Language of document : ECLI:EU:C:2014:246

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 8 de abril de 2014 (1)

Processo C‑377/13

Ascendi Beiras Litoral e Alta, Auto Estradas das Beiras Litoral e Alta, SA

contra

Autoridade Tributária e Aduaneira

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal Arbitral Tributário (Portugal)]

«Reenvio prejudicial — Conceito de ‘órgão jurisdicional de um Estado‑Membro’ na aceção do artigo 267.° TFUE — Tribunal Arbitral Tributário — Admissibilidade — Diretiva 69/335/CEE — Imposto indireto que incide sobre as reuniões de capitais — Imposto sobre as entradas de capital — Operações isentas — Possibilidade de reintrodução de um imposto sobre as entradas de capital»





1.        O presente processo diz respeito à questão de saber se o legislador português pode reintroduzir um imposto de selo — suprimido em 1991 — sobre as operações de aumento do capital social das sociedades de capitais, com fundamento nas disposições da Diretiva 69/335/CEE do Conselho, de 17 de julho de 1969, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais (2), conforme alterada pela Diretiva 85/303/CEE do Conselho, de 10 de junho de 1985 (3). Esta questão parece relativamente simples de resolver com base nas disposições da diretiva e no estado atual da jurisprudência. O principal problema que se coloca é o da admissibilidade do pedido de decisão prejudicial apresentado neste processo, tendo em conta a natureza especial do órgão na origem desse pedido.

2.        Por essa razão, nas presentes conclusões, tratarei em primeiro lugar da questão da competência do Tribunal de Justiça para responder à questão prejudicial, e em seguida debruçar‑me‑ei sucintamente sobre o mérito do processo e apresentarei uma proposta de resposta.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3.        A regulamentação aplicável ao presente processo ratione temporis é constituída pelas disposições da Diretiva 69/335, conforme alterada pela Diretiva 85/303. A Diretiva 69/335 harmoniza nos Estados‑Membros o imposto sobre as entradas nas sociedades de capitais, denominado, em conformidade com o seu artigo 1.°, «imposto sobre as entradas de capital».

4.        Segundo o artigo 4.°, n.os 1, alínea c), e 2, alínea a), da Diretiva 69/335:

«1.      Estão sujeitas ao imposto sobre as entradas de capital as seguintes operações:

[…]

c)      O aumento do capital social de uma sociedade de capitais mediante a entrada de bens de qualquer espécie;

[…]

2.      Podem continuar sujeitas ao imposto sobre as entradas de capitais as operações a seguir indicadas, desde que fossem tributadas à taxa de 1% em 1 de julho de 1984.

a)      O aumento do capital social de uma sociedade de capitais através da incorporação de lucros, reservas ou provisões;

[…]»

5.        O artigo 7.°, n.os 1 e 2, da Diretiva 69/335 determina:

«1.      Os Estados‑Membros isentarão do imposto sobre as entradas de capital as operações, com exceção das referidas no artigo 9.°, que, em 1 de julho de 1984, estivessem isentas ou fossem tributadas a uma taxa igual ou inferior a 0,50%.

[…]

2.      Os Estados‑Membros podem isentar do imposto sobre as entradas de capital todas as operações, com exceção das referidas no n.° 1, ou submetê‑las a uma taxa única que não ultrapasse 1%.

[…]»

6.        Nos termos do artigo 10.° da referida diretiva:

«Além do imposto sobre as entradas de capital, os Estados‑Membros não cobrarão, no que diz respeito às sociedades, associações ou pessoas coletivas com fins lucrativos, qualquer imposição, seja sob que forma for:

a)      Em relação às operações referidas no artigo 4.°;

[…]»

 Direito português

 Disposições que regulam o estatuto do órgão de reenvio

7.        Segundo as informações que resultam do conteúdo da decisão de reenvio e das observações do Governo português, a introdução do sistema de tribunais arbitrais em matéria tributária foi tornada possível com a autorização constante do artigo 124.° da Lei n.° 3‑B/2010, de 28 de abril, Orçamento do Estado para 2010 (a seguir «Lei n.° 3‑B/2010») (4). Esta disposição define arbitragem como «uma forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária». Nos termos do artigo 124.°, n.° 4, alíneas a) a q), desta mesma lei, a arbitragem abrange diferentes tipos de litígios entre os contribuintes e a Administração Fiscal.

8.        Com base na autorização referida no número anterior, foi aprovado o Decreto‑Lei n.° 10/2011, de 20 de janeiro, que regula o regime jurídico da arbitragem em matéria tributária (a seguir «Decreto‑Lei n.° 10/2011») (5). Este decreto‑lei regula as competências, modalidades de designação e regras de funcionamento dos órgãos jurisdicionais arbitrais em matéria tributária, os efeitos das suas decisões e as possibilidades de recurso contra as mesmas. As disposições essenciais do Decreto‑Lei n.° 10/2011 serão abordadas na parte das presentes conclusões consagrada à análise da admissibilidade do reenvio prejudicial.

 Disposições relativas ao imposto sobre as entradas de capital

9.        Em 1 de julho de 1984, o aumento do capital social das sociedades de capitais estava sujeito em Portugal a imposto de selo à taxa de 2%, ao passo que o aumento de capital realizado em dinheiro estava isento. Em 1991, o aumento do capital social das sociedades de capitais, independentemente da sua forma, foi isentado.

10.      No processo principal, são aplicáveis as disposições da Lei n.° 150/99, de 11 de setembro, que aprova o Código do Imposto do Selo (6), na versão em vigor para os anos de 2004‑2006. O anexo III desta lei, intitulado «Tabela Geral do Imposto do Selo (em euros)», fixa o montante do imposto de selo sobre as diferentes operações a ele sujeitas. Por força do Decreto‑Lei n.° 322‑B/2001, de 14 de dezembro (7), foi aditado ao anexo o ponto 26, cujo subponto 26.3 tinha a seguinte redação:

«Aumento do capital social de uma sociedade de capitais mediante a entrada de bens de qualquer espécie; sobre o valor real dos bens de qualquer natureza entregues ou a entregar pelos sócios após dedução das obrigações assumidas e dos encargos suportados pela sociedade em consequência de cada entrada [...] 0,4%» (8).

 Factos e tramitação processual

 Factos, processo principal e questão prejudicial

11.      A Ascendi Beiras Litoral e Alta, Auto Estradas das Beiras Litoral e Alta, SA (a seguir «Ascendi»), sociedade de capitais de direito português, procedeu, entre 15 de dezembro de 2004 e 29 de novembro de 2006, a quatro operações de aumento de capital através da conversão, em capital social, de créditos dos acionistas sobre a sociedade. A título dessas operações, a Ascendi pagou um total de 203 796 EUR de imposto de selo.

12.      Em 28 de março de 2008, a Ascendi requereu à Autoridade Tributária e Aduaneira a restituição desse montante acrescido de juros. Esse pedido foi indeferido por decisão de 6 de agosto de 2012, objeto do processo principal. Em 3 de dezembro de 2012, a Ascendi pediu a constituição de um tribunal arbitral e a anulação da decisão referida.

13.      A recorrente invoca a ilegalidade da decisão de 6 de agosto de 2012 porque, em seu entender, o legislador português não podia legalmente reintroduzir, em 2001, um imposto de selo sobre as operações de aumento do capital social das sociedades de capitais que tinha sido suprimido em 1991. No entanto, segundo a Administração Fiscal, o artigo 7.°, n.° 2, da Diretiva 69/335 permite a reintrodução de um imposto sobre as entradas de capital nas operações que estavam sujeitas a esse imposto em 1 de julho de 1984, mesmo que após essa data tenham sido isentas.

14.      Neste contexto, o Tribunal Arbitral Tributário decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Os artigos 4.°, n.° 1, c) e n.° 2, a), 7.°, n.° 1, e 10.°, a), da [Diretiva 69/335] opõem‑se a uma legislação nacional, como a do [Decreto‑Lei] n.° 322‑B/2001, de 14 de dezembro, que passou a sujeitar a [imposto de selo] os aumentos de capital social de sociedades de capitais efetuados por meio de conversão, em capital social, de créditos detidos pelos acionistas por prestações acessórias anteriormente feitas à sociedade, mesmo que estas prestações acessórias tenham sido feitas em dinheiro, tendo em conta que, à data de [1 de julho de] 1984, a legislação nacional sujeitava aqueles aumentos de capital, realizados daquele modo, a [imposto de selo], à taxa de 2% e que, [na] mesma data, isentava de [imposto de selo] os aumentos de capital realizados em dinheiro?»

 Tramitação processual no Tribunal de Justiça

15.      O pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 3 de julho de 2013. Apresentaram observações escritas a Ascendi, o Governo português e a Comissão Europeia. Em aplicação do artigo 76.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça decidiu não realizar audiência de alegações.

 Análise

 Competência do Tribunal de Justiça para decidir sobre a questão prejudicial

 Observações liminares

16.      No presente processo, a admissibilidade do reenvio prejudicial não é contestada. No entanto, o próprio Tribunal Arbitral Tributário reconhece na decisão de reenvio que esta questão pode suscitar dúvidas e expõe argumentos suscetíveis de justificar a sua qualificação de «órgão jurisdicional de um Estado‑Membro» na aceção do artigo 267.° TFUE. O Governo português e a Comissão analisam também este problema nas suas observações escritas, chegando à conclusão de que o Tribunal de Justiça é competente para decidir sobre a questão prejudicial.

17.      As dúvidas a este respeito relacionam‑se com o facto de o Tribunal Arbitral Tributário não pertencer ao sistema de base dos tribunais judiciais e administrativos em Portugal, mas constituir uma «forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária» — como o define a Lei n.° 3‑B/2010. Esta forma alternativa de resolução de conflitos assenta, como de resto indica a própria denominação do órgão de reenvio, no recurso a certas técnicas de arbitragem para a resolução de litígios entre um contribuinte e a Administração Fiscal. Resulta, no entanto, de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, à qual farei de novo referência mais adiante nas presentes conclusões, que as jurisdições arbitrais instituídas por convenção não são «órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro» na aceção do artigo 267.° TFUE e que o Tribunal de Justiça não é competente para decidir sobre questões prejudiciais por eles submetidas.

18.      Assim, importa examinar se a natureza especial do Tribunal Arbitral Tributário o impede de submeter questões a título prejudicial ao Tribunal de Justiça em aplicação do artigo 267.° TFUE.

 Impossibilidade de as jurisdições arbitrais submeterem questões a título prejudicial ao Tribunal de Justiça

19.      Importa antes de mais salientar que a simples utilização, na denominação do órgão, dos termos «arbitragem» ou «árbitro» não significa necessariamente que se trate de uma jurisdição arbitral em sentido estrito. Com efeito, verifica‑se que alguns órgãos nacionais encarregados da resolução de diferendos podem utilizar, no quadro da respetiva atividade, regras processuais características dos tribunais arbitrais (por exemplo, possibilidade de as partes designarem alguns membros da formação chamada a decidir, simplificação processual, processo em instância única). Há que distinguir este tipo de «arbitragem» da arbitragem em sentido estrito que assenta na faculdade (vontade) das partes de confiarem a resolução de um diferendo a uma jurisdição não estatal (privada). Esta distinção é fundamental para a qualificação do órgão à luz do artigo 267.° TFUE.

20.      No seu acórdão de 1982 no processo Nordsee (9), o Tribunal de Justiça afastou a hipótese de os tribunais arbitrais instituídos por acordo das partes submeterem questões prejudiciais nos termos do artigo 177.° CE (atual artigo 267.° TFUE). Nesse processo, o Tribunal de Justiça não qualificou o árbitro de «órgão jurisdicional de um Estado‑Membro» na aceção do Tratado, considerando que a sua relação com o sistema das vias de recurso legais era demasiado ténue (10). Esta jurisprudência foi em seguida confirmada nos acórdãos Eco Swiss (11) e Denuit e Cordenier (12).

21.      Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que só as autoridades dos Estados‑Membros ou os organismos encarregados por esses Estados de missões no domínio da proteção jurídica podem recorrer ao Tribunal de Justiça a título prejudicial, na medida em que os Estados‑Membros são responsáveis pela aplicação e pelo respeito do direito da União no seu território. No entanto, as jurisdições arbitrais stricto sensu não são autoridades dos Estados‑Membros nem organismos que garantam, em nome desses Estados, missões no domínio da proteção jurídica, mas instituições privadas.

22.      Paralelamente, desde os primeiros acórdãos em que interpretou o conceito de «órgão jurisdicional de um Estado‑Membro» no contexto da admissibilidade dos reenvios prejudiciais, mais precisamente no acórdão de 1966 no processo Vaassen‑Göbbels (13), o Tribunal de Justiça admitiu a possibilidade de um reenvio prejudicial por um órgão de arbitragem de direito público. Decidiu seguidamente no mesmo sentido noutros processos (14) e, por último, no despacho no processo Merck Canada (15), admitiu o reenvio prejudicial proveniente de um organismo português cujo estatuto é análogo, embora não idêntico, ao estatuto do Tribunal Arbitral Tributário.

23.      Como qualificar nestas condições o Tribunal Arbitral Tributário à luz da referida jurisprudência?

24.      Começarei por observar que a natureza da arbitragem stricto sensu é o seu caráter não estatal. As jurisdições arbitrais são jurisdições privadas encarregadas, por vontade das partes e em vez das jurisdições estatais, de examinar e resolver diferendos (16).

25.      A primeira destas características significa que o fundamento da competência das jurisdições arbitrais é a vontade das partes (cláusula de arbitragem). As partes — no âmbito da respetiva autonomia da vontade — decidem submeter um litígio à jurisdição de uma instância arbitral. As partes podem também definir os princípios de funcionamento da jurisdição arbitral, as regras processuais e os princípios com base nos quais a jurisdição arbitral decidirá do mérito. Ao submeterem o litígio a um tribunal arbitral, as partes renunciam a recorrer a uma jurisdição estatal e, portanto, às vias de recurso previstas pelo Estado (17).

26.      Submeter o diferendo à jurisdição arbitral significa também que as partes afastaram a este respeito a competência das jurisdições estatais. Se as partes não estipulassem a cláusula de arbitragem, o seu diferendo seria da competência das jurisdições estatais. A jurisdição arbitral é, portanto, uma jurisdição privada. Importa salientar que a própria possibilidade de submeter um diferendo a uma jurisdição arbitral deve resultar de disposições legais. Estas definem, nomeadamente, o tipo de diferendos que podem ser submetidos a arbitragem («arbitrabilidade», «zdatność arbitrażowa» «arbitrability», «arbitrabilité», «Schiedsfähigkeit»). Trata‑se, em princípio, de diferendos de direito privado (18).

27.      Tendo em conta as considerações expostas, penso que o Tribunal Arbitral Tributário não deve ser considerado uma jurisdição arbitral em sentido estrito que, só por essa razão, não poderia validamente submeter ao Tribunal de Justiça um reenvio prejudicial em aplicação do artigo 267.° TFUE.

28.      Esta conclusão assenta sobretudo no facto de não se tratar de um tribunal instituído com base num acordo das partes, mas com base nas disposições do direito português referidas nos n.os 7 e 8 das presentes conclusões. A arbitragem em matéria fiscal é efetivamente uma forma alternativa de resolução de conflitos, no sentido de que o recorrente, no caso em apreço o contribuinte, pode escolher a via da arbitragem ou da jurisdição administrativa. Esta possibilidade de escolher as vias de recurso está prevista pelo direito e está aberta a qualquer contribuinte para qualquer litígio que se enquadre no âmbito de aplicação do artigo 124.°, n.° 4, alíneas a) a q), da Lei n.° 3‑B/2010, sem estar no entanto sujeita à prévia manifestação da vontade das partes de submeterem os seus diferendos à arbitragem.

29.      Contra a consideração do Tribunal Arbitral Tributário como jurisdição arbitral stricto sensu milita também o tipo de relações jurídicas que são da sua competência, a saber, as de matéria fiscal. Neste domínio, diversamente do que acontece nas relações de direito privado, não só as modalidades de resolução dos litígios mas também e sobretudo a própria existência da relação jurídica e o seu conteúdo não resultam da autonomia da vontade das partes, sendo determinadas exclusivamente por disposições jurídicas que associam a certos acontecimentos, de forma automática, o surgimento da obrigação fiscal. Esta matéria não tem, com efeito, pela sua natureza, a «arbitrabilidade» que permite submeter os litígios da sua competência a uma jurisdição instituída pela vontade das partes.

30.      Por último, importa observar que, em matéria fiscal, uma das partes no litígio é sempre uma autoridade do Estado que age no exercício de funções de autoridade pública, sendo atualmente a tributação e a cobrança de impostos uma prerrogativa reservada ao Estado. Tal basta para demonstrar que um órgão encarregado de decidir litígios na matéria, como o Tribunal Arbitral Tributário, não é uma jurisdição privada.

31.      A afirmação de que o Tribunal Arbitral Tributário não é uma jurisdição arbitral na aceção da jurisprudência referida no n.° 20 das presentes conclusões não implica, no entanto, a sua qualificação de órgão jurisdicional de um Estado‑Membro na aceção do artigo 267.° TFUE. Para responder a essa questão, há que examinar se estão preenchidos os requisitos que a este respeito resultam da jurisprudência do Tribunal de Justiça. Podem surgir dúvidas, em particular, quanto aos elementos relativos ao funcionamento do organismo examinado, que recorrem a técnicas características das jurisdições arbitrais.

 Requisitos que permitem qualificar o órgão de reenvio de órgão jurisdicional nacional na aceção do artigo 267.° TFUE

32.      O conceito de «órgão jurisdicional de um Estado‑Membro» na aceção do artigo 267.° TFUE é um conceito autónomo do direito da União, mas nem os Tratados nem a jurisprudência do Tribunal de Justiça contêm uma definição geral desta expressão. Tendo em conta a diversidade de organismos encarregados, nos diferentes Estados‑Membros, da resolução de litígios, podemos, de resto, interrogar‑nos sobre a questão de saber se a formulação dessa definição é possível e necessária.

33.      Na falta de uma definição geral deste conceito, o Tribunal de Justiça é obrigado — em caso de dúvida — a apreciar caso a caso se o órgão que lhe submeteu um pedido de decisão prejudicial estava habilitado para o fazer (19). No âmbito desta jurisprudência, no entanto, foi definido um conjunto de requisitos que, embora não sendo determinantes nem exaustivos, são a referência de qualquer apreciação do caráter jurisdicional de um órgão que submete uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça. Estes requisitos podem desde já considerar‑se «codificados» por uma jurisprudência bem assente (20), sendo também referidos no n.° 9 das Recomendações à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (21).

34.      Importa analisar se estão preenchidos os requisitos que permitem considerar o Tribunal Arbitral Tributário um órgão jurisdicional nacional na aceção do artigo 267.° TFUE. A este respeito, há que ter em conta que, como já recordei, o sistema alternativo de resolução de litígios em matéria fiscal instituído em direito português recorre a uma série de técnicas e de normas processuais próprias das jurisdições arbitrais e que derrogam os princípios de funcionamento dos órgãos jurisdicionais tradicionais. O objetivo é que este sistema assegure uma resolução rápida dos litígios e se possível a um custo inferior, constituindo uma alternativa real às jurisdições administrativas. Esta especificidade deve ser integrada no exame da questão de saber se os diferentes requisitos estão preenchidos.

—       Base legal de funcionamento e permanência do órgão

35.      Segundo jurisprudência constante, apenas um órgão instituído de forma permanente, com base em disposições legais de um Estado‑Membro, pode recorrer ao Tribunal de Justiça a título prejudicial. Em meu entender, este requisito está preenchido. Como referi no n.° 28 das presentes conclusões, a arbitragem em matéria fiscal assenta na Lei n.° 3‑B/2010 e no Decreto‑Lei n.° 10/2011. Estes atos estabelecem um sistema permanente de arbitragem em matéria fiscal e definem precisamente os princípios do seu funcionamento.

36.      Concretamente, embora a formação que vai decidir seja nomeada separadamente para cada processo a pedido do contribuinte em causa, o direito do contribuinte de pedir a constituição de um tribunal arbitral assim como as modalidades de designação dos seus membros resultam de disposições legais. O pedido do contribuinte é aqui apenas o fator que desencadeia a aplicação dessas disposições.

37.      As mesmas reservas podem ser suscitadas quanto à questão do caráter permanente do Tribunal Arbitral Tributário — uma vez que a formação concreta que vai decidir apenas existe para efeitos de um processo, pode considerar‑se que esse órgão é permanente? Em meu entender, porém, não há que abordar esta questão do ponto de vista das diferentes formações que decidem em processos concretos, mas do ponto de vista sistemático (22). O Tribunal Arbitral Tributário não é um tribunal ad hoc, mas apenas um elemento de um sistema de resolução de litígios, que — embora intervindo sob a forma de formações de julgamento efémeras cuja atividade termina ao mesmo tempo que o processo para a resolução do qual foram designadas — no seu todo tem caráter permanente.

—       Obrigatoriedade da jurisdição do órgão

38.      Em conformidade com os princípios consagrados pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, deve ser obrigatório para as partes submeter o seu litígio ao órgão na origem do reenvio prejudicial, não podendo tal depender exclusivamente da sua vontade, como acontece no caso das jurisdições arbitrais stricto sensu. O presente processo respeita a um órgão que se apresenta como um elemento de um «sistema alternativo de resolução de litígios» em matéria fiscal. Tal significa que o contribuinte que deseje uma solução jurisdicional para o litígio que o opõe à Administração Fiscal pode escolher entre recorrer ao tribunal administrativo ou pedir a constituição de um tribunal arbitral em matéria fiscal, e a Administração Fiscal tem de aceitar essa decisão do contribuinte (23).

39.      Podemos interrogar‑nos sobre se a jurisdição do Tribunal Arbitral Tributário deve ser considerada obrigatória para as partes, uma vez que o contribuinte, isto é, geralmente, a parte na origem do litígio em matéria fiscal, não é obrigado a recorrer a esse órgão, podendo dirigir‑se ao tribunal administrativo. A simples circunstância de a Administração Fiscal ter a obrigação de aceitar a escolha jurisdicional do contribuinte não é, em meu entender, decisiva, pois tal resulta da essência da jurisdição dos tribunais. Com efeito, a partir do momento em que a parte recorrente pede ao órgão competente para conhecer do litígio, quer com base em disposições da lei quer por acordo entre as partes, está excluído que a parte recorrida possa validamente pôr em causa essa competência (24).

40.      Em meu entender, a característica da arbitragem portuguesa em matéria fiscal que é essencial para a análise da questão em causa consiste no facto de o direito de escolha dos contribuintes quanto às vias de recurso não resultar da sua própria iniciativa, mas da vontade do legislador, que instituiu dois sistemas diferentes de resolução de conflitos com a Administração Fiscal. Nenhum destes sistemas, tomado individualmente, é obrigatório, mas o contribuinte deve escolher um deles se quiser uma solução jurisdicional para o diferendo que o opõe à Administração Fiscal. Com efeito, em conformidade com o artigo 3.°, n.° 2, do Decreto‑Lei n.° 10/2011, a apresentação de um pedido de constituição de um tribunal arbitral exclui o direito de impugnar essa mesma decisão com base nos mesmos fundamentos numa jurisdição administrativa. Ora, em aplicação do artigo 24.°, n.° 1, do mesmo diploma, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão vincula a Administração Fiscal. A arbitragem fiscal não é, pois, um meio jurídico suplementar nas mãos do contribuinte, mas uma verdadeira alternativa à justiça tradicional. Neste sentido, considero preenchido o requisito da obrigatoriedade da jurisdição do órgão de reenvio (25).

—       Natureza contraditória do processo e aplicação das regras de direito

41.      Os artigos 15.° a 20.° do Decreto‑Lei n.° 10/2011 definem os princípios aplicáveis ao processo nas jurisdições arbitrais em matéria fiscal. Estes princípios garantem em particular a natureza contraditória desse processo e a igualdade das partes. A violação destes princípios pode, de acordo com o artigo 28.° do decreto‑lei, constituir um fundamento de impugnação da decisão arbitral no tribunal administrativo.

42.      O artigo 2.°, n.° 2, do Decreto‑Lei n.° 10/2011 dispõe que os tribunais arbitrais em matéria fiscal decidem de acordo com o direito constituído, sendo vedado o recurso à equidade. Tal é, de resto, bastante evidente, uma vez que estas jurisdições têm por missão examinar, especialmente do ponto de vista da sua conformidade com o direito, decisões administrativas em matéria fiscal.

43.      Considero, por conseguinte, que os requisitos estabelecidos pela jurisprudência relativos à natureza contraditória do processo e à aplicação das regras de direito pelo órgão que decide estão, no caso do Tribunal Arbitral Tributário, incontestavelmente preenchidos.

—       Independência

44.      O requisito da independência deve ser apreciado à luz de dois aspetos (26). O aspeto externo diz respeito à independência do órgão e dos seus membros relativamente a pessoas ou instituições estranhas ao litígio — poder executivo, instâncias hierarquicamente superiores, etc. O aspeto interno diz respeito à imparcialidade dos membros do órgão relativamente às partes no litígio e à falta de interesse pessoal na sua resolução concreta.

45.      As jurisdições arbitrais em matéria fiscal não fazem parte da Administração Fiscal nem de outras instituições do poder executivo. São um elemento do poder judiciário e operam no seio do Centro de Arbitragem Administrativa e Tributária, que lhes fornece serviços técnico‑administrativos. São independentes na sua decisão e têm por única obrigação respeitar o direito e a jurisprudência das jurisdições administrativas, sendo as suas decisões em princípio definitivas e executórias (v. n.° 51 das presentes conclusões).

46.      Estas jurisdições arbitrais em matéria fiscal decidem em formação de árbitro único ou de três árbitros. As modalidades de designação dos árbitros e as regras deontológicas às quais estão sujeitos figuram nos artigos 6.° a 9.° do Decreto‑Lei n.° 10/2011. São designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, de entre a lista dos árbitros que compõem este órgão (27) ou eventualmente pelas partes, caso em que haverá sempre uma formação de três pessoas, cabendo a designação do presidente aos outros árbitros designados ou, na falta de acordo, ao referido Conselho.

47.      Uma vez que os árbitros não são juízes profissionais, a sua independência pessoal é garantida com fundamentos diferentes dos aplicáveis aos juízes. Em particular, seria difícil falar de inamovibilidade, já que os árbitros são designados para um processo preciso, após o qual o seu papel se esgota. A independência dos árbitros decorre antes do facto de serem pessoas com uma situação autónoma, para quem a função de árbitro não é a principal atividade profissional. Não têm, por isso, razões para temer as consequências negativas a que as suas decisões os podem expor; essas eventuais consequências não teriam, com efeito, em caso algum, influência no seu estatuto profissional e patrimonial.

48.      No que respeita à imparcialidade dos árbitros e à sua independência relativamente às partes no litígio, os artigos 8.° e 9.° do Decreto‑Lei n.° 10/2011 oferecem garantias análogas às aplicáveis aos juízes profissionais.

49.      Atendendo ao exposto, sou de opinião de que o Tribunal Arbitral Tributário preenche o critério da independência.

 Resumo

50.      O Tribunal Arbitral Tributário não é, pois, uma jurisdição arbitral designada por vontade das partes. Pelo contrário, penso que há que considerá‑lo um elemento do sistema judicial português tal como os tribunais judiciais e administrativos. A especificidade dessa instituição respeita apenas ao facto de o legislador português ter decidido permitir aos contribuintes submeter os seus litígios com a Administração Fiscal a uma jurisdição que funciona de maneira menos formal, mais rápida e mais barata do que as jurisdições administrativas ordinárias. É a manifestação de uma tendência, que não se verifica só em Portugal, de desformalização e simplificação dos procedimentos jurisdicionais através do recurso a técnicas e dispositivos próprios dos mecanismos da resolução privada de diferendos. É também um elemento da especialização dos tribunais e dos juízes, necessário no contexto da crescente complexidade das relações socioeconómicas e, logo, dos diferendos submetidos aos tribunais. Esta abordagem, pode dizer‑se pós‑moderna, da justiça é o resultado da evolução do sistema judicial e do sistema jurídico no seu conjunto. O Tribunal de Justiça não pode ficar insensível a essa evolução, devendo adaptar a sua prática, incluindo a sua interpretação do artigo 267.° TFUE.

51.      Por conseguinte, considero que o Tribunal Arbitral Tributário deve ser qualificado de «órgão jurisdicional de um Estado‑Membro» na aceção do artigo 267.° TFUE. Preenche, com efeito, os referidos requisitos definidos pela jurisprudência do Tribunal de Justiça. Não vejo também outras razões pelas quais se lhe devesse negar essa natureza. Acresce ainda um argumento suplementar: nos termos dos artigos 25.° a 28.° do Decreto‑Lei n.° 10/2011, a decisão desse tribunal só é suscetível de recurso com fundamento em vícios de forma, como a falta de fundamentação ou a contradição da mesma com o conteúdo da decisão, a falta de decisão ou a violação das regras processuais e, quanto ao mérito, apenas nos casos excecionais de violação das normas constitucionais ou de desrespeito da jurisprudência das jurisdições administrativas. Por conseguinte, recusar aos tribunais arbitrais em matéria fiscal a possibilidade de recorrer ao Tribunal de Justiça a título prejudicial seria privá‑los de parte significativa da sua influência na jurisprudência das jurisdições portuguesas em matéria fiscal, ou seja, num domínio largamente harmonizado em direito da União com efeitos diretos nos direitos e obrigações dos particulares. Ora, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, esse risco faz parte das circunstâncias que militam a favor do reconhecimento de competência aos órgãos em causa para submeter um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça (28).

52.      A solução que proponho para esta questão da admissibilidade do pedido de decisão prejudicial no presente processo não permite, de modo nenhum, futuros pedidos de decisão prejudicial apresentados por pessoas ou instituições que intervêm no âmbito de outros modos alternativos de resolução de diferendos, em particular sob a forma de negociação ou mediação (29). Resulta, com efeito, de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça — e independentemente do preenchimento de outros critérios — que, nos termos do artigo 267.° TFUE, só lhe podem ser submetidas questões prejudiciais por um órgão chamado a decidir «no âmbito de um processo que deva conduzir a uma decisão de caráter jurisdicional» (30). O Tribunal Arbitral Tributário preenche este requisito uma vez que se trata de um órgão independente relativamente às partes no litígio, cujas decisões se impõem a essas partes e que são em princípio definitivas, tal como as decisões das jurisdições ordinárias. O objetivo do processo no Tribunal Arbitral Tributário não é, pois, a celebração de um acordo entre as partes, e a decisão proferida não tem o caráter não vinculativo de uma recomendação ou de um parecer. Esta característica distingue claramente esta jurisdição do mediador e de outros organismos análogos.

 Quanto ao mérito

53.      O presente processo constitui, de alguma forma, uma continuação do processo Optimus — Telecomunicações (31). O Tribunal de Justiça terá, portanto, a ocasião de completar a jurisprudência iniciada nesse acórdão.

54.      Antes de mais, importa determinar quais as disposições da Diretiva 69/335 que se aplicam aos factos do processo principal. Há, com efeito, que reconhecer que esta diretiva, devido às alterações introduzidas pela Diretiva 85/303, não constitui um modelo de boa técnica legislativa (32). O órgão jurisdicional de reenvio, na questão prejudicial, refere, nomeadamente, o artigo 4.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 69/335, que, no entanto, não parece aplicável no processo principal. As partes discordam, efetivamente, quanto à questão da natureza das operações de aumento de capital objeto do processo principal — isto é, sobre a questão de saber se se tratava de entradas em numerário ou não (33) –, mas é pacífico que tais operações não assumiram a forma de «incorporação de lucros, reservas ou provisões» na aceção desta disposição da diretiva. As operações objeto do processo principal fazem parte da categoria «aumento do capital social de uma sociedade de capitais mediante a entrada de bens de qualquer espécie», referida no artigo 4.°, n.° 1, alínea c).

55.      O órgão jurisdicional de reenvio menciona também o artigo 7.°, n.° 1, da diretiva. Esta disposição não pode, todavia, ser lida separadamente do n.° 2 do mesmo artigo, pois só a conjugação das duas disposições forma uma norma coerente — consoante a situação jurídica de um dado Estado‑Membro em 1 de julho de 1984, aplica‑se o n.° 1 ou o n.° 2 do artigo 7.° Se se considerar, como faz o órgão jurisdicional de reenvio, que o processo principal tem por objeto um aumento de capital através da entrada de bens que não sejam dinheiro, operação sujeita, em Portugal, em 1 de julho de 1984, a imposto de selo (34), deve aplicar‑se o artigo 7.°, n.° 2 (35).

56.      O problema jurídico do presente processo respeita, portanto, à questão de saber se o artigo 7.°, n.° 2, da Diretiva 69/335 permite a reintrodução de um imposto sobre as entradas de capital quanto às operações referidas no artigo 4.°, n.° 1, alínea c), desta mesma diretiva que estavam sujeitas a esse imposto em 1 de julho de 1984, mas que foram, em seguida, dele isentadas.

57.      A Diretiva 69/335, na sua versão inicial, fixava os princípios de aplicação de um imposto sobre as entradas de capital quanto às operações nela definidas. De acordo com o seu artigo 4.°, as operações referidas no n.° 1 deviam ser sujeitas a imposto e as operações referidas no n.° 2 podiam ser sujeitas a imposto. O artigo 7.° da referida diretiva fixava as taxas do imposto sobre as entradas de capital. No entanto, a Diretiva 85/303 deu uma redação totalmente nova ao artigo 7.° da Diretiva 69/335. A disposição exige que as operações que, em 1 de julho de 1984, estivessem isentas nos Estados‑Membros do imposto sobre as entradas de capital ou fossem tributadas a uma taxa igual ou inferior a 0,50% sejam definitivamente isentas (artigo 7.°, n.° 1). Em contrapartida, em relação às outras operações, os Estados‑Membros podem escolher — podem também isentá‑las ou submetê‑las a uma taxa única que não ultrapasse 1% (artigo 7.°, n.° 2).

58.      Nos considerandos da Diretiva 85/303, o legislador comunitário justificou este dispositivo afirmando que o imposto sobre as entradas de capital é desfavorável ao desenvolvimento das empresas e que a melhor solução seria eliminá‑lo; no entanto, na medida em que as perdas de receitas orçamentais geradas por este imposto seriam inaceitáveis para alguns Estados‑Membros, há que deixar‑lhes a possibilidade de continuarem a aplicar esse imposto a uma taxa única.

59.      A natureza normativa do artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 69/335 foi assim alterada, não implicando já uma obrigação para os Estados‑Membros de submeterem as operações que enumera ao imposto sobre as entradas de capital, uma vez que essa obrigação foi suprimida pelo artigo 7.° da diretiva, na versão decorrente da Diretiva 85/303, lex posterior ao artigo 4.°, n.° 1. Esta disposição apenas indica agora os diferentes tipos de operações a que as disposições em matéria de imposto sobre as entradas de capitais são aplicáveis.

60.      Resta determinar se o artigo 7.°, n.° 2, da Diretiva 69/335 constitui uma cláusula de standstill, que permite apenas aos Estados‑Membros manter em vigor a tributação tal como se aplicava em 1 de julho de 1984 (adaptando eventualmente a sua taxa), ou, como sugere o Governo português nas suas observações escritas, autoriza os Estados‑Membros a suprimirem e reintroduzirem livremente um imposto sobre as entradas de capital, consoante as orientações concretas da sua política fiscal e as suas necessidades orçamentais.

61.      Sou decididamente partidário da primeira tese. Antes de mais, como indicam os considerandos da Diretiva 85/303, a vontade do legislador era suprimir o imposto sobre as entradas de capital, sendo a possibilidade de o manter apenas uma exceção fundamentada pelo receio de perdas de receitas orçamentais pelos Estados‑Membros. No entanto, se um Estado‑Membro tiver suprimido o imposto sobre as entradas de capital, a eventual perda de receitas orçamentais daí resultante já se verificou, e logo a reintrodução desse imposto não se justifica à luz dos objetivos prosseguidos pelo legislador comunitário com a Diretiva 85/303.

62.      Em segundo lugar, esta interpretação do artigo 7.°, n.° 2, da Diretiva 69/335 como uma cláusula de standstill é apoiado pela lógica desta disposição, em particular pela referência ao estado do direito em vigor em 1 de julho de 1984. Se o legislador quisesse ter dado aos Estados‑Membros a liberdade de manter em vigor, suprimir e depois, eventualmente, reintroduzir um imposto sobre as entradas de capital, não teria sujeitado essa faculdade à circunstância fortuita de tal imposto, num determinado montante, se aplicar efetivamente em 1 de julho de 1984. A referência a esta data precisa indica claramente a vontade do legislador de introduzir aqui uma cláusula de standstill.

63.      Há também que salientar que o Tribunal de Justiça adotou a mesma posição, ainda que no contexto das operações referidas no artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 69/335, relativamente a uma situação jurídica ligeiramente diferente, no seu acórdão Logstor ROR Polska (36). No n.° 39 desse acórdão, o Tribunal de Justiça indicou claramente que «[…] um Estado‑Membro que tenha renunciado a sujeitar certas operações a um imposto sobre as entradas de capitais, nos termos do artigo 7.°, n.° 2, da Diretiva 69/335, posteriormente a 1 de julho de 1984, não pode restabelecer esse imposto sobre as mesmas operações».

64.      Importa, por último, observar que, em conformidade com o subponto 26.3 do anexo III do Decreto‑Lei n.° 322‑B/2001, as operações de aumento de capital objeto do processo principal estavam sujeitas a um imposto de selo de 0,4%, ou seja, a uma taxa que, se tivesse sido aplicada em 1 de julho de 1984, teria conduzido necessariamente à supressão desse imposto com base no artigo 7.°, n.° 1, da Diretiva 69/335. Embora esta taxa seja conforme com a letra do n.° 2 deste artigo (37), a reintrodução de um imposto a esta taxa parece todavia muito difícil de conciliar com a lógica do artigo 7.° da Diretiva 69/335.

 Conclusão

65.      Tendo em conta o exposto, proponho ao Tribunal de Justiça que considere admissível o reenvio prejudicial do Tribunal Arbitral Tributário e que responda da seguinte forma à questão submetida:

«O artigo 7.°, n.° 2, da Diretiva 69/335/CEE do Conselho, de 17 de julho de 1969, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais, conforme alterada pela Diretiva 85/303/CEE do Conselho, de 10 de junho de 1985, conjugado com o artigo 7.°, n.° 1, da Diretiva 69/335, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à reintrodução, pelo Estado‑Membro, de um imposto sobre as entradas de capital quanto às operações referidas no artigo 4.°, n.° 1, alínea c), desta diretiva, que estavam sujeitas a esse imposto em 1 de julho de 1984, mas que foram, sem seguida, dele isentadas.»


1 – Língua original: polaco.


2 – JO L 249, p. 25; EE 09 F1 p. 22.


3 – JO L 156, p. 23; EE 09 F1 p. 171.


4 – Diário da República, 1.ª série, n.° 82, p. 1466‑(111).


5 – Diário da República, 1.ª série, n.° 14, p. 370.


6 – Diário da República, I série‑A, n.° 213, p. 6264.


7 – Diário da República, I série‑A, n.° 288, p. 8278‑(12).


8 – O ponto 26 da Tabela Geral do Imposto do Selo foi em seguida alterado e, afinal, suprimido, mas para o presente processo tal é irrelevante.


9 – Acórdão Nordsee, 102/81, EU:C:1982:107.


10 – V. n.os 10 a 13 do acórdão. Os elementos suscetíveis de afastar a admissibilidade dos reenvios prejudiciais provenientes dos tribunais arbitrais foram evocados pormenorizadamente pelo advogado‑geral G. Reischl nas suas conclusões no processo Nordsee (102/81, EU:C:1982:31).


11 – Acórdão Eco Swiss (C‑126/97, EU:C:1999:269, n.° 34).


12 – Acórdão Denuit e Cordenier (C‑125/04, EU:C:2005:69, n.° 13).


13 – Acórdão Vaassen‑Göbbels (61/65, EU:C:1966:39).


14 – V., por exemplo, acórdão Handels‑og Kontorfunktionærernes Forbund i Danmark (109/88, EU:C:1989:383, n.os 7 a 9).


15 – Despacho Merck Canada (C‑555/13, EU:C:2014:92, n.os 15 a 25).


16 – Sobre a natureza das jurisdições arbitrais, v., por exemplo, T. E. Carbonneau — The Law and Practice of Arbitration, New York, 2007; T. Ereciński, K. Weitz — Sąd arbitrażowy, Varsóvia, 2008; J. P. Lachmann — Handbuch für dieSchiedsgerichtspraxis, Colónia, 2008; A. Szumański (red.) — Arbitraż handlowy, Varsóvia, 2010.


17 – T. Ereciński, K. Weitz, op. cit., p. 21.


18 – A doutrina interessa‑se principalmente pela questão de saber se podem ser apenas diferendos patrimoniais, ou também não patrimoniais, mas a questão da arbitrabilidade dos diferendos em matéria fiscal não é abordada. V. A. Szumański (red.), op. cit., pp. 8 e 9. V., também, B. Hanotiau — L’arbitrabilité — Recueil des cours de l’Académie de droit international de la Haye, tomo 296 (2002), Haia, 2003.


19 – O advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer, nas suas conclusões no processo De Coster (C‑17/00, EU:C:2001:366), analisou pormenorizadamente, ainda que criticamente, a jurisprudência nesta matéria.


20 – V., em especial: acórdão Dorsch Consult (C‑54/96, EU:C:1997:413, n.° 23); acórdão Syfait e o. (C‑53/03, EU:C:2005:333, n.° 29); acórdão Forposta (anteriormente Praxis) e ABC Direct Contact (C‑465/11, EU:C:2012:801, n.° 17).


21 – JO 2012, C 338, p. 1.


22 – No mesmo sentido se pronunciou o advogado‑geral C. O. Lenz nas suas conclusões no processo Handels‑og Kontorfunktionærernes Forbund i Danmark (109/88, EU:C:1989:228, n.° 21).


23 – Nos termos da Portaria n.° 112‑A/2011, de 22 de março (Diário da República, 1.ª série, n.° 57), a jurisdição dos tribunais arbitrais em matéria fiscal baseada no artigo 4.°, n.° 1, do Decreto‑Lei n.° 10/2011 é obrigatória para a Administração Fiscal nos processos cujo valor não ultrapasse 10 000 000 EUR.


24 – Há, todavia, que notar que a obrigatoriedade da jurisdição do órgão de reenvio para a parte recorrida foi, segundo o Tribunal de Justiça, suficiente para se considerar o critério preenchido no acórdão Handels‑og Kontorfunktionærernes Forbund i Danmark (EU:C:1989:383, n.° 7).


25 – O advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer exprimiu uma posição semelhante no n.° 29 das suas conclusões no processo Emanuel (C‑259/04, EU:C:2006:50). No acórdão Broekmeulen (246/80, EU:C:1981:218), o Tribunal de Justiça também admitiu a questão prejudicial submetida por um organismo profissional independente apesar de o recorrente ter a possibilidade, em alternativa, de recorrer aos órgãos jurisdicionais ordinários (v. n.° 15 do acórdão).


26 – V., em especial, acórdão RTL Belgium (C‑517/09, EU:C:2010:821, n.os 39 e 40).


27 – Foi o que aconteceu no processo principal.


28 – V., em especial, acórdão Broekmeulen (EU:C:1981:218, n.° 16) e também acórdão Gourmet Classic (C‑458/06, EU:C:2008:338, n.° 32).


29 – Por exemplo, os previstos pela Diretiva 2008/52/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2008, relativa a certos aspetos da mediação em matéria civil e comercial (JO L 136, p. 3).


30 – V., em especial, despacho Borker (138/80, EU:C:1980:162, n.° 4); acórdão Weryński (C‑283/09, EU:C:2011:85, n.° 44); acórdão Bełow (C‑394/11, EU:C:2013:48, n.° 39).


31 – Acórdão Optimus — Telecomunicações (C‑366/05, EU:C:2007:366).


32 – É também a opinião da advogada‑geral E. Sharpston nas suas conclusões no processo Optimus –Telecomunicações (C‑366/05, EU:C:2007:58, n.° 39).


33 – A Ascendi afirma que a conversão em capital social de créditos dos acionistas sobre a sociedade deve ser considerada um aumento de capital efetuado em numerário. Nesse caso, haveria que aplicar diretamente, no presente processo, a solução do acórdão Optimus — Telecomunicações (EU:C:2007:366), que respeitava precisamente à conformidade com a diretiva do imposto de selo sobre essas operações. No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio parece considerar que as operações objeto do processo principal não constituem entradas em numerário. De qualquer forma, trata‑se de uma questão de apreciação dos factos, que compete ao órgão jurisdicional de reenvio.


34 – V. n.° 9 das presentes conclusões.


35 – A República Portuguesa só aderiu às Comunidades Europeias em 1 de janeiro de 1986, mas, de acordo com o acórdão Optimus — Telecomunicações (EU:C:2007:366, n.° 32), a data de referência para efeitos de interpretação da Diretiva 69/335 em relação a esse Estado‑Membro é também 1 de julho de 1984.


36 – Acórdão Logstor ROR Polska (C‑212/10, EU:C:2011:404).


37 – Permite, recordo, a aplicação do imposto «a uma taxa única que não ultrapasse 1%».