Language of document : ECLI:EU:C:2018:290

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MICHAL BOBEK

apresentadas em 26 de abril de 2018(1)

Processo C80/17

Fundo de Garantia Automóvel

contra

Alina Antónia Destapado Pão Mole Juliana

Cristiana Micaela Caetano Juliana

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Supremo Tribunal de Justiça (Portugal)]

«Pedido de decisão prejudicial — Seguro de responsabilidade civil automóvel — Obrigação de contratar seguro — Âmbito — Conceito de “circulação de veículo”»






I.      Introdução

1.        Devido a problemas de saúde, A. Juliana deixou de conduzir o seu automóvel e recolheu‑o no seu quintal. Não celebrou nenhum contrato de seguro de responsabilidade civil. O seu filho, sem a sua autorização, pegou nas chaves do automóvel e conduziu‑o para fora do quintal. Quando se encontrava na via pública, perdeu o controlo do veículo. Em consequência do acidente, morreram ele e dois passageiros.

2.        O organismo de indemnização nacional competente, o Fundo de Garantia Automóvel (a seguir «Fundo»), pagou uma indemnização. O Fundo procurou depois obter o reembolso dessa quantia por parte de A. Juliana, proprietária do automóvel. Em sua defesa, A. Juliana alega que não estava obrigada a segurar o veículo porque, apesar de ser a respetiva proprietária, retirara‑o de circulação e não pretendia conduzi‑lo. O Fundo alega que existia a obrigação de segurar porque o veículo estava apto a circular.

3.        No quadro deste litígio, e à luz da Diretiva 72/166 (2) e da Diretiva 84/5 (3) (a seguir, respetivamente, «Primeira Diretiva» e «Segunda Diretiva»), relativas aos veículos automóveis, o Supremo Tribunal de Justiça pretende saber, em primeiro lugar, se, em tais circunstâncias, o proprietário de um veículo é obrigado a segurá‑lo. Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o Fundo tem um direito de sub‑rogação contra o proprietário do veículo, ainda que o proprietário não seja responsável pelo acidente.

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

1.      Diretiva 72/166

4.        Os artigos 1.o e 3.o da Primeira Diretiva dispõem o seguinte:

«Artigo 1.o

Para efeitos do disposto na presente diretiva entende‑se por:

1.      Veículo: qualquer veículo automóvel destinado a circular sobre o solo, que possa ser acionado por uma força mecânica, sem estar ligado a uma via férrea, bem como os reboques, ainda que não atrelados;

[…]

4.      Território onde o veículo tem o seu estacionamento habitual:

–        território do Estado da chapa de matrícula do veículo, independentemente de esta ser definitiva ou temporária,

–        no caso de não existir matrícula para um determinado tipo de veículo que, no entanto, possua uma chapa de seguro ou um sinal distintivo idêntico à da chapa de matrícula, o território onde essa chapa ou sinal distintivo foi emitido,

–        no caso de não existir matrícula nem chapa de seguro ou sinal distintivo para certos tipos de veículos, o território do Estado do domicílio do possuidor,

–        no caso de veículos sem chapa de matrícula ou com uma chapa de matrícula que não corresponde ou deixou de corresponder ao veículo e que tenham estado envolvidos em acidentes, o território do Estado‑Membro em que o acidente ocorreu, para efeitos da regularização do sinistro, nos termos do primeiro travessão do n.o 2 do artigo 2.o da presente diretiva ou do n.o 4 do artigo 1.o da [Segunda Diretiva];

[…]

Artigo 3.o

1.      Cada Estado‑Membro, sem prejuízo da aplicação do artigo 4.o, adota todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro. Essas medidas devem determinar o âmbito da cobertura e as modalidades de seguro.

2.      Cada Estado‑Membro adota todas as medidas adequadas para que o contrato de seguro abranja igualmente:

–        os prejuízos causados no território de um outro Estado‑Membro, de acordo com a respetiva legislação nacional em vigor;

–        os prejuízos de que podem ser vítimas os nacionais dos Estados‑Membros, durante o trajeto que ligue diretamente dois territórios onde o Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia é aplicável, quando não exista, no território percorrido, Serviço Nacional de Seguros; neste caso os prejuízos são ressarcidos de acordo com a legislação nacional do seguro obrigatório em vigor no Estado‑Membro, no território do qual o veículo tem o seu estacionamento habitual.»

2.      Diretiva 84/5

5.        Os artigos 1.o e 2.o da Segunda Diretiva dispõem o seguinte:

«Artigo 1.o

1. O seguro referido no n.o 1 do artigo 3.o da Diretiva 72/166/CEE deve, obrigatoriamente, cobrir danos materiais e pessoais.

[…]

4. Cada Estado‑Membro deve criar ou autorizar a criação de um organismo que tenha por função reparar, pelo menos dentro dos limites da obrigação de seguro, os danos materiais ou corporais causados por veículos não identificados ou relativamente aos quais não tenha sido satisfeita a obrigação de seguro referida no n.o 1.

O primeiro parágrafo não prejudica o direito que assiste aos Estados‑Membros de atribuírem ou não à intervenção desse organismo um caráter subsidiário, nem o direito de regulamentarem os direitos de regresso entre este organismo e o responsável ou responsáveis pelo sinistro e outras seguradoras ou organismos de segurança social obrigados a indemnizar a vítima pelo mesmo sinistro. Todavia, os Estados‑Membros não permitirão que o organismo em questão subordine o pagamento da indemnização à condição de a vítima provar, seja por que meio for, que a pessoa responsável não pode ou não quer pagar.

[…]

Artigo 2.o

1. Cada Estado‑Membro tomará as medidas adequadas para que qualquer disposição legal ou cláusula contratual contida numa apólice de seguro, emitida em conformidade com o n.o 1 do artigo 3.o da Diretiva 72/166/CEE, que exclua do seguro a utilização ou a condução de veículos por

–        pessoas que não estejam expressa ou implicitamente autorizadas para o fazer; ou

–        pessoas que não sejam titulares de uma carta de condução que lhes permita conduzir o veículo em causa; ou

–        pessoas que não cumpram as obrigações legais de caráter técnico relativamente ao estado e condições de segurança do veículo em causa,

seja, por aplicação do n.o 1 do artigo 3.o da Diretiva 72/166/CEE, considerada sem efeito no que se refere ao recurso de terceiros vítimas de um sinistro.

Todavia, a disposição ou a cláusula a que se refere o primeiro travessão do n.o 1 pode ser oponível às pessoas que, por sua livre vontade se encontrassem no veículo causador do sinistro, sempre que a seguradora possa provar que elas tinham conhecimento de que o veículo tinha sido roubado.

Os Estados‑Membros têm a faculdade — relativamente aos sinistros ocorridos no seu território — de não aplicar o disposto no n.o 1 no caso de, e na medida em que, a vítima possa obter a indemnização pelo seu prejuízo através de um organismo de segurança social.

2. No caso de veículos roubados ou obtidos por meios violentos, os Estados‑Membros podem estabelecer que o organismo previsto no n.o 4 do artigo 1.o intervirá em substituição da seguradora nas condições estabelecidas no n.o 1 do presente artigo; se o veículo tiver o seu estacionamento habitual num outro Estado‑Membro, este organismo não terá possibilidade de recurso contra qualquer organismo desse Estado‑Membro.

Os Estados‑Membros que, no caso de veículos roubados ou obtidos por meios violentos, prevejam a intervenção do organismo referido no n.o 4 do artigo 1.o podem fixar uma franquia para os danos materiais oponível à vítima não superior a 250 ECUs.»

B.      Legislação nacional

1.      DecretoLei n.o 522/85

6.        De acordo com o pedido de decisão prejudicial, à data do acidente, estava em vigor em Portugal o Decreto‑Lei n.o 522/85, do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, de 31 de dezembro (a seguir «Decreto‑Lei n.o 522/85»). O Decreto‑Lei n.o 522/85 dispõe:

Artigo 1.o, n.o 1: «Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor […] deve, para que esses veículos possam circular, encontrar‑se […] coberta por um seguro que garanta essa mesma responsabilidade».

Artigo 2.o: «A obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, excetuando‑se os casos de […]».

7.        O artigo 8.o, n.os 1 e 2, do Decreto‑Lei n.o 522/85 dispõe que «[o] contrato garante a responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar previstos no artigo 2.o e dos legítimos detentores e condutores do veículo» e cobre igualmente «a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de furto, roubo, furto de uso do veículo ou de acidentes de viação dolosamente provocados […]».

8.        Nos termos do artigo 21.o, compete ao Fundo «satisfazer, nos termos do presente capítulo, as indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal […]».

9.        Por último, o artigo 25.o, n.os 1 e 3, dispõe que, «[s]atisfeita a indemnização, o [Fundo] fica sub‑rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a liquidação e cobrança», e que «[as] pessoas que, estando sujeitas à obrigação de segurar, não tenham efetuado seguro poderão ser demandadas pelo [Fundo], nos termos do n.o 1, beneficiando do direito de regresso contra outros responsáveis pelo acidente, se os houver, relativamente às quantias que tiverem pago».

2.      Código Civil

10.      O artigo 503.o, n.o 1, do Código Civil português dispõe:

«Aquele que tiver a direção efetiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.»

III. Factos, litígio no processo principal e questões prejudiciais

11.      Devido a problemas de saúde, A. Juliana deixou de conduzir o seu automóvel e recolheu‑o no seu quintal. Não celebrou nenhum contrato de seguro de responsabilidade civil.

12.      Em 18 ou 19 de novembro de 2006, o seu filho, sem autorização ou conhecimento desta, retirou as chaves do veículo de uma gaveta do quarto da mãe e conduziu‑o para fora do quintal.

13.      Em 19 de novembro de 2006, o filho de A. Juliana perdeu o controlo do automóvel quando o conduzia na via pública. O acidente teve como consequência a sua morte e de dois passageiros.

14.      O Fundo indemnizou as famílias dos passageiros falecidos em consequência do acidente. Na qualidade de credor com direito de sub‑rogação, o Fundo veio a juízo pedir a condenação de A. Juliana, enquanto proprietária do automóvel (a seguir «primeira demandada»), e de Cristiana Juliana, filha e sucessora do condutor falecido (a seguir «segunda demandada»), no pagamento da quantia que pagara a título de indemnização, acrescida de juros.

15.      O tribunal de primeira instância julgou parcialmente procedente o pedido do Fundo, considerando que o facto de a proprietária do veículo não pretender conduzi‑lo e não ser responsável pelo acidente ocorrido não afastava a obrigação de celebrar um contrato de seguro. Concluiu que o contrato de seguro se destina a acautelar o pagamento de indemnizações aos lesados, mesmo em caso de furto do veículo.

16.      A primeira demandada, A. Juliana, interpôs recurso para o Tribunal da Relação (Portugal). Esse órgão jurisdicional considerou que aquela não estava obrigada a segurar o automóvel e não era responsável pelo acidente. Por consequência, revogou a sentença proferida em primeira instância e absolveu A. Juliana do pedido.

17.      O Fundo interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), que decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 3.o da [Primeira Diretiva] (em vigor na data do acidente)[…] ser interpretado no sentido de que a obrigação de contratar um seguro de responsabilidade civil automóvel abarca mesmo as situações em que o veículo, por opção do proprietário, se encontra imobilizado num quintal particular, fora da via pública?

ou,

Independentemente da responsabilidade que venha a ser assumida pelo Fundo de Garantia Automóvel perante os terceiros lesados, designadamente em casos de furto de uso do veículo, naquelas circunstâncias não recai sobre o proprietário do veículo a obrigação de segurar?

2)      Deve o artigo 1.o, n.o 4, da [Segunda Diretiva] (em vigor na data do acidente) ser interpretado no sentido de que o Fundo de Garantia Automóvel que, por falta de contrato de seguro de responsabilidade civil, efetuou o pagamento da indemnização aos terceiros lesados por acidente de viação causado por veículo automóvel que, sem conhecimento e autorização do proprietário, foi retirado do terreno particular onde se encontrava imobilizado, tem o direito de sub‑rogação contra o proprietário do veículo, independentemente da responsabilidade deste pelo acidente?

ou,

A sub‑rogação do Fundo de Garantia Automóvel relativamente ao proprietário depende da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, designadamente do facto de, na ocasião em que ocorreu o acidente, o proprietário ter a direção efetiva do veículo?»

18.      Foram apresentadas observações escritas pelos Governos da Irlanda, italiano, letão, português, espanhol e do Reino Unido, bem como pela Comissão. Com exceção do Governo italiano, os interessados apresentaram igualmente alegações na audiência realizada em 30 de janeiro de 2018.

IV.    Apreciação

A.      Considerações preliminares

1.      Responsabilidade pelo acidente e obrigação de segurar

19.      Na abordagem das questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, é importante ter em mente a diferença entre i) responsabilidade pelo acidente e ii) obrigação de seguro.

20.      Na audiência, o Governo português confirmou que C. Juliana, segunda demandada, é parte no processo na qualidade de sucessora do condutor falecido, que esteve diretamente envolvido no acidente. Por conseguinte, a responsabilidade da segunda demandada depende de o seu pai ser ou não responsável pelo acidente [opção i)].

21.      Em contrapartida, A. Juliana, primeira demandada, é parte no processo na qualidade de proprietária do veículo, com base num alegado incumprimento da sua obrigação de segurar o veículo [opção ii)]. Por conseguinte, se concluirmos que A. Juliana não tinha obrigação de segurar, não pode ser considerada responsável e a pretensão contra ela deduzida é improcedente.

22.      Por essa razão, é necessário abordar pormenorizadamente a primeira questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio, relativa ao âmbito da obrigação de segurar, especificamente em relação a A. Juliana. Tal implica, por seu turno, que se tome em consideração o âmbito do conceito de «circulação de veículos» nos termos do artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva e o início e o termo da obrigação de segurar (B).

23.      Se A. Juliana tinha efetivamente a obrigação de segurar, tal suscita uma segunda questão, qual seja a de saber se, à luz do direito da União, pode ser considerada responsável, dado que não esteve realmente envolvida no acidente. Este aspeto é tratado no contexto da segunda questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio (C).

2.      Sobre quem recai a obrigação de segurar?

24.      Para ser claro, as presentes conclusões apenas apreciarão a questão da existência de uma obrigação de segurar o automóvel quando estava estacionado no quintal, mas não da pessoa a quem essa obrigação é imposta. Quando me refiro, por exemplo nos números anteriores, à eventual obrigação de A. Juliana de segurar o seu veículo, tal deve‑se ao facto de, no pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio afirmar que, se existia uma obrigação de segurar o automóvel estacionado, essa obrigação recaía, à luz do direito nacional, sobre A. Juliana enquanto proprietária, podendo implicar a responsabilidade extracontratual desta.

25.      Na verdade, a Primeira Diretiva não especifica a quem essa obrigação deve ser imposta pelos Estados‑Membros. É uma matéria que cabe ao direito nacional. Esta interpretação não foi posta em causa por nenhuma das partes no presente processo.

26.      É verdade que o Tribunal de Justiça, no Acórdão Csonka e o., referiu a obrigação de «todos os proprietários ou detentores de um veículo» celebrarem um contrato de seguro (4). Contudo, não considero que o Tribunal de Justiça, ao utilizar essa linguagem bastante aberta, tenha pretendido confirmar que a Primeira Diretiva impunha a obrigação a qualquer indivíduo concreto. Na minha opinião, tal resulta claro do contexto do reenvio prejudicial nesse processo, que não se centrava, de forma nenhuma, na identidade da pessoa a quem a obrigação é imposta.

27.      Em vez de procurar garantir que uma pessoa concreta seja responsável, o artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva visa garantir que todos os veículos em circulação estejam segurados, de modo a que, se ocorrer um sinistro, a vítima possa acionar sem dificuldades uma entidade (solvente (5)) para obter uma indemnização (6).

B.      Primeira questão

28.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional nacional pretende essencialmente saber se, por força do artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva, existe a obrigação de celebrar um contrato de seguro automóvel relativamente a um veículo, mesmo que o proprietário tenha retirado o veículo da via pública e não o conduza nem tenha intenção de fazê‑lo. O órgão jurisdicional de reenvio pretende igualmente saber se o facto de o Fundo ser responsável por indemnizar vítimas é relevante para as obrigações do proprietário a esse respeito.

29.      Na minha opinião, em situações como a do presente caso, existe a obrigação de segurar.

30.      Na abordagem da primeira questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio, começarei por fazer algumas observações sobre a relação entre a obrigação de segurar nos termos do artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva e a intervenção do organismo de indemnização prevista no artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva (1). Em seguida, recordarei a principal jurisprudência relativa ao conceito‑chave de «circulação de veículo» (2). Depois, debruçar‑me‑ei sobre a questão de saber se a «circulação de veículos» e a obrigação de segurar devem ser definidas ex ante ou ex post (3), analisarei mais pormenorizadamente o conceito de «circulação de veículos» (4) e o início e o termo da obrigação de segurar (5). Por último, analisarei a aplicação dessas conclusões ao presente caso (6).

1.      Relação entre a obrigação de segurar e o organismo de indemnização

31.      O artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva estabelece a obrigação geral de os Estados‑Membros garantirem que os veículos estejam segurados. O artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva exige que o organismo de indemnização intervenha quando a obrigação de seguro não tenha sido cumprida.

32.      A este respeito, observo o seguinte.

33.      Em primeiro lugar, nos termos da Segunda Diretiva, o organismo de indemnização não é uma espécie de «sistema de garantia de seguro de responsabilidade civil relativa à circulação de veículos, mas [visa] produzir efeitos apenas em circunstâncias específicas e claramente identificadas». É acionado como «medida de último recurso» para remediar situações em que os prejuízos sejam causados por um veículo não segurado devido a «uma falha no sistema [de seguro] que o Estado‑Membro devia ter implementado (7)».

34.      Em segundo lugar, se uma situação não estiver abrangida pelo âmbito da obrigação de segurar tal como definida nos termos do artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva, não será exigido ao organismo de indemnização que forneça uma rede de segurança nos termos do artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva. Por outras palavras, o âmbito de intervenção potencial do organismo de indemnização coincide com a obrigação de segurar (8). Os Estados‑Membros podem, em princípio, «fazer acrescentos» quando transpõem a Segunda Diretiva e prever que o organismo de indemnização intervenha igualmente noutras situações. Contudo, não estão, naturalmente, obrigados a fazê‑lo à luz do direito da União.

35.      Decorre dos números anteriores que a Primeira Diretiva e a Segunda Diretiva estabelecem uma distinção entre, por um lado, a grande maioria das situações em que o custo do risco associado à «circulação de veículos» é suportado por um «indivíduo», através da contratação de seguro, e, por outro, as situações marginais/residuais em que o custo do risco é suportado pela sociedade em geral (9), ou seja, através da intervenção do organismo de indemnização. Contudo, na medida em que não exista qualquer obrigação de seguro, a consequência principal é que o risco pode acabar por ser suportado pela vítima do acidente, em especial nas situações em que, devido à gravidade das consequências do acidente, o montante da indemnização seja considerável ou em que a vítima não consiga obter uma indemnização adequada devido à insolvência da pessoa responsável pelo sinistro.

36.      Resulta do exposto que, na prática, as duas disposições estão indissociavelmente ligadas e devem ser lidas em conjunto: quanto mais restrita for a interpretação do âmbito da obrigação de segurar nos termos do artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva, menor é a rede de segurança disponibilizada à vítima pelo organismo de indemnização nos termos do artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva (10).

37.      Nas secções que se seguem, analisarei mais pormenorizadamente o âmbito da obrigação de segurar, começando com uma panorâmica da jurisprudência existente no que respeita ao conceito‑chave de «circulação de veículos».

2.      «Circulação de veículos»: Acórdãos Vnuk, Rodrigues de Andrade e Núñez Torreiro

38.      Os Acórdãos Vnuk (11), Rodrigues de Andrade (12) e Núñez Torreiro (13)são os acórdãos mais relevantes para o conceito de «circulação de veículos». Em seguida, analisarei cada um deles e sintetizarei a definição desse conceito que resulta desses acórdãos.

a)      Acórdão Vnuk

39.      No Acórdão Vnuk (14), o Tribunal de Justiça apreciou se a manobra de um trator no terreiro de uma quinta para colocar o respetivo reboque num celeiro estava abrangida pelo conceito de «circulação de veículos» na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva.

40.      Atendendo às diferenças significativas entre as versões linguísticas no que respeita à expressão «circulação de veículos», o Tribunal de Justiça teve em conta a sistemática geral e a finalidade da regulamentação da União em matéria de seguro obrigatório. Referiu o «duplo objetivo» de proteção das vítimas de acidentes e de liberalização da circulação das pessoas (15). O Tribunal de Justiça discorreu ainda sobre a proteção das vítimas, um objetivo que foi «constantemente prosseguido e reforçado» (16). Em especial, sustentou que, atendendo a esse objetivo, «não se pode considerar que o legislador da União tenha pretendido excluir da proteção conferida por estas diretivas as pessoas lesadas por um acidente causado por um veículo quando da sua utilização, desde que esta tenha sido efetuada em conformidade com a função habitual desse mesmo veículo» (17).

41.      Por conseguinte, o Tribunal de Justiça considerou que a manobra em causa estava efetivamente abrangida pelo conceito de «circulação de veículos».

b)      Acórdão Rodrigues de Andrade

42.      No processo que deu origem ao Acórdão Rodrigues de Andrade (18), um trator imobilizado com o motor em funcionamento para acionar uma bomba utilizada para pulverizar herbicida numa vinha tombou dos bardos e capotou devido a um deslizamento de terras, matando uma trabalhadora agrícola. O órgão jurisdicional nacional pretendia saber se tal situação estava abrangida pelo conceito de «circulação de veículos» nos termos do artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva.

43.      O Tribunal de Justiça começou por recordar as conclusões a que chegou no Acórdão Vnuk (19). Em seguida, observou que o trator tinha uma dupla função: uma «utilização habitual como meio de transporte» e, «em certas circunstâncias, como máquina[…] de trabalho». O Tribunal de Justiça sustentou que, em tal caso, «importa determinar se, quando ocorreu o acidente[,] […] esse veículo estava a ser usado principalmente como meio de transporte, caso em que esta utilização é suscetível de estar abrangida pelo conceito de “circulação de veículos”[,] […] ou como máquina de trabalho, caso em que a utilização em causa não é suscetível de estar abrangida por este mesmo conceito» (20).

44.      Uma vez que, nesse caso concreto, quando ocorreu o acidente, o trator estava a ser utilizado principalmente como máquina de trabalho, as circunstâncias do caso não estavam abrangidas pelo conceito de «circulação de veículo».

c)      Acórdão Núñez Torreiro

45.      N. Torreiro participava em exercícios militares noturnos quando o veículo militar todo‑o‑terreno de rodas do tipo «Aníbal», no qual viajava como passageiro, capotou. O veículo circulava, não na via pública nem mesmo numa zona para veículos de rodas, mas numa zona reservada a exercícios militares para veículos de lagartas (21).

46.      O Tribunal de Justiça considerou que tal situação estava abrangida pelo conceito de «circulação de veículos». Repetiu, no essencial, as conclusões a que chegou nos Acórdãos Vnuk (22) e Rodrigues de Andrade (23) e, em seguida, afirmou que o facto de o veículo estar a ser utilizado num exercício militar numa zona que não era apta para a circulação de veículos de rodas não era suscetível de afetar essa conclusão.

d)      Resumo provisório

47.      Com base nos casos acima referidos, a definição funcional básica de «circulação de veículos» é, à primeira vista, bastante ampla, abrangendo utilizações conformes com a utilização habitual (como meio de transporte) (Acórdão Vnuk), independentemente do local concreto dessa utilização (Acórdão Núñez Torreiro), mas excluindo os casos em que a utilização principal no momento do acidente não seja como meio de transporte (Acórdão Rodrigues de Andrade).

48.      Na secção que se segue analisarei a relação entre a «circulação de veículos» e a obrigação de segurar e o momento em que cada uma delas pode e deve ser identificável.

3.      «Circulação de veículos» e obrigação de segurar: ex ante ou ex post?

49.      Nos termos do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 72/166, a obrigação de segurar abarca a «responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos».

50.      Nos AcórdãosVnuk, Rodrigues de Andrade e Núñez Torreiro, a definição de «circulação de veículos» centrava‑se na atividade em que o veículo estava envolvido ou no modo como estava a ser utilizado «quando ocorreu o acidente»: a fazer marcha‑atrás com um reboque; a ser utilizado como máquina; a ser conduzido em terreno (in)adequado (24).

51.      Daí pode inferir‑se que, quando já tenha ocorrido um sinistro, a existência de uma obrigação de segurar deve ser apreciada com referência às circunstâncias específicas do sinistro. Por outras palavras, a questão de saber se existia a obrigação de segurar é apreciada após a ocorrência (ex post facto).

52.      Por conseguinte, no presente caso, isso significa que, uma vez que o acidente ocorreu quando o veículo era conduzido numa via pública (portanto, o que se afigura como a utilização habitual do veículo), existia seguramente uma obrigação de segurar o veículo nesse momento. Contudo, tal não responde à questão de saber se existia uma obrigação de segurar quando o veículo estava estacionado no quintal de A. Juliana. Este é o cerne da primeira questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio, tal como a entendo, e a chave da questão de saber se A. Juliana pode ser considerada responsável no presente processo.

53.      Além disso, embora concorde que, no presente processo, existia inegavelmente uma obrigação de segurar quando ocorreu o acidente, não considero que o trio de Acórdãos Vnuk, Rodrigues de Andradee Núñez Torreirodeva ser interpretado no sentido de quesignificam, em geral, que a obrigação de segurar deve ser apreciada ex post facto.

54.      O conceito de «circulação de veículos» e o âmbito da obrigação de segurar devem poder ser definidos ex ante. Tal deve‑se, obviamente, a razões de segurança jurídica. Os veículos não podem entrar e sair da obrigação geral de segurar consoante a atividade em que estão envolvidos ou o modo como são utilizados num determinado momento. A existência da obrigação não pode depender apenas da análise retrospetiva baseada nas circunstâncias do acidente.

55.      Nos Acórdãos Vnuk, Rodrigues de Andrade e Núñez Torreiro,o Tribunal de Justiça teve em conta a utilização dos veículos num determinado momento porque tal era necessário para que o órgão jurisdicional nacional determinasse a responsabilidade. Deve salientar‑se que, em todos esses casos, os veículos envolvidos nos acidentes estavam segurados (25). Sabemos que não estava em discussão o facto de existir uma obrigação geral de segurar os veículos. A questão relevante que os órgãos jurisdicionais nacionais tinham de apreciar nesses casos era antes a de saber se os acidentes estavam abrangidos pelo âmbito do contrato de seguro, do que resultaria que as seguradoras teriam de pagar, uma vez que todas as partes questionavam a sua responsabilidade com base no facto de os próprios acidentes não implicarem a «circulação de veículos» nas circunstâncias específicas em que ocorreram.

56.      Em contrapartida, no presente caso, a questão é bastante diferente, colocada a um nível mais elevado de abstração e generalidade: o tipo de utilização dado ao veículo neste caso implica geralmente a obrigação de segurar?

57.      Por exemplo, a condução de um automóvel quotidiana de e para o local de trabalho é claramente abrangida pelo conceito de «circulação de veículos». Existe a obrigação de celebrar um contrato de seguro de responsabilidade civil. Essa obrigação cessa tecnicamente quando o automóvel é estacionado numa garagem (privada) ao serão e se desliga o motor, e apenas volta a ser reativada na manhã seguinte, quando se roda a chave na ignição e o automóvel é conduzido novamente para a via pública?

58.      Considero que a resposta é claramente negativa. A atividade em que o veículo é utilizado ou o seu modo de utilização num determinado momento variam. Tal não pode ser o caso da obrigação geral de segurar, que deve ter um início e um termo claros no tempo e um determinado grau lógico de continuidade e previsibilidade.

59.      É concebível que, entre esses dois momentos, um veículo possa ser utilizado de um modo que não seja considerado «circulação» na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva. Foi, na verdade, o que aconteceu no processo que deu origem ao Acórdão Rodrigues de Andrade. Em geral, é provável que, nesse caso, o trator fosse utilizado de um modo que estava abrangido pelo conceito de «circulação de veículos» e que estivesse segurado. Contudo, no momento específico do acidente, estava a ser utilizado como máquina, o que não constituía «circulação de veículos». Todavia, a obrigação de segurar não ficou teoricamente suspensa durante esses minutos ou horas em que o trator estava a ser utilizado como máquina.

60.      Daqui decorre que, embora o conceito de circulação de veículos seja essencial para definir o âmbito da obrigação de segurar, os dois conceitos não são idênticos. Tendo essas distinções em mente, nas secções que se seguem, analisarei mais pormenorizadamente o conceito de «circulação de veículos» e o início e o termo da obrigação de segurar.

4.      Definição de «circulação de veículos»

61.      Uma vez que o conceito de «circulação de veículos» inclui o conceito de «veículo», do qual a Primeira Diretiva dá uma definição separada, começarei por analisar este conceito [a)] e, em seguida, analisarei o conceito de «circulação» (de veículos) nos seus diversos contextos [b)].

a)      Veículo

62.      A definição de «veículo» nos termos do artigo 1.o, n.o 1, da Primeira Diretiva está reservada a veículo automóvel «destinado a circular».

63.      Na minha opinião, é claro que o termo «destinado» neste contexto não pode referir‑se à intenção subjetiva e individual do proprietário ou de qualquer outra pessoa que tenha a direção efetiva do veículo. Nem se refere ao que estiver a ser feito com o veículo em qualquer momento específico.

64.      Pelo contrário, os termos «destinado a circular» constantes da definição de «veículo» devem logicamente referir‑se à finalidade objetiva do veículo. Este entendimento tem apoio noutras versões linguísticas da diretiva, que utilizam um vocabulário bastante neutro (26). Além disso, concordo com a Comissão quando afirma que tornar a definição de veículo dependente da intenção subjetiva do seu proprietário num determinado momento levaria a uma incerteza jurídica intolerável. Por último, essa interpretação é igualmente confirmada pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Vnuk, no qual sustentou que a definição de «veículo» é independente da utilização que se faça ou «possa fazer» do veículo em causa (27).

65.      Por conseguinte, e ao contrário da opinião veiculada, em especial, pela Irlanda nas suas observações escritas, o facto de o proprietário não estar a utilizar o veículo para circular num determinado momento (e não pretender fazê‑lo) não impede que este seja considerado um «veículo» na aceção da Primeira Diretiva, em relação ao qual pode existir uma obrigação de segurar. Pelo contrário, o conceito de «veículo» deve ser objetivo e «estável» (no sentido de se manter durante um período razoável).

b)      Circulação

66.      A de «circulação de veículos» na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva constitui um conceito autónomo do direito da União, que deve ser interpretado à luz do contexto dessa disposição e dos objetivos prosseguidos pelas normas das quais faz parte (28).

67.      Como foi anteriormente salientado pelo Tribunal de Justiça (29), a expressão «circulação de veículos» é traduzida de formas bastante diferentes nas várias versões linguísticas oficiais. Tal sublinha a necessidade de interpretar o conceito à luz do «duplo objetivo» da diretiva «de proteção das vítimas de acidentes causados por um veículo automóvel e da liberalização da circulação das pessoas e bens» (30). A este respeito, o Tribunal de Justiça realçou, além disso, a proteção cada vez maior facultada às vítimas de acidentes causados por veículos nos anos que se seguiram à adoção da Primeira Diretiva (31).

68.      Estas considerações levaram o Tribunal de Justiça a adotar, na sua jurisprudência, uma interpretação ampla do conceito de «circulação de veículo», que «abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual desse veículo» (32).

69.      A este propósito, acrescento as seguintes observações relativamente ao âmbito territorial e material dessa definição.

i)      Âmbito territorial da «circulação de veículos»

70.      O conceito de «circulação de veículos» não se restringe à circulação num determinado local ou num determinado terreno ou território. «[N]ão está limitado às situações de circulação rodoviária, ou seja, à circulação na via pública» (33). Nas suas alegações escritas, a Irlanda e o Governo do Reino Unido defenderam um entendimento do conceito de «circulação de veículos» e da obrigação de seguro obrigatório que estabelece efetivamente uma distinção entre a circulação na via pública e a circulação em qualquer outro local.

71.      Embora tenham sido apresentados alguns fundamentos contextuais para essa distinção, estes são, na minha opinião, bastante limitados (34). Em contrapartida, existe um vasto suporte textual para uma interpretação ampla do âmbito territorial do conceito de «circulação de veículos» e da obrigação de seguro. A este respeito, o artigo 1.o da Primeira Diretiva dá uma definição básica de «[t]erritório onde o veículo tem o seu estacionamento habitual» como «território do Estado onde o veículo se encontra matriculado». A Primeira Diretiva refere‑se de forma genérica ao «território de [outro] Estado‑Membro» e a «qualquer veículo automóvel […] que circule no território da Comunidade». Não se faz qualquer distinção expressa i) entre terreno público e particular ou ii) entre áreas destinadas ou não à circulação de veículos automóveis, apesar de a(s) diretiva(s) tratarem de forma bastante extensa a questão do seu âmbito de aplicação territorial.

72.      Além disso, tal distinção excluiria potencialmente da obrigação de seguro nos termos do artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva muitas situações que envolvem veículos automóveis, claramente suscetíveis de dar origem a acidentes. Tal poderia comprometer seriamente um dos principais objetivos da Primeira Diretiva acima identificados, designadamente a proteção das vítimas de acidentes causados por veículos automóveis (35). A este respeito, pode muito bem acontecer que, tendo em conta as estruturas da propriedade fundiária e a legislação imobiliária em determinados Estados‑Membros, as pessoas utilizem amplamente veículos em terreno particular. Contudo, a possibilidade de esses veículos nunca serem conduzidos fora do terreno privado, na via pública, e a total ausência de terceiros a entrar nesse terreno, de modo a simplesmente não existir qualquer risco de acidente, afigura‑se um cenário bastante improvável e irrealista. Não justifica, na minha opinião, que se procure descortinar restrições ao conceito de «circulação de veículos» sem qualquer base textual sólida para tal, e vai contra a lógica e o objetivo do instrumento legislativo em questão.

73.      Por estas razões, em especial, não encontro motivo para rever as conclusões claras do Tribunal de Justiça na jurisprudência acima referida e para limitar o conceito de «circulação de veículos» à circulação em locais específicos.

ii)    Âmbito material da «circulação de veículos»

74.      Tal como acima referido, a «circulação de veículos» «abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual desse veículo» (36). Na minha opinião, a «função habitual» de um veículo é ser usado para «circular», por outras palavras, para se mover do ponto A para o ponto B (37), seja qual for a finalidade. Tal resulta já bastante claro da definição de «veículo» constante do artigo 1.o, n.o 1, da Primeira Diretiva.

75.      A este respeito, é verdade que o Tribunal de Justiça referiu, designadamente no Acórdão Rodrigues de Andrade, que a função habitual de um veículo é ser usado como «transporte». Contudo, não considero que, ao utilizar esse termo, o Tribunal de Justiça quisesse referir‑se a uma função específica de «transporte» diferente da de «circular», logicamente mais restrita (38). Pelo contrário, considero que o Tribunal de Justiça pretendeu distinguir a utilização como máquina da função habitual de um veículo. Na minha opinião, à luz do artigo 1.o, n.o 1, da Primeira Diretiva, uma definição mais correta da «função habitual» de um veículo é a de ser usado para «circular».

76.      Dito isto, se um veículo não estiver a circular, tal não significa que, qualquer que seja a sua utilização, geralmente não está abrangida pelo conceito de «circulação de veículos». A jurisprudência do Tribunal de Justiça refere, pelo contrário, que qualquer utilização de um veículo «em conformidade» com a função habitual desse veículo está abrangida pelo âmbito do conceito de «circulação de veículos». Tal inclui, em princípio, situações em que o veículo se encontre imobilizado durante algum tempo, independentemente das intenções do proprietário de voltar ou não a colocá‑lo em circulação.

77.      Partindo do exemplo acima referido (no n.o 57), em que um automóvel é estacionado durante a noite, sem que a proprietária tenha a intenção de o utilizar antes da manhã, essa situação de imobilização está plenamente em conformidade com a sua utilização habitual. Pode imaginar‑se que, na manhã seguinte, a proprietária decide repentinamente ir de táxi para o aeroporto em vez de conduzir o seu automóvel e passa uma semana a esquiar. Infelizmente, durante as férias, parte uma perna e tem de usar gesso durante um mês. Enquanto está incapacitada para conduzir, decide vender o seu automóvel e, de facto, nunca mais o utiliza.

78.      Assim, após ter conduzido o seu automóvel do emprego para casa na última noite antes de partir de férias, a proprietária, de facto, nunca mais voltou a conduzi‑lo. A «circulação do veículo» ou a obrigação de segurar cessaram em algum momento durante esses acontecimentos e, se assim foi, quando? Quando desligou o motor pela última vez? Quando saiu para férias? Quando partiu a perna e ficou objetivamente impossibilitada de conduzir? Quando decidiu vender o automóvel? Ou em qualquer outro momento?

79.      Na minha opinião, independentemente de todos esses (infelizes) acontecimentos, manteve‑se a obrigação de segurar o automóvel. É verdade que, ex post facto, podem existir formas específicas de utilizar um veículo num determinado momento que se considere que não estão abrangidas pelo conceito de «circulação de veículos», pelo que não implicam responsabilidade pelos acidentes ocorridos. Isso é confirmado pelo Acórdão Rodrigues de Andrade (39).

80.      Contudo, a identificação de tais situações específicas de «não circulação» após o acontecimento (ex post facto) não põe em causa a obrigação geral e mais abrangente de segurar (ex ante). Antes considero que, de facto, o contrário é verdade: se um veículo se destina a circular sobre o solo e está efetivamente em condições de fazê‑lo, normalmente existe a obrigação geral de segurar esse veículo nos termos do artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva. Isso não significa que, durante o período coberto pela obrigação de seguro, não se verifiquem casos específicos em que, devido ao tipo concreto de utilização no momento em que o acidente ocorre, não existeresponsabilidade nos termos do contrato de seguro do veículo.

81.      Em todo o caso, deve ser possível determinar ex ante se existe, de facto, tal contexto de «circulação de veículos» que dê origem a uma obrigação de segurar, com um início e um termo clara e objetivamente identificáveis, mas que seja contínuo entre esses momentos. Nem o mero facto de o veículo se encontrar, na prática, imobilizado, nem a intenção do proprietário ou possuidor de se abster de conduzir o veículo (em particular, se não tiverem sido adotadas quaisquer formalidades para comunicar essa intenção às autoridades públicas e para retirar oficialmente o veículo de circulação) podem ser utilizados para determinar a existência de tal contexto e identificar clara e objetivamente esse início e esse termo.

82.      Em resumo, considero que a evidência prima facie para demonstrar a existência de um contexto de «circulação de veículos» a fim de determinar a existência de uma obrigação de segurar deve ser a de que o veículo se destina a circular sobre o solo e está efetivamente em condições de fazêlo. Mais adiante, voltarei à questão de saber como identificar corretamente, na prática, o início e o termo da obrigação de segurar. Contudo, antes de fazê‑lo, abordarei algumas das preocupações suscitadas em relação a uma alegada interpretação excessivamente ampla do conceito de «circulação de veículos» e da obrigação de segurar.

iii) Objeções a uma interpretação ampla do conceito de «circulação de veículos» e da obrigação de segurar

83.      Em primeiro lugar, a Irlanda alega, em especial, que uma interpretação lata do conceito de «circulação de veículos» e da obrigação de segurar levaria a resultados não pretendidos e inaceitáveis. Designadamente, seria injustificado impor a exigência de seguro obrigatório a um «grande número de pessoas» que «não estão a utilizar» os seus veículos (para efeitos de circulação na via pública), o que não prossegue nenhum dos objetivos da Primeira Diretiva.

84.      Discordo.

85.      As sugestões da Irlanda relativas à eventual distinção entre a condução de um veículo em terreno particular e na via pública já foram acima abordadas (40). Quanto a outros eventuais casos de interpretação indevidamente ampla da obrigação de segurar, suscetível de afetar um grande número de pessoas e de levar a resultados não pretendidos e inaceitáveis, os argumentos da Irlanda ficaram, de certo modo, por desenvolver.

86.      De qualquer modo, como o Tribunal de Justiça já afirmou, um dos dois objetivos das diretivas é a proteção das vítimas. A imposição de uma ampla exigência de seguro obrigatório contribui para essa finalidade. A alternativa é, pelo menos em caso de insolvência da pessoa responsável pelo acidente, as vítimas de acidentes causados por veículos sem seguro poderem ficar sem qualquer indemnização. Não encontro nada na Primeira Diretiva, ou em qualquer outro lado, que sustente a ideia de que o legislador pretendeu que o custo do risco fosse repartido desse modo por defeito. Pelo contrário, o artigo 4.o da Primeira Diretiva inclui derrogações expressas que permitem que o custo do risco seja imputado aos organismos de indemnização nos casos específicos identificados pelos Estados‑Membros (41).

87.      Acrescento que, pelo menos em certa medida, a interpretação mais restrita do conceito de «circulação de veículos» e da obrigação de segurar preconizada pela Irlanda e pelo Governo do Reino Unido parece basear‑se na ideia de que as circunstâncias factuais específicas de algumas situações implicam uma probabilidade de acidente significativamente reduzida. Por essa razão, a ilação que retiram é a de que, nessas situações, não existe necessidade de seguro obrigatório. A Irlanda refere‑se, por exemplo, a veículos guardados temporariamente numa estrutura de armazenamento em terreno particular ou expostos num revendedor.

88.      Admito que, em tais situações, o veículo não represente o mesmo risco que um veículo que seja conduzido na estrada diariamente. Contudo, a possibilidade de o automóvel ser conduzido, por exemplo, sendo deslocado no pátio do comerciante, significa que o risco, apesar de reduzido, existe. Não descortino como é possível, por interpretação judicial do conceito de «circulação», detetar nas diretivas relativas ao seguro automóvel algum tipo de limiar de risco (42) que leve à conclusão de que não existe obrigação de segurar. Na minha opinião, o setor económico do seguro automóvel ou, se e na medida do necessário, a legislação pública de regulação do mercado do seguro automóvel podem claramente lidar melhor e de forma mais adequada com tais distinções. Por exemplo, sabemos que, nalguns Estados‑Membros, a obrigação de seguro é extremamente ampla, mas, nos casos em que o veículo, na prática, não seja conduzido, os prémios de seguro são, consequentemente, muito baixos. As seguradoras podem igualmente cobrar prémios diferentes com base na quilometragem, ou usar outros meios que permitam uma diferenciação razoável nos prémios que adeque o âmbito e a extensão da «circulação» ao tipo de risco potencial envolvido.

89.      Em resumo, a um nível sistemático, o facto de o veículo poder estar geralmente imobilizado durante (longos) períodos e de, consequentemente, o risco poder ser mínimo é porventura um bom motivo para uma diferença nos prémios, mas não para excluir totalmente o dever de segurar. Tal é especialmente o caso, uma vez que, como foi acima referido, o facto de não existir uma obrigação de segurar significa, em princípio, que também não existirá qualquer rede de segurança para obter uma indemnização (43).

90.      Em segundo lugar, a Irlanda alega igualmente que uma leitura excessivamente ampla do conceito de «circulação de veículos» e da obrigação de segurar esvaziaria o termo «circulação» de qualquer significado e tornaria a obrigação dependente da mera propriedade.

91.      Considero que esta preocupação também não tem fundamento.

92.      Como ficou demonstrado no Acórdão Rodrigues de Andrade (44), o conceito de «circulação de veículos» tem efetivamente limites. Além disso, embora a obrigação de segurar não possa depender de circunstâncias transitórias ou subjetivas, tal não significa que dependa da mera propriedade. A obrigação está igualmente limitada no tempo — tem um início e um termo. Passo agora à identificação desses limites.

5.      Início e termo da obrigação de segurar

i)      Veículos matriculados e não matriculados

93.      No que respeita a «início e termo», a matrícula de um veículo num Estado‑Membro é, na minha opinião, um fator‑chave objetivo a ter em conta para determinar se existe um contexto geral de «circulação de um veículo» que dê origem a uma obrigação de segurar na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva.

94.      A este propósito, podem distinguir‑se dois cenários.

95.      Em primeiro lugar, o veículo está e permanece matriculado no Estado‑Membro. Enquanto o veículo estiver matriculado, e enquanto não tiverem sido adotadas quaisquer medidas oficiais para suspender ou cancelar essa matrícula, deve considerar‑se que existe um contexto geral de «circulação do veículo» na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva, que dá origem a uma obrigação de segurar. A matrícula de um veículo é inerente (e, na maioria dos casos, necessária) à utilização habitual deste para circular.

96.      Tal não significa automaticamente que, após a matrícula, qualquer coisa que, na prática, seja feita com o veículo constitui «circulação» para efeitos de determinar a responsabilidade em relação a um acontecimento específico ou o âmbito de um contrato de seguro. Embora a jurisprudência confirme que o conceito de circulação é extremamente amplo, este tem, de facto, limites (45).

97.      Em segundo lugar, existem situações em que o veículo não está matriculado num Estado‑Membro, porque ainda não foi matriculado, porque já não está matriculado ou porque a matrícula foi suspensa.

98.      O facto de a situação do veículo se enquadrar neste segundo cenário não significa necessariamente que o veículo deixe automaticamente de estar sujeito à obrigação de seguro prevista no artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva. Na verdade, a falta de matrícula não está necessariamente em desconformidade com a utilização habitual de um veículo para circular. Ou, dito de outra forma, os veículos podem ser adequados e efetivamente utilizados para circular sobre o solo sem estarem matriculados. Isso pode acontecer legalmente, nos termos e condições previstos na lei nacional, ou ilegalmente, quando devam estar mas não estejam matriculados nos termos das normas nacionais relevantes. Em qualquer destas situações, tais veículos podem potencialmente estar envolvidos em acidentes.

99.      Na Primeira Diretiva, nada indica que o legislador pretendeu que, em princípio, fosse o organismo de indemnização ou, ainda menos, as vítimas a suportar o risco em tais situações. De forma mais geral, na Primeira Diretiva, nada indica que o conceito de «circulação de veículos» está limitado à circulação de veículos matriculados. A sistemática global da Primeira Diretiva, em especial o artigo 1.o, n.o 4, primeiro e segundo travessões, e o artigo 3.o, n.o 1, implica antes uma obrigação de garantir que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos no território de um Estado‑Membro esteja igualmente coberta por um seguro nos casos em que estes não estejam matriculados.

100. Contudo, nalguns casos, pode verificar‑se um cancelamento (temporário) ou uma suspensão da matrícula que efetivamente exija que o veículo não seja usado na circulação sobre o solo, mesmo em distâncias curtas (por exemplo, tornando a circulação do veículo um ilícito penal). Sabemos que existe um sistema com essas características em determinados Estados‑Membros, por exemplo, durante os meses de inverno, nos casos de veículos que são conduzidos apenas durante os períodos de bom tempo. Considero que, nessas circunstâncias, a «circulação do veículo» está clara e objetivamente excluída na medida em que põe termo à obrigação ex ante de segurar (46).

101. Tal deixa em aberto a questão de saber se e em que outras condições um veículo que não esteja matriculado (ou em relação ao qual a matrícula tenha sido suspensa) pode eventualmente não estar abrangido pela obrigação de seguro.

ii)    Veículos não matriculados que não estão abrangidos pela obrigação de segurar

102. Sabemos que, no processo principal, o veículo envolvido no acidente estava matriculado. Na audiência, o Governo português confirmou que o veículo em questão tinha efetivamente chapas de matrícula e ainda estava sujeito ao pagamento de imposto de circulação. Por conseguinte, não abordarei este aspeto em grande pormenor.

103. Todavia, a questão de saber quando tem início e quando termina, em regra, a obrigação de segurar foi debatida exaustivamente na audiência. Grosso modo, foram referidos três tipos de situações: a) veículos novos que ainda não foram matriculados, mas que são claramente passíveis de ser conduzidos (por exemplo, veículos que são transportados das fábricas ou que estão estacionados nos pátios dos concessionários); b) outros veículos que já não estão matriculados ou cuja matrícula foi suspensa e que são passíveis de ser conduzidos, mas de facto não são (por exemplo, veículos expostos num museu) (47); c) veículos que não estão matriculados e foram, de alguma forma, «inutilizados» através, por exemplo, da remoção de peças (rodas, bateria, etc.)

104. No que respeita às situações referidas nas alíneas a) e b), existem, na minha opinião, várias boas razões para o Tribunal de Justiça, quando decide desses casos, não ver limitações elaboradas (e potencialmente bastante complexas) do conceito de «circulação de veículos» nos termos da Primeira Diretiva, por exemplo, com base no facto de não serem conduzidos frequentemente ou de ser improvável que venham a ser conduzidos.

105. Em primeiro lugar, tais limitações simplesmente não têm qualquer base textual clara na diretiva. Teriam, de facto, de ser inventadas pelo Tribunal de Justiça. Dificilmente seriam compatíveis com a jurisprudência anterior que adota uma definição ampla de «circulação de veículos» (48).

106. Em segundo lugar, na medida em que tais veículos sejam conduzidos (por exemplo, no pátio de um concessionário), podem potencialmente causar acidentes. Sem uma obrigação de segurar, a vítima corre o risco de não ter qualquer «rede de segurança» sob a forma de indemnização (49). Além disso, no cenário da alínea b), tal abordagem tornaria, mais uma vez, a obrigação de seguro dependente de circunstâncias factuais específicas e de intenções individuais, em detrimento da segurança jurídica (50).

107. Em terceiro lugar, e talvez mais importante, existe uma base jurídica clara na Primeira Diretiva — o artigo 4.o — para derrogações à obrigação de segurar relativamente a certas pessoas e/ou a certos veículos (ou a certos veículos que tenham uma chapa especial) (51). Se essas derrogações forem utilizadas, a mesma disposição prevê também expressamente que os Estados‑Membros devem prever uma rede de segurança para potenciais vítimas, assegurando que seja paga uma indemnização por perdas ou danos provocados por tais tipos de veículos expressamente excluídos.

108. Nestas circunstâncias, não parece haver grande justificação para que se efetue uma interpretação judicial complexa (ou mesmo complicada) do conceito de «circulação de veículos», e assim eventualmente se expor as vítimas ao risco de não serem (integralmente) indemnizadas, para remediar circunstâncias especiais que podem ser perfeitamente resolvidas utilizando as derrogações previstas no artigo 4.o Metaforicamente, se uma das finalidades declaradas é prever uma rede de segurança, quanto a mim, faz todo o sentido em termos regulatórios que se lance uma rede forte e grossa e, em seguida, se for necessário, se liberte (isente) o peixe não pretendido, em vez de lançar uma rede cheia de buracos e ficar a pensar como é que alguns peixes conseguiram fugir.

109. No que respeita à situação referida na alínea c), na prática, há inúmeras formas de «inutilizar» um veículo, desde retirar as chaves até retirar a bateria, as rodas, etc. A dada altura desse processo, pode mesmo dizer‑se que deixa de existir o «veículo», já para não falar da «circulação de um veículo». Assim, por exemplo, a remoção do motor significa que, tecnicamente, o veículo deixa de ser «motorizado» na aceção do artigo 1.o, n.o 1, da Primeira Diretiva.

110. Contudo, na minha opinião, a questão de saber se a inutilização de um veículo é suficiente para concluir que não existe «veículo» na aceção da Primeira Diretiva ou que este não pode efetuar qualquer «circulação» é sobretudo uma questão de prova. Embora possa, sem dúvida, tecer‑se algumas considerações abstratas sobre este assunto, considero que, no presente caso, não é necessário determo‑nos sobre ele. Afinal, não há dúvidas quanto ao facto de que o automóvel era claramente passível de ser conduzido e foi efetivamente conduzido.

6.      Aplicação ao presente caso

111. Com base nos factos tal como nos são apresentados pelo órgão jurisdicional de reenvio, na minha opinião, é claro que estacionar um automóvel plenamente funcional num quintal, o qual — como confirmou o Governo português na audiência — ainda estava sujeito ao pagamento de imposto de circulação à data do processo principal, tinha apostas as chapas de matrícula, e em relação ao qual não tinham sido adotadas quaisquer formalidades para o retirar oficialmente de circulação, não pode significar que o automóvel ficou dispensado da obrigação de segurar. Assim deve ser, independentemente da intenção subjetiva da proprietária, na medida em que essa intenção não foi, de forma nenhuma, comunicada oficialmente às autoridades públicas.

112. Como foi acima observado nos n.os 94 a 100, a não adoção de formalidades administrativas para retirar o automóvel de circulação já é, na minha opinião, decisiva para confirmar que existe um contexto geral de «circulação de um veículo». A localização precisa do automóvel, as suas condições físicas, o facto de a proprietária não conduzir (por razões de saúde) e a intenção subjetiva da proprietária relativamente ao veículo não podem alterar essa conclusão.

113. Essa é a resposta geral à primeira questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio. Contudo, tal não significa que essa resposta geral deva ser igualmente aplicável no caso concreto de A. Juliana. A este respeito, importa salientar dois aspetos.

114. Em primeiro lugar, a Primeira Diretiva impõe à República Portuguesa a obrigação de garantir que os veículos estejam segurados. As questões de saber se essa obrigação foi cumprida pelo Estado‑Membro e, se assim foi, a quem é imposta a obrigação de segurar estão relacionadas com a legislação nacional, sendo da competência do órgão jurisdicional de reenvio.

115. Em segundo lugar, mesmo que a legislação nacional, em algum momento, preveja a imposição à proprietária da obrigação de segurar o seu automóvel, gostaria de recordar dois elementos que podem ser relevantes para o órgão jurisdicional de reenvio. Por um lado, de acordo com jurisprudência uniforme do Tribunal de Justiça, mesmo nos casos em que as disposições da diretiva são suscetíveis de produzir efeito direto, os Estados‑Membros (incluindo emanações destes (52)) não podem invocar diretamente essas disposições contra os particulares (inexistência de efeito direto «vertical inverso») (53). Por outro lado, um Estado‑Membro não pode invocar disposições de uma diretiva que não tenha sido adequadamente transposta para efeitos de uma interpretação conforme do direito nacional que tenha como consequência a imposição de obrigações a um particular (54).

116. Estes princípios de direito da União são especialmente relevantes em situações nas quais as legislações nacionais que deviam transpor a diretiva do seguro automóvel em causa possam ser consideradas pouco claras ou contraditórias. Tal inclui decisões judiciais nacionais divergentes sobre as questões de direito relevantes. A esse respeito, cabe ao órgão jurisdicional nacional apreciar e retirar as consequências adequadas tendo em conta os factos do caso concreto.

7.      Conclusão relativa à primeira questão

117. À luz destas considerações, proponho que o Tribunal de Justiça responda à primeira questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio da seguinte forma:

O artigo 3.o da Primeira Diretiva (em vigor à data do acidente) deve ser interpretado no sentido de que a obrigatoriedade de contratação de seguro de responsabilidade civil automóvel abarca as situações em que o veículo, por opção do proprietário, se encontra imobilizado num quintal particular, fora da via pública, mas em que não foi adotada qualquer formalidade administrativa para obter oficialmente o cancelamento da matrícula do veículo. Compete aos Estados‑Membros determinar, nos termos da legislação nacional, sobre quem recai a obrigação de segurar o veículo nessas circunstâncias.

C.      Segunda questão

118. Através da sua segunda questão, o órgão jurisdicional nacional pretende saber se o artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva deve ser interpretado no sentido de que atribui ao Fundo o direito de sub‑rogação contra o proprietário do veículo, ainda que este não tenha sido responsável pelo acidente. O órgão jurisdicional de reenvio pretende igualmente saber se a sub‑rogação contra o proprietário depende da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil (e, concretamente, se é relevante o facto de o proprietário não ter a direção efetiva do veículo).

119. O artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva confere aos Estados‑Membros o direito de prever a sub‑rogação contra o «responsável pelo sinistro». Contudo, esta disposição prevê ainda que, na medida em que os Estados‑Membros se prevaleçam desse direito, não podem permitir que o organismo em questão subordine o pagamento da indemnização à condição de a vítima provar, seja por que meio for, que a «pessoa responsável» não pode ou não quer pagar.

120. Por conseguinte, a possibilidade de sub‑rogação (e os termos em que pode ocorrer) deve ser estabelecida pela legislação nacional. Tal inclui a definição do conceito de pessoa «responsável pelo sinistro» ou de «responsável» pelo direito civil nacional (55). Nenhuma das partes que submeteram observações contestou esta interpretação.

121. Daqui decorre que, na medida em que o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva deve ser interpretado no sentido de que atribui um direito de sub‑rogação, a resposta deve ser negativa. O artigo 1.o, n.o 4, apenas oferece aos Estados‑Membros a possibilidade de o prever.

122. No que respeita às condições do exercício do direito de sub‑rogação, existe, na minha opinião, alguma ambiguidade na decisão de reenvio quanto ao fundamento da «responsabilidade» que está a ser discutido: responsabilidade pelo próprio acidente ou responsabilidade baseada no incumprimento da obrigação de segurar o veículo (a existir tal obrigação).

123. Na medida em que a questão faz referência à responsabilidade pelo acidente, os pressupostos de tal responsabilidade devem ser determinados pela legislação nacional. Não encontro qualquer obstáculo no direito da União à imposição de uma condição de que a pessoa considerada responsável tivesse a direção efetiva do veículo quando ocorreu o acidente.

124. Contudo, através da questão submetida, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se existe um direito de sub‑rogação contra a proprietária «independentemente da responsabilidade [desta] pelo acidente», o que interpreto como significando «independentemente de se verificarem em relação à proprietária os pressupostos para a considerar responsável pelo acidente». O artigo 1.o, n.o 4, não prevê tal possibilidade. Esta disposição apenas prevê a sub‑rogação contra a pessoa que é responsável pelo sinistro.

125. Na medida em que o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva deve ser interpretado no sentido de que o Fundo tem um direito de sub‑rogação contra a pessoa responsável pelo incumprimento da obrigação de segurar o veículo, a resposta deve ser negativa. Mais uma vez, tal possibilidade simplesmente não é referida no artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva, pelo que não se pode retirar tal norma desta disposição. Contudo, tal não significa que os Estados‑Membros estejam impedidos de prever um direito de sub‑rogação noutras circunstâncias, incluindo contra a pessoa que não tenha cumprido a obrigação de segurar imposta pela legislação nacional que transpõe o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 72/166. Novamente, trata‑se de uma matéria que fica para a legislação nacional.

126. À luz destas considerações, proponho que o Tribunal de Justiça responda à segunda questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio da seguinte forma:

O artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva deve ser interpretado no sentido de que os Estados‑Membros podem prever um direito de sub‑rogação por um organismo de indemnização, como o Fundo de Garantia Automóvel, que, por falta de contrato de seguro de responsabilidade civil, pagou uma indemnização aos terceiros lesados num acidente de viação causado pelo veículo automóvel que, sem conhecimento ou autorização do proprietário, foi retirado do terreno particular onde estava imobilizado, contra a pessoa ou pessoas responsáveis pelo acidente. Os pressupostos da responsabilidade de tal pessoa ou de tais pessoas devem estar previstos no direito nacional. Esses pressupostos podem incluir o requisito de a/s pessoa/s em causa ter/em a direção efetiva do veículo no momento em questão.

A referida disposição não impõe nem impede que os Estados‑Membros prevejam um direito de sub‑rogação noutras circunstâncias, incluindo contra a pessoa que não cumpriu a obrigação de segurar imposta pela legislação nacional que transpõe o artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva.

V.      Conclusão

127. Proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pelo Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) da seguinte forma:

Primeira questão

O artigo 3.o da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (em vigor à data do acidente), deve ser interpretado no sentido de que a obrigatoriedade de contratação de seguro de responsabilidade civil automóvel abarca as situações em que o veículo, por opção do proprietário, se encontra imobilizado num quintal particular, fora da via pública, mas em que não foi adotada qualquer formalidade administrativa para obter oficialmente o cancelamento da matrícula do veículo. Compete aos Estados‑Membros determinar, nos termos da legislação nacional, sobre quem recai a obrigação de segurar o veículo nessas circunstâncias.

Segunda questão

O artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, deve ser interpretado no sentido de que os Estados‑Membros podem prever um direito de sub‑rogação por um organismo de indemnização, como o Fundo de Garantia Automóvel, que, na falta de contrato de seguro de responsabilidade civil, pagou uma indemnização aos terceiros lesados num acidente de viação causado pelo veículo automóvel que, sem conhecimento ou autorização do proprietário, foi retirado do terreno particular onde estava imobilizado, contra a pessoa ou pessoas responsáveis pelo acidente. Os pressupostos da responsabilidade de tal pessoa ou de tais pessoas devem estar previstos no direito nacional. Esses pressupostos podem incluir o requisito de a/s pessoa/s em causa ter/em a direção efetiva do veículo no momento em questão.

A referida disposição não impõe nem impede que os Estados‑Membros prevejam um direito de sub‑rogação noutras circunstâncias, incluindo contra a pessoa que não cumpriu a obrigação de segurar imposta pela legislação nacional que transpõe o artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva.


1      Língua original: inglês.


2      Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (JO 1972, L 103, p. 1; EE 13 F2 p. 113).


3      Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis(JO 1984, L 8, p. 17; EE 13 F15 p. 244).


4      Acórdão de 11 de julho de 2013, Csonka e o.(C‑409/11, EU:C:2013:512, n.os 28 e 31).


5      Especialmente nos casos de danos corporais graves ou de morte, a possibilidade de a pessoa responsável por um acidente conseguir indemnizar totalmente a vítima é muito reduzida. Embora possam existir casos em que a seguradora é insolvente, como acontecia no Acórdão de 11 de julho de 2013, Csonka e o.(C‑409/11, EU:C:2013:512), em princípio são raros.


6      A mesma lógica subjaz ao artigo 4.o da Primeira Diretiva e ao artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva. Este último prevê a criação de um organismo de indemnização para o caso de o veículo causador do sinistro não estar segurado. O anterior permite que os Estados‑Membros prevejam derrogações à obrigação de segurar, mas, se o fizerem, devem indicar a autoridade ou organismo responsável pelo pagamento da indemnização às vítimas de acidentes causados por veículos que beneficiem de tais derrogações.


7      Acórdão de 11 de julho de 2013, Csonka e o. (C‑409/11, EU:C:2013:512, n.os 30 a 32). É evidente que o organismo de indemnização «garante» efetivamente, em certo sentido, o pagamento da indemnização em circunstâncias específicas e claramente identificadas. Ao nível nacional, os organismos de indemnização podem, de facto, ser designados «fundo de garantia», como é o caso, por exemplo, de Portugal — «Fundo de Garantia Automóvel». Quando o Tribunal de Justiça afirma que o organismo de indemnização não é um «sistema de garantia», entendo que quer essencialmente dizer que o organismo não se destina a intervir em geral e assim substituir efetivamente a obrigação de segurar.


8      Além disso, o organismo de indemnização deve intervir noutras situações especificamente definidas. Assim, por exemplo, o artigo 1.o, n.o 4, dispõe que este deve intervir também quando o veículo não esteja identificado.


9      Dependendo do sistema concreto de financiamento do organismo de indemnização, tal pode significar um grupo maior ou menor (por exemplo, o organismo pode ser financiado pelas receitas fiscais ou pelos prémios de seguro dos indivíduos).


10      V., neste sentido, Acórdão de 11 de julho de 2013, Csonka e o.(C‑409/11, EU:C:2013:512). Nesse caso, a seguradora era insolvente. Contudo, o organismo nacional de garantia não estava obrigado a intervir porque a obrigação de segurar fora, de facto, cumprida.


11      Acórdão de 4 de setembro de 2014, Vnuk (C‑162/13, EU:C:2014:2146).


12      Acórdão de 28 de novembro de 2017, Rodrigues de Andrade (C‑514/16, EU:C:2017:908).


13      Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Núñez Torreiro (C‑334/16, EU:C:2017:1007).


14      Acórdão de 4 de setembro de 2014, Vnuk (C‑162/13, EU:C:2014:2146).


15      Acórdão de 4 de setembro de 2014, Vnuk(C‑162/13, EU:C:2014:2146, n.o 49).


16      Acórdão de 4 de setembro de 2014, Vnuk (C‑162/13, EU:C:2014:2146, n.o 52; v. igualmente, n.os 50 e 53 a 55).


17      Acórdão de 4 de setembro de 2014, Vnuk (C‑162/13, EU:C:2014:2146, n.o 56). O sublinhado é meu.


18      Acórdão de 28 de novembro de 2017, Rodrigues de Andrade (C‑514/16, EU:C:2017:908).


19      Acórdão de 4 de setembro de 2014, Vnuk (C‑162/13, EU:C:2014:2146).


20      Acórdão de 28 de novembro de 2017, Rodrigues de Andrade (C‑514/16, EU:C:2017:908, n.o 40). O sublinhado é meu.


21      Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Núñez Torreiro (C‑334/16, EU:C:2017:1007).


22      Acórdão de 4 de setembro de 2014, Vnuk (C‑162/13, EU:C:2014:2146).


23      Acórdão de 28 de novembro de 2017, Rodrigues de Andrade (C‑514/16, EU:C:2017:908).


24      Acórdão de 28 de novembro de 2017, Rodrigues de Andrade (C‑514/16, EU:C:2017:908, n.o 40). V., igualmente, Acórdãos de 4 de setembro de 2014, Vnuk (C‑162/13, EU:C:2014:2146, n.o 59), e de 20 de dezembro de 2017, Núñez Torreiro (C‑334/16, EU:C:2017:1007, n.o 32).


25      Acórdãos de 4 de setembro de 2014, Vnuk (C‑162/13, EU:C:2014:2146, n.o 19); de 28 de novembro de 2017, Rodrigues de Andrade (C‑514/16, EU:C:2017:908, n.o 12); e de 20 de dezembro de 2017, Núñez Torreiro (C‑334/16, EU:C:2017:1007, n.o 11).


26      Por exemplo, em checo: «určený k», em neerlandês: «bestemt»; em francês: «destiné à»; em alemão: «bestimmt»; em italiano: «destinato a»; em espanhol: «destinado a»; ou em português: «destinado a».


27      Acórdão de 4 de setembro de 2014, Vnuk (C‑162/13, EU:C:2014:2146, n.o 38).


28      Acórdãos de 4 de setembro de 2014, Vnuk (C‑162/13, EU:C:2014:2146, n.os 41 e 42); de 28 de novembro de 2017, Rodrigues de Andrade (C‑514/16, EU:C:2017:908, n.o 31); e de 20 de dezembro de 2017, Núñez Torreiro (C‑334/16, EU:C:2017:1007, n.o 24).


29      Acórdão de 4 de setembro de 2014, Vnuk(C‑162/13, EU:C:2014:2146, n.os 43 a 45).


30      Acórdão de 4 de setembro de 2014, Vnuk (C‑162/13, EU:C:2014:2146, n.o 49).


31      Acórdão de 4 de setembro de 2014, Vnuk (C‑162/13, EU:C:2014:2146, n.o 52).


32      Acórdãos de 4 de setembro de 2014, Vnuk (C‑162/13, EU:C:2014:2146, n.o 59); de 28 de novembro de 2017, Rodrigues de Andrade (C‑514/16, EU:C:2017:908, n.o 34); e de 20 de dezembro de 2017, Núñez Torreiro (C‑334/16, EU:C:2017:1007, n.o 28).


33      Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Núñez Torreiro (C‑334/16, EU:C:2017:1007, n.o 28).


34      A Irlanda cita, a este propósito, os artigos 12.o, n.o 3, e 23.o, n.o 5, da diretiva que codificou as diretivas relativas ao seguro automóvel. A Diretiva 2009/103/CE, que refere, respetivamente, danos sofridos por «utilizadores não motorizados das estradas» e «acidente[s] com veículos automóveis» [Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (JO 2009, L 263, p. 11)]. Em relação ao artigo 12.o, n.o 3, observo que o artigo 12.o tem como epígrafe «Categorias específicas de vítimas». O artigo 12.o, n.o 1, refere‑se ao seguro em relação a danos pessoais a passageiros, sem qualquer referência a «estradas». Se o artigo 12.o, n.o 3, pretendesse estabelecer uma limitação tão significativa, tal constaria logicamente também do artigo 12.o, n.o 1. O artigo 23.o, n.o 5, diz respeito à operação de reembolso (centros de informação) e, por isso, não deve ser utilizado para extrair limitações significativas ao âmbito de aplicação da própria obrigação de seguro. Além disso, na Primeira Diretiva e na Segunda Diretiva não existem disposições equivalentes aos artigos 12.o, n.o 3, e 23.o, n.o 5.


35      V. n.o 67, supra. Na medida em que a Irlanda e o Governo do Reino Unido se apoiam nas finalidades de liberdade de circulação da Primeira Diretiva e da Segunda Diretiva, observo que o Tribunal de Justiça se refere claramente, por exemplo, no Acórdão Vnuk, ao «duplo objetivo» das diretivas e, na verdade, coloca mais ênfase no objetivo de aumentar a proteção das vítimas [Acórdão de 4 de setembro de 2014, Vnuk (C‑162/13, EU:C:2014:2146, n.os 49 e segs.)].


36      Acórdãos de 4 de setembro de 2014, Vnuk (C‑162/13, EU:C:2014:2146, n.o 59); de 28 de novembro de 2017, Rodrigues de Andrade (C‑514/16, EU:C:2017:908, n.o 34); e de 20 de dezembro de 2017, Núñez Torreiro (C‑334/16, EU:C:2017:1007, n.o 28).


37      Excluindo assim o famoso efeito Holtzman, que permitia rebater o espaço‑tempo e, portanto, «circular sem movimento» na obra Dune, de Frank Herbert (1.a ed., Chilton Books, Philadelphia, 1965). Contudo, é seguro presumir que, mesmo que o efeito Holtzman fosse alguma vez efetivamente posto em prática, seria utilizado para outros tipos de «veículo» diferentes do veículo «destinado a circular sobre o solo, que possa ser acionado por uma força mecânica, sem estar ligado a uma via férrea, bem como os reboques, ainda que não atrelados», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, da Primeira Diretiva.


38      Pode alegar‑se que, sempre que um veículo esteja em movimento, estará a circular. Mas o objetivo dessa circulação pode nem sempre ser o transporte de bens ou de pessoas. V., para uma discussão semelhante, por exemplo, Acórdão de 28 de julho de 2016, Robert Fuchs (C‑80/15, EU:C:2016:615, n.os 28 a 36), relativo à questão de saber se os voos realizados para formação em pilotagem devem ser considerados transporte de pessoas, ou Acórdão de 5 de julho de 2017, Fries (C‑190/16, EU:C:2017:513, n.os 81 a 88), no contexto de voos ferry, que deslocam um avião entre dois aeroportos, sem transporte de passageiros, de carga ou de correio. Em ambos os casos, existiu circulação, mas é discutível se existiu transporte (a menos que, obviamente, se sustente que o mero facto de deslocar um veículo do ponto A para o ponto B implica, por definição, transportar esse veículo).


39      Acórdão de 28 de novembro de 2017, Rodrigues de Andrade (C‑514/16, EU:C:2017:908).


40      N.os 70 a 73 das presentes conclusões.


41      V., igualmente, n.o 35, supra, das presentes conclusões.


42      Por exemplo, o veículo ser conduzido muito raramente ou apenas em distâncias limitadas.


43      N.os 34 a 36, supra, das presentes conclusões.


44      Acórdão de 28 de novembro de 2017, Rodrigues de Andrade (C‑514/16, EU:C:2017:908).


45      Como resulta do Acórdão Rodrigues de Andradee foi acima analisado pormenorizadamente nos n.os 74 a 82 das presentes conclusões.


46      Saliento que tal não significa que não possa existir qualquer circulação do veículo. Pode com certeza ser furtado e/ou conduzido ilegalmente. Em tais circunstâncias, contudo, o veículo é conduzido em violação da obrigação de segurar identificada (excecionalmente) ex post, preservando assim a rede de segurança do fundo de indemnização para as vítimas.


47      Para além do tipo de situações referido no n.o 100, supra.


48      N.o 47, supra, das presentes conclusões.


49      N.o 35, supra, das presentes conclusões.


50      N.o 62, supra, das presentes conclusões.


51      Essas derrogações variam, em grande medida, de um Estado‑Membro para o outro. À data da apresentação das presentes conclusões, estava disponível uma lista no sítio Internet da Comissão, em https://ec.europa.eu/info/business‑economy‑euro/banking‑and‑finance/insurance‑and‑pensions/motor‑insurance_en.


52      Acórdãos de 12 de julho de 1990, Foster e o. (C‑188/89, EU:C:1990:313, n.o 18), e de 10 de outubro de 2017, Farrell (C‑413/15, EU:C:2017:745, n.os 33 a 35).


53      Acórdão de 8 de outubro de 1987, Kolpinghuis Nijmegen(80/86, EU:C:1987:431).


54      Acórdãos de 26 de setembro de 1996, Arcaro (C‑168/95, EU:C:1996:363, n.o 42), e de 5 de julho de 2007, Kofoed(C‑321/05, EU:C:2007:408, n.o 45).


55      Acórdão de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida(C‑300/10, EU:C:2012:656, n.o 29).