Language of document : ECLI:EU:C:2014:1317

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

5 de junho de 2014 (*)

«Artigo 101.° TFUE — Reparação dos danos causados por um cartel proibido por este artigo — Danos resultantes do preço mais elevado aplicado por uma empresa em consequência de um cartel proibido, no qual não participa (‘Umbrella pricing’) — Nexo de causalidade»

No processo C‑557/12,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Oberster Gerichtshof (Áustria), por decisão de 17 de outubro de 2012, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 3 de dezembro de 2012, no processo

Kone AG,

Otis GmbH,

Schindler Aufzüge und Fahrtreppen GmbH,

Schindler Liegenschaftsverwaltung GmbH,

ThyssenKrupp Aufzüge GmbH

contra

ÖBB‑Infrastruktur AG,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: T. von Danwitz, presidente de secção, E. Juhász, A. Rosas (relator), D. Šváby e C. Vajda, juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: V. Tourrès, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 12 de dezembro de 2013,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação da Kone AG, por H. Wollmann, Rechtsanwalt,

¾        em representação da Otis GmbH, por D. Hauck e E. Hold, Rechtsanwälte,

¾        em representação da Schindler Aufzüge und Fahrtreppen GmbH e da Schindler Liegenschaftsverwaltung GmbH, por A. Traugott e S. Riegler, Rechtsanwälte,

¾        em representação da ThyssenKrupp Aufzüge GmbH, por A. Reidlinger, T. Kustor e E. Rittenauer, Rechtsanwälte,

¾        em representação da ÖBB‑Infrastruktur AG, por A. Egger, Rechtsanwalt,

¾        em representação do Governo austríaco, por C. Pesendorfer, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por P. Gentili, avvocato dello Stato,

¾        em representação da Comissão Europeia, por G. Meessen e P. Van Nuffel, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 30 de janeiro de 2014,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 101.° TFUE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Kone AG (a seguir «Kone»), a Otis GmbH (a seguir «Otis»), a Schindler Aufzüge und Fahrtreppen GmbH (a seguir «Schindler Aufzüge und Fahrtreppen»), a Schindler Liegenschaftsverwaltung GmbH (a seguir «Schindler Liegenschaftsverwaltung») e a ThyssenKrupp Aufzüge GmbH (a seguir «ThyssenKrupp Aufzüge»), empresas que participaram em cartéis no setor da instalação e da manutenção de elevadores e de escadas rolantes em vários Estados‑Membros, à ÖBB‑Infrastruktur AG (a seguir «ÖBB‑Infrastruktur»), filial da Österreichische Bundesbahnen (Caminhos de Ferro austríacos), a respeito da possibilidade de ser reclamada uma indemnização pelo prejuízo sofrido devido aos preços elevados aplicados na celebração de contratos com empresas que não participaram nesses cartéis.

 Quadro jurídico

3        O § 1295 do Código Civil austríaco (Allgemeines Bürgerliches Gesetzbuch, a seguir «ABGB») tem a seguinte redação:

«Qualquer pessoa tem o direito de pedir a reparação do prejuízo causado de forma culposa; o prejuízo pode ser causado por uma violação de uma obrigação contratual ou não ter relação com um contrato.»

4        Em conformidade com o § 1311, segundo período, do ABGB, responde pelo prejuízo causado aquele que «violou uma lei destinada a prevenir os prejuízos fortuitos» («lei protetora»).

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

5        Desde os anos 80, pelo menos, a Kone, a Otis, a Schindler Aufzüge und Fahrtreppen, a Schindler Liegenschaftsverwaltung e a ThyssenKrupp Aufzüge aplicaram, em grande escala, em vários Estados‑Membros, um acordo com o objetivo de repartir o mercado dos elevadores e das escadas rolantes.

6        Em 21 de fevereiro de 2007, a Comissão Europeia aplicou à Kone, à Otis, à Schindler Aufzüge und Fahrtreppen e à Schindler Liegenschaftsverwaltung uma coima no montante de 992 milhões de euros pela sua participação em cartéis no setor da instalação e da manutenção de elevadores e de escadas rolantes na Bélgica, na Alemanha, no Luxemburgo e nos Países Baixos.

7        Por acórdão de 8 de outubro de 2008, o Oberster Gerichtshof, agindo como instância de recurso em matéria de cartéis, confirmou o despacho de 14 de dezembro de 2007, pelo qual o Kartellgericht (tribunal da concorrência) aplicou coimas à Kone, à Otis e à Schindler Aufzüge und Fahrtreppen, bem como a duas outras sociedades. Como a ThyssenKrupp Aufzüge aceitou testemunhar para beneficiar de clemência, não interveio no processo em matéria de cartéis.

8        O cartel em causa no processo principal (a seguir «cartel em causa») tinha por objetivo garantir à empresa favorecida um preço mais elevado do que aquele que poderia aplicar em condições normais de concorrência. O cartel falseou o mercado e, concretamente, a evolução dos preços relativamente à que se verificaria em condições de concorrência.

9        De acordo com o órgão jurisdicional de reenvio, os membros deste cartel tentaram entender‑se sobre mais de metade do volume comercial das instalações novas, em todo o território austríaco. Mais de metade dos projetos em causa foi adjudicada de comum acordo, de modo que um terço, pelo menos, do volume de mercado foi objeto de concertação. Cerca de dois terços dos projetos que deram origem a práticas concertadas foram realizados em conformidade com as previsões. Num terço dos casos, a adjudicação do contrato foi feita a empresas terceiras (não membros do cartel) ou a um dos membros do cartel que não tinha respeitado as modalidades de adjudicação acordadas, apresentando uma oferta de montante menos elevado. Verificou‑se também que foram adjudicados projetos de comum acordo, a nível bilateral. Devido ao comportamento dos membros do cartel em causa, inclusivamente durante os últimos anos anteriores a 2004, os preços de mercado não evoluíram e as quotas de mercado dos interessados mantiveram‑se quase inalteradas.

10      Invocando o «efeito de preço de proteção» («umbrella effect»), a ÖBB‑Infrastruktur pediu às recorrentes no processo principal a reparação de um prejuízo avaliado em 1 839 239,74 euros, resultante do facto de ter adquirido a empresas terceiras, não participantes no cartel, elevadores e escadas rolantes a um preço mais elevado daquele que teria sido fixado se o cartel não existisse, porque estas empresas terceiras aproveitaram a existência do cartel para fixar os seus preços num nível mais elevado.

11      O tribunal de primeira instância negou provimento ao pedido da ÖBB‑Infrastruktur, mas o tribunal de recurso deu‑lhe provimento.

12      O Oberster Gerichtshof, onde foi interposto recurso desta última decisão pelas recorrentes no processo principal, interroga‑se sobre as condições que desencadeiam a responsabilidade dos participantes num cartel, tendo em conta o artigo 101.° TFUE e a jurisprudência do Tribunal de Justiça, nomeadamente os acórdãos Courage e Crehan (C‑453/99, EU:C:2001:465); Manfredi e o. (C‑295/04 a C‑298/04, EU:C:2006:461); e Pfleiderer (C‑360/09, EU:C:2011:389).

13      Segundo a jurisprudência austríaca, a pessoa que pede uma indemnização invocando responsabilidade extracontratual deve provar o nexo de causalidade adequada e o nexo de ilicitude, isto é, a infração de uma lei protetora, na aceção do § 1311 do ABGB.

14      O órgão jurisdicional de reenvio expõe que, em aplicação do conceito de causalidade adequada, o autor de um prejuízo deve assegurar a reparação de todas as consequências, incluindo as fortuitas, cuja eventual ocorrência podia prever in abstracto, mas não a reparação das consequências atípicas. Segundo a referida jurisprudência, quando uma empresa que não faz parte de um cartel beneficia do efeito de preços de proteção, não há causalidade adequada entre o cartel e o prejuízo eventualmente sofrido pelo comprador, uma vez que se trata de um prejuízo indireto, de um efeito colateral de uma decisão independente que uma pessoa que não faz parte do cartel tomou com base nas suas próprias considerações de gestão. Considera‑se que, tendo em conta o efeito produzido num concorrente pela situação do mercado modelada pelos membros de um cartel, as conclusões económicas que esse concorrente tira para a sua empresa e para os seus produtos e as decisões de gestão que toma nessa altura, em especial para definir os preços, são amplamente determinadas por um grande número de fatores, os quais não têm nenhuma relação com o dito cartel.

15      Quanto à questão da ilicitude, o Oberster Gerichtshof considerou que, segundo a doutrina relativa ao objetivo protetor da norma, o facto de causar um dano patrimonial implica uma obrigação de reparação apenas no caso de a irregularidade do dano decorrer da violação de obrigações contratuais, de direitos absolutos ou de leis protetoras. Por conseguinte, a questão determinante é saber se a norma violada pelo autor do dano tinha por objeto a proteção dos interesses da pessoa lesada. No seu entender, não é o que acontece no caso da prática do preço de proteção («umbrella pricing»), que não implica nenhuma relação de ilicitude. Os comportamentos ilícitos dos membros de um cartel visam lesar as pessoas que adquirem os seus produtos pelos preços artificialmente elevados que praticam. O prejuízo causado pelo preço de proteção é apenas um efeito colateral de uma decisão independente que uma pessoa que não pertence a esse cartel tomou com base nas suas próprias considerações de gestão.

16      O órgão jurisdicional de reenvio sublinha que a questão de saber se, no direito da União, o dano resultante do efeito de preços de proteção deve dar lugar a indemnização é muito controversa tanto na doutrina alemã como austríaca. Dada a primazia do direito da União, a questão apresentada reveste importância determinante, devido à incerteza de saber se a exclusão do direito a indemnização é compatível com o princípio da efetividade estabelecido pelo Tribunal de Justiça.

17      Por conseguinte, o Oberster Gerichtshof decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 101.° TFUE (artigo 81.° CE, artigo 85.° do Tratado CE) ser interpretado no sentido de que qualquer pessoa pode exigir aos participantes num cartel indemnização pelo prejuízo que lhe foi causado por um não participante no cartel que, aproveitando os elevados preços de mercado, aumenta os seus próprios preços para os seus produtos mais do que o teria feito sem o cartel (umbrella‑pricing), pelo que o princípio da efetividade enunciado pelo Tribunal de Justiça […] exige uma decisão favorável no quadro do direito nacional?»

Quanto à questão prejudicial

18      Uma vez que os artigos 85.° do Tratado CE, 81.° CE e 101.° TFUE têm sensivelmente o mesmo conteúdo, referir‑nos‑emos unicamente ao artigo 101.° TFUE, atualmente em vigor.

19      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 101.° TFUE se opõe a uma interpretação e a uma aplicação do direito de um Estado‑Membro, que consiste em excluir de forma categórica, por motivos jurídicos, que empresas que participem num cartel sejam civilmente responsabilizadas pelos danos resultantes de preços que uma empresa não participante nesse cartel, tendo em conta a conduta do referido cartel, fixou num nível mais elevado do que aquele que teria aplicado se o cartel não existisse.

20      Há que recordar que os artigos 101.°, n.° 1, TFUE e 102.° TFUE produzem efeitos diretos nas relações entre os particulares e criam direitos na esfera jurídica destes, que os órgãos jurisdicionais nacionais devem proteger (v. acórdãos BRT e Société belge des auteurs, compositeurs et éditeurs, 127/73, EU:C:1974:25, n.° 16; Courage e Crehan, EU:C:2001:465, n.° 23; e Manfredi e o., EU:C:2006:461, n.° 39).

21      A plena eficácia do artigo 101.° TFUE e, em particular, o efeito útil da proibição enunciada no seu n.° 1 seriam postos em causa se não fosse possível a qualquer pessoa pedir a reparação do prejuízo que lhe tivesse sido causado por um contrato ou um comportamento suscetível de restringir ou falsear o jogo da concorrência (acórdãos Courage e Crehan, EU:C:2001:465, n.° 26; Manfredi e o., EU:C:2006:461, n.° 60; Otis e o., C‑199/11, EU:C:2012:684, n.° 41; e Donau Chemie e o., C‑536/11, EU:C:2013:366, n.° 21).

22      Assim, qualquer pessoa tem o direito de pedir a reparação do prejuízo sofrido quando haja um nexo de causalidade entre o referido prejuízo e um cartel ou uma prática proibida pelo artigo 101.° TFUE (acórdãos Manfredi e o., EU:C:2006:461, n.° 61, e Otis e o., EU:C:2012:684, n.° 43).

23      Com efeito, o direito de qualquer pessoa pedir a reparação desse prejuízo reforça o caráter operacional das regras de concorrência da União e é suscetível de desencorajar os acordos ou práticas, frequentemente dissimulados, suscetíveis de restringir ou falsear o jogo da concorrência, contribuindo assim para a manutenção de uma concorrência efetiva na União Europeia (acórdãos Courage e Crehan, EU:C:2001:465, n.° 27; Manfredi e o., EU:C:2006:461, n.° 91; Pfleiderer, EU:C:2011:389, n.° 29; Otis e o., EU:C:2012:684, n.° 42; e Donau Chemie e o., EU:C:2013:366, n.° 23).

24      Na falta de regulamentação da União na matéria, compete à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro regular as modalidades do exercício do referido direito de pedir a reparação do prejuízo resultante de um cartel ou de uma prática proibida pelo artigo 101.° TFUE, incluindo as da aplicação do conceito de «nexo de causalidade», desde que sejam respeitados os princípios da equivalência e da efetividade (acórdão Manfredi e o., EU:C:2006:461, n.° 64).

25      Assim, as regras aplicáveis às ações destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos que resultam para os litigantes do efeito direto do direito da União não devem ser menos favoráveis do que as que dizem respeito a ações semelhantes de natureza interna (princípio da equivalência) e não devem tornar, na prática, impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade) (v. acórdãos Courage e Crehan, EU:C:2001:465, n.° 29; Manfredi e o., EU:C:2006:461, n.° 62; Pfleiderer, EU:C:2011:389, n.° 24; e Donau Chemie e o., EU:C:2013:366, n.° 27).

26      A este propósito, e especificamente no domínio do direito da concorrência, estas regras não devem prejudicar a aplicação efetiva dos artigos 101.° TFUE e 102.° TFUE (v. acórdãos VEBIC, C‑439/08, EU:C:2010:739, n.° 57; Pfleiderer, EU:C:2011:389, n.° 24; e Donau Chemie e o., EU:C:2013:366, n.° 27).

27      No processo principal, a ÖBB‑Infrastruktur alega que uma parte do prejuízo que sofreu foi causado pelo cartel em causa, que permitiu a manutenção de um preço de mercado a um nível tão elevado que até os concorrentes não membros desse cartel puderam tirar proveito desse preço de mercado superior ao que seria se o referido cartel não existisse, seja em termos de margem de lucro ou simplesmente de sobrevivência, se a sua estrutura de custos fosse tal que, em condições normais de concorrência, poderiam ter por consequência o seu desaparecimento do mercado.

28      Não foi contestado pelos interessados que apresentaram observações no Tribunal de Justiça que, em certas circunstâncias, esse fenómeno de preços de proteção («umbrella pricing») é reconhecido como uma das consequências possíveis de um cartel. Em contrapartida, as recorrentes no processo principal questionam essencialmente a oportunidade de interpretar o direito da União no sentido de aceitar os pedidos de indemnização baseados na existência de um preço de proteção («umbrella claims»).

29      A este respeito, há que salientar que o preço de mercado é um dos principais elementos tidos em consideração por uma empresa quando determina o preço a que propõe os seus produtos ou serviços. Quando um cartel consegue manter um preço artificialmente elevado para certos produtos e quando estão reunidas certas condições de mercado, tendo nomeadamente em conta a natureza do produto ou a dimensão do mercado abrangido por esse cartel, não se pode excluir que uma empresa concorrente, que não faz parte desse cartel, escolha fixar os preços da sua proposta num montante superior ao que teria escolhido em condições normais de concorrência, isto é, se o referido cartel não existisse. Neste contexto, ainda que a fixação de um preço de oferta seja considerada uma decisão puramente autónoma, tomada pela empresa que não participa num cartel, há contudo que reconhecer que essa decisão pôde ser tomada por referência a um preço de mercado falseado por esse cartel e, por conseguinte, contrário às regras da concorrência.

30      Daqui resulta que, ao contrário do que alegam a Schindler Aufzüge und Fahrtreppen e a Schindler Liegenschaftsverwaltung, o facto de o cliente de uma empresa que não é membro de um cartel, mas que beneficia das condições económicas de um preço de proteção, sofrer um dano por causa do preço de oferta superior ao que seria se esse cartel não existisse faz parte dos efeitos possíveis do referido cartel, que os seus membros não podem ignorar.

31      No que respeita à legislação nacional em causa no processo principal, resulta da decisão de reenvio que o direito austríaco exclui de forma categórica o direito a indemnização numa situação como a que está em causa no processo principal, devido ao facto de que, não existindo um vínculo contratual com um membro desse cartel, se considera que o nexo de causalidade entre o prejuízo sofrido e o cartel em causa foi interrompido pela decisão autónoma da empresa que não participa no referido cartel, mas que, por causa da existência do cartel, fixou um preço de proteção («umbrella pricing»).

32      Na verdade, como foi recordado no n.° 24 do presente acórdão, compete, em princípio, à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro determinar as regras relativas à aplicação do conceito de «nexo de causalidade». Contudo, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, referida no n.° 26 do presente acórdão, que essas regras nacionais devem garantir a plena efetividade do direito da concorrência da União (v., neste sentido, acórdão VEBIC, EU:C:2010:739, n.° 63). Assim, essas regras devem especificamente ter em conta o objetivo prosseguido pelo artigo 101.° TFUE, que visa garantir a manutenção de uma concorrência efetiva e não falseada no mercado interno e, assim, preços fixados em função do jogo da livre concorrência. Foi nestas circunstâncias que o Tribunal de Justiça decidiu, como foi recordado no n.° 22 do presente acórdão, que as regras nacionais devem reconhecer a qualquer pessoa o direito de pedir a reparação do prejuízo sofrido.

33      Ora, a plena efetividade do artigo 101.° TFUE seria posta em causa se o direito de qualquer pessoa pedir a reparação do prejuízo sofrido estivesse subordinado pelo direito nacional, de forma categórica e independentemente das circunstâncias específicas do caso, à existência de um nexo de causalidade direta que exclui esse direito pelo facto de a pessoa em causa ter tido vínculos contratuais não com um membro do cartel mas com uma empresa que não participou nele, cuja política de preços é, porém, uma consequência do cartel que contribuiu para falsear os mecanismos de formação dos preços que regem os mercados em concorrência.

34      Por conseguinte, a vítima de um preço de proteção («umbrella pricing») pode obter dos membros de um cartel a reparação do dano sofrido, ainda que não tenha tido vínculos contratuais com eles, desde que se prove que esse cartel, de acordo com as circunstâncias do caso concreto e, especialmente, com as especificidades do mercado em causa, podia ter como consequência a aplicação de um preço de proteção por terceiros agindo de maneira autónoma e que essas circunstâncias e especificidades não podiam ser ignoradas pelos membros do dito cartel. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se estas condições estão preenchidas.

35      A Kone e a Otis alegam que as ações de indemnização por causa dos preços elevados, que são a consequência da existência de um preço de proteção, constituem pedidos de indemnização punitivos, dado que o prejuízo sofrido pela ÖBB‑Infrastruktur não teve como contrapartida um enriquecimento das recorrentes no processo principal. Contudo, há que salientar que as regras em matéria de responsabilidade extracontratual não fazem depender o montante de um dano indemnizável do lucro auferido por quem cometeu o ato que causou o dano.

36      As referidas recorrentes sustentam, por outro lado, que essa indemnização pode dissuadir as empresas em causa de ajudarem as autoridades da concorrência na instrução dos processos, o que iria contra o princípio da efetividade. Contudo, há que recordar que o programa de clemência é um programa instituído pela Comissão, por intermédio da sua Comunicação Relativa à imunidade em matéria de coimas e à redução do seu montante nos processos relativos a cartéis (JO 2006, C 298, p. 17), que é desprovido de força legislativa e não é vinculativo para os Estados‑Membros (acórdão Pfleiderer, EU:C:2011:389, n.° 21). Por conseguinte, este programa de clemência não pode privar os indivíduos do direito de obterem uma indemnização, nos tribunais nacionais, pelo dano sofrido por causa de uma violação do artigo 101.° TFUE.

37      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 101.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma interpretação e a uma aplicação do direito interno de um Estado‑Membro, que consiste em excluir de forma categórica, por motivos jurídicos, que empresas que participem num cartel sejam civilmente responsabilizadas pelos danos resultantes de preços que uma empresa não participante nesse cartel, tendo em conta a conduta do referido cartel, fixou num nível mais elevado do que aquele que teria aplicado se o cartel não existisse.

 Quanto às despesas

38      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

O artigo 101.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma interpretação e a uma aplicação do direito interno de um Estado‑Membro, que consiste em excluir de forma categórica, por motivos jurídicos, que empresas que participem num cartel sejam civilmente responsabilizadas pelos danos resultantes de preços que uma empresa não participante nesse cartel, tendo em conta a conduta do referido cartel, fixou num nível mais elevado do que aquele que teria aplicado se o cartel não existisse.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.