos e de valorização de misturas de resíduos urbanos recolhidos em habitações particulares e que os Estados‑Membros tendam para esse objetivo individualmente, é necessário prever o estabelecimento de uma rede de cooperação no que diz respeito às instalações de eliminação e às instalações de valorização das misturas de resíduos urbanos recolhidos em habitações particulares, tomando em consideração as circunstâncias geográficas e a necessidade de instalações especializadas para determinados tipos de resíduos.»

5        Nos termos do seu artigo 1.°, esta diretiva «estabelece medidas de proteção do ambiente e da saúde humana, prevenindo ou reduzindo os impactos adversos decorrentes da geração e gestão de resíduos, diminuindo os impactos gerais da utilização dos recursos e melhorando a eficiência dessa utilização».

6        O artigo 3.° da referida diretiva contém, para os respetivos efeitos, nomeadamente as seguintes definições:

«9)      ‘Gestão de resíduos’, a recolha, o transporte, a valorização e a eliminação de resíduos, [...]

10)      ‘Recolha’, a coleta de resíduos, incluindo a triagem e o armazenamento preliminares dos resíduos para fins de transporte para uma instalação de tratamento de resíduos;

11)      ‘Recolha seletiva’, a recolha efetuada mantendo o fluxo de resíduos separado por tipo e natureza por forma a facilitar o tratamento específico;

[...]

14)      ‘Tratamento’, qualquer operação de valorização ou de eliminação, incluindo a preparação prévia à valorização ou eliminação;

15)      ‘Valorização’, qualquer operação cujo resultado principal seja a transformação dos resíduos de modo a servirem um fim útil, substituindo outros materiais que, caso contrário, teriam sido utilizados para um fim específico, ou a preparação dos resíduos para esse fim, na instalação ou no conjunto da economia. [...]

[...]

17)      ‘Reciclagem’, qualquer operação de valorização através da qual os materiais constituintes dos resíduos são novamente transformados em produtos, materiais ou substâncias para o seu fim original ou para outros fins. Inclui o reprocessamento de materiais orgânicos, mas não inclui a valorização energética nem o reprocessamento em materiais que devam ser utilizados como combustível ou em operações de enchimento;

[...]

19)      ‘Eliminação’, qualquer operação que não seja de valorização, mesmo que tenha como consequência secundária a recuperação de substâncias ou de energia. [...]

20)      ‘Melhores técnicas disponíveis’, as melhores técnicas disponíveis tal como definidas no ponto 11 do artigo 2.° da Diretiva 96/61/CE [do Conselho, de 24 de setembro de 1996, relativa à prevenção e controlo integrados da poluição (JO L 257, p. 26)].»

7        Para a definição deste último conceito, deve, em aplicação do artigo 22.°, segundo parágrafo, da Diretiva 2008/1/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de janeiro de 2008, relativa à prevenção e controlo integrados da poluição (JO L 24, p. 8), fazer‑se referência, doravante, a esta última diretiva, que revogou e substituiu a Diretiva 96/61. Esta definição figura no artigo 2.°, ponto 12, da Diretiva 2008/1, nos seguintes termos:

«’Melhores técnicas disponíveis’, a fase de desenvolvimento mais eficaz e avançada das atividades e dos respetivos modos de exploração, que demonstre a aptidão prática de técnicas específicas para constituir, em princípio, a base dos valores‑limite de emissão com vista a evitar e, quando tal não seja possível, a reduzir de um modo geral as emissões e o impacto no ambiente no seu todo. [...]»

8        Intitulado «Hierarquia dos resíduos», o artigo 4.° da Diretiva 2008/98 dispõe no seu n.° 1:

«A hierarquia dos resíduos a seguir apresentada é aplicável enquanto princípio geral da legislação e da política de prevenção e gestão de resíduos:

a)      Prevenção e redução;

b)      Preparação para a reutilização;

c)      Reciclagem;

d)      Outros tipos de valorização, por exemplo a valorização energética; e

e)      Eliminação.»

9        O capítulo II desta diretiva, de que fazem parte os artigos 8.° a 14.° da mesma, intitula‑se «Requisitos gerais». O artigo 10.°, relativo à valorização, tem a seguinte redação:

«1.      Os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que os resíduos sejam sujeitos a operações de valorização, nos termos dos artigos 4.° e 13.°

2.      Caso tal seja necessário para cumprir o disposto no n.° 1 e para facilitar ou melhorar a valorização, os resíduos são recolhidos separadamente se tal for viável do ponto de vista técnico, ambiental e económico e não são misturados com outros resíduos ou materiais com características diferentes.»

10      O artigo 13.° da referida diretiva, intitulado «Proteção da saúde humana e do ambiente», prevê:

«Os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que a gestão de resíduos seja efetuada sem pôr em perigo a saúde humana nem prejudicar o ambiente, nomeadamente:

a)      Sem criar riscos para a água, o ar, o solo, a flora ou a fauna;

b)      Sem provocar perturbações sonoras ou por cheiros; e

c)      Sem produzir efeitos negativos na paisagem rural ou em locais de especial interesse.»

11      Os artigos 15.° a 22.° da Diretiva 2008/98 constituem o seu capítulo III, consagrado à gestão de resíduos. O artigo 15.° dispõe no seu n.° 4:

«Os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que, no respetivo território, os estabelecimentos ou empresas que procedem, a título profissional, à recolha ou transporte de resíduos entreguem os resíduos recolhidos e transportados em instalações de tratamento adequadas que cumpram o disposto no artigo 13.°»

12      Nos termos do artigo 16.° desta diretiva, intitulado «Princípios da autossuficiência e da proximidade»:

«1.      Os Estados‑Membros tomam as medidas adequadas, em cooperação com outros Estados‑Membros sempre que tal se afigure necessário ou conveniente, para a constituição de uma rede integrada e adequada de instalações de eliminação de resíduos e de instalações de valorização das misturas de resíduos urbanos recolhidos em habitações particulares, incluindo os casos em que essa recolha abranja também resíduos desse tipo provenientes de outros produtores, tendo em conta as melhores técnicas disponíveis.

[...] Os Estados‑Membros podem também limitar as saídas de resíduos por motivos ambientais nos termos do Regulamento (CE) n.° 1013/2006 [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2006, relativo a transferências de resíduos (JO L 190, p. 1)].

2.      A rede deve ser concebida de modo a permitir que a Comunidade no seu conjunto se torne autossuficiente em matéria de eliminação de resíduos e de valorização dos resíduos a que se refere o n.° 1, bem como a permitir que os Estados‑Membros tendam individualmente para esse objetivo, tomando em consideração as circunstâncias geográficas ou a necessidade de instalações especializadas para determinados tipos de resíduos.

3.      A rede deve permitir a eliminação de resíduos ou a valorização dos resíduos a que se refere o n.° 1 numa das instalações adequadas mais próximas, com recurso às tecnologias e métodos mais apropriados para assegurar um nível elevado de proteção do ambiente e da saúde pública.

4.      Os princípios da proximidade e da autossuficiência não impõem que cada Estado‑Membro tenha que dispor de toda a gama de instalações de valorização final no seu território.»

13      O artigo 23.°, n.° 1, primeiro parágrafo, da Diretiva 2008/98 dispõe:

«Os Estados‑Membros exigem que todos os estabelecimentos ou empresas que tencionem proceder ao tratamento de resíduos obtenham uma licença da autoridade competente.»

14      O artigo 26.° da referida diretiva tem a seguinte redação:

«Caso as entidades a seguir indicadas não estejam sujeitas a requisitos de licenciamento, os Estados‑Membros asseguram que a autoridade competente mantenha um registo:

a)      Dos estabelecimentos ou empresas que procedem à recolha ou ao transporte de resíduos a título profissional;

[...]»

 Regulamento n.° 1013/2006

15      Em conformidade com o artigo 61.° do Regulamento n.° 1013/2006, este revogou e substituiu o Regulamento (CEE) n.° 259/93 do Conselho, de 1 de fevereiro de 1993, relativo à fiscalização e ao controlo das transferências de resíduos no interior, à entrada e à saída da Comunidade (JO L 30, p. 1), e as referências feitas a este último regulamento devem ser entendidas como feitas ao Regulamento n.° 1013/2006. Este foi adotado com base no artigo 175.°, n.° 1, CE, a que corresponde atualmente o artigo 192.° TFUE. Por seu turno, o Regulamento n.° 259/93 foi adotado com base no artigo 130.°‑S do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 175.° CE).

16      O Regulamento n.° 1013/2006 contém os seguintes considerandos:

«(1)      O principal e mais predominante objetivo e elemento do presente regulamento é a proteção do ambiente, sendo os seus efeitos no comércio internacional meramente secundários.

[...]

(14)      No caso das transferências de resíduos destinados a operações de eliminação e dos resíduos não constantes dos Anexos III, III‑A ou III‑B destinados a operações de valorização, justifica‑se que seja garantida uma otimização da fiscalização e controlo através da exigência de um consentimento escrito prévio para essas transferências. Esse procedimento deverá, por seu lado, implicar uma notificação prévia, a fim de permitir que as autoridades competentes se encontrem devidamente informadas, de modo a poderem tomar todas as medidas necessárias para a proteção da saúde humana e do ambiente. Tal permitirá também a essas autoridades apresentar objeções fundamentadas relativamente a essas transferências.

(15)      No caso de transferências de resíduos constantes dos Anexos III, III‑A ou III‑B destinados a operações de valorização, é adequado garantir um nível mínimo de fiscalização e controlo exigindo que essas transferências sejam acompanhadas por determinadas informações.

[...]

(20)      No caso de transferências de resíduos destinados a eliminação, os Estados‑Membros deverão ter em conta os princípios da proximidade, da prioridade da valorização e da autossuficiência aos níveis comunitário e nacional, nos termos da Diretiva 2006/12[…], tomando medidas ao abrigo do Tratado [CE] para proibir, de um modo geral ou parcial, essas transferências de resíduos ou para colocar sistematicamente objeções a essas transferências. Deverá também ser tido em consideração o requisito previsto na Diretiva 2006/12[…], ao abrigo da qual os Estados‑Membros devem criar uma rede integrada e adequada de instalações de eliminação de resíduos, a fim de permitir à Comunidade no seu conjunto tornar‑se autossuficiente em matéria de eliminação de resíduos, e aos Estados‑Membros tenderem individualmente para esse objetivo, de acordo com as suas circunstâncias geográficas ou com a necessidade de instalações especializadas para determinados tipos de resíduos. [...]

(21)      No caso de transferências de resíduos destinados a valorização, os Estados‑Membros deverão estar em condições de garantir que as instalações de gestão de resíduos abrangidas pela Diretiva 96/61[…] apliquem as melhores técnicas disponíveis tal como estabelecido nessa diretiva em conformidade com a licença de que é titular a instalação. Os Estados‑Membros deverão também estar em condições de garantir que os resíduos sejam tratados de acordo com normas de proteção ambiental estabelecidas na legislação comunitária e juridicamente vinculativas relativas a operações de valorização e que, tendo em conta o n.° 4 do artigo 7.° da Diretiva 2006/12[…], os resíduos sejam tratados de acordo com os planos de gestão de resíduos elaborados nos termos daquela diretiva, a fim de garantir o cumprimento das obrigações estabelecidas na legislação comunitária e juridicamente vinculativas relativas a valorização ou reciclagem.

[...]»

17      Nos termos do artigo 1.° do Regulamento n.° 1013/2006:

«1.       O presente regulamento estabelece procedimentos e regimes de controlo relativos a transferências de resíduos, de acordo com a origem, o destino e o itinerário dessas transferências, o tipo de resíduos transferidos e o tipo de tratamento a aplicar aos resíduos no seu destino.

2.      O presente regulamento é aplicável a transferências de resíduos:

a)      Entre Estados‑Membros, no interior da Comunidade ou com trânsito por países terceiros;

[...]»

18      O artigo 2.°, pontos 4 e 6, deste regulamento remete, no que se refere respetivamente à definição dos conceitos de «eliminação» e de «valorização», para as definições que figuram na Diretiva 2006/12, a que corresponde atualmente a Diretiva 2008/98. O ponto 34 do mesmo artigo define o conceito de «transferência» como o transporte de resíduos com vista à valorização ou à eliminação, que se efetue ou esteja previsto, nomeadamente entre dois países.

19      O título II do referido regulamento, relativo às transferências no interior da União Europeia, inclui os artigos 3.° a 32.° do mesmo. O artigo 3.° dispõe:

«1.      As transferências dos resíduos a seguir enumerados estão sujeitas ao procedimento prévio de notificação e consentimento escrito nos termos do presente título:

a)      Quando destinadas a operações de eliminação:

todos os resíduos;

b)      Quando destinadas a operações de valorização:

i)      resíduos enumerados no Anexo IV, que inclui resíduos constantes dos Anexos II e VIII da Convenção de Basileia [sobre o controlo dos movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos e sua eliminação, assinada em 22 de março de 1989, aprovada em nome da Comunidade Económica Europeia pela Decisão do Conselho 93/98/CEE, de 1 de fevereiro de 1993 (JO L 39, p. 1)],

ii)      resíduos enumerados no Anexo IV‐A,

iii)      resíduos não classificados em qualquer rubrica própria nos Anexos III, III‑B, IV ou IV‑A,

iv)      misturas de resíduos não classificadas em qualquer rubrica própria nos Anexos III, III‑B, IV ou IV‑A, exceto se enumeradas no Anexo III‑A.

2.      As transferências dos seguintes resíduos destinados a valorização estão sujeitas aos requisitos gerais de informação estabelecidos no artigo 18.°, se a quantidade dos resíduos transferidos for superior a 20 kg:

a)      Resíduos enumerados nos Anexos III ou III‑B;

b)      Misturas, não classificadas em qualquer rubrica própria no Anexo III, de dois ou mais resíduos enumerados no Anexo III, desde que a composição dessas misturas não afete a respetiva valorização em boas condições ambientais e que essas misturas estejam enumeradas no Anexo III‑A, nos termos do artigo 58.°

[...]

5.      As transferências de misturas de resíduos urbanos e equiparados […] recolhidos em habitações particulares, nomeadamente nos casos em que essa recolha abranja também resíduos do mesmo tipo provenientes de outros produtores, para instalações de valorização ou de eliminação estão, nos termos do presente regulamento, sujeitas às mesmas disposições que as transferências de resíduos destinados a eliminação.»

20      Os Anexos do Regulamento n.° 1013/2006 mencionados no seu artigo 3.° têm, no essencial, por objeto os seguintes resíduos:

¾        o Anexo III, denominado «lista ‘verde’ de resíduos», enumera os resíduos não perigosos destinados a serem valorizados;

¾        o Anexo III‑A contém uma lista de misturas de dois ou mais resíduos enumerados no Anexo III não classificadas em nenhuma rubrica própria;

¾        o Anexo III‑B diz respeito aos outros resíduos não perigosos destinados a ser valorizados que aguardam a inclusão nos Anexos relevantes da Convenção de Basileia de 22 de março de 1989, acima referida, ou da Decisão C(2001)107/final do Conselho da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económicos (OCDE) relativa à revisão da Decisão C(92)39/final da OCDE, sobre o controlo dos movimentos transfronteiriços de resíduos destinados a operações de valorização;

¾        o Anexo IV, denominado «lista ‘laranja’ de resíduos», enumera os resíduos perigosos destinados a serem valorizados; e

¾        o Anexo IV‑A está destinado a conter os resíduos inscritos na lista do Anexo III mas sujeitos ao procedimento de notificação e autorização prévio por escrito.

21      Os artigos 11.°, 12.° e 18.° do mesmo regulamento têm a seguinte redação:

«Artigo 11.°

Objeções a transferências de resíduos destinados a eliminação

1.      Ao efetuar uma notificação relativa a uma transferência prevista de resíduos destinados a eliminação, as autoridades competentes de destino e de expedição podem[…] apresentar objeções fundamentadas com base num ou em vários dos motivos a seguir indicados e de acordo com o Tratado:

a)      A transferência ou eliminação planeada não ser consentânea com medidas tomadas em aplicação dos princípios da proximidade, prioridade da valorização e autossuficiência aos níveis comunitário e nacional, de acordo com a Diretiva 2006/12[…], para proibir de um modo geral ou parcial as transferências de resíduos ou levantar sistematicamente objeções às mesmas; ou

[...]

Artigo 12.°

Objeções a transferências de resíduos destinados a valorização

1.      Ao efetuar uma notificação relativa a uma transferência prevista de resíduos destinados a valorização, as autoridades competentes de destino e de expedição podem[…] apresentar objeções fundamentadas baseadas numa ou em várias das razões a seguir indicadas e de acordo com o Tratado:

[...]

Artigo 18.°

Resíduos que devem ser acompanhados de determinadas informações

1.      Os resíduos referidos nos n.os 2 e 4 do artigo 3.° que se destinem a ser transferidos estão sujeitos aos seguintes requisitos processuais:

a)      A fim de permitir o seguimento das transferências desses resíduos, a pessoa sob a jurisdição do país de expedição que trata da transferência deve garantir que os resíduos sejam acompanhados do documento incluído no Anexo VII.

b)      O documento incluído no Anexo VII deve ser assinado pela pessoa que trata da transferência antes de esta ter lugar e pelo representante da instalação de valorização ou do laboratório e pelo destinatário no momento da receção dos resíduos em causa.

2.      O contrato referido no Anexo VII entre a pessoa que trata da transferência e o destinatário com vista à valorização dos resíduos produz efeitos no momento do início da transferência e incluirá a obrigação, caso a transferência dos resíduos ou a sua valorização não possa ser concluída como previsto ou seja efetuada como transferência ilícita, para a pessoa que trata da transferência ou, caso essa pessoa não esteja em condições de completar a transferência dos resíduos ou a sua valorização (por exemplo, seja insolvente), para o destinatário, de:

a)      Retomar os resíduos ou garantir a sua valorização de modo alternativo; e

b)      Providenciar entretanto o seu armazenamento, se necessário.

A pessoa que trata da transferência ou o destinatário deve fornecer uma cópia do contrato a pedido da autoridade competente envolvida.

3.      Para fins de inspeção, controlo do cumprimento, planeamento e estatísticas, os Estados‑Membros podem, de acordo com a legislação nacional, solicitar as informações referidas no n.° 1 sobre transferências sujeitas ao presente artigo 3.°

[...]»

 Direito estónio

22      Decorre do artigo 22.° da Lei dos resíduos (Jäätmeseadus, a seguir «JäätS») que, nomeadamente na elaboração e aplicação das medidas de gestão de resíduos, se deve tomar como base a hierarquia dos resíduos, enunciada em termos idênticos aos do artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 2008/98, sendo possível, contudo, que essa hierarquia seja afastada se tal garantir um melhor resultado geral do ponto de vista ecológico, tendo em conta a totalidade do ciclo de vida do objeto.

23      O artigo 32.° desta lei, intitulado «Princípio da proximidade na gestão de resíduos», tem a seguinte redação:

«Os resíduos devem ser eliminados e as misturas de resíduos urbanos valorizadas num centro de gestão de resíduos adequado no plano tecnológico [situado] o mais próximo possível do lugar onde os resíduos são produzidos e que garanta a segurança da saúde pública e do ambiente.»

24      Nos termos do artigo 66.° da referida lei:

«(1)      Entende‑se por transporte organizado de resíduos a recolha e o transporte, por uma empresa escolhida pela autarquia local, dos resíduos urbanos de um setor geográfico determinado para um ou vários centros de gestão de resíduos determinados.

[...]

(2)      A autarquia local organiza, no seu território administrativo, a recolha e o transporte dos resíduos urbanos — nomeadamente de lixo, isto é, misturas de resíduos urbanos — de resíduos da triagem destes e das categorias de resíduos resultantes da recolha separada de resíduos urbanos no lugar onde são produzidos. O transporte organizado de resíduos pode igualmente incluir outras categorias de resíduos urbanos ou outros resíduos, se for necessário para satisfazer as condições da presente lei ou exigido por um interesse público superior.»

25      O artigo 67.° da JäätS prevê:

«(1)      A fim de selecionar um transportador de resíduos, a autarquia local prevê, de modo autónomo ou em colaboração com outras autarquias, uma concessão de serviços com base nas disposições da lei relativa aos contratos públicos [(riigihangete seadus)].

[...]

(3)      […] O caderno de encargos relativo ao transporte organizado de resíduos prevê, entre outras, as seguintes condições:

1)      o setor geográfico abrangido pelo transporte;

2)      as categorias de resíduos transportados;

[...]

4)      o centro de gestão dos resíduos;

[...]

8)      o número de habitações unifamiliares e de edifícios de vários fogos existentes no setor geográfico abrangido pelo transporte, bem como o número de apartamentos nos edifícios de vários fogos.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

26      Sillamäe é uma cidade costeira com cerca de 15 000 habitantes situada no extremo nordeste da Estónia.

27      Em 2007, o Sillamäe Linnavalitsus lançou um concurso público para a celebração de um «contrato administrativo relativo à transferência para pessoas coletivas de direito privado da obrigação de proceder à reutilização e ao tratamento dos resíduos urbanos no aterro de Sillamäe». Esta concessão de serviços foi adjudicada pelo período de dez anos à Ecocleaner Sillamäe OÜ.

28      Em 2011, o mesmo município lançou outro concurso público para a adjudicação de uma concessão de serviços de recolha e de transporte de resíduos produzidos no seu território. O litígio no processo principal tem por objeto a legalidade da cláusula que constitui o ponto 3.5 do caderno de encargos relativo a este segundo concurso (a seguir «caderno de encargos»). Segundo esta cláusula, as misturas de resíduos urbanos devem ser transportadas para o centro de gestão de resíduos de Sillamäe (a seguir «instalação de Sillamäe») — a saber, a instalação objeto do primeiro concurso público —, localizado a 5 km do referido município, e os resíduos industriais e os resíduos de construção devem ser transportados para o centro de gestão de resíduos de Uikala (a seguir «instalação de Uikala»), localizado a 25 km. O Sillamäe Linnavalitsus não celebrou nenhum contrato para o tratamento de resíduos com o explorador desta última instalação.

29      A Ragn‑Sells é uma empresa que desenvolve a sua atividade no domínio do tratamento das misturas dos resíduos urbanos e do transporte de resíduos. Sustenta nomeadamente que, ao impor que os resíduos provenientes de certas categorias recolhidos no território do Sillamäe Linnavalitsus sejam transportados para as duas instalações designadas na cláusula controvertida do caderno de encargos, com exclusão de todas as outras instalações onde os resíduos também podiam ser tratados de forma equivalente, a referida cláusula confere aos exploradores dessas duas instalações um direito exclusivo contrário ao princípio da livre concorrência, à livre circulação de mercadorias, à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços. Trata‑se de uma prática habitual das autarquias locais da Estónia baseada numa interpretação questionável do artigo 67.°, n.° 3, ponto 4, da JäätS, segundo a qual essas autarquias estão obrigadas a designar a instalação destinatária dos resíduos recolhidos no âmbito de concessões de transporte de resíduos que adjudicam.

30      A Ragn‑Sells alega que, na Estónia, num raio de 260 km estão implantadas onze instalações concorrentes de tratamento das misturas de resíduos urbanos, sendo a maior parte, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, utilizadoras de tecnologias equivalentes.

31      Por outro lado, sustenta que o processo principal suscita uma questão de princípio cujo interesse ultrapassa as fronteiras da Estónia, uma vez que, em função da situação geográfica da cada autarquia, podem interessar‑se pela prestação dos serviços em causa empresas da Letónia.

32      Segundo o Sillamäe Linnavalitsus, cabe à entidade adjudicante determinar as condições específicas do concurso público que pretende lançar em função das necessidades a satisfazer, nomeadamente no que se refere à instalação de tratamento para onde os resíduos a recolher devem ser transportados, e um operador encarregado de um serviço de recolha e de transporte de resíduos não pode invocar um direito subjetivo quanto ao tratamento dos resíduos transportados.

33      O Tartu ringkonnakohus (Tribunal de Recurso de Tartu) parece considerar que o contrato de concessão relativo à gestão da instalação de Sillamäe celebrado em 2007 pelo Sillamäe Linnavalitsus pressupõe a atribuição de um direito exclusivo, na aceção do artigo 106.° TFUE, ao concessionário do tratamento das misturas de resíduos urbanos recolhidos no território do referido município. Considera também que o ponto 3.5 do caderno de encargos tem igualmente por efeito conferir esse direito exclusivo ao explorador da instalação de Uikala para o tratamento dos resíduos industriais e dos resíduos de construção.

34      O referido órgão jurisdicional afirma que na organização de contratos públicos deve ser respeitado o direito da concorrência da União e que o facto de conceder a uma empresa um direito especial ou exclusivo, na aceção do artigo 106.°, n.° 1, TFUE, é suscetível de constituir um abuso de posição dominante proibido pelo artigo 102.°, primeiro parágrafo, TFUE. No que respeita à determinação do mercado relevante, considera que na Estónia existe um mercado de tratamento das misturas de resíduos urbanos, no qual operam diversas empresas que transformam esses resíduos em combustível ou os utilizam como tal e que utilizam as mesmas tecnologias que a instalação de Sillamäe. O mesmo órgão jurisdicional considera que, atendendo à exiguidade do território estónio, todas essas empresas estão em concorrência para a gestão das misturas dos resíduos urbanos recolhidos no território do Sillamäe Linnavalitsus. Salienta o facto de a concorrência entre essas empresas ser agravada pela escassez desse tipo de resíduos. Tendo em conta a existência desse mercado, a exclusão de todas as instalações de tratamento diferentes das designadas pela entidade adjudicante pode constituir uma prática abusiva prevista no artigo 102.°, segundo parágrafo, TFUE, nomeadamente quando daí resulte uma limitação do mercado suscetível de provocar aumentos dos preços para os produtores dos resíduos e para os consumidores de eletricidade.

35      O Tartu ringkonnakohus questiona‑se, portanto, sobre as implicações, no que se refere à concessão de direitos exclusivos como os que verificou existirem no processo principal, das disposições do Tratado FUE relativas à concorrência, mas também dos artigos 35.° TFUE, 49.° TFUE e 56.° TFUE, na medida em que essa prática pode constituir um entrave à livre circulação dos resíduos suscetível de dissuadir as empresas de outros Estados‑Membros de se estabelecerem na Estónia ou de impedir que as mesmas aí prestem serviços.

36      Por último, o referido órgão jurisdicional questiona‑se sobre se o princípio da proximidade previsto no artigo 16.°, n.° 3, da Diretiva 2008/98 permite justificar, no caso em apreço, a concessão de um direito exclusivo às instalações de tratamento mais próximas. Com efeito, no que se refere aos Estados‑Membros cujo território é relativamente pequeno, como a República da Estónia, esse princípio pode significar que os resíduos devem ser tratados no Estado‑Membro em causa, e a existência de um mercado do tratamento dos resíduos nesse Estado‑Membro pode implicar que não seja necessário designar uma instalação determinada.

37      Neste contexto, o Tartu ringkonnakohus decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Devem as disposições conjugadas do artigo 106.°, n.° 1, [TFUE] e do artigo 102.° [TFUE], a livre circulação de mercadorias, a liberdade de estabelecimento e a livre prestação de serviços ser interpretadas no sentido de que não se opõem a que um Estado‑Membro autorize que, num determinado território, o direito exclusivo de tratar os resíduos urbanos seja atribuído, mediante remuneração, a uma empresa que explora um centro de gestão de resíduos determinado, quando existem várias empresas concorrentes que exercem a sua atividade num raio de 260 km [que exploram] vários centros […] de gestão de resíduos que satisfazem as exigências ambientais, utilizando tecnologias equivalentes?

2)      Deve o artigo 106.°, n.° 2, [TFUE] ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado‑Membro considere a recolha e o transporte dos resíduos, por um lado, e o tratamento dos resíduos, por outro, serviços de interesse económico geral, embora mantendo esses serviços separados, restringindo desse modo a livre concorrência no mercado da gestão de resíduos?

3)      Pode excluir‑se a aplicabilidade das disposições do Tratado [FUE] relativas ao direito da concorrência a um processo de adjudicação de uma concessão do serviço de recolha e de transporte dos resíduos que prevê que, no território definido pelo contrato de concessão, o direito exclusivo de tratar os resíduos é atribuído a duas empresas?

4)      Deve o artigo 16.°, n.° 3, da Diretiva [2008/98] ser interpretado no sentido de que um Estado‑Membro pode, com base no princípio da proximidade, restringir a concorrência e permitir que o direito exclusivo de tratamento dos resíduos seja atribuído, mediante remuneração, à empresa que explora o centro de gestão de resíduos mais próximo do território onde os resíduos são gerados, quando existem várias empresas concorrentes que exercem a sua atividade num raio de 260 km e [exploram] vários centros […] de gestão de resíduos que satisfazem as exigências ambientais, utilizando tecnologias equivalentes?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à admissibilidade

38      No que se refere às possíveis implicações das regras de concorrência do Tratado FUE no âmbito de uma situação como a que está em causa no processo principal, evocadas nas três primeiras questões, há que observar que cada um dos dois primeiros números do artigo 106.° TFUE remete, no que respeita às situações que prevê, para todas as regras do referido Tratado, nomeadamente para as regras de concorrência.

39      Deve recordar‑se, a este respeito, que a necessidade de se chegar a uma interpretação do direito da União que seja útil ao órgão jurisdicional nacional exige que este defina o quadro factual e legal em que se inscrevem as questões que coloca ou que, pelo menos, explique as hipóteses factuais em que assentam estas questões. Estas exigências são particularmente válidas no domínio da concorrência, que se caracteriza por situações de facto e de direito complexas (v., designadamente, acórdão de 11 de março de 2010, Attanasio Group, C‑384/08, Colet., p. I‑2055, n.° 32 e jurisprudência aí referida).

40      No caso em apreço, as disposições do artigo 106.° TFUE lidas em conjugação com as do artigo 102.° TFUE, como referidas pelo órgão jurisdicional, pressupõem a existência de uma posição dominante numa parte substancial do mercado interno e de um abuso dessa posição suscetível de afetar as trocas comerciais entre os Estados‑Membros.

41      Ora, a decisão de reenvio não inclui informações que permitam identificar os elementos constitutivos de uma posição dominante, na aceção do artigo 102.° TFUE, no contexto do processo principal.

42      Com efeito, não existe na referida decisão nenhuma indicação a esse respeito relativamente à empresa que explora a instalação de Uikala. Quanto à instalação de Sillamäe, decorre dessa decisão que o mercado relevante é o mercado estónio da valorização das misturas dos resíduos urbanos, no qual atuam onze empresas, entre as quais a empresa que explora esta última instalação, nada indicando que a mesma ocupa uma posição especial nesse mercado. Por outro lado, a decisão de reenvio não contém nenhuma indicação que permita considerar que as obrigações em causa no processo principal, que visam certas categorias de resíduos recolhidos no território de um pequeno município à escala do Estado‑Membro em causa, sejam suscetíveis de conferir uma posição dominante sobre uma parte substancial do mercado interno às empresas que exploram as referidas instalações, nem que o exercício dos referidos direitos leve necessariamente a explorar de forma abusiva uma eventual posição dominante, nem que esses direitos sejam suscetíveis de criar uma situação em que as empresas beneficiárias seriam levadas a cometer esse abuso.

43      Importa, portanto, observar que na decisão de reenvio não existe nenhuma indicação específica relativa à aplicabilidade das regras de concorrência do Tratado FUE enquanto tais no âmbito do processo principal. Consequentemente, na medida em que visam essas regras, as questões submetidas são inadmissíveis porque o Tribunal de Justiça não dispõe dos elementos de facto e de direito necessários para lhes dar uma resposta útil (v., por analogia, acórdão de 19 de abril de 2007, Asemfo, C‑295/05, Colet., p. I‑2999, n.os 42, 43 e 45).

 Quanto ao mérito

44      A título preliminar, há que considerar que, com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio se interroga sobre a compatibilidade da obrigação imposta por uma autarquia local de um Estado‑Membro ao futuro adjudicatário de uma concessão de recolha e de transporte de resíduos de entregar certos tipos de resíduos recolhidos no território dessa autarquia, a saber, as misturas de resíduos urbanos e os resíduos industriais e os resíduos de construção, a uma empresa estabelecida nesse mesmo Estado‑Membro para o seu tratamento, em condições como as que estão em causa no processo principal, com as disposições pertinentes do Tratado FUE que garantem a livre circulação de mercadorias, a liberdade de estabelecimento e a livre prestação de serviços, a saber, por um lado, os artigos 35.° TFUE e 36.° TFUE e, por outro, os artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE.

45      Com a sua quarta questão, o referido órgão jurisdicional interroga‑se sobre as eventuais implicações, relativamente à imposição dessa obrigação, do princípio da proximidade aplicável ao tratamento de certos tipos de resíduos, previsto no artigo 16.°, n.° 3, da Diretiva 2008/98.

46      Ora, na medida em que tem por objeto os artigos 35.° TFUE e 36.° TFUE, a primeira questão também é suscetível de dizer respeito à legislação específica da União em matéria de resíduos, em especial a regulamentação relativa às transferências de resíduos prevista no Regulamento n.° 1013/2006 e na Diretiva 2008/98.

 Quanto à primeira questão, na medida em que diz respeito aos artigos 35.° TFUE e 36.° TFUE, e à quarta questão

47      A título preliminar, importa recordar que o Tribunal de Justiça pode ser levado a tomar em consideração normas de direito da União a que o órgão jurisdicional de reenvio não fez referência no enunciado das suas questões prejudiciais a fim de lhe fornecer elementos de interpretação suscetíveis de lhe serem úteis (v., neste sentido, acórdão de 26 de fevereiro de 2008, Mayr, C‑506/06, Colet., p. I‑1017, n.° 43 e jurisprudência aí referida).

48      A este respeito, há que observar que a resposta à primeira questão, na medida em que diz respeito aos artigos 35.° TFUE e 36.° TFUE, leva a examinar as eventuais implicações do Regulamento n.° 1013/2006 no âmbito de uma situação como a que está em causa no processo principal.

49      Com efeito, o Tribunal de Justiça considerou que, tal como o Regulamento n.° 259/93, que o antecedeu, o Regulamento n.° 1013/2006 se destina a instituir um sistema harmonizado de procedimentos através dos quais a circulação dos resíduos possa ser circunscrita a fim de se assegurar a proteção do ambiente (v., neste sentido, acórdão de 8 de setembro de 2009, Comissão/Parlamento e Conselho, C‑411/06, Colet., p. I‑7585, n.° 72). Daí resulta que não é necessário verificar além disso se uma medida nacional relativa à transferência de resíduos é conforme com os artigos 34.° TFUE a 36.° TFUE (v., neste sentido, acórdão de 13 de dezembro de 2001, DaimlerChrysler, C‑324/99, Colet., p. I‑9897, n.° 46).

50      Assim, para dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio, há que considerar que, com a sua primeira questão na medida em que diz respeito aos artigos 35.° TFUE e 36.° TFUE e a sua quarta questão, o referido órgão jurisdicional pergunta, no essencial, se as disposições do Regulamento n.° 1013/2006 lidas em conjugação com as do artigo 16.° da Diretiva 2008/98 devem ser interpretadas no sentido de que autorizam uma autarquia local a obrigar a empresa concessionária de serviços de recolha e de transporte de resíduos produzidos no seu território a entregar certos tipos de resíduos recolhidos ao explorador da instalação de tratamento adequada mais próxima, estabelecida no mesmo Estado‑Membro que essa autarquia, impedindo assim que os resíduos em causa sejam transferidos para outro Estado‑Membro para serem aí tratados.

51      Em conformidade com o seu artigo 1.°, n.° 2, o Regulamento n.° 1013/2006 é aplicável às transferências de resíduos, nomeadamente entre Estados‑Membros, com exceção das transferências de resíduos abrangidos pelos casos particulares ou pelas regulamentações especiais mencionados no n.° 3 desse artigo, que são alheios ao litígio em causa no processo principal.

52      Nos termos do artigo 3.° deste regulamento, as transferências de resíduos entre Estados‑Membros estão sujeitas ao procedimento prévio de notificação e consentimento escrito regulado pelos artigos 4.° a 17.° do referido regulamento, que são aplicáveis aos resíduos destinados a eliminação e aos resíduos perigosos destinados a valorização, bem como às exigências previstas no seu artigo 18.°, que, em princípio, apenas diz respeito aos resíduos não perigosos destinados a valorização.

53      Decorre dos artigos 11.°, 12.° e 18.° do Regulamento n.° 1013/2006 que os Estados‑Membros têm direitos ou obrigações diferentes no que respeita, por um lado, às transferências entre Estados‑Membros de resíduos destinados a eliminação e, por outro, às transferências de resíduos destinados a valorização. Além disso, nos termos do artigo 3.°, n.° 5, deste regulamento, as transferências das misturas de resíduos urbanos recolhidos em habitações particulares e de outros produtores, para instalações de valorização ou de eliminação, estão sujeitas às mesmas disposições que as transferências de resíduos destinados a eliminação.

54      Resulta da decisão de reenvio que, nos termos do ponto 3.5 do caderno de encargos, as misturas de resíduos urbanos recolhidos no território do Sillamäe Linnavalitsus devem ser transportadas para a instalação de Sillamäe. Como referido no número anterior, esses resíduos fazem, em todo o caso, parte da categoria dos resíduos destinados a eliminação em aplicação do Regulamento n.° 1013/2006.

55      Quanto aos resíduos industriais e aos resíduos de construção, que devem ser transportados para a instalação de Uikala, há que salientar que, atendendo à hierarquia dos resíduos como prevista no artigo 4.° da Diretiva 2008/98, esses resíduos destinam‑se potencialmente a valorização e a eliminação. Por conseguinte, há que examinar se as disposições do Regulamento n.° 1013/2006 aplicáveis às transferências entre Estados‑Membros dos resíduos destinados a eliminação e dos destinados a valorização permitem prever uma obrigação como a enunciada no ponto 3.5 do caderno de encargos.

56      No que se refere, em primeiro lugar, aos resíduos destinados a eliminação e às misturas de resíduos urbanos, resulta do artigo 11.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 1013/2006, lido à luz do considerando 20 deste regulamento e do artigo 16.° da Diretiva 2008/98, que os Estados‑Membros podem adotar medidas de alcance geral que limitem as transferências desses resíduos entre Estados‑Membros, sob a forma de proibições gerais ou parciais de transferências, para aplicar os princípios da proximidade, da prioridade da valorização e da autossuficiência em conformidade com a Diretiva 2008/98.

57      Ora, decorre por analogia dos n.os 37 a 42 do acórdão de 23 de maio de 2000, Sydhavnens Sten & Grus (C‑209/98, Colet., p. I‑3743), que a obrigação imposta por uma autarquia local à empresa encarregada de recolher os resíduos no seu território de levar determinados tipos de resíduos a uma instalação de tratamento situada no mesmo Estado‑Membro equivaleria a uma medida de alcance geral que estabelece uma proibição de transferir os resíduos em causa para outras instalações de tratamento, prevista no artigo 11.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 1013/2006, se os produtores desses resíduos fossem eles próprios obrigados a entregá‑los à referida empresa ou à referida instalação.

58      Consequentemente, essa medida seria conforme com este regulamento dado que visa aplicar, nomeadamente, os princípios da autossuficiência e da proximidade previstos no artigo 16.° da Diretiva 2008/98.

59      Nos termos do artigo 16.° da Diretiva 2008/98, os Estados‑Membros devem constituir uma rede integrada e adequada de instalações de eliminação de resíduos e das misturas de resíduos urbanos recolhidos, tendo em conta as melhores técnicas disponíveis e conceber essa rede de tal forma que, nomeadamente, tendam individualmente para a autossuficiência do tratamento desses resíduos e que esse tratamento possa ser efetuado numa das instalações adequadas mais próximas do local de produção desses resíduos.

60      Para a criação dessa rede integrada, os Estados‑Membros dispõem de uma margem de apreciação quanto à escolha de uma base territorial que considerem adequada para atingir a autossuficiência nacional no que se refere ao tratamento dos resíduos em causa (v., por analogia, no que respeita ao artigo 5.° da Diretiva 2006/12, acórdão de 4 de março de 2010, Comissão/Itália, C‑297/08, Colet., p. I‑1749, n.° 62).

61      Contudo, o Tribunal de Justiça salientou que, neste âmbito, no que se refere em especial às medidas adequadas a incentivar a racionalização da recolha, da triagem e do tratamento dos resíduos, uma das medidas mais importantes que devem ser adotadas pelos Estados‑Membros, nomeadamente através das autarquias locais com competência na matéria, consiste em procurar um tratamento dos referidos resíduos em instalações o mais próximas possível do local da sua produção, em especial, no que se refere às misturas de resíduos urbanos, de modo a limitar o seu transporte o mais possível (v., por analogia, acórdão Comissão/Itália, já referido, n.os 64, 66, 67 e jurisprudência aí referida).

62      Assim, as autoridades dos Estados‑Membros podem regulamentar ou organizar a gestão de resíduos previstos no artigo 16.° da Diretiva 2008/98 de modo a que estes sejam tratados na instalação adequada mais próxima.

63      Portanto, há que considerar, no que se refere aos resíduos destinados a eliminação e às misturas de resíduos urbanos recolhidos em habitações particulares e, se for o caso, outros produtores, que um Estado‑Membro pode atribuir às autarquias locais, do nível geográfico que considere adequado, competências em matéria de gestão de resíduos produzidos no seu território para garantir o respeito das suas obrigações ao abrigo do artigo 16.° da Diretiva 2008/98 e que, no âmbito das suas competências, essas autarquias podem prever que o tratamento desses tipos de resíduos seja efetuado na instalação adequada mais próxima.

64      Em segundo lugar, no que respeita aos resíduos destinados a valorização diferentes das misturas de resíduos urbanos, a sua transferência é suscetível de obedecer a dois regimes diferentes. Por um lado, em conformidade com o artigo 12.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1013/2006, as transferências entre Estados‑Membros de resíduos abrangidos pelo artigo 3.°, n.° 1, alínea b), deste regulamento, que são sujeitos ao procedimento prévio de notificação e consentimento, só podem, contudo, dar lugar a uma objeção por parte das autoridades nacionais competentes caso a caso, baseada em razões precisas que devem dizer respeito a uma transferência determinada, relativas, por exemplo, a insuficiências ou a riscos respeitantes à própria transferência, à valorização prevista, à instalação de destino ou às pessoas que devem intervir nas diversas operações.

65      Por outro lado, o artigo 18.° do Regulamento n.° 1013/2006, que é aplicável às transferências dos resíduos previstos no seu artigo 3.°, n.° 2, limita‑se a impor que os resíduos transferidos sejam acompanhados de um documento de informação estandardizado, estabelecido com base num contrato que deve respeitar certas exigências, podendo esse documento ser solicitado pelos Estados‑Membros para efeitos de inspeção, de controlo do cumprimento desse regulamento, de planificação ou de estatística.

66      Resulta, portanto, do exame das disposições do Regulamento n.° 1013/2006 aplicáveis às transferências entre Estados‑Membros de resíduos destinados a valorização diferentes das misturas de resíduos urbanos que este regulamento não prevê a faculdade de uma autoridade nacional adotar uma medida de alcance geral que tenha por efeito proibir total ou parcialmente a transferência desses resíduos para outros Estados‑Membros para aí serem tratados.

67      Assim, como decorre do n.° 57 do presente acórdão, a obrigação imposta por uma autarquia local à empresa encarregada de recolher no seu território os resíduos industriais e os resíduos de construção de os transportar para a instalação de tratamento situada no mesmo Estado‑Membro equivaleria a essa medida de alcance geral, não podendo ser considerada autorizada pelo Regulamento n.° 1013/2006 na medida em que incide sobre os resíduos que podem ser objeto de valorização, se os produtores dos resíduos em causa estiverem eles próprios obrigados a entregá‑los à referida empresa ou à referida instalação.

68      Em face das considerações precedentes, há que responder à primeira questão, na medida em que diz respeito aos artigos 35.° TFUE e 36.° TFUE, e à quarta questão que as disposições do Regulamento n.° 1013/2006, lidas em conjugação com o artigo 16.° da Diretiva 2008/98, devem ser interpretadas no sentido de que:

¾        essas disposições autorizam uma autarquia local a obrigar a empresa encarregada de recolher os resíduos no seu território a transportar as misturas de resíduos urbanos recolhidos em habitações particulares e, se for o caso, outros produtores à instalação de tratamento adequada mais próxima, estabelecida no mesmo Estado‑Membro que essa autarquia;

¾        essas disposições não autorizam uma autarquia local a obrigar a empresa encarregada de recolher os resíduos no seu território a transportar os resíduos industriais e os resíduos de construção produzidos no seu território para a instalação de tratamento adequada mais próxima, estabelecida no mesmo Estado‑Membro que essa autarquia, quando esses resíduos se destinem a valorização, se os produtores dos referidos resíduos estiverem obrigados a entregá‑los à referida empresa, ou a entregar os mesmos diretamente à referida instalação.

 Quanto à primeira questão na medida em que diz respeito aos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE

69      Com a sua primeira questão, na medida em que diz respeito aos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE, e, portanto, independentemente das implicações do direito da União em matéria de gestão de resíduos tal como determinadas nos números anteriores do presente acórdão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se estes artigos devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que uma autarquia local conceda o direito exclusivo de tratar certos tipos de resíduos recolhidos no seu território, diretamente, através de uma concessão de serviços que tem por objeto especificamente a gestão de uma instalação destinada ao tratamento desses resíduos ou, indiretamente, impondo ao concessionário dos serviços de recolha e de transporte de resíduos a entrega dos mesmos a um operador económico designado por essa autarquia.

70      A este respeito, deve recordar‑se que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as disposições do Tratado FUE relativas à livre prestação de serviços e à liberdade de estabelecimento não são aplicáveis a atividades cujos elementos pertinentes se circunscrevem todos a um único Estado‑Membro (v., neste sentido, acórdãos de 16 de janeiro de 1997, USSL n.° 47 di Biella, C‑134/95, Colet., p. I‑195, n.° 19; de 22 de dezembro de 2010, Omalet, C‑245/09, Colet., p. I‑13771, n.° 12; e de 20 de junho de 2013, Impacto Azul, C‑186/12, n.° 19).

71      Ora, resulta da decisão de reenvio que o litígio no processo principal que opõe a Ragn‑Sells, sociedade estabelecida na Estónia, ao Sillamäe Linnavalitsus, município estónio, tem por objeto uma cláusula contida no caderno de encargos relativa à «adjudicação de uma concessão para o transporte organizado de resíduos da cidade de Sillamäe». Segundo essa cláusula, os resíduos produzidos no território desse município devem ser transportados para duas instalações de tratamento situadas nesse mesmo Estado‑Membro.

72      Acresce que nada nos autos submetidos ao Tribunal de Justiça indica que empresas estabelecidas noutros Estados‑Membros tenham estado interessadas no tratamento dos resíduos produzidos no território do Sillamäe Linnavalitsus.

73      Consequentemente, há que declarar que uma tal situação não apresenta nenhum elemento de ligação com uma das situações previstas no direito da União no domínio da livre prestação de serviços e da liberdade de estabelecimento.

74      Nestas circunstâncias, há que responder à primeira questão, na medida em que diz respeito aos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE, que esses artigos não se aplicam a uma situação, como a que está em causa no processo principal, em que todos os elementos se circunscrevem ao território de um único Estado‑Membro.

 Quanto às despesas

75      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

1)      As disposições do Regulamento (CE) n.° 1013/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2006, relativo a transferências de resíduos, lidas em conjugação com o artigo 16.° da Diretiva 2008/98/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de novembro de 2008, relativa aos resíduos e que revoga certas diretivas, devem ser interpretadas no sentido de que:

¾        essas disposições autorizam uma autarquia local a obrigar a empresa encarregada de recolher os resíduos no seu território a transportar as misturas de resíduos urbanos recolhidos em habitações particulares e, se for o caso, outros produtores à instalação de tratamento adequada mais próxima, estabelecida no mesmo Estado‑Membro que essa autarquia;

¾        essas disposições não autorizam uma autarquia local a obrigar a empresa encarregada de recolher os resíduos no seu território a transportar os resíduos industriais e os resíduos de construção produzidos no seu território para a instalação de tratamento adequada mais próxima, estabelecida no mesmo Estado‑Membro que essa autarquia, quando esses resíduos se destinem a valorização, se os produtores dos referidos resíduos estiverem obrigados a entregá‑los à referida empresa, ou a entregar os mesmos diretamente à referida instalação.

2)      Os artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE não se aplicam a uma situação, como a que está em causa no processo principal, em que todos os elementos se circunscrevem ao território de um único Estado‑Membro.

Assinaturas


* Língua do processo: estónio.