Language of document : ECLI:EU:C:2014:54

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

6 de fevereiro de 2014 (*)

«Reenvio prejudicial — Artigos 52.° TFUE e 56.° TFUE — Livre prestação de serviços — Concessão de uma carta de navegador de recreio — Requisito de residência no país emissor — Restrição para os não residentes — Preservação da segurança no mar — Ordem pública»

No processo C‑509/12,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Tribunal Central Administrativo Norte (Portugal), por decisão de 5 de julho de 2012, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 9 de novembro de 2012, no processo

Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos (IPTM)

contra

Navileme — Consultadoria Náutica, L.da,

Nautizende — Consultadoria Náutica, L.da,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: M. Ilešič, presidente de secção, C. G. Fernlund, A. Ó Caoimh (relator), C. Toader e E. Jarašiūnas, juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, P. Portugal, M. Moreno e E. Gonçalves, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por H. Tserepa‑Lacombe e P. Guerra e Andrade, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto, no essencial, a interpretação dos artigos 52.° TFUE e 56.° TFUE.

2        Esse pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe o Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos (IPTM) às escolas Navileme — Consultadoria Náutica, L.da (a seguir «Navileme»), e Nautizende — Consultadoria Náutica, L.da (a seguir «Nautizende»), a propósito da recusa do IPTM de permitir a admissão ao exame, para obtenção da carta de navegador de recreio (a seguir «carta de navegador»), aos cidadãos da União Europeia que não residem em Portugal.

 Direito português

3        O artigo 29.°, n.° 1, do Regulamento da Náutica de Recreio, aprovado pelo Decreto‑Lei n.° 124/2004, de 25 de maio (Diário da República, I série‑A, n.° 122, de 25 de maio de 2004, a seguir «RNR»), dispõe:

«Sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, as cartas de navegador […] são emitidas pelo IPTM a quem possua residência em território nacional e apresente documento comprovativo de ter obtido aproveitamento em curso frequentado para o efeito dentro dos pressupostos previstos no artigo 35.° [...]»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

4        Resulta da decisão de reenvio que a Navileme e a Nautizende interpuseram no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto um recurso administrativo contra o IPTM, que é a entidade responsável, em Portugal, pela organização dos exames e pela emissão das cartas de navegador. Estas duas escolas náuticas têm sede em Portugal e o seu objeto social consiste, designadamente, em assegurar a formação obrigatória dos candidatos que pretendam apresentar‑se a exame para obtenção dessa carta. Segundo estas escolas, a partir do mês de dezembro de 2004, o IPTM recusou admitir ao exame da referida carta os estudantes dessas escolas que não residissem em Portugal, por não preencherem os requisitos previstos no artigo 29.°, n.° 1, do RNR. É pacífico que, antes da entrada em vigor do RNR, os não residentes podiam apresentar‑se a este exame.

5        A Navileme e a Nautizende alegaram que o requisito de residência previsto no artigo 29.°, n.° 1, do RNR não está em conformidade com o direito da União nem com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, que proíbem as restrições à livre prestação de serviços com base na nacionalidade e na residência. Segundo as escolas, este requisito tem por objetivo restringir a liberdade de os alunos se deslocarem a outros Estados‑Membros que não o da residência, no caso Portugal, para beneficiarem de serviços de formação tendo em vista preparar o exame da carta de navegador. Alegam que essa restrição diminui o número de estudantes inscritos nos seus cursos de formação. Segundo a Navileme e a Nautizende, essa restrição não é justificada à luz do Tratado FUE.

6        Foi com base nesse argumento que a Navileme e a Nautizende pediram ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, por um lado, que condenasse o IPTM a pagar‑lhes uma indemnização e, por outro, que o obrigasse a admitir os cidadãos da União sem residência em Portugal ao exame da carta de navegador e, em caso de aprovação no mesmo, autorizasse esses cidadãos a comandar as embarcações correspondentes à carta obtida. O Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto julgou os pedidos procedentes.

7        O IPTM recorreu desta decisão para o órgão jurisdicional de reenvio.

8        Nestas circunstâncias, o Tribunal Central Administrativo Norte decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O Direito da UE, face ao princípio da proibição da discriminação entre cidadãos nacionais de um Estado‑Membro e cidadãos nacionais de outro Estado‑Membro (atual artigo 18.° TFUE e ex‑artigo 12.° TCE), face à liberdade de circulação de pessoas na UE e suas exceções (atual artigo 45.°, n.° 3, TFUE e ex‑artigo 39.° TCE) e face à liberdade de prestação de serviços e suas possíveis restrições (atual artigo 52.° TFUE e ex‑artigo 46.° TCE, ex vi do artigo 62.° TFUE e ex‑artigo 55.° TCE), deve ser interpretado no sentido de que se opõe a [uma] disposição de direito nacional que exija residência no respetivo território para poder ser emitida carta de navegador de recreio?»

 Quanto à questão prejudicial

9        Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 52.° TFUE e 56.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que impõe um requisito de residência no território nacional aos cidadãos da União que pretendam obter uma carta de navegador de recreio emitida por esse Estado‑Membro.

10      A título preliminar, importa recordar que, por um lado, o direito à livre prestação de serviços pode ser invocado por uma empresa relativamente ao Estado em que está estabelecida, quando os serviços são prestados a destinatários estabelecidos noutro Estado‑Membro, e, por outro, este direito implica a liberdade de os destinatários de serviços se deslocarem a outro Estado‑Membro para aí beneficiarem de um serviço, sem serem afetados por restrições (v., designadamente, acórdão de 29 de abril de 1999, Ciola, C‑224/97, Colet., p. I‑2517, n.° 11 e jurisprudência referida).

11      Do mesmo modo, as pessoas estabelecidas num Estado‑Membro, que se deslocam a outro Estado‑Membro na qualidade de turistas ou no âmbito de uma viagem de estudos, devem ser consideradas destinatárias de serviços, na aceção do artigo 56.° TFUE (v. acórdão de 15 de junho de 2010, Comissão/Espanha, C‑211/08, Colet., p. I‑5267, n.° 51 e jurisprudência referida).

12      Por conseguinte, num litígio como o do processo principal, as disposições relativas à livre prestação de serviços previstas nos artigos 56.° TFUE a 62.° TFUE são aplicáveis, por um lado, à prestação de serviços de formação para obtenção da carta de navegador, propostos pelas escolas náuticas, como a Navileme e a Nautizende, a estudantes de outros Estados‑Membros que não residam em Portugal e que pretendam obter a sua carta de navegador nesse Estado‑Membro, bem como, por outro, à obtenção desses mesmos serviços pelos referidos estudantes.

13      É forçoso concluir que uma disposição de direito nacional como a em causa no processo principal, que limita a emissão da carta de navegador aos residentes do Estado‑Membro em questão, viola a proibição, prevista no artigo 56.°, n.° 1, TFUE, de qualquer restrição à livre prestação de serviços.

14      Com efeito, embora tal disposição do direito português seja indistintamente aplicável aos nacionais e aos não nacionais e não assente, assim, na nacionalidade dos candidatos à obtenção da carta de navegador, adota, contudo, como critério decisivo, o lugar da residência. Ora, é jurisprudência constante que uma disposição nacional que preveja uma distinção com base no critério da residência cria o risco de atuar principalmente em detrimento dos nacionais de outros Estados‑Membros, na medida em que os não residentes são quase sempre não nacionais (v., neste sentido, acórdão de 7 de maio de 1998, Clean Car Autoservice, C‑350/96, Colet., p. I‑2521, n.° 29; acórdão Ciola, já referido, n.° 14; e acórdão de 25 de janeiro de 2011, Neukirchinger, C‑382/08, Colet., p. I‑139, n.° 34).

15      A legislação em causa no processo principal é, assim, suscetível de afetar certos destinatários do serviço em causa, ou seja, os estudantes que não residem em Portugal, que seguiram uma formação ministrada pela Navileme ou pela Nautizende e que, valendo‑se desse ensino, pretendem obter a sua carta de navegador em Portugal.

16      Do igual modo, a legislação nacional criou um entrave à livre prestação de serviços de formação náutica prestados por escolas como a Navileme ou a Nautizende, uma vez que os estudantes que não residem em Portugal poderão não mostrar interesse nas formações dessas escolas, dado que não podem posteriormente obter a carta de navegador.

17      Daqui decorre que uma legislação nacional que tenha por efeito, por um lado, dissuadir os nacionais da União que não residam em Portugal de se deslocarem a este Estado‑Membro para aí prosseguirem uma formação tendo em vista obter uma carta de navegador emitida por esse Estado‑Membro e, por outro, tornar menos atrativos os serviços oferecidos pelas escolas náuticas aos alunos que não residam em Portugal, visto estes não poderem apresentar‑se a exame para obter uma carta de navegador nesse Estado‑Membro nem obter essa carta, constitui uma restrição à livre prestação de serviços no sentido do artigo 56.°, primeiro parágrafo, TFUE.

18      Importa, em seguida, examinar em que medida a restrição em causa no processo principal pode ser admitida a título de medidas derrogatórias expressamente previstas no artigo 52.° TFUE, aplicável nesta matéria por força do artigo 62.° TFUE, ou justificada, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, por razões imperiosas de interesse geral (v. acórdão de 12 de julho de 2012, HIT e HIT LARIX, C‑176/11, n.° 20). No entanto, é ainda necessário que a aplicação dessa medida seja adequada para garantir a realização do objetivo invocado e não exceda o necessário para alcançar esse objetivo (acórdão de 13 de dezembro de 2012, Caves Krier Frères, C‑379/11, n.° 48 e jurisprudência referida).

19      A esse respeito, o Governo português alega que a restrição em causa no processo principal é necessária por razões de ordem pública, no caso concreto a necessidade de esse Estado‑Membro garantir um nível de segurança elevada no mar, o que exige, designadamente, assegurar o controlo efetivo dos titulares de cartas de navegador. O requisito de residência, previsto na legislação nacional, é essencial para este efeito. Este governo observa, além disso, que o próprio direito derivado da União admite o princípio da imposição de um requisito de residência, remetendo, a esse respeito, para o artigo 7.°, n.° 1, alínea b), da Diretiva 91/439/CEE do Conselho, de 29 de julho de 1991, relativa à carta de condução (JO L 237, p. 1).

20      É certo que o objetivo de segurança e de ordem pública, expressamente previsto no artigo 52.° TFUE e ao qual se refere o Governo português, constitui um objetivo legítimo que poderia, em princípio, justificar uma restrição à livre prestação de serviços. Todavia, ao contrário do que esse governo alega, o requisito de residência, em causa no processo principal, não pode ser justificado por esse objetivo. Com efeito, o recurso a semelhante justificação pressupõe a existência de uma ameaça real e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade (acórdão de 21 de janeiro de 2010, Comissão/Alemanha, C‑546/07, Colet., p. I‑439, n.° 49 e jurisprudência referida). Ora, o Governo português não alega de modo algum que tais circunstâncias se verificam no caso em apreço.

21      Além disso, há que constatar que um requisito como o requisito de residência, em causa no processo principal, que não tem nenhuma ligação com a formação seguida e a capacidade para navegar, não é adequado em si mesmo para contribuir para o objetivo pretendido, ou seja, garantir a segurança da navegação marítima.

22      De mais a mais, e ao contrário do que sustenta o Governo português, é irrelevante que o artigo 7.°, n.° 1, alínea b), da Diretiva 91/439, e, atualmente, o artigo 7.°, n.° 1, alínea e), da Diretiva 2006/126/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de dezembro de 2006, relativa à carta de condução (JO L 403, p. 18), só autorize a emissão de uma carta de condução europeia aos requerentes com residência habitual no território do Estado‑Membro em causa ou que possam provar que aí estudam há pelo menos seis meses. Com efeito, diferentemente da situação em causa no processo principal, o requisito de residência previsto nessas diretivas determina, num domínio harmonizado do direito da União, a competência de cada Estado‑Membro no que respeita à concessão da carta de condução europeia.

23      Em todo o caso, o objetivo de garantir um melhor nível de segurança no mar pode ser alcançado por meios menos restritivos da livre prestação de serviços, designadamente pela fixação de um nível elevado do grau de exigência do exame tendo em vista a obtenção da carta de navegador.

24      Por conseguinte, há que responder à questão submetida que os artigos 52.° TFUE e 56.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem à legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que impõe o requisito de residência no território nacional aos cidadãos da União que pretendam obter uma carta de navegador emitida por esse Estado‑Membro.

 Quanto às despesas

25      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

Os artigos 52.° TFUE e 56.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem à legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que impõe o requisito de residência no território nacional aos cidadãos da União Europeia que pretendam obter uma carta de navegador de recreio emitida por esse Estado‑Membro.

Assinaturas


* Língua do processo: português.