Language of document : ECLI:EU:C:2013:97

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

21 de fevereiro de 2013 (*)

«Cidadania da União — Livre circulação de trabalhadores — Princípio da igualdade de tratamento − Artigo 45.°, n.° 2, TFUE — Regulamento (CEE) n.° 1612/68 — Artigo 7.°, n.° 2 − Diretiva 2004/38/CE — Artigo 24.°, n.os 1 e 2 — Derrogação ao princípio da igualdade de tratamento a respeito das ajudas de subsistência para estudo sob a forma de bolsas de estudos ou empréstimos — Cidadão da União estudante noutro Estado‑Membro de acolhimento — Atividade assalariada anterior e posterior ao início dos estudos − Objetivo principal do interessado no momento da sua entrada no território do Estado‑Membro de acolhimento — Relevância para a sua qualificação de trabalhador e para o seu direito a uma bolsa de estudos»

No processo C‑46/12,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Ankenævnet for Statens Uddannelsesstøtte (Dinamarca), por decisão de 24 de janeiro de 2012, entrado no Tribunal de Justiça em 26 de janeiro de 2012, no processo

L. N.

contra

Styrelsen for Videregående Uddannelser og Uddannelsesstøtte,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: M. Ilešič, presidente de secção, E. Jarašiūnas, A. Ó Caoimh (relator), C. Toader e C. G. Fernlund, juízes,

advogado‑geral: Y. Bot,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 28 de novembro de 2012,

vistas as observações apresentadas:

¾        representação do Governo dinamarquês, por V. Pasternak Jørgensen e C. em Thorning, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo norueguês, por E. Leonhardsen, M. Emberland e B. Gabrielsen, na qualidade de agentes,

¾        em representação da Comissão Europeia, por D. Roussanov e C. Barslev, na qualidade de agentes,

¾        vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 7.°, n.° 1, alínea c), e 24.°, n.° 2, da Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.° 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE (JO L 158, p. 77, e — retificações — JO 2004, L 229, p. 35, e JO 2005, L 197, p. 34).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe N. ao Styrelsen for Videregående Uddannelser og Uddannelsesstøtte (Conselho para o Ensino Superior e para o Apoio à Educação, a seguir «VUS») a respeito da recusa deste de lhe atribuir uma ajuda à formação.

 Quadro jurídico

 Regulamentação da União

 Regulamento (CEE) n.° 1612/68

3        Nos termos do artigo 7.° do Regulamento (CEE) n.° 1612/68 do Conselho, de 15 de outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade (JO L 257, p. 2; EE 05 F1 p. 77):

«1. O trabalhador nacional de um Estado‑Membro não pode, no território de outros Estados‑Membros, sofrer, em razão da sua nacionalidade, tratamento diferente daquele que é concedido aos trabalhadores nacionais no que respeita a todas as condições de emprego e de trabalho, nomeadamente em matéria de remuneração, de despedimento e de reintegração profissional ou de reemprego, se ficar desempregado.

2.      Aquele trabalhador beneficia das mesmas vantagens sociais e fiscais que os trabalhadores nacionais.

[...]»

 Diretiva 2004/38

4        Nos termos dos considerandos 1, 3, 10, 20 e 21 da Diretiva 2004/38:

«(1)      A cidadania da União confere a cada cidadão da União um direito fundamental e individual de circular e residir livremente no território dos Estados‑Membros, sujeito às limitações e condições estabelecidas no Tratado e às medidas adotadas em sua execução.

[…]

(3)      A cidadania da União deverá ser o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros quando estes exercerem o seu direito de livre circulação e residência. É, pois, necessário codificar e rever os instrumentos comunitários em vigor que tratam separadamente a situação dos trabalhadores assalariados, dos trabalhadores não assalariados, assim como dos estudantes e de outras pessoas não ativas, a fim de simplificar e reforçar o direito de livre circulação e residência de todos os cidadãos da União.

[…]

(10)      As pessoas que exercerem o seu direito de residência não deverão, contudo, tornar‑se uma sobrecarga não razoável para o regime de segurança social do Estado‑Membro de acolhimento durante o período inicial de residência. Em consequência, o direito de residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias por períodos superiores a três meses deverá estar sujeito a condições.

[…]

(20)  Em conformidade com a proibição da discriminação em razão da nacionalidade, todos os cidadãos da União e membros das suas famílias que residam num Estado‑Membro com base na presente diretiva deverão beneficiar, nesse Estado‑Membro, de igualdade de tratamento em relação aos nacionais nos domínios abrangidos pelo Tratado, sob reserva das disposições específicas expressamente previstas no Tratado e no direito secundário.

(21)  Contudo, caberá ao Estado‑Membro de acolhimento determinar se tenciona conceder prestações a título de assistência social durante os primeiros três meses de residência ou por um período mais longo no caso das pessoas à procura de emprego, a pessoas que não sejam trabalhadores assalariados ou não assalariados nem conservem esse estatuto, ou não sejam membros das famílias dos mesmos, ou bolsas de subsistência para estudos, incluindo a formação profissional, antes da aquisição do direito de residência permanente.»

5        Nos termos do seu artigo 3.°, n.° 1, a Diretiva 2004/38 aplica‑se a todos os cidadãos da União que se desloquem ou residam num Estado‑Membro de que não são nacionais.

6        O artigo 7.°, n.os 1 e 3, da Diretiva 2004/38 tem a seguinte redação:

«1.       Qualquer cidadão da União tem o direito de residir no território de outro Estado‑Membro por período superior a três meses, desde que:

a)      Exerça uma atividade assalariada ou não assalariada no Estado‑Membro de acolhimento, ou

b)      Disponha de recursos suficientes para si próprio e para os membros da sua família, a fim de não se tornar uma sobrecarga para o regime de segurança social do Estado‑Membro de acolhimento durante o período de residência, e de uma cobertura extensa de seguro de doença no Estado‑Membro de acolhimento, ou,

c)      —      esteja inscrito num estabelecimento de ensino público ou privado, reconhecido ou financiado por um Estado‑Membro de acolhimento com base na sua legislação ou prática administrativa, com o objetivo principal de frequentar um curso, inclusive de formação profissional, e

¾        disponha de uma cobertura extensa de seguro de doença no Estado‑Membro de acolhimento, e garanta à autoridade nacional competente, por meio de declaração ou outros meios à sua escolha, que dispõe de recursos financeiros suficientes para si próprio e para os membros da sua família a fim de evitar tornar‑se uma sobrecarga para o regime de segurança social do Estado‑Membro de acolhimento durante o período de residência; [...]

[…]

3.      Para os efeitos da alínea a) do n.° 1, o cidadão da União que tiver deixado de exercer uma atividade assalariada ou não assalariada mantém o estatuto de trabalhador assalariado ou não assalariado nos seguintes casos:

[…]

d)       Quando seguir uma formação profissional. A menos que o interessado esteja em situação de desemprego involuntário, a manutenção do estatuto de trabalhador assalariado pressupõe uma relação entre a atividade profissional anterior e a formação em causa.»

7        O artigo 24.° da Diretiva 2004/38, sob a epígrafe «Igualdade de tratamento», tem a seguinte redação:

«1.      Sob reserva das disposições específicas previstas expressamente no Tratado e no direito secundário, todos os cidadãos da União que, nos termos da presente diretiva, residam no território do Estado‑Membro de acolhimento beneficiam de igualdade de tratamento em relação aos nacionais desse Estado‑Membro, no âmbito de aplicação do Tratado. O benefício desse direito é extensível aos membros da família que não tenham a nacionalidade de um Estado‑Membro e tenham direito de residência ou direito de residência permanente.

2.      Em derrogação do n.° 1, o Estado‑Membro de acolhimento pode não conceder o direito a prestações de assistência social durante os primeiros três meses de residência ou, quando pertinente, o período mais prolongado previsto na alínea b) do n.° 4 do artigo 14.°, assim como, antes de adquirido o direito de residência permanente, pode não conceder ajuda de subsistência, incluindo a formação profissional, constituída por bolsas de estudo ou empréstimos estudantis, a pessoas que não sejam trabalhadores assalariados ou trabalhadores não assalariados, que não conservem este estatuto e que não sejam membros das famílias dos mesmos.»

 Legislação dinamarquesa

8        O § 2a, n.os 2 e 4, da Lei consolidada n.° 661, de 29 de junho de 2009, sobre o regime de bolsas e empréstimos para os estudantes dinamarqueses 2005/2006 (Folketingstidende 2005/2006 L 95, suplemento A, p. 2854), tem a seguinte redação:

«[…]

2.       Os candidatos a cursos que sejam cidadãos da União ou nacionais do Espaço Económico Europeu [(EEE)] e os seus familiares podem receber auxílios à formação para cursos realizados na Dinamarca e no estrangeiro nas condições previstas no direito da [União] e no Acordo EEE. Os cidadãos dos Estados‑Membros da União e dos Estados do EEE que não exerçam uma atividade assalariada ou não assalariada na Dinamarca e os seus familiares só terão direito a auxílios à formação após residência durante um período de cinco anos consecutivos na Dinamarca. […]

[…]

4.       O Ministro da Educação pode regulamentar o direito dos cidadãos estrangeiros a auxílios à formação para prosseguirem estudos na Dinamarca e no estrangeiro.»

9        O § 2a, n.° 2, da Lei consolidada n.° 661 foi implementado pelo § 67 da Lei n.° 455, de 8 de junho de 2009, sobre os auxílios à formação concedidos pelo Estado (Bekendtgørelse nr 455 af 8. juni 2009 om statens uddannelsesstøtte). Este § 67 tem a seguinte redação:

«Um cidadão da [União] que, nos termos do direito da União, exerça uma atividade assalariada ou não assalariada na Dinamarca poderá beneficiar de auxílios à formação neste país ou no estrangeiro nas mesmas condições que um cidadão dinamarquês. Também se entende por ‘pessoa que exerça uma atividade assalariada’ ou ‘não assalariada’, na aceção das regras do direito da União, um cidadão da União que tenha previamente exercido uma atividade assalariada ou não assalariada na Dinamarca, quando exista uma ligação substancial e temporal entre a formação e a atividade anterior na Dinamarca, ou uma pessoa em situação de desemprego involuntário que, por motivos de saúde ou por causas estruturais do mercado de trabalho, necessite de reciclagem a fim de exercer uma atividade numa área sem uma ligação substancial e temporal com a atividade anteriormente exercida na Dinamarca.»

10      No termos do § 3 da Lei n.° 474, de 12 de maio de 2011, sobre a residência na Dinamarca dos cidadãos não dinamarqueses abrangidos pelas normas da União Europeia [Bekendtgørelse nr 474 af 12. maj 2011 om ophold i Danmark for udlændinge, der er omfattet af Den Europæiske Unions regler (EU‑opholdsbekendtgørelsen)]:

«1.       Um cidadão da União que exerça, na Dinamarca, uma atividade assalariada ou não assalariada, incluindo um prestador de serviços, tem o direito de residir por período superior aos três meses previstos no § 2, n.° 1, da lei dos estrangeiros.

2.      Um cidadão da União anteriormente abrangido pelo n.° 1, que tiver deixado de exercer uma atividade, mantém o estatuto de trabalhador assalariado ou não assalariado:

1)       quando tiver uma incapacidade temporária de trabalho, resultante de doença ou acidente;

2)       quando estiver em situação de desemprego involuntário depois de ter exercido uma atividade assalariada ou não assalariada durante mais de um ano e estiver inscrito no serviço de emprego como candidato a emprego;

3)       quando o cidadão da União estiver em situação de desemprego involuntário no termo de um contrato de trabalho de duração determinada inferior a um ano, devidamente verificado, e estiver inscrito no respetivo serviço de emprego como candidato a emprego;

4)       quando, no decurso dos primeiros doze meses, o cidadão da União tiver perdido o seu emprego de forma involuntária ou já não exercer uma atividade não assalariada, devidamente registada, e estiver inscrito no serviço de emprego como candidato a emprego; ou

5)       quando o cidadão seguir uma formação profissional ligada à atividade profissional anterior ou se encontrar numa situação de desemprego involuntário e iniciar qualquer tipo de formação profissional.

3.       Um cidadão da União abrangido pelos números 3 ou 4 do § 2 mantém o estatuto de trabalhador assalariado ou não assalariado, durante seis meses.

4.       Um cidadão da União que entrou na Dinamarca para procurar emprego tem o direito de residir enquanto candidato a emprego por um período máximo de seis meses a contar da data de entrada no país. Depois desse período, a pessoa tem o direito de residir enquanto candidata a emprego, na medida em que possam ser apresentadas provas de que essa pessoa continua a procurar emprego e tem perspetivas de emprego efetivo.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

11      N., cidadão da União, cuja nacionalidade não é indicada pelo órgão jurisdicional de reenvio, entrou na Dinamarca em 6 de junho de 2009.

12      Em 10 de junho de 2009, foi‑lhe proposto um emprego a tempo inteiro numa sociedade internacional de comércio grossista.

13      Em 29 de junho de 2009, a Administração Pública regional entregou‑lhe um certificado de registo como trabalhador assalariado, ao abrigo do § 3 da Lei n.° 474.

14      Resulta dos autos que N. pediu a sua admissão à Copenhagen Business School (a seguir «CBS») antes de 15 de março de 2009, data‑limite de inscrição, por conseguinte, antes de entrar em território dinamarquês.

15      Em 10 de agosto de 2009, N. apresentou um pedido de concessão de uma ajuda à formação a partir do mês de setembro de 2009.

16      Em 10 de setembro de 2009, N. iniciou os seus estudos na CBS. Por esse motivo, demitiu‑se do seu emprego na sociedade de comércio grossista, mas, em seguida, exerceu outra atividade assalariada a tempo parcial.

17      Em 27 de outubro de 2009, o VUS informou N. de que tinha indeferido o seu pedido de ajuda à formação.

18      Em 30 de outubro de 2009, N. interpôs recurso desta decisão para o Ankenævnet for Statens Uddannelsesstøtte, invocando o seu estatuto de «trabalhador» na aceção do artigo 45.° TFUE e o seu direito a uma ajuda à formação.

19      Em 7 de dezembro de 2009, o VUS pediu à Administração Pública regional que a informasse se N. preenchia os requisitos exigidos para ser considerado trabalhador na aceção do artigo 45.° TFUE. Inicialmente, numa carta de 11 de dezembro de 2009, a Administração Pública regional declarou que N. devia ser considerado «trabalhador» durante o período compreendido entre 29 de junho e 10 de setembro de 2009. Posteriormente, por carta de 12 de abril de 2010, alterou o fundamento da autorização de residência de N. de trabalhador para estudante, uma vez que o objetivo principal da vinda do interessado para a Dinamarca foi a frequência de uma formação.

20      Por ofício de 28 de setembro de 2010, o VUS enviou o recurso para o órgão jurisdicional de reenvio. Nesse ofício, indicava que importaria, a fim de apreciar o processo à luz dos elementos de prova, ter em conta que N. veio para a Dinamarca com o objetivo principal de frequentar uma formação, uma vez que enviou a sua candidatura para a CBS antes de ter chegado a esse Estado‑Membro e que iniciou os seus estudos pouco tempo depois de ter chegado. Por conseguinte, no entender do VUS, N. não podia preencher os requisitos exigidos para ser considerado trabalhador.

21      Em 31 de agosto de 2011, o órgão jurisdicional de reenvio contactou o VUS, pedindo‑lhe para indicar se N. estava abrangido pelo conceito de «trabalhador» na aceção do direito da União. Esse órgão jurisdicional pediu igualmente ao VUS que contactasse a Administração Pública regional para esclarecimento da mesma questão. O VUS declarou que, em seu entender, não havia nenhuma razão para questionar a decisão anterior da Administração Pública regional sobre o fundamento da residência de N.

22      O órgão jurisdicional de reenvio considera que os artigos 7.°, n.° 1, alínea c), e 24.°, n.° 2, da Diretiva 2004/38 devem ser interpretados no sentido de que uma pessoa considerada estudante não tem direito a uma bolsa de estudo mesmo que possa igualmente ser qualificada de «trabalhador». Salienta o facto de o artigo 7.°, n.° 1, alínea c), desta diretiva definir estudante como uma pessoa que esteja inscrita num estabelecimento de ensino público ou privado, «com o objetivo principal de frequentar um curso».

23      Nestas circunstâncias, o Ankenævnet for Statens Uddannelsesstøtte decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 7.°, n.° 1, alínea c), em conjugação com o artigo 24.°, n.° 2, da Diretiva 2004/38[…] [deve ser interpretado no sentido] de que, na apreciação da questão de saber se uma pessoa deve ser considerada um trabalhador com direito a [ajudas de subsistência para estudo], o Estado‑Membro (Estado‑Membro de acolhimento) pode ter em conta [a circunstância] de a pessoa ter entrado [no seu território] com o objetivo principal de frequentar [uma formação], daí resultando que o Estado‑Membro de acolhimento não está obrigado a conceder a essa pessoa uma ajuda [de subsistência para estudo ao abrigo do referido artigo 24.°, n.° 2]?»

 Quanto à questão prejudicial

24      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se os artigos 7.°, n.° 1, alínea c), e 24.°, n.° 2, da Diretiva 2004/38 devem ser interpretados no sentido que a um cidadão da União que prossiga estudos num Estado‑Membro de acolhimento e aí exerça paralelamente uma atividade assalariada podem ser recusadas as ajudas de subsistência para estudo concedidas aos cidadãos desse Estado‑Membro quando aquele entra no território do referido Estado com a intenção principal de aí seguir uma formação.

25      Há que referir, a título preliminar, que o artigo 20.°, n.° 1, TFUE atribui a qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado‑Membro o estatuto de cidadão da União.

26      Tanto os estudantes provenientes de Estados‑Membros diferentes do Estado‑Membro de acolhimento e que neste prossigam os seus estudos como os nacionais dos Estados‑Membros que tenham a qualidade de «trabalhador» na aceção do artigo 45.° TFUE, na medida em que possuam a nacionalidade de um Estado‑Membro, beneficiam desse estatuto.

27      Como reiteradamente declarou o Tribunal de Justiça, o estatuto de cidadão da União tende a ser o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros que permite àqueles que, de entre estes últimos, se encontrem na mesma situação obter, no domínio de aplicação ratione materiae do Tratado FUE, independentemente da sua nacionalidade e sem prejuízo das exceções expressamente previstas a este respeito, o mesmo tratamento jurídico (acórdãos de 20 de setembro de 2001, Grzelczyk, C‑184/99, Colet., p. I‑6193, n.° 31, e de 11 de julho de 2002, D’Hoop, C‑224/98, Colet., p. I‑6191, n.° 28).

28      Qualquer cidadão da União pode por conseguinte invocar a proibição de discriminação em razão da nacionalidade que figura no artigo 18.° TFUE, precisada noutras disposições do Tratado e no artigo 24.° da Diretiva 2004/38, em todas as situações abrangidas pelo domínio de aplicação ratione materiae do direito da União, incluindo estas situações, entre outras, o exercício das liberdades fundamentais garantidas, nomeadamente, pelo artigo 45.° TFUE e as decorrentes do exercício da liberdade de circular e de permanecer no território dos Estados‑Membros consagrada no artigo 21.° TFUE (v., designadamente, acórdãos de 12 de maio de 1998, Martínez Sala, C‑85/96, Colet., p. I‑2691, n.° 63; Grezelczyk, já referido, n.os 32 e 33; de 15 de março de 2005, Bidar, C‑209/03, Colet., p. I‑2119, n.os 32 e 33; e de 4 de outubro de 2012, Comissão/Áustria, C‑75/11, n.° 39).

29      Nada no texto do Tratado permite considerar que os estudantes que sejam cidadãos da União, quando se desloquem para outro Estado‑Membro para aí prosseguirem os estudos, sejam privados dos direitos conferidos pelo Tratado aos cidadãos da União, incluindo os direitos conferidos a esses cidadãos quando exercem atividades assalariadas no Estado‑Membro de acolhimento (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Grzelczyk, n.° 35, e Bidar, n.° 34).

30      Daqui resulta que um cidadão da União que prossiga os seus estudos num Estado‑Membro de acolhimento ou que exerça uma atividade assalariada nesse Estado e goze da qualidade de «trabalhador» na aceção do artigo 45.° TFUE pode invocar o direito, consagrado nos artigos 18.° TFUE, 21.° TFUE e/ou 45.° TFUE, de circular e permanecer livremente no território do Estado‑Membro de acolhimento sem sofrer discriminações diretas ou indiretas em razão da sua nacionalidade.

31      Quer o Governo dinamarquês quer o Governo norueguês alegam, todavia, que as disposições combinadas dos artigos 7.°, n.° 1, alínea c), e 24.°, n.° 2, da Diretiva 2004/38 devem ser interpretadas no sentido de que a um cidadão da União que estuda a tempo inteiro num Estado‑Membro de acolhimento e que entrou no território desse Estado‑Membro para esse fim podem ser recusadas ajudas de subsistência para estudo durante os cinco primeiros anos da sua residência ainda que exerça um trabalho a tempo parcial em paralelo com os seus estudos.

32      Importa, a este respeito, recordar que o artigo 24.° n.° 2, da Diretiva 2004/38 dispõe que um Estado‑Membro não está obrigado, antes de adquirido o direito de residência permanente, a conceder ajudas de subsistência para estudo, incluindo a formação profissional, sob a forma de bolsas de estudo ou de empréstimos estudantis, a pessoas que não sejam trabalhadores assalariados ou trabalhadores não assalariados, ou que mantenham esse estatuto ou membros das suas famílias.

33      Enquanto derrogação ao princípio da igualdade de tratamento previsto no artigo 18.° TFUE de que o artigo 24.°, n.° 1, da Diretiva 2004/38 apenas constitui uma expressão específica, o n.° 2 deste artigo 24.° deve ser interpretado, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, de maneira estrita e em conformidade com as disposições do Tratado, incluindo as respeitantes à cidadania da União e à livre circulação de trabalhadores (v., neste sentido, acórdãos de 4 de junho de 2009, Vatsouras e Koupatantze, C‑22/08 e C‑23/08, Colet., p. I‑4585, n.° 44, e Comissão/Áustria, já referido, n.os 54 e 56).

34      Segundo as informações de que o Tribunal de Justiça dispõe, a ajuda pedida por N. constitui uma ajuda de subsistência, sob a forma de bolsa de estudos. Esta ajuda pode, portanto, ser abrangida pela derrogação ao princípio da igualdade de tratamento prevista no artigo 24.°, n.° 2, da Diretiva 2004/38.

35      Todavia, como resulta claramente da letra desta última disposição, uma tal derrogação não é oponível às pessoas que tenham adquirido um direito de residência permanente nem aos «trabalhadores assalariados, [aos] trabalhadores não assalariados, [às] pessoas que conservam esse estatuto ou [aos] membros da sua família».

36      Embora seja verdade que o artigo 7.°, n.° 1, alínea c), da Diretiva 2004/38 prevê que um cidadão da União tem o direito de residir no território de outro Estado‑Membro por período superior a três meses, desde que esteja inscrito num «estabelecimento de ensino público ou privado», na aceção desta disposição, «com o objetivo principal de frequentar um curso», não resulta, no entanto, desta última precisão que um cidadão da União, que preencha estes requisitos esteja, ipso facto, privado do estatuto de «trabalhador» na aceção do artigo 45.° TFUE.

37      Resulta da decisão de reenvio, bem como das observações submetidas ao Tribunal de Justiça, que N. exerceu um trabalho assalariado a tempo inteiro desde a sua chegada ao território do Estado‑Membro de acolhimento e que, uma vez iniciados os seus estudos, prosseguiu uma atividade assalariada a tempo parcial.

38      Resulta igualmente dos autos que a ajuda de subsistência para estudo lhe foi recusada porque entrou no território desse Estado‑Membro com a intenção principal de aí prosseguir uma formação, sendo o objetivo da sua permanência na Dinamarca, portanto, segundo as autoridades competentes nacionais, suscetível de o privar do estatuto de «trabalhador» na aceção do artigo 45.° TFUE.

39      Todavia, importa recordar que, segundo jurisprudência assente, o conceito de «trabalhador», na aceção do artigo 45.° TFUE, tem um significado autónomo no âmbito do direito da União, não podendo ser interpretado de forma restritiva (v., neste sentido, designadamente, acórdãos de 3 de julho de 1986, Lawrie‑Blum, 66/85, Colet., p. 2121, n.° 16; de 21 de junho de 1988, Brown, 197/86, Colet., p. 3205, n.° 21; de 26 de fevereiro de 1992, Bernini, C‑3/90, Colet., p. I‑1071, n.° 14; e de 6 de novembro de 2003, Ninno‑Orasche, C‑413/01, Colet., p. I‑13187, n.° 23).

40      Por outro lado, este conceito deve ser definido segundo critérios objetivos que caracterizem a relação de trabalho tendo em consideração os direitos e os deveres das pessoas em causa. A característica essencial da relação de trabalho é a circunstância de uma pessoa realizar, durante certo tempo, em benefício de outra e sob a sua direção, prestações em contrapartida das quais recebe uma remuneração (v. acórdãos, já referidos, Lawrie‑Blum, n.° 17; Ninni‑Orasche, n.° 24; e Vatsouras e Koupatantze, n.° 26).

41      O nível limitado desta remuneração, a origem dos recursos para a mesma, a produtividade mais ou menos elevada do interessado ou o facto de apenas cumprir um número reduzido de horas de trabalho por semana não excluem que uma pessoa seja reconhecida como «trabalhador» na aceção do artigo 45.° TFUE (v., neste sentido, acórdãos Lawrie‑Blum, já referido, n.° 21; de 31 de maio de 1989, Bettray, 344/87, Colet., p. 1621, n.° 15; e Bernini, já referido, n.° 16).

42      Contudo, para ser qualificado de «trabalhador», o interessado deve exercer uma atividade real e efetiva, que não seja de tal forma reduzida que se afigure como puramente marginal e acessória (v., designadamente, acórdãos de 23 de março de 1982, Levin, 53/81, Colet., p. 1035, n.° 17, e Vatsouras e Koupatantze, já referido, n.° 26 e jurisprudência referida).

43      Na análise desta questão, o órgão jurisdicional de reenvio deve basear‑se em critérios objetivos e avaliar na sua globalidade todas as circunstâncias do processo que têm a ver com a natureza tanto das atividades em causa como da relação de trabalho em causa (acórdão Ninni‑Orasche, já referido, n.° 27).

44      A análise da totalidade dos elementos que caracterizam uma relação de trabalho para efeitos de apreciar se a atividade assalariada exercida por N. antes e depois do início dos seus estudos tinha um caráter real e efetivo e se, por isso, detinha a qualidade de trabalhador é, pois, da competência do órgão jurisdicional de reenvio. Com efeito, este é o único que tem um conhecimento direto dos factos no processo principal e dos elementos que caracterizam as relações de trabalho do recorrente no processo principal e, por isso, está mais bem colocado para proceder às verificações necessárias.

45      Não contendo a decisão de reenvio nenhuma indicação suscetível de suscitar dúvidas quanto ao facto de as relações laborais entre N. e os seus empregadores apresentarem as características da relação de trabalho enunciadas no n.° 40 do presente acórdão, incumbe, nomeadamente, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se as atividades assalariadas do recorrente no processo principal não são tão reduzidas ao ponto de poderem ser equiparadas a atividades puramente marginais e acessórias.

46      No que respeita ao argumento dos Governos dinamarquês e norueguês segundo o qual a intenção do recorrente no processo principal, quando entrou em território dinamarquês, de aí prosseguir os seus estudos o priva da qualidade de «trabalhador» na aceção do artigo 45.° TFUE, basta recordar que, para avaliar se um emprego é suscetível de conferir o estatuto de trabalhador na aceção desta disposição, os elementos relativos ao comportamento do interessado antes e após o período de emprego não são pertinentes para atribuir a qualidade de trabalhador na aceção da referida disposição. Com efeito, tais elementos não têm nenhuma relação com os critérios objetivos enunciados pela jurisprudência recordada no n.° 40 do presente acórdão (acórdão Ninni‑Orasche, já referido, n.° 28).

47      Importa, a este respeito, sublinhar que a definição do conceito de «trabalhador» na aceção do artigo 45.° TFUE exprime a exigência, inerente ao próprio princípio da livre circulação de trabalhadores, de que as vantagens que o direito da União confere ao abrigo dessa liberdade apenas podem ser invocadas por pessoas que exerçam verdadeiramente ou desejem seriamente exercer uma atividade assalariada. No entanto, não implica que o gozo dessa liberdade possa estar sujeito às intenções que possam ter levado o nacional de um Estado‑Membro a solicitar a entrada e a permanência no território do Estado‑Membro de acolhimento, desde que o mesmo exerça ou deseje exercer uma atividade real e efetiva. Uma vez preenchida esta condição, as intenções que possam ter levado o trabalhador a procurar trabalho no Estado‑Membro em causa são irrelevantes e não devem ser tomadas em consideração (v., neste sentido, acórdãos Levin, já referido, n.os 21 e 22, e de 23 de setembro de 2003, Akrich, C‑109/01, Colet., p. I‑9607, n.° 55).

48      No caso de o órgão jurisdicional de reenvio decidir que N. deve ser considerado «trabalhador» na aceção do artigo 45.° TFUE, há que constatar que a recusa a este cidadão da União de uma ajuda de subsistência para estudo viola o direito à igualdade de tratamento de que este cidadão, na sua qualidade de trabalhador, é beneficiário.

49      Com efeito, um cidadão da União que tenha feito uso da livre circulação de trabalhadores assegurada pelo artigo 45.° TFUE beneficia no Estado‑Membro de acolhimento, em conformidade com o artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1612/68, das mesmas vantagens sociais que os trabalhadores nacionais.

50      Ora, o Tribunal de Justiça já declarou que um auxílio para subsistência e formação constitui uma vantagem social, na aceção do n.° 2 do artigo 7.° do Regulamento n.° 1612/68 (v. acórdãos de 21 de junho de 1988, Lair, 39/86, Colet., p. 3161, n.os 23 e 24, e Bernini, já referido, n.° 23).

51      Tendo em conta o exposto, importa responder à questão submetida que os artigos 7.°, n.° 1, alínea c), e 24.°, n.° 2, da Diretiva 2004/38 devem ser interpretados no sentido de que a um cidadão da União que prossiga estudos num Estado‑Membro de acolhimento e aí exerça paralelamente uma atividade assalariada real e efetiva suscetível de lhe conferir a qualidade de «trabalhador» na aceção do artigo 45.° TFUE não podem ser recusadas as ajudas de subsistência para estudo concedidas aos cidadãos desse Estado‑Membro. Incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio proceder às verificações de facto necessárias para apreciar se as atividades assalariadas do recorrente no processo principal são suficientes para lhe conferir esta qualidade. A circunstância de o interessado ter entrado no território do Estado‑Membro de acolhimento com a intenção principal de aí prosseguir os seus estudos não é pertinente para determinar se detém a qualidade de «trabalhador» na aceção do artigo 45.° TFUE e, portanto, se tem direito a essas ajudas nas mesmas condições de um cidadão do Estado‑Membro de acolhimento em conformidade com o artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1612/68. 

 Quanto às despesas

52      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

Os artigos 7.°, n.° 1, alínea c), e 24.°, n.° 2, da Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.° 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE, devem ser interpretados no sentido de que a um cidadão da União que prossiga estudos num Estado‑Membro de acolhimento e aí exerça paralelamente uma atividade assalariada real e efetiva suscetível de lhe conferir a qualidade de «trabalhador» na aceção do artigo 45.° TFUE não podem ser recusadas as ajudas de subsistência para estudo concedidas aos cidadãos desse Estado‑Membro. Incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio proceder às verificações de facto necessárias para apreciar se as atividades assalariadas do recorrente no processo principal são suficientes para lhe conferir esta qualidade. A circunstância de o interessado ter entrado no território do Estado‑Membro de acolhimento com a intenção principal de aí prosseguir os seus estudos não é pertinente para determinar se detém a qualidade de «trabalhador» na aceção do artigo 45.° TFUE e, portanto, se tem direito a essas ajudas nas mesmas condições de um cidadão do Estado‑Membro de acolhimento em conformidade com o artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento (CEE) n.° 1612/68 do Conselho, de 15 de outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade.

Assinaturas


* Língua do processo: dinamarquês.