Language of document : ECLI:EU:C:2012:144

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

15 de março de 2012 (*)

«Proteção dos consumidores — Contrato de crédito ao consumo — Indicação errada da taxa anual efetiva global — Incidência das práticas comerciais desleais e das cláusulas abusivas na validade global do contrato»

No processo C‑453/10,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Okresný súd Prešov (Eslováquia), por decisão de 31 de agosto de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 16 de setembro de 2010, no processo

Jana Pereničová,

Vladislav Perenič

contra

SOS financ spol. s r. o.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Tizzano, presidente de secção, M. Safjan (relator), A. Borg Barthet, E. Levits e J.‑J. Kasel, juízes,

advogado‑geral: V. Trstenjak,

secretário: K. Sztranc‑Sławiczek, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 15 de setembro de 2011,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de J. Pereničová e V. Perenič, por I. Šafranko e A. Motyka, advokáti,

–        em representação do Governo eslovaco, por B. Ricziová, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo alemão, por T. Henze e J. Kemper, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo espanhol, por F. Díez Moreno, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo austríaco, por C. Pesendorfer, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por G. Rozet, A. Tokár e M. Owsiany‑Hornung, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 29 de novembro de 2011,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO L 95, p. 29), e das disposições da Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno e que altera a Diretiva 84/450/CEE do Conselho, as Diretivas 97/7/CE, 98/27/CE e 2002/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e o Regulamento (CE) n.° 2006/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho («diretiva relativa às práticas comerciais desleais») (JO L 149, p. 22), bem como a incidência que a aplicação da Diretiva 2005/29 pode ter na Diretiva 93/13.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe J. Pereničová e V. Perenič à SOS financ spol. s r. o. (a seguir «SOS»), estabelecimento não bancário que concede créditos ao consumo, a propósito de um contrato de crédito celebrado entre os interessados e esta sociedade.

 Quadro jurídico

 Regulamentação da União

Diretiva 93/13

3        O sétimo, décimo sexto, vigésimo e vigésimo primeiro considerandos da Diretiva 93/13 preveem, respetivamente:

«Considerando que os vendedores de bens e os prestadores de serviços serão, assim, ajudados na sua atividade de venda de bens e de prestação de serviços, tanto no seu próprio país como no mercado interno; que a concorrência será assim estimulada, contribuindo para uma maior possibilidade de escolha dos cidadãos da Comunidade, enquanto consumidores;

[...]

Considerando […] que, na apreciação da boa fé, é necessário dar especial atenção à força das posições de negociação das partes, à questão de saber se o consumidor foi de alguma forma incentivado a manifestar o seu acordo com a cláusula e se os bens ou serviços foram vendidos ou fornecidos por especial encomenda do consumidor; que a exigência de boa fé pode ser satisfeita pelo profissional, tratando de forma leal e equitativa com a outra parte, cujos legítimos interesses deve ter em conta;

[...]

Considerando que os contratos devem ser redigidos em termos claros e compreensíveis, que o consumidor deve efetivamente ter a oportunidade de tomar conhecimento de todas as cláusulas […];

Considerando que os Estados‑Membros devem tomar as medidas necessárias para evitar a presença de cláusulas abusivas em contratos celebrados entre profissionais e consumidores; que, se apesar de tudo essas cláusulas constarem dos contratos, os consumidores não serão por elas vinculados, continuando o contrato a vincular as partes nos mesmos termos, desde que possa subsistir sem as cláusulas abusivas».

4        Nos termos do artigo 3.° da Diretiva 93/13:

«1.      Uma cláusula contratual que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.

[...]

3.      O anexo contém uma lista indicativa e não exaustiva de cláusulas que podem ser consideradas abusivas.»

5        O artigo 4.° desta diretiva prevê:

«1.      [O] caráter abusivo de uma cláusula poderá ser avaliado em função da natureza dos bens ou serviços que sejam objeto do contrato e mediante consideração de todas as circunstâncias que, no momento em que aquele foi celebrado, rodearam a sua celebração, bem como de todas as outras cláusulas do contrato, ou de outro contrato de que este dependa.

2.      A avaliação do caráter abusivo das cláusulas não incide nem sobre a definição do objeto principal do contrato nem sobre a adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os bens ou serviços a fornecer em contrapartida, por outro, desde que essas cláusulas se encontrem redigidas de maneira clara e compreensível.»

6        O artigo 5.° da referida diretiva dispõe:

«No caso dos contratos em que as cláusulas propostas ao consumidor estejam, na totalidade ou em parte, consignadas por escrito, essas cláusulas deverão ser sempre redigidas de forma clara e compreensível. Em caso de dúvida sobre o significado de uma cláusula, prevalecerá a interpretação mais favorável ao consumidor. […]»

7        Nos termos do artigo 6.° da mesma diretiva:

«1.      Os Estados‑Membros estipularão que, nas condições fixadas pelos respetivos direitos nacionais, as cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional não vinculem o consumidor e que o contrato continue a vincular as partes nos mesmos termos, se puder subsistir sem as cláusulas abusivas.

[…]»

8        O artigo 8.° da Diretiva 93/13 enuncia:

«Os Estados‑Membros podem adotar ou manter, no domínio regido pela presente diretiva, disposições mais rigorosas, compatíveis com o Tratado, para garantir um nível de proteção mais elevado para o consumidor.»

9        O anexo da Diretiva 93/13 enumera as cláusulas previstas no artigo 3.°, n.° 3, desta última:

«1.      Cláusulas que têm como objetivo ou como efeito:

[…]

i)      Declarar verificada, de forma irrefragável, a adesão do consumidor a cláusulas que este não teve efetivamente oportunidade de conhecer antes da celebração do contrato;

[...]»

Diretiva 2005/29

10      O artigo 2.° da Diretiva 2005/29 tem a seguinte redação:

«Para efeitos do disposto na presente diretiva, entende‑se por:

[…]

c)      ‘Produto’: qualquer bem ou serviço, incluindo bens imóveis, direitos e obrigações;

d)      ‘Práticas comerciais das empresas face aos consumidores’ (a seguir designadas também por ‘práticas comerciais’): qualquer ação, omissão, conduta ou afirmação e as comunicações comerciais, incluindo a publicidade e o marketing, por parte de um profissional, em relação direta com a promoção, a venda ou o fornecimento de um produto aos consumidores;

e)      ‘Distorcer substancialmente o comportamento económico dos consumidores’: utilização de uma prática comercial que prejudique sensivelmente a aptidão do consumidor para tomar uma decisão esclarecida, conduzindo‑o, por conseguinte, a tomar uma decisão de transação que não teria tomado de outro modo;

[...]

k)      ‘Decisão de transação’: a decisão tomada por um consumidor sobre a questão de saber se, como e em que condições adquirir, pagar integral ou parcialmente, conservar ou alienar um produto ou exercer outro direito contratual em relação ao produto, independentemente de o consumidor decidir agir ou abster‑se de agir;

[…]»

11      O artigo 3.° desta diretiva enuncia:

«1.      A presente diretiva é aplicável às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores, tal como estabelecidas no artigo 5.°, antes, durante e após uma transação comercial relacionada com um produto.

2.      A presente diretiva não prejudica o direito contratual e, em particular, as normas relativas à validade, à formação ou aos efeitos de um contrato.

[…]

4.      Em caso de conflito entre as disposições da presente diretiva e outras normas comunitárias que regulem aspetos específicos das práticas comerciais desleais, estas últimas prevalecem, aplicando‑se a esses aspetos específicos.

5.      Por um período de seis anos após 12 de junho de 2007, os Estados‑Membros podem continuar a aplicar disposições nacionais, no domínio sujeito a uma aproximação por força da presente diretiva, que sejam mais restritivas ou prescritivas do que a presente diretiva e que apliquem diretivas que contenham cláusulas de harmonização mínima. Estas medidas devem ser fundamentais para garantir que os consumidores sejam suficientemente protegidos contra as práticas comerciais desleais e devem ser proporcionais ao objetivo perseguido. […]

[…]»

12      O artigo 5.° da referida diretiva prevê:

«1.      São proibidas as práticas comerciais desleais.

2.      Uma prática comercial é desleal se:

a)      For contrária às exigências relativas à diligência profissional;

e

b)      Distorcer ou for suscetível de distorcer de maneira substancial o comportamento económico, em relação a um produto, do consumidor médio a que se destina ou que afeta, ou do membro médio de um grupo quando a prática comercial for destinada a um determinado grupo de consumidores.

3.      As práticas comerciais que são suscetíveis de distorcer substancialmente o comportamento económico de um único grupo, claramente identificável, de consumidores particularmente vulneráveis à prática ou ao produto subjacente, em razão da sua doença mental ou física, idade ou credulidade, de uma forma que se considere que o profissional poderia razoavelmente ter previsto, devem ser avaliadas do ponto de vista do membro médio desse grupo. […]

4.      Em especial, são desleais as práticas comerciais:

a)      Enganosas, tal como definido nos artigos 6.° e 7.°;

ou

b)      Agressivas, tal como definido nos artigos 8.° e 9.°

[…]»

13      Nos termos do artigo 6.° da mesma diretiva:

«1.      É considerada enganosa uma prática comercial se contiver informações falsas, sendo inverídicas ou que por qualquer forma, incluindo a sua apresentação geral, induza ou seja suscetível de induzir em erro o consumidor médio, mesmo que a informação seja factualmente correta, em relação a um ou mais dos elementos a seguir enumerados e que, em ambos os casos, conduza ou seja suscetível de conduzir o consumidor médio a tomar uma decisão de transação que este não teria tomado de outro modo:

[…]

d)      O preço ou a forma de cálculo do preço, ou a existência de uma vantagem específica relativamente ao preço;

[…]»

14      O artigo 7.° da Diretiva 2005/29 enuncia:

«1.      Uma prática comercial é considerada enganosa quando, no seu contexto factual, tendo em conta todas as suas características e circunstâncias e as limitações do meio de comunicação, omita uma informação substancial que, atendendo ao contexto, seja necessária para que o consumidor médio possa tomar uma decisão de transação esclarecida, e, portanto, conduza ou seja suscetível de conduzir o consumidor médio a tomar uma decisão de transação que este não teria tomado de outro modo.

2.      Também é considerada uma omissão enganosa a prática comercial em que o profissional, tendo em conta os aspetos descritos no n.° 1, oculte a informação substancial referida no mesmo número ou a apresente de modo pouco claro, ininteligível, ambíguo ou tardio, ou quando não refira a intenção comercial da prática em questão, se esta não se puder depreender do contexto e, em qualquer dos casos, conduza ou seja suscetível de conduzir o consumidor médio a tomar uma decisão de transação que este não teria tomado de outro modo.

[…]»

15      O artigo 11.° desta diretiva dispõe:

«1.      Os Estados‑Membros devem assegurar a existência de meios adequados e eficazes para lutar contra as práticas comerciais desleais, a fim de garantir o cumprimento das disposições da presente diretiva no interesse dos consumidores.

[…]»

16      Nos termos do artigo 13.° da referida diretiva:

«Os Estados‑Membros devem determinar as sanções aplicáveis às violações das disposições nacionais aprovadas em aplicação da presente diretiva e tomar todas as medidas necessárias para assegurar a aplicação das referidas disposições. Essas sanções devem ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas.»

 Legislação nacional

17      O artigo 52.° do Código Civil eslovaco enuncia:

«1)      Por ‘contrato celebrado com o consumidor’ deve entender‑se todo o contrato, independentemente da forma jurídica que assuma, celebrado entre um fornecedor e um consumidor.

2)      As cláusulas dos contratos celebrados com os consumidores e as disposições que regem as relações jurídicas em que os consumidores se encontrem envolvidos devem ser sempre interpretadas em sentido favorável ao consumidor parte no contrato. As convenções ou acordos contratuais distintos cujo conteúdo ou finalidade vise contornar essas disposições são inválidos. 

[…]

4)      Por ‘consumidor’ deve entender‑se a pessoa singular que, na celebração e no cumprimento de um contrato de consumo, não atua no quadro da sua atividade comercial ou de outra atividade económica.»

18      O artigo 53.° do mesmo código prevê:

«1)      Os contratos celebrados com os consumidores não podem conter cláusulas que provoquem, em detrimento do consumidor, um desequilíbrio significativo dos direitos e obrigações das partes contratantes (cláusula abusiva). As cláusulas contratuais relativas à prestação principal e à adequação do preço não são consideradas abusivas se formuladas de forma precisa, clara e compreensível, ou se a cláusula abusiva tiver sido objeto de negociação individual.

[…]

4)      São consideradas cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor, nomeadamente, as disposições que: 

[…]

k)      impõem como penalidade ao consumidor inadimplente uma indemnização de montante desproporcionadamente elevado,

[…]

5)      As cláusulas abusivas constantes de um contrato concluído com um consumidor são inválidas.»

19      O artigo 4.° da Lei n.° 258/2001 sobre os créditos ao consumo dispõe:

«1)      O contrato de crédito ao consumo deve ser reduzido a escrito, sob pena de invalidade, devendo o consumidor receber um exemplar. 

2)      O contrato de crédito ao consumo deve conter, além dos elementos gerais,

[…]

j)      a taxa anual efetiva global [a seguir ‘TAEG’] e o total das despesas associadas ao crédito que ficam a cargo do consumidor, calculadas com base em dados válidos no momento da celebração do contrato, 

[…]

Se o contrato de crédito ao consumo não incluir os elementos indicados no n.° 2, [alínea] j), o crédito concedido considera‑se isento de juros e de despesas.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

20      Através da sua ação, os demandantes no processo principal pedem ao órgão jurisdicional de reenvio que declare a nulidade do contrato de crédito que celebraram com a SOS, estabelecimento não bancário que concede créditos ao consumo com base em contratos estandardizados. Decorre da decisão de reenvio que o crédito em causa no processo principal foi concedido aos demandantes no processo principal em 12 de março de 2008.

21      Nos termos desse contrato, a SOS concedeu aos demandantes no processo principal um crédito de 150 000 SKK (4 979 euros) que devia ser reembolsado em 32 depósitos mensais de 6 000 SKK (199 euros) aos quais acresce um trigésimo terceiro depósito igual ao montante do crédito concedido. Por conseguinte, os demandantes no processo principal devem reembolsar um montante de 342 000 SKK (11 352 euros).

22      A TAEG foi fixada no referido contrato em 48,63%, mas é, na realidade, em conformidade com o cálculo efetuado pelo órgão jurisdicional de reenvio, de 58,76%, não tendo a SOS incluído no seu cálculo despesas relativas ao crédito concedido.

23      Além disso, decorre da decisão de reenvio que o contrato em causa no processo principal contém várias cláusulas desfavoráveis aos demandantes no processo principal.

24      O órgão jurisdicional de reenvio refere que a declaração de nulidade desse contrato de crédito a curto prazo no seu todo, devido ao caráter abusivo de algumas das suas cláusulas, é mais vantajosa para os demandantes no processo principal do que a manutenção da validade das cláusulas não abusivas do referido contrato. Com efeito, no primeiro caso, os consumidores em causa ficariam obrigados a pagar apenas os juros de mora, à taxa de 9%, e não a totalidade das despesas relativas ao crédito concedido, que são muito mais elevadas do que esses juros.

25      Por considerar que a resolução do diferendo depende da interpretação das disposições pertinentes do direito da União, o Okresný súd Prešov (Tribunal da Circunscrição de Prešov) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O objetivo de proteção do consumidor, na aceção do artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13[…], permite concluir que, no caso de serem identificadas cláusulas contratuais abusivas, o contrato não vincula, na totalidade, o consumidor, quando isso seja mais favorável a este último?

2)      Os critérios que configuram uma prática comercial desleal, na aceção da Diretiva 2005/29[…], permitem concluir que, quando o operador menciona no contrato uma [TAEG] inferior à real, se pode considerar que tal comportamento do operador face ao consumidor constitui uma prática comercial desleal? A Diretiva 2005/29[…] permite concluir, caso se apure a existência de uma prática comercial desleal, que isso tem incidência na validade do contrato de crédito e na prossecução dos objetivos dos artigos 4.°, n.° 1, e 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13[…], se a nulidade do contrato for mais favorável para o consumidor?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

26      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que permite aos órgãos jurisdicionais nacionais decidir, caso verifiquem a existência de cláusulas abusivas num contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, que o referido contrato não vincula no seu todo o consumidor por esta solução ser mais vantajosa para este último.

27      A fim de responder a esta questão, importa a título preliminar recordar que o sistema de proteção instituído pela Diretiva 93/13 assenta na ideia de que o consumidor se encontra numa situação de inferioridade face ao profissional, quer no que toca ao poder negocial quer ao nível de informação, situação esta que o leva a aderir às condições redigidas previamente pelo profissional, sem poder influenciar o conteúdo destas (acórdãos de 26 de outubro de 2006, Mostaza Claro, C‑168/05, Colet., p. I‑10421, n.° 25; de 4 de junho de 2009, Pannon GSM, C‑243/08, Colet., p. I‑4713, n.° 22; e de 6 de outubro de 2009, Asturcom Telecomunicaciones, C‑40/08, Colet., p. I‑9579, n.° 29).

28      Atendendo a essa situação de inferioridade, o artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13 obriga os Estados‑Membros a prever que as cláusulas abusivas «nas condições fixadas pelos respetivos direitos nacionais […] não vinculem o consumidor». Como resulta da jurisprudência, trata‑se de uma disposição imperativa que pretende substituir o equilíbrio formal que o contrato estabelece entre os direitos e obrigações dos contratantes por um equilíbrio real suscetível de restabelecer a igualdade entre estes últimos (v. acórdãos Mostaza Claro, já referido, n.° 36; Asturcom Telecomunicaciones, já referido, n.° 30; e de 9 de novembro de 2010, VB Pénzügyi Lízing, C‑137/08, Colet., p. I‑10847, n.° 47).

29      No que respeita aos efeitos da constatação do caráter abusivo das cláusulas contratuais na validade do contrato em causa, importa sublinhar que, em conformidade com o disposto no artigo 6.°, n.° 1, in fine, da Diretiva 93/13, o referido «contrato continu[a] a vincular as partes nos mesmos termos, se puder subsistir sem as cláusulas abusivas».

30      Neste contexto, os órgãos jurisdicionais nacionais que constatarem o caráter abusivo das cláusulas contratuais têm a obrigação, por força do artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13, por um lado, de retirar todas as consequências daí decorrentes de acordo com o direito nacional, de forma a que o consumidor não fique vinculado pelas referidas cláusulas (v. acórdão Asturcom Telecomunicaciones, já referido, n.os 58 e 59, e despacho de 16 de novembro de 2010, Pohotovosť, C‑76/10, Colet., p. I‑11557, n.° 62), e, por outro, de apreciar se o contrato em causa pode subsistir sem essas cláusulas abusivas (v. despacho Pohotovosť, já referido, n.° 61).

31      Com efeito, como decorre da jurisprudência referida no n.° 28 do presente acórdão e como sublinhou a advogada‑geral no n.° 63 das suas conclusões, o objetivo prosseguido pelo legislador da União no quadro da Diretiva 93/13 consiste em restabelecer o equilíbrio entre as partes, mantendo ao mesmo tempo, em princípio, a validade da totalidade do contrato, e não em anular todos os contratos que contêm cláusulas abusivas.

32      No que respeita aos critérios que permitem apreciar se um contrato pode efetivamente subsistir sem as cláusulas abusivas, importa notar que tanto a redação do artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13 como as exigências relativas à segurança jurídica das atividades económicas militam a favor de uma abordagem objetiva na interpretação dessa disposição, de forma que, como sublinhou a advogada‑geral nos n.os 66 a 68 das suas conclusões, a situação de uma das partes no contrato, neste caso o consumidor, não pode ser considerada o critério determinante regulador do destino do contrato.

33      Por conseguinte, o artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13 não pode ser interpretado no sentido de que, na apreciação da questão de saber se um contrato que contém uma ou várias cláusulas abusivas pode subsistir sem as referidas cláusulas, o juiz se pode basear unicamente no caráter eventualmente vantajoso, para o consumidor, da anulação do referido contrato no seu todo.

34      Assim sendo, importa contudo salientar que a Diretiva 93/13 procedeu apenas a uma harmonização parcial e mínima das legislações nacionais relativas às cláusulas abusivas, reconhecendo ao mesmo tempo aos Estados‑Membros a possibilidade de assegurar ao consumidor um nível de proteção mais elevado do que aquele que a diretiva prevê. Assim, o artigo 8.° da referida diretiva prevê expressamente a possibilidade de os Estados‑Membros «adotar[em] ou manter[em], no domínio regido pela […] diretiva, disposições mais rigorosas, compatíveis com o Tratado, para garantir um nível de proteção mais elevado para o consumidor» (v. acórdão de 3 de junho de 2010, Caja de Ahorros y Monte de Piedad de Madrid, C‑484/08, Colet., p. I‑4785, n.os 28 e 29).

35      Por conseguinte, a Diretiva 93/13 não se opõe a que um Estado‑Membro preveja, no respeito do direito da União, uma regulamentação nacional que permita declarar nulo no seu todo um contrato celebrado entre um profissional e um consumidor que contém uma ou várias cláusulas abusivas quando se afigurar que tal assegura uma melhor proteção do consumidor.

36      Atendendo a estas considerações, há que responder à primeira questão que o artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que, na apreciação da questão de saber se um contrato celebrado com um consumidor por um profissional e que contém uma ou várias cláusulas abusivas pode subsistir sem as referidas cláusulas, o juiz não se pode basear unicamente no caráter eventualmente vantajoso para uma das partes, neste caso o consumidor, da anulação do contrato em causa no seu todo. A referida diretiva não se opõe, contudo, a que um Estado‑Membro preveja, no respeito do direito da União, que um contrato celebrado com um consumidor por um profissional e que contém uma ou várias cláusulas abusivas seja nulo no seu todo quando se afigurar que tal assegura uma melhor proteção do consumidor.

 Quanto à segunda questão

37      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se a indicação num contrato de crédito ao consumo de uma TAEG inferior à realidade pode ser considerada uma prática comercial desleal, na aceção da Diretiva 2005/29. Em caso de resposta afirmativa a esta questão, o Tribunal de Justiça é questionado sobre as consequências que importa retirar dessa constatação a fim de apreciar o caráter abusivo das cláusulas desse contrato, de acordo com o artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 93/13, bem como a validade do referido contrato no seu todo, de acordo com o artigo 6.°, n.° 1, desta última diretiva.

38      Para responder a esta questão, importa, antes de mais, recordar que o artigo 2.°, alínea d), da Diretiva 2005/29 define, utilizando uma formulação particularmente ampla, o conceito de «prática comercial» como «qualquer ação, omissão, conduta ou afirmação e as comunicações comerciais, incluindo a publicidade e o marketing, por parte de um profissional, em relação direta com a promoção, a venda ou o fornecimento de um produto aos consumidores» (acórdãos de 14 de janeiro de 2010, Plus Warenhandelsgesellschaft, C‑304/08, Colet., p. I‑217, n.° 36, e de 9 de novembro de 2010, Mediaprint Zeitungs‑ und Zeitschriftenverlag, C‑540/08, Colet., p. I‑10909, n.° 17).

39      Em seguida, por força do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2005/29, lido em conjugação com o seu artigo 2.°, alínea c), esta diretiva aplica‑se às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores antes, durante ou após uma transação comercial relacionada com qualquer bem ou serviço. Em conformidade com o disposto no artigo 5.°, n.° 4, da referida diretiva, são desleais, em especial, as práticas enganosas.

40      Por fim, como decorre do artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 2005/29, é considerada enganosa uma prática comercial que contenha informações falsas, e portanto inverídicas, ou que, por qualquer forma, incluindo a sua apresentação geral, induza ou seja suscetível de induzir em erro o consumidor médio em relação a um ou mais dos elementos enumerados nesse artigo 6.°, n.° 1, e que, em ambos os casos, o induza ou seja suscetível de o induzir a tomar uma decisão comercial que não teria tomado de outro modo. Entre os elementos enumerados nesta disposição figura, entre outros, o preço ou a forma de cálculo do preço.

41      Ora, uma prática comercial, como a que está em causa no processo principal, que consiste em indicar num contrato de crédito uma TAEG inferior à realidade constitui uma informação falsa sobre o custo total do crédito e, por conseguinte, o preço visado no artigo 6.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2005/29. Quando a indicação de uma TAEG como essa induz ou é suscetível de induzir o consumidor médio a tomar uma decisão comercial que de outro modo não tomaria, o que cabe ao juiz nacional verificar, essa informação falsa deve ser qualificada de prática comercial «enganosa» nos termos do artigo 6.°, n.° 1, desta diretiva.

42      No que respeita à incidência dessa constatação na apreciação do caráter abusivo das cláusulas do referido contrato, de acordo com o artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 93/13, importa notar que essa disposição define de forma particularmente ampla os critérios que permitem efetuar essa apreciação, abrangendo expressamente «todas as circunstâncias» que rodeiam a celebração do contrato em causa.

43      Nestas condições, como referiu no essencial a advogada‑geral no n.° 125 das suas conclusões, a constatação do caráter desleal de uma prática comercial constitui um elemento, entre outros, em que o juiz competente se pode basear para apreciar o caráter abusivo das cláusulas de um contrato nos termos do artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 93/13.

44      Contudo, este elemento não é suscetível de demonstrar automaticamente e por si só o caráter abusivo das cláusulas controvertidas. Com efeito, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio pronunciar‑se sobre a aplicação dos critérios enunciados nos artigos 3.° e 4.° da Diretiva 93/13 a uma cláusula específica que deve ser examinada em função de todas as circunstâncias próprias do caso concreto (v., neste sentido, acórdãos de 1 de abril de 2004, Freiburger Kommunalbauten, C‑237/02, Colet., p. I‑3403, n.os 19 a 22; Pannon GSM, já referido, n.os 37 a 43; VB Pénzügyi Lízing, já referido, n.os 42 e 43; e despacho Pohotovosť, já referido, n.os 56 a 60).

45      No que respeita às consequências a retirar da constatação de que a indicação errada da TAEG constitui uma prática comercial desleal para efeitos da apreciação, nos termos do artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13, da validade do contrato em causa no seu todo, basta sublinhar que a Diretiva 2005/29 se aplica, em conformidade com o disposto no seu artigo 3.°, n.° 2, sem prejuízo do direito dos contratos, e, em especial, das regras relativas à validade, à formação ou aos efeitos dos contratos.

46      Por conseguinte, a constatação do caráter desleal de uma prática comercial não tem incidência direta na questão de saber se o contrato é válido nos termos do artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13.

47      Atendendo às considerações precedentes, há que responder à segunda questão que uma prática comercial, como a que está em causa no processo principal, que consiste em indicar num contrato de crédito uma TAEG inferior à realidade deve ser qualificada de «enganosa», na aceção do artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 2005/29, desde que induza ou seja suscetível de induzir o consumidor médio a tomar uma decisão comercial que de outro modo não tomaria. Cabe ao juiz nacional verificar se é esse o caso no processo principal. A constatação do caráter desleal dessa prática comercial constitui um elemento, entre outros, em que o juiz competente se pode basear, nos termos do artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 93/13, para apreciar o caráter abusivo das cláusulas do contrato relativas ao custo do empréstimo concedido ao consumidor. Contudo, essa constatação não tem incidência direta na apreciação, nos termos do artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13, da validade do contrato de crédito celebrado.

 Quanto às despesas

48      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

1)      O artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, deve ser interpretado no sentido de que, na apreciação da questão de saber se um contrato celebrado com um consumidor por um profissional e que contém uma ou várias cláusulas abusivas pode subsistir sem as referidas cláusulas, o juiz não se pode basear unicamente no caráter eventualmente vantajoso para uma das partes, neste caso o consumidor, da anulação do contrato em causa no seu todo. A referida diretiva não se opõe, contudo, a que um Estado‑Membro preveja, no respeito do direito da União, que um contrato celebrado com um consumidor por um profissional e que contém uma ou várias cláusulas abusivas seja nulo no seu todo quando se afigurar que tal assegura uma melhor proteção do consumidor.

2)      Uma prática comercial, como a que está em causa no processo principal, que consiste em indicar num contrato de crédito uma taxa anual efetiva global inferior à realidade deve ser qualificada de «enganosa», na aceção do artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno e que altera a Diretiva 84/450/CEE do Conselho, as Diretivas 97/7/CE, 98/27/CE e 2002/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e o Regulamento (CE) n.° 2006/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho («diretiva relativa às práticas comerciais desleais»), desde que induza ou seja suscetível de induzir o consumidor médio a tomar uma decisão comercial que de outro modo não tomaria. Cabe ao juiz nacional verificar se é esse o caso no processo principal. A constatação do caráter desleal dessa prática comercial constitui um elemento, entre outros, em que o juiz competente se pode basear, nos termos do artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 93/13, para apreciar o caráter abusivo das cláusulas do contrato relativas ao custo do empréstimo concedido ao consumidor. Contudo, essa constatação não tem incidência direta na apreciação, nos termos do artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13, da validade do contrato de crédito celebrado.

Assinaturas


* Língua do processo: eslovaco.