Language of document : ECLI:EU:C:2010:309

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

3 de Junho de 2010 (*)

«Directiva 93/13/CEE – Contratos celebrados com os consumidores – Cláusulas que definem o objecto principal do contrato – Controlo jurisdicional do seu carácter abusivo – Exclusão – Disposições nacionais mais rigorosas para garantir um nível de protecção mais elevado ao consumidor»

No processo C‑484/08,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo Tribunal Supremo (Espanha), por decisão de 20 de Outubro de 2008, entrado no Tribunal de Justiça em 10 de Novembro de 2008, no processo

Caja de Ahorros y Monte de Piedad de Madrid

contra

Asociación de Usuarios de Servicios Bancarios (Ausbanc),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Tizzano (relator), presidente de secção, exercendo funções de presidente da Primeira Secção, E. Levits, C. Toader, M. Ilešič e J.‑J. Kasel, juízes,

advogada‑geral: V. Trstenjak,

secretário: R. Grass,

vistos os autos e após a audiência de 10 de Setembro de 2009,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Caja de Ahorros y Monte de Piedad de Madrid, por M. Merola, avvocato, e J. Cadarso Palau, abogado,

–        em representação da Asociación de Usuarios de Servicios Bancarios (Ausbanc), por M. J. Rodríguez Teijeiro, procuradora, e por L. Pineda Salido e M. Mateos Ferres, abogados,

–        em representação do Governo espanhol, por J. López‑Medel Bascones e M. Muñoz Pérez, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo alemão, por M. Lumma e J. Kemper, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo austríaco, por E. Riedl, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, H. Almeida e P. Contreiras, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por E. Gippini Fournier e W. Wils, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 29 de Outubro de 2009,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação dos artigos 4.°, n.° 2, e 8.° da Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO L 95, p. 29, a seguir «directiva»).

2        Este pedido foi apresentado no contexto de um litígio que opõe a Caja de Ahorros y Monte de Piedad de Madrid (a seguir «Caja de Madrid») à Asociación de Usuarios de Servicios Bancarios (associação espanhola dos utentes de serviços bancários, a seguir «Ausbanc»), a propósito da legalidade de uma cláusula inserida pela Caja de Madrid nos contratos de crédito com taxa de juro variável celebrados com os seus clientes e destinados à compra de habitação.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O décimo segundo e décimo nono considerandos da directiva referem:

«Considerando no entanto que, na actual situação das legislações nacionais, apenas se poderá prever uma harmonização parcial; que, nomeadamente, apenas as cláusulas contratuais que não tenham sido sujeitas a negociações individuais são visadas pela [...] directiva; que há que deixar aos Estados‑Membros a possibilidade de, no respeito pelo Tratado CEE, assegurarem um nível de protecção mais elevado do consumidor através de disposições nacionais mais rigorosas do que as da [...] directiva;

[…]

Considerando que, para efeitos da presente directiva, a apreciação do carácter abusivo de uma cláusula não deve incidir sobre cláusulas que descrevam o objecto principal do contrato ou a relação qualidade/preço do fornecimento ou de prestação; que o objecto principal do contrato e a relação qualidade/preço podem todavia ser considerados na apreciação do carácter abusivo de outras cláusulas; […]»

4        O artigo 3.° da directiva prevê:

«1.      Uma cláusula contratual que não tenha sido objecto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.

2.      Considera‑se que uma cláusula não foi objecto de negociação individual sempre que a mesma tenha sido redigida previamente e, consequentemente, o consumidor não tenha podido influir no seu conteúdo, em especial no âmbito de um contrato de adesão.

O facto de alguns elementos de uma cláusula ou uma cláusula isolada terem sido objecto de negociação individual não exclui a aplicação do presente artigo ao resto de um contrato se a apreciação global revelar que, apesar disso, se trata de um contrato de adesão.

Se o profissional [sustentar] que uma cláusula normalizada foi objecto de negociação individual, caber‑lhe‑á o ónus da prova.

3.      O anexo contém uma lista indicativa e não exaustiva de cláusulas que podem ser consideradas abusivas.»

5        O artigo 4.° da directiva tem a seguinte redacção:

«1.      Sem prejuízo do artigo 7.°, o carácter abusivo de uma cláusula poderá ser avaliado em função da natureza dos bens ou serviços que sejam objecto do contrato e mediante consideração de todas as circunstâncias que, no momento em que aquele foi celebrado, rodearam a sua celebração, bem como de todas as outras cláusulas do contrato, ou de outro contrato de que este dependa.

2.      A avaliação do carácter abusivo das cláusulas não incide nem sobre a definição do objecto principal do contrato nem sobre a adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os bens ou serviços a fornecer em contrapartida, por outro, desde que essas cláusulas se encontrem redigidas de maneira clara e compreensível.»

6        O artigo 8.° da directiva dispõe:

«Os Estados‑Membros podem adoptar ou manter, no domínio regido pela [...] directiva, disposições mais rigorosas, compatíveis com o Tratado, para garantir um nível de protecção mais elevado para o consumidor.»

 Legislação nacional

7        No direito espanhol, a protecção dos consumidores contra as cláusulas abusivas foi assegurada pela Lei Geral 26/1984, de 19 de Julho de 1984, de defesa dos consumidores e utentes (Ley General 26/1984 para la Defensa de los Consumidores y Usuários, BOE n.° 176, de 24 de Julho de 1984, a seguir «Lei 26/1984»).

8        A Lei 26/1984 foi alterada pela Lei 7/1998, de 13 de Abril de 1998, sobre as condições gerais dos contratos (Ley 7/1998 sobre condiciones generales de la contratación, BOE n.° 89, de 14 de Abril de 1998), que transpôs a directiva para o direito interno.

9        No entanto, a Lei 7/1998 não transpôs o artigo 4.°, n.° 2, da directiva para o direito interno.

 Os factos na origem do litígio e as questões prejudiciais

10      Decorre da decisão de reenvio que os contratos de crédito com taxa de juro variável, destinados à compra de habitação, celebrados entre a Caja de Madrid e os seus clientes contêm uma cláusula escrita, previamente inscrita num contrato‑tipo, nos termos da qual a taxa de juro nominal prevista no contrato, variável periodicamente em conformidade com o índice de referência acordado, deve ser arredondada, a partir da primeira revisão, para o quarto de ponto percentual superior (a seguir «cláusula de arredondamento»).

11      Em 28 de Julho de 2000, a Ausbanc intentou uma acção com vista, designadamente, a obter da Caja de Madrid a supressão da cláusula de arredondamento dos referidos contratos de crédito, bem como a cessação da respectiva utilização para o futuro. Por decisão de 11 de Setembro de 2001, o Juzgado de Primera Instancia de Madrid julgou a acção procedente, considerando que a cláusula de arredondamento era abusiva e, como tal, nula, em conformidade com a legislação nacional que transpôs a directiva.

12      A Caja de Madrid recorreu desta decisão judicial para a Audiencia Provincial de Madrid, que, em 10 de Outubro de 2002, proferiu acórdão confirmando a decisão da primeira instância.

13      Em 27 de Novembro de 2002, a Caja de Madrid recorreu deste acórdão para o Tribunal Supremo.

14      Segundo o Tribunal Supremo, a cláusula de arredondamento é susceptível de constituir um elemento essencial de um contrato de crédito bancário como o que está em causa no processo principal. Ora, uma vez que o artigo 4.°, n.° 2, da directiva exclui que a avaliação do carácter abusivo incida sobre uma cláusula respeitante, nomeadamente, ao objecto do contrato, uma cláusula como a que está em causa no processo principal não pode, em princípio, ser objecto de avaliação quanto ao seu carácter abusivo.

15      No entanto, o Tribunal Supremo observa também que, não tendo o Reino de Espanha transposto para o seu ordenamento jurídico o referido artigo 4.°, n.° 2, a legislação espanhola submete todo o contrato a tal avaliação.

16      Foi nestas condições que o Tribunal Supremo decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O artigo 8.° da [directiva] deve ser interpretado no sentido de que um Estado‑Membro pode prever na sua legislação e em benefício dos consumidores um controlo do carácter abusivo das cláusulas que o artigo 4.°, n.° 2, da mesma directiva exclui do referido controlo?

2)      Consequentemente, o artigo 4.°, n.° 2, da [directiva], conjugado com o artigo 8.° da mesma directiva, opõe‑se a que um Estado‑Membro institua no seu ordenamento jurídico, e em benefício dos consumidores, um controlo do carácter abusivo das cláusulas relativas à ‘definição do objecto principal do contrato’ ou à ‘adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os bens ou serviços a fornecer em contrapartida’, ainda que estejam redigidas de maneira clara e compreensível?

3)      Seria compatível com os artigos 2.° [CE], 3.°, n.° 1, alínea g), [CE] e 4.°, n.° 1, [CE] uma interpretação dos artigos 8.° e 4.°, n.° 2, da [directiva] no sentido de que um Estado‑Membro pode fiscalizar judicialmente o carácter abusivo das cláusulas contidas nos contratos celebrados com os consumidores e redigidas de maneira clara e compreensível, que definam o objecto principal do contrato ou a adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os bens ou serviços a fornecer em contrapartida [por outro]?»

  Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à admissibilidade

17      A Ausbanc, o Governo espanhol e a Comissão das Comunidades Europeias contestam a admissibilidade do pedido de decisão prejudicial, com o argumento de que a mesma não se afigura útil para a solução do litígio sobre o qual o órgão jurisdicional de reenvio é chamado a pronunciar‑se. A este respeito, alegam que a cláusula de arredondamento em causa no processo principal não respeita ao objecto principal do contrato em questão, mas constitui apenas um elemento acessório deste, de modo que o artigo 4.°, n.° 2, da directiva não é aplicável ao litígio no processo principal.

18      A este respeito, há que recordar antes de mais que, segundo jurisprudência constante, no âmbito de um processo nos termos do artigo 267.° TFUE, baseado numa nítida separação de funções entre os tribunais nacionais e o Tribunal de Justiça, o tribunal nacional tem competência exclusiva para verificar e apreciar os factos do litígio no processo principal assim como para interpretar e aplicar o direito nacional. Do mesmo modo, compete apenas ao tribunal nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, tendo em conta as especificidades do processo, apreciar tanto a necessidade como a pertinência das questões que coloca ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, quando as questões colocadas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (v. acórdãos de 12 de Abril de 2005, Keller, C‑145/03, Colect., p. I‑2529, n.° 33; de 18 de Julho de 2007, Lucchini, C‑119/05, Colect., p. I‑6199, n.° 43; e de 11 de Setembro de 2008, Eckelkamp e o., C‑11/07, Colect., p. I‑6845, n.os 27 e 32).

19      Assim, embora o Tribunal de Justiça tenha também declarado que, em circunstâncias excepcionais, lhe cabe examinar as condições em que é chamado a pronunciar‑se pelo juiz nacional, a fim de verificar a sua própria competência (v., neste sentido, acórdãos de 16 de Dezembro de 1981, Foglia, 244/80, Recueil, p. 3045, n.° 21, e de 19 de Novembro de 2009, Filipiak, C‑314/08, ainda não publicado, n.° 41), só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a disposição de direito da União cuja interpretação é pedida ao Tribunal de Justiça não é aplicável (v. acórdãos de 5 de Dezembro de 1996, Reisdorf, C‑85/95, Colect., p. I‑6257, n.° 16, e de 1 de Outubro de 2009, Woningstichting Sint Servatius, C‑567/07, ainda não publicado na Colectânea, n.° 43).

20      Ora, não é o que se verifica no caso concreto.

21      Com efeito, na sua decisão de reenvio, o Tribunal Supremo questiona‑se sobre o alcance das obrigações que incumbem aos Estados‑Membros por força da directiva, no que se refere ao âmbito do controlo jurisdicional do carácter abusivo de determinadas cláusulas contratuais que, no entender do Tribunal Supremo, estão abrangidas pelo artigo 4.°, n.° 2, da directiva.

22      Embora este entendimento do Tribunal Supremo não seja perfilhado por todas as partes, não se afigura, pelo menos de forma evidente, que a referida disposição da directiva não seja aplicável no processo principal.

23      Nestas circunstâncias, é forçoso concluir que o Tribunal é competente para se pronunciar sobre as questões prejudiciais que lhe são submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio e que, por isso, o pedido de decisão prejudicial deve ser admitido.

 Quanto ao mérito

 Quanto à primeira e segunda questões

24      Com as duas primeiras questões, que importa analisar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio questiona, em substância, se os artigos 4.°, n.° 2, e 8.° da directiva se opõem a que um Estado‑Membro preveja no seu ordenamento jurídico, em benefício dos consumidores, um controlo do carácter abusivo das cláusulas contratuais relativas à definição do objecto principal do contrato ou à adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os serviços ou os bens a fornecer em contrapartida, por outro, ainda que estas cláusulas estejam redigidas de maneira clara e compreensível.

25      A Caja de Madrid defende que o artigo 8.° da directiva não permite aos Estados‑Membros adoptarem, mediante medidas de transposição, ou manterem, na falta de tais medidas, uma legislação nacional contrária ao artigo 4.°, n.° 2, da directiva. Com efeito, na sua opinião, esta disposição delimita, com força vinculativa, o âmbito de aplicação do sistema de protecção previsto pela directiva, excluindo qualquer possibilidade de os Estados Membros a derrogarem, mesmo para prever uma legislação nacional mais favorável aos consumidores.

26      Pelo contrário, os demais interessados que apresentaram observações alegam que os artigos 4.°, n.° 2, e 8.° da directiva não se opõem a tal possibilidade. Na verdade, consideram que a adopção ou a manutenção de semelhante legislação nacional se inclui na faculdade dos Estados‑Membros de instituírem, no domínio coberto pela directiva, mecanismos mais estritos de protecção dos consumidores.

27      Para responder às questões colocadas, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, o sistema de protecção implementado pela directiva assenta na ideia de que o consumidor se encontra em situação de inferioridade face ao profissional, no que respeita quer ao poder de negociação quer ao nível de informação, situação que o leva a aderir a condições previamente redigidas pelo profissional, sem poder influir no conteúdo destas (acórdãos de 27 de Junho de 2000, Océano Grupo Editorial e Salvat Editores, C‑240/98 a C‑244/98, Colect., p. I‑4941, n.° 25, e de 26 de Outubro de 2006, Mostaza Claro, C‑168/05, Colect., p. I‑10421, n.° 25).

28      Porém, como indica expressamente o décimo segundo considerando da directiva, esta apenas procedeu a uma harmonização parcial e mínima das legislações nacionais sobre cláusulas abusivas, reconhecendo aos Estados‑Membros a possibilidade de garantir ao consumidor um nível de protecção mais elevado do que o nela previsto.

29      Assim, o artigo 8.° da directiva prevê formalmente a possibilidade de os Estados‑Membros «adoptar[em] ou manter[em], no domínio regido pela [...] directiva, disposições mais rigorosas, compatíveis com o Tratado, para garantir um nível de protecção mais elevado para o consumidor».

30      Trata‑se de verificar se o alcance do artigo 8.° da directiva se estende ao conjunto do domínio regido por esta e, por conseguinte, ao artigo 4.°, n.° 2, desta, ou se, como defende a Caja de Madrid, este preceito se encontra excluído do âmbito de aplicação do referido artigo 8.°

31      Ora, a este respeito, há que reconhecer que o artigo 4.°, n.° 2, da directiva prevê unicamente que «a avaliação do carácter abusivo» não respeita às cláusulas visadas nesta disposição, desde que estas estejam redigidas de forma clara e compreensível.

32      Decorre, por isso, da própria letra do artigo 4.°, n.° 2, da directiva que esta disposição, como observou a advogada‑geral no n.° 74 das suas conclusões, não pode ser entendida como uma definição do âmbito de aplicação material da directiva. Pelo contrário, as cláusulas visadas no referido artigo 4.°, n.° 2, embora incluídas no domínio regulado pela directiva, escapam somente à avaliação do seu carácter abusivo, na medida em que o órgão jurisdicional nacional competente deva considerar, após uma apreciação do caso concreto, que foram redigidas pelo profissional de maneira clara e compreensível.

33      Além disso, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que os artigos 3.°, n.° 1, e 4.°, n.° 1, da directiva definem, no seu conjunto, os critérios gerais que permitem apreciar a natureza abusiva das cláusulas contratuais sujeitas às disposições da directiva (v., neste sentido, acórdãos de 7 de Maio de 2002, Comissão/Suécia, C‑478/99, Colect., p. I‑4147, n.os 11 e 17, e de 1 de Abril de 2004, Freiburger Kommunalbauten, C‑237/02, Colect., p. I‑3403, n.os 18, 19 e 21).

34      Nesta mesma perspectiva, o artigo 4.°, n.° 2, da directiva visa apenas, por seu turno, como refere a advogada‑geral no n.° 75 das suas conclusões, estabelecer as modalidades e o alcance do controlo substantivo das cláusulas contratuais que não foram objecto de negociação individual e que definem as prestações essenciais dos contratos celebrados entre um profissional e um consumidor.

35      Daqui decorre que as cláusulas visadas no referido artigo 4.°, n.° 2, se inserem no domínio regido pela directiva e que, por isso, o seu artigo 8.° é igualmente aplicável ao referido artigo 4.°, n.° 2.

36      Tal conclusão não é posta em causa pelos argumentos da Caja de Madrid segundo os quais, como decorre, entre outros, do acórdão de 10 de Maio de 2001, Comissão/Países Baixos (C‑144/99, Colect., p. I‑3541), o artigo 4.°, n.° 2, da directiva tem carácter imperativo e vinculativo para os Estados‑Membros, de modo que estes não podem invocar o artigo 8.° da directiva para adoptar ou manter nas suas ordens jurídicas internas disposições susceptíveis de lhe alterar o conteúdo.

37      Quanto a este ponto, basta notar que estes argumentos assentam numa leitura errónea do referido acórdão. Naquele acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que o Reino dos Países Baixos não tinha cumprido as obrigações que lhe incumbiam por força da directiva, não por não ter transposto o artigo 4.°, n.° 2, desta, mas apenas por ter procedido à respectiva transposição incompleta, pelo que a legislação nacional em causa não permitia atingir os resultados pretendidos por esta disposição.

38      Com efeito, a referida legislação excluía qualquer possibilidade de controlo jurisdicional das cláusulas que definem as prestações essenciais nos contratos celebrados entre um profissional e um consumidor, mesmo quando a redacção destas fosse obscura e ambígua, pelo que o consumidor se encontrava completamente impedido de alegar o carácter abusivo de uma cláusula relativa à definição do objecto principal do contrato e à adequação entre o preço e os bens ou os serviços a fornecer.

39      Por conseguinte, não se pode, de modo algum, concluir do acórdão Comissão/Países Baixos, já referido, que o Tribunal de Justiça tenha considerado que o artigo 4.°, n.° 2, da directiva consubstancia uma disposição imperativa e vinculativa, que deve ser obrigatoriamente transposta enquanto tal pelos Estados‑Membros. Pelo contrário, o Tribunal de Justiça limitou‑se a declarar que, para garantir concretamente os objectivos de protecção dos consumidores prosseguidos pela directiva, qualquer transposição do referido artigo 4.°, n.° 2, devia ser completa, pelo que a proibição de avaliar o carácter abusivo das cláusulas visa unicamente as redigidas de maneira clara e compreensível.

40      Do exposto resulta que os Estados‑Membros não podem ser impedidos de manter ou de adoptar, no domínio regido pela directiva, incluindo o seu artigo 4.°, n.° 2, regras mais estritas do que as previstas na própria directiva, desde que visem garantir um nível de protecção mais elevado dos consumidores.

41      Ora, relativamente à legislação espanhola em causa no processo principal, importa sublinhar que, como decorre do processo apresentado ao Tribunal de Justiça, a Lei 7/1998 não transpôs para o direito interno o artigo 4.°, n.° 2, da directiva.

42      Assim, no ordenamento jurídico espanhol, como refere o Tribunal Supremo, um tribunal nacional pode apreciar, em qualquer circunstância, no âmbito de um litígio relativo a um contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, o carácter abusivo de uma cláusula que não haja sido individualmente negociada, relativa, nomeadamente ao objecto principal do referido contrato, mesmo nos casos em que esta cláusula tenha sido previamente redigida de maneira clara e compreensível pelo profissional.

43      Nestas circunstâncias, é forçoso concluir que, ao autorizar a possibilidade de um controlo jurisdicional completo do carácter abusivo das cláusulas, como as visadas no artigo 4.°, n.° 2, da directiva, previstas num contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, a legislação espanhola em causa no processo principal permite garantir ao consumidor, em conformidade com o artigo 8.° da directiva, um nível de protecção efectiva mais elevado do que o estabelecido nesta última.

44      Face a estas considerações, há que responder à primeira e segunda questões que os artigos 4.°, n.° 2, e 8.° da directiva devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que autoriza um controlo jurisdicional do carácter abusivo das cláusulas contratuais relativas à definição do objecto principal do contrato ou à adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os serviços ou os bens a fornecer como contrapartida, por outro, ainda que estas cláusulas estejam redigidas de maneira clara e compreensível.

 Quanto à terceira questão

45      Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio questiona se os artigos 2.° CE, 3.°, n.° 1, alínea g), CE e 4.°, n.° 1, CE se opõem a uma interpretação dos artigos 4.°, n.° 2, e 8.° da directiva, segundo a qual os Estados‑Membros podem adoptar uma legislação nacional que autoriza um controlo jurisdicional do carácter abusivo de cláusulas contratuais relativas à definição do objecto principal do contrato ou à adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os serviços ou os bens a fornecer como contrapartida, por outro, ainda que estas cláusulas estejam redigidas de maneira clara e compreensível.

46      Ora, quanto aos artigos 2.° CE e 4.°, n.° 1 CE, basta notar que, segundo jurisprudência assente, estas disposições enunciam objectivos e princípios gerais que são aplicados necessariamente em conjugação com os capítulos respectivos do Tratado CE destinados a implementar esses mesmos princípios e objectivos. Assim, não devem, por si só, ter o efeito de onerar os Estados‑Membros com obrigações jurídicas claras e incondicionais (v., neste sentido, quanto ao artigo 2.° CE, acórdão de 24 de Janeiro de 1991, Alsthom Atlantique, C‑339/89, Colect., p. I‑107, n.° 9, e, quanto ao artigo 4.°, n.° 1, CE, acórdão de 3 de Outubro de 2000, Échirolles Distribution, C‑9/99, Colect., p. I‑8207, n.° 25).

47      Do mesmo modo, o artigo 3.°, n.° 1, alínea g), CE não deve criar, por si só, obrigações jurídicas para os Estados‑Membros. Com efeito, esta disposição, como o Tribunal de Justiça já teve ocasião de clarificar, limita‑se a indicar um objectivo que, contudo, deve ser precisado noutras disposições do Tratado, designadamente nas relativas às regras de concorrência (v., neste sentido, acórdão de 9 de Novembro de 1983, Nederlandsche Banden‑Industrie Michelin/Comissão, 322/81, Recueil, p. 3461, n.° 29, e acórdão Alsthom Atlantique, já referido, n.° 10).

48      Além disso, cumpre reconhecer que as indicações constantes da decisão de reenvio não permitem ao Tribunal de Justiça delimitar com clareza as disposições do Tratado relativas às regras de concorrência cuja interpretação seria útil à solução do litígio no processo principal.

49      Face às considerações anteriores, há que responder à terceira questão que os artigos 2.° CE, 3.°, n.° 1, alínea g), CE e 4.°, n.° 1, CE não se opõem a uma interpretação dos artigos 4.°, n.° 2, e 8.° da directiva, segundo a qual os Estados‑Membros podem adoptar uma legislação nacional que autoriza um controlo jurisdicional do carácter abusivo das cláusulas contratuais relativas à definição do objecto principal do contrato ou à adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os serviços ou os bens a fornecer como contrapartida, por outro, ainda que estas cláusulas estejam redigidas de maneira clara e compreensível.

 Quanto às despesas

50      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

1)      Os artigos 4.°, n.° 2, e 8.° da Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que autoriza um controlo jurisdicional do carácter abusivo das cláusulas contratuais relativas à definição do objecto principal do contrato ou à adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os serviços ou os bens a fornecer como contrapartida, por outro, ainda que estas cláusulas estejam redigidas de maneira clara e compreensível.

2)      Os artigos 2.° CE, 3.°, n.° 1, alínea g), CE e 4.°, n.° 1, CE não se opõem a uma interpretação dos artigos 4.°, n.° 2, e 8.° da Directiva 93/13, segundo a qual os Estados‑Membros podem adoptar uma legislação nacional que autoriza um controlo jurisdicional do carácter abusivo das cláusulas contratuais relativas à definição do objecto principal do contrato ou à adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os serviços ou os bens a fornecer como contrapartida, por outro, ainda que estas cláusulas estejam redigidas de maneira clara e compreensível.

Assinaturas


* Língua do processo: espanhol.