Language of document : ECLI:EU:C:2017:936

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

5 de dezembro de 2017 (*)

«Reenvio prejudicial — Artigo 325.o TFUE — Acórdão de 8 de setembro de 2015, Taricco e o. (C‑105/14, EU:C:2015:555) — Processo penal por infrações em matéria de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) — Legislação nacional que prevê prazos de prescrição que podem levar à impunidade das infrações — Prejuízo dos interesses financeiros da União Europeia — Obrigação de não aplicar qualquer disposição de direito interno suscetível de violar as obrigações impostas aos Estados‑Membros pelo direito da União — Princípio da legalidade dos crimes e das penas»

No processo C‑42/17,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Corte costituzionale (Tribunal Constitucional, Itália), por decisão de 23 de novembro de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 26 de janeiro de 2017, no processo penal contra

M.A.S.,

M.B.,

sendo interveniente:

Presidente del Consiglio dei Ministri,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, A. Tizzano, vice‑presidente, L. Bay Larsen, T. von Danwitz, J. L. da Cruz Vilaça (relator), C. G. Fernlund e C. Vajda, presidentes de secção, A. Borg Barthet, J.‑C. Bonichot, A. Arabadjiev, M. Safjan, F. Biltgen, K. Jürimäe, M. Vilaras e E. Regan juízes,

advogado‑geral: Y. Bot,

secretário: R. Schiano, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 29 de maio de 2017,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de M.A.S., por G. Insolera, A. Soliani e V. Zeno‑Zencovich, avvocati,

–        em representação de M.B., por N. Mazzacuva e V. Manes, avvocati,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por G. De Bellis, G. Galluzzo e S. Fiorentino, avvocati dello Stato,

–        em representação da Comissão Europeia, por P. Rossi, J. Baquero Cruz, H. Krämer e K. Banks, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 18 de julho de 2017,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 325.o, n.os 1 e 2, TFUE, conforme interpretado no acórdão de 8 de setembro de 2015, Taricco e o. (C‑105/14, EU:C:2015:555) (a seguir «acórdão Taricco»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado contra M.A.S. e M.B. por infrações em matéria de imposto sobre o valor acrescentado (IVA).

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O artigo 325.o, n.os 1 e 2, TFUE prevê:

«1.      A União e os Estados‑Membros combaterão as fraudes e quaisquer outras atividades ilegais lesivas dos interesses financeiros da União, por meio de medidas a tomar ao abrigo do presente artigo, que tenham um efeito dissuasor e proporcionem uma proteção efetiva nos Estados‑Membros, bem como nas instituições, órgãos e organismos da União.

2.      Para combater as fraudes lesivas dos interesses financeiros da União, os Estados‑Membros tomarão medidas análogas às que tomarem para combater as fraudes lesivas dos seus próprios interesses financeiros.»

 Direito italiano

4        O artigo 25.o da Constituição dispõe:

«Ninguém pode ser privado do juiz natural previsto na lei.

Ninguém pode ser punido senão por força de uma lei que tenha entrado em vigor antes da prática do facto cometido.

Ninguém pode ser sujeito a medidas de segurança, salvo nos casos previstos na lei.»

5        O artigo 157.o do codice penale (Código Penal), conforme alterado pela legge n. 251 (Lei n.o 251), de 5 de dezembro de 2005 (GURI n.o 285, de 7 de dezembro de 2005) (a seguir «Código Penal»), prevê:

«A infração prescreve decorrido o prazo que corresponde à duração máxima da pena prevista na norma para o referido crime; independentemente disso, o prazo de prescrição não pode ser inferior a seis anos, no caso de crimes, e a quatro anos, no caso de contravenções, mesmo que estas só possam ser punidas com uma sanção pecuniária.

[…]»

6        O artigo 160.o do Código Penal enuncia:

«O prazo de prescrição é interrompido pela sentença de condenação ou pelo despacho de condenação.

Interrompem também a prescrição o despacho que aplica providências cautelares pessoais […] e o despacho que fixa a audiência preliminar.

O prazo de prescrição interrompido volta a correr a partir da data da interrupção. Se existirem vários atos que interrompem a prescrição, o prazo volta a correr a partir da data do último desses atos; os prazos fixados no artigo 157.o não podem, em caso algum, ser prorrogados para além dos prazos previstos no artigo 161.o, segundo parágrafo, com exceção das infrações previstas no artigo 51.o, n.os 3‑bise 3‑quater, do Código de Processo Penal.»

7        Nos termos do artigo 161.o, segundo parágrafo, do Código Penal:

«Salvo quando o processo tenha como fundamento os crimes a que se refere o artigo 51.o, n.os 3‑bise 3‑quater, do Código de Processo Penal, a interrupção da prescrição não pode, em caso algum, implicar o aumento em mais de um quarto do tempo necessário para a prescrição […]»

8        Nos termos do artigo 2.o do decreto legislativo n. 74, nuova disciplina dei reati in materia di imposte sui redditi e sul valore aggiunto (Decreto Legislativo n.o 74, que introduz novas disposições relativas às infrações em matéria de impostos sobre os rendimentos e do imposto sobre o valor acrescentado), de 10 de março de 2000 (GURI n.o 76, de 31 de março de 2000, a seguir «Decreto n.o 74/2000»), a apresentação de uma declaração de IVA fraudulenta, relativa a faturas ou outros documentos respeitantes a operações inexistentes, é punida com uma pena de prisão de um ano e meio a seis anos.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

9        No acórdão Taricco, o Tribunal de Justiça declarou que as disposições do artigo 160.o, último parágrafo, do Código Penal, lidas em conjugação com as do artigo 161.o do referido código (a seguir «disposições do Código Penal em causa»), ao preverem que o ato que determina a interrupção da prescrição no quadro de procedimentos penais relativos a fraudes graves em matéria de IVA tem o efeito de prorrogar o prazo de prescrição em apenas um quarto da sua duração inicial, eram suscetíveis de violar as obrigações impostas aos Estados‑Membros por força do artigo 325.o, n.os 1 e 2, TFUE, caso essas disposições nacionais impedissem a aplicação de sanções efetivas e dissuasoras num número considerável dos casos de fraude grave lesiva dos interesses financeiros da União ou previssem prazos de prescrição mais longos para os casos de fraude lesiva dos interesses financeiros do Estado‑Membro em causa do que para os casos de fraude lesiva dos interesses financeiros da União. O Tribunal de Justiça declarou igualmente que incumbia ao órgão jurisdicional nacional competente dar pleno efeito ao artigo 325.o, n.os 1 e 2, TFUE, não aplicando, se necessário, as disposições de direito nacional que tivessem o efeito de impedir que o Estado‑Membro em causa respeitasse as obrigações que lhe são impostas pelas referidas disposições do Tratado FUE.

10      A Corte suprema di cassazione (Tribunal de Cassação, Itália) e a Corte d’appello di Milano (Tribunal de Recurso de Milão, Itália), que submeteram pedidos de apreciação da constitucionalidade à Corte costituzionale (Tribunal Constitucional, Itália), consideram que a regra decorrente do referido acórdão é aplicável a dois processos nelas pendentes. Com efeito, esses processos dizem respeito a infrações previstas no Decreto n.o 74/2000 suscetíveis de serem qualificadas de graves. Além disso, tais infrações estariam prescritas se se aplicassem as disposições do Código Penal em causa, ao passo que, no caso contrário, os referidos processos poderiam resultar numa condenação.

11      Por outro lado, a Corte d’appello di Milano (Tribunal de Recurso de Milão) duvida que a obrigação decorrente do artigo 325.o, n.o 2, TFUE se encontre respeitada no processo nela pendente. De facto, o crime de associação de malfeitores para efeitos de contrabando de tabaco manufaturado estrangeiro, previsto no artigo 291.o‑quaterdo decreto del Presidente della Repubblica n. 43, recante approvazione del testo unico delle disposizioni legislative in materia doganale (Decreto do Presidente da República n.o 43, que aprova o texto consolidado das disposições legislativas no domínio aduaneiro), de 23 de janeiro de 1973 (GURI n.o 80, de 28 de março de 1973), embora possa ser equiparado às infrações previstas no Decreto n.o 74/2000, como as em causa nos processos principais, não está sujeito às mesmas regras sobre limites máximos do prazo de prescrição que essas infrações.

12      Assim, a Corte suprema di cassazione (Tribunal de Cassação) e a Corte d’appello di Milano (Tribunal de Recurso de Milão) consideram que, em conformidade com a regra enunciada no acórdão Taricco, se deveriam abster de aplicar o prazo de prescrição, previsto nas disposições do Código Penal em causa, e decidir quanto ao mérito.

13      A Corte costituzionale (Tribunal Constitucional) tem dúvidas sobre a compatibilidade dessa solução com os princípios supremos da ordem constitucional italiana e com o respeito dos direitos inalienáveis da pessoa. Em particular, segundo este órgão jurisdicional, a referida solução é suscetível de violar o princípio da legalidade dos crimes e das penas, que exige, nomeadamente, que as disposições penais sejam determinadas com precisão e não possam ser retroativas.

14      A este respeito, a Corte costituzionale (Tribunal Constitucional) esclarece que, na ordem jurídica italiana, o regime de prescrição em matéria penal reveste natureza substantiva, inserindo‑se, por conseguinte, no âmbito de aplicação do princípio da legalidade, previsto no artigo 25.o da Constituição italiana. Consequentemente, o referido regime deveria ser constituído por regras precisas em vigor no momento em que a infração em causa é cometida.

15      Nestas condições, a Corte costituzionale (Tribunal Constitucional) considera que é chamada, pelos órgãos jurisdicionais nacionais em questão, a pronunciar‑se sobre o respeito, por parte da regra enunciada no acórdão Taricco, da exigência de «determinação» que, segundo a Constituição, deve caracterizar a regulamentação penal substantiva.

16      Trata‑se, assim, em primeiro lugar, de verificar se, no momento em que cometeu a infração em causa, a pessoa em questão podia saber que o direito da União impõe ao juiz nacional, reunidas as condições determinadas no referido acórdão, a não aplicação das disposições do Código Penal em causa. Por outro lado, a exigência de que a natureza penal da infração e a pena aplicável sejam prévia e claramente determináveis pelo autor do comportamento punível decorre igualmente da jurisprudência pertinente do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa ao artigo 7.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»).

17      Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio constata que o acórdão Taricco não precisa suficientemente os elementos que o juiz nacional deve ter em conta para definir o «número considerável dos casos» a que está associada a aplicação da regra resultante deste acórdão e não coloca, portanto, limites ao poder discricionário dos juízes.

18      Por outro lado, segundo este órgão jurisdicional, o acórdão Taricco não se pronuncia sobre a compatibilidade da regra nele enunciada com os princípios supremos da ordem constitucional italiana e confiou expressamente essa tarefa aos juízes nacionais competentes. A este respeito, salienta que, no n.o 53 desse acórdão, se refere que se o órgão jurisdicional nacional decidir não aplicar as disposições do Código Penal em causa, deverá igualmente garantir que os direitos fundamentais das pessoas em questão sejam respeitados. Mais acrescenta que, no n.o 55 do mesmo acórdão, se esclarece que essa não aplicação só é equacionada sob reserva de verificação, pelo órgão jurisdicional nacional, do respeito pelos direitos dos arguidos.

19      Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que, no acórdão Taricco, o Tribunal de Justiça se pronunciou sobre a questão da compatibilidade da regra enunciada neste acórdão com o artigo 49.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») unicamente no que diz respeito ao princípio da não retroatividade. O Tribunal de Justiça não examinou, contudo, o outro aspeto do princípio da legalidade dos crimes e das penas, a saber, a exigência de que a regulamentação relativa ao regime sancionatório deve ser suficientemente precisa. Todavia, trata‑se de uma exigência que faz parte das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros, igualmente presente no sistema de proteção da CEDH, e que corresponde, portanto, a um princípio geral do direito da União. Ora, mesmo que o regime de prescrição em matéria penal na ordem jurídica italiana seja considerado de natureza processual, não deixa de ser verdade que deveria ser aplicado segundo regras precisas.

20      Nestas condições, a Corte costituzionale (Tribunal Constitucional) suspendeu a instância e decidiu submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 325.o, n.os 1 e 2, TFUE ser interpretado no sentido de que impõe ao juiz penal que se abstenha de aplicar uma legislação nacional relativa à prescrição que obsta, num número considerável de casos, à repressão de fraudes graves lesivas dos interesses financeiros da União, ou que prevê prazos de prescrição para as fraudes lesivas dos interesses financeiros da União mais curtos do que os previstos para as fraudes lesivas dos interesses financeiros do Estado, mesmo quando essa não aplicação careça de uma base jurídica suficientemente precisa?

2)      Deve o artigo 325.o, n.os 1 e 2, TFUE ser interpretado no sentido de que impõe ao juiz penal que se abstenha de aplicar uma legislação nacional relativa à prescrição que obsta, num número considerável de casos, à repressão de fraudes graves lesivas dos interesses financeiros da União, ou que prevê prazos de prescrição para as fraudes lesivas dos interesses financeiros da União mais curtos do que os previstos para as fraudes lesivas dos interesses financeiros do Estado, mesmo quando no ordenamento do Estado‑Membro a prescrição faça parte do direito penal substantivo e esteja sujeita ao princípio da legalidade?

3)      Deve o acórdão [Taricco] ser interpretado no sentido de que impõe ao juiz penal que se abstenha de aplicar uma legislação nacional relativa à prescrição que obsta, num número considerável de casos, à repressão de fraudes graves lesivas dos interesses financeiros da União Europeia, ou que prevê prazos de prescrição para as fraudes lesivas dos interesses financeiros da União mais curtos do que os previstos para as fraudes lesivas dos interesses financeiros do Estado, mesmo quando essa não aplicação seja contrária aos princípios supremos da ordem constitucional do Estado‑Membro ou aos direitos inalienáveis reconhecidos pela Constituição do Estado‑Membro?»

21      Pelo seu despacho de 28 de fevereiro de 2017, M.A.S. e M.B. (C‑42/17, não publicado, EU:C:2017:168), o presidente do Tribunal de Justiça decidiu deferir o pedido apresentado pelo órgão jurisdicional de reenvio no sentido de que o presente processo fosse submetido à tramitação acelerada prevista no artigo 23.o‑A do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e no artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

 Quanto às questões prejudiciais

 Considerações preliminares

22      Importa recordar que o processo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.o TFUE institui um diálogo de juiz para juiz, entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros, que tem por objetivo assegurar a unidade de interpretação do direito da União, bem como a sua coerência, o seu pleno efeito e a sua autonomia [v., neste sentido, parecer 2/13 (Adesão da União à CEDH), de 18 de dezembro de 2014, EU:C:2014:2454, n.o 176].

23      O processo instituído no artigo 267.o TFUE funciona, assim, como um instrumento de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, graças ao qual o primeiro fornece aos segundos os elementos de interpretação do direito da União que lhes são necessários para a decisão do litígio que lhes é submetido (v., neste sentido, acórdão de 5 de julho de 2016, Ognyanov, C‑614/14, EU:C:2016:514, n.o 16).

24      A este respeito, há que sublinhar que, quando responde a questões prejudiciais, incumbe ao Tribunal de Justiça ter em conta, no quadro da repartição das competências entre os tribunais da União e nacionais, o contexto factual e regulamentar no qual se inserem essas questões, tal como definido pela decisão de reenvio (acórdão de 26 de outubro de 2017, Argenta Spaarbank, C‑39/16, EU:C:2017:813, n.o 38).

25      Deve salientar‑se que, no âmbito do processo que está na origem do acórdão Taricco, o Tribunale di Cuneo (Tribunal de Cuneo, Itália) questionou o Tribunal de Justiça quanto à interpretação dos artigos 101.o, 107.o e 119.o TFUE e do artigo 158.o da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1).

26      No acórdão Taricco, contudo, o Tribunal de Justiça julgou necessário fornecer‑lhe, para efeitos do processo penal pendente naquele órgão jurisdicional italiano, uma interpretação do artigo 325.o, n.os 1 e 2, TFUE.

27      No processo principal, a Corte costituzionale (Tribunal Constitucional) suscita a questão de uma eventual violação do princípio da legalidade dos crimes e das penas que poderia decorrer da obrigação, enunciada pelo acórdão Taricco, de não aplicar as disposições do Código Penal em causa, atendendo, por um lado, à natureza substantiva das regras de prescrição previstas na ordem jurídica italiana, que implica que tais regras sejam razoavelmente previsíveis para os particulares no momento em que cometem as infrações que lhes são imputadas, sem poderem ser alteradas in pejus retroativamente, e, por outro, à exigência de que toda e qualquer regulamentação nacional relativa ao regime de incriminação se deve fundar numa base legal suficientemente precisa para poder enquadrar e orientar a apreciação do juiz nacional.

28      Por conseguinte, incumbe ao Tribunal de Justiça precisar, tendo em conta as questões que foram suscitadas pelo órgão jurisdicional de reenvio a respeito deste princípio e que não tinham sido trazidas ao seu conhecimento no processo que deu origem ao acórdão Taricco, a interpretação do artigo 325.o, n.os 1 e 2, TFUE, operada por esse acórdão.

 Quanto à primeira e segunda questões

29      Com a primeira e segunda questões, que importa examinar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 325.o, n.os 1 e 2, TFUE deve ser interpretado no sentido de que, no âmbito de um processo penal por infrações relativas ao IVA, impõe ao juiz nacional que se abstenha de aplicar disposições internas do direito substantivo nacional em matéria de prescrição que obstem à aplicação de sanções penais efetivas e dissuasoras num número considerável de casos de fraude grave lesiva dos interesses financeiros da União ou que prevejam prazos de prescrição mais curtos para os casos de fraude lesiva dos referidos interesses do que para os casos de fraude lesiva dos interesses financeiros do Estado‑Membro em causa, incluindo quando a aplicação desta obrigação implica uma violação do princípio da legalidade dos crimes e das penas, em razão da falta de precisão da lei aplicável ou devido a uma aplicação retroativa desta última.

30      Há que recordar que o artigo 325.o, n.os 1 e 2, TFUE obriga os Estados‑Membros a combaterem as atividades ilícitas lesivas dos interesses financeiros da União, por meio de medidas efetivas e dissuasoras, e a tomarem, para combater fraudes lesivas dos interesses financeiros da União, medidas análogas às que tomarem para combater as fraudes lesivas dos seus próprios interesses financeiros.

31      Dado que os recursos próprios da União compreendem, nomeadamente, nos termos da Decisão 2014/335/UE, Euratom do Conselho, de 26 de maio de 2014, relativa ao sistema de recursos próprios da União Europeia (JO 2014, L 168, p. 105), as receitas provenientes da aplicação de uma taxa uniforme à matéria coletável harmonizada do IVA determinada segundo as regras da União, existe uma relação direta entre a cobrança das receitas do IVA no respeito do direito da União aplicável e a colocação à disposição do orçamento da União dos recursos IVA correspondentes, uma vez que qualquer falha na cobrança das primeiras está potencialmente na origem de uma redução dos segundos (v., neste sentido, acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson, C‑617/10, EU:C:2013:105, n. o 26, e acórdão Taricco, n. o 38).

32      Incumbe aos Estados‑Membros garantir uma cobrança eficaz dos recursos próprios da União (v., neste sentido, acórdão de 7 de abril de 2016, Degano Trasporti, C‑546/14, EU:C:2016:206, n.o 21). A este título, os Estados‑Membros devem proceder à cobrança das quantias correspondentes aos recursos próprios que, em razão de fraudes, foram subtraídas ao orçamento da União.

33      A fim de garantir a cobrança da totalidade das receitas provenientes do IVA e, assim, a proteção dos interesses financeiros da União, os Estados‑Membros dispõem de uma liberdade de escolha das sanções aplicáveis, as quais podem tomar a forma de sanções administrativas, de sanções penais ou de uma combinação de ambas (v., neste sentido, acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson, C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 34, e acórdão Taricco, n.o 39).

34      A este respeito, há todavia que salientar, em primeiro lugar, que as sanções penais podem ser indispensáveis para combater de forma efetiva e dissuasora certos casos de fraude grave ao IVA (v., neste sentido, acórdão Taricco, n.o 39).

35      Assim, sob pena de violar as obrigações que o artigo 325.o, n.o 1, TFUE lhes impõe, os Estados‑Membros devem assegurar que, em casos de fraude grave lesiva dos interesses financeiros da União em matéria de IVA, sejam adotadas sanções penais que revistam natureza efetiva e dissuasora (v., neste sentido, acórdão Taricco, n.os 42 e 43).

36      Por conseguinte, deve considerar‑se que os Estados‑Membros violam as obrigações que lhes são impostas pelo artigo 325.o, n.o 1, TFUE, quando as sanções penais adotadas para reprimir as fraudes graves ao IVA não permitam assegurar de forma eficaz a cobrança da totalidade deste imposto. A este respeito, os Estados devem igualmente garantir que as regras de prescrição previstas pelo direito nacional permitem uma repressão efetiva das infrações relacionadas com tais fraudes.

37      Em segundo lugar, nos termos do artigo 325.o, n.o 2, TFUE, para combater as fraudes lesivas dos interesses financeiros da União, nomeadamente em matéria de IVA, os Estados‑Membros devem tomar medidas análogas às que tomarem para combater as fraudes lesivas dos seus próprios interesses financeiros.

38      No que respeita às consequências de uma eventual incompatibilidade de uma legislação nacional com o artigo 325.o, n.os 1 e 2, TFUE, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que este artigo impõe aos Estados‑Membros obrigações de resultado precisas, que não estão subordinadas a nenhuma condição relativa à aplicação das regras que enunciam (v., neste sentido, acórdão Taricco, n.o 51).

39      Incumbe, portanto, aos órgãos jurisdicionais nacionais competentes dar pleno efeito às obrigações decorrentes do artigo 325.o, n.os 1 e 2, TFUE e não aplicar as disposições internas, nomeadamente em matéria de prescrição, que, no âmbito de um processo por infrações graves em matéria de IVA, obstem à aplicação de sanções efetivas e dissuasoras para combater as fraudes lesivas dos interesses financeiros da União (v., neste sentido, acórdão Taricco, n.os 49 e 58).

40      Importa recordar que, no n. o 58 do acórdão Taricco, as disposições nacionais em causa foram consideradas suscetíveis de violar as obrigações impostas ao Estado‑Membro em causa pelo artigo 325. o, n. os 1 e 2, TFUE, caso as referidas disposições impedissem a aplicação de sanções penais efetivas e dissuasoras num número considerável dos casos de fraude grave lesiva dos interesses financeiros da União ou previssem prazos de prescrição mais curtos para os casos de fraude lesiva dos referidos interesses do que para os casos de fraude lesiva dos interesses financeiros desse Estado‑Membro.

41      Ao legislador nacional incumbe, primeiro que tudo, prever regras de prescrição que permitam satisfazer as obrigações decorrentes do artigo 325.o TFUE, à luz das considerações expostas pelo Tribunal de Justiça no n.o 58 do acórdão Taricco. Com efeito, é a esse legislador que cabe garantir que o regime nacional de prescrição em matéria penal não conduza à impunidade de um número considerável de casos de fraude grave em matéria de IVA ou não seja, para as pessoas acusadas, mais severo nos casos de fraude lesiva dos interesses financeiros do Estado‑Membro em causa do que nos casos de fraude lesiva dos interesses financeiros da União.

42      A este respeito, importa recordar que o facto de um legislador nacional prorrogar um prazo de prescrição com aplicação imediata, incluindo a factos imputados que ainda não estão prescritos, não viola, em princípio, o princípio da legalidade dos crimes e das penas (v., neste sentido, acórdão Taricco, n.o 57 e jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem referida nesse número).

43      Assim sendo, deve acrescentar‑se que o domínio da proteção dos interesses financeiros da União através da fixação de sanções penais se insere numa competência partilhada entre a União e os Estados‑Membros, na aceção do artigo 4.o, n.o 2, TFUE.

44      No caso em apreço, à data dos factos no processo principal, o regime da prescrição aplicável às infrações penais relativas ao IVA não tinha sido objeto de harmonização por parte do legislador da União, que só ocorreu posteriormente, de forma parcial, através da adoção da Diretiva (UE) 2017/1371 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de julho de 2017, relativa à luta contra a fraude lesiva dos interesses financeiros da União através do direito penal (JO 2017, L 198, p. 29).

45      Por conseguinte, naquele momento, a República Italiana era livre de prever que, na sua ordem jurídica, esse regime se inseria, à semelhança das regras relativas à definição das infrações e à determinação das penas, no direito penal substantivo e, como tal, estava submetido, como estas últimas regras, ao princípio da legalidade dos crimes e das penas.

46      Por seu lado, os órgãos jurisdicionais nacionais competentes, quando tiverem de decidir não aplicar, em processos em curso, as disposições do Código Penal em causa, estão obrigados a garantir que sejam respeitados os direitos fundamentais das pessoas acusadas de terem cometido uma infração penal (v., neste sentido, acórdão Taricco, n.o 53).

47      A este respeito, as autoridades e os órgãos jurisdicionais nacionais podem aplicar os padrões nacionais de proteção dos direitos fundamentais, desde que essa aplicação não comprometa o nível de proteção previsto pela Carta, conforme interpretada pelo Tribunal de Justiça, nem o primado, a unidade e a efetividade do direito da União (acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson, C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 29 e jurisprudência referida).

48      Em particular, quanto à fixação de sanções penais, cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais competentes assegurar que sejam garantidos os direitos dos arguidos decorrentes do princípio da legalidade dos crimes e das penas.

49      Ora, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, esses direitos não são respeitados em caso de não aplicação das disposições do Código Penal em causa, no âmbito dos processos nele pendentes, uma vez que, por um lado, as pessoas em questão não podiam razoavelmente prever, antes da prolação do acórdão Taricco, que o artigo 325.o TFUE impunha ao juiz nacional que não aplicasse as referidas disposições nas condições estabelecidas nesse acórdão.

50      Por outro lado, segundo este mesmo órgão jurisdicional, o juiz nacional não podia definir o conteúdo concreto das condições em que se deveria abster de aplicar essas disposições, a saber, no caso de estas impedirem a aplicação de sanções efetivas e dissuasoras num número considerável de casos de fraude grave, sem violar os limites impostos à sua margem de apreciação pelo princípio da legalidade dos crimes e das penas.

51      A este propósito, há que recordar a importância, tanto na ordem jurídica da União como nas ordens jurídicas nacionais, que reveste o princípio da legalidade dos crimes e das penas, no que respeita às suas exigências de previsibilidade, de precisão e de não retroatividade da lei penal aplicável.

52      Este princípio, consagrado no artigo 49. o da Carta, é imposto aos Estados‑Membros quando aplicam o direito da União, em conformidade com o respetivo artigo 51. o, n. o 1, o que é o caso quando estes preveem, no âmbito das obrigações que lhes são impostas pelo artigo 325. o TFUE, a aplicação de sanções penais às infrações em matéria de IVA. Assim, a obrigação de garantir a cobrança eficaz dos recursos da União não pode ir contra o referido princípio (v., por analogia, acórdão de 29 de março de 2012, Belvedere Costruzioni, C‑500/10, EU:C:2012:186, n. o 23).

53      Além disso, o princípio da legalidade dos crimes e das penas faz parte das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros (v., no que respeita ao princípio da não retroatividade da lei penal, acórdãos de 13 de novembro de 1990, Fedesa e o., C‑331/88, EU:C:1990:391, n.o 42, e de 7 de janeiro de 2004, X, C‑60/02, EU:C:2004:10, n.o 63) e foi consagrado por diversos tratados internacionais, nomeadamente no artigo 7.o, n.o 1, da CEDH (v., neste sentido, acórdão de 3 de maio de 2007, Advocaten voor de Wereld, C‑303/05, EU:C:2007:261, n.o 49).

54      Resulta das Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais (JO 2007, C 303, p. 17) que, nos termos do n.o 3 do artigo 52.o, da Carta, o direito garantido no seu artigo 49.o tem o mesmo sentido e âmbito que o direito garantido pela CEDH.

55      Quanto às exigências decorrentes do princípio da legalidade dos crimes e das penas, há que salientar, em primeiro lugar, que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem declarou, a propósito do artigo 7.o, n.o 1, da CEDH, que, por força deste princípio, as disposições penais devem respeitar certas exigências de acessibilidade e de previsibilidade no que diz respeito quer à definição da infração quer à determinação da pena (v. TEDH, 15 de novembro de 1996, Cantoni c. França, CE:ECHR:1996:1115JUD001786291, § 29; TEDH, 7 de fevereiro de 2002, E.K. c. Turquia, CE:ECHR:2002:0207JUD002849695, § 51; TEDH, 29 de março de 2006, Achour c. França, CE:ECHR:2006:0329JUD006733501, § 41; e TEDH, 20 de setembro de 2011, OAO Neftyanaya Kompaniya Yukos c. Rússia, CE:ECHR:2011:0920JUD001490204, §§ 567 a 570).

56      Em segundo lugar, há que sublinhar que a exigência de precisão da lei aplicável, que é inerente ao referido princípio, implica que a lei defina de forma clara as infrações e as penas que as reprimem. Esta condição está preenchida quando o particular puder saber, a partir da redação da disposição pertinente e, se necessário, recorrendo à interpretação que lhe é dada pelos tribunais, quais os atos e omissões pelos quais responde penalmente (v., neste sentido, acórdão de 28 de março de 2017, Rosneft, C‑72/15, EU:C:2017:236, n.o 162).

57      Em terceiro lugar, o princípio da não retroatividade da lei penal opõe‑se, nomeadamente, a que um juiz possa, durante um processo penal, sancionar penalmente um comportamento que não seja proibido por uma regra nacional adotada antes de a infração imputada ser cometida ou agravar o regime de responsabilidade penal de quem é objeto desse processo (v., por analogia, acórdão de 8 de novembro de 2016, Ognyanov, C‑554/14, EU:C:2016:835, n.os 62 a 64 e jurisprudência referida).

58      A este respeito, conforme foi constatado no n.o 45 do presente acórdão, as exigências de previsibilidade, de precisão e de não retroatividade inerentes ao princípio da legalidade dos crimes e das penas aplicam‑se, na ordem jurídica italiana, igualmente ao regime de prescrição relativo às infrações penais em matéria de IVA.

59      Daqui resulta, por um lado, que incumbe ao juiz nacional verificar se a conclusão a que se chegou no n.o 58 do acórdão Taricco, segundo a qual as disposições do Código Penal em causa impedem a aplicação de sanções penais efetivas e dissuasoras num número considerável de casos de fraude grave lesiva dos interesses financeiros da União, conduz a uma situação de incerteza, na ordem jurídica italiana, quanto à determinação do regime de prescrição aplicável, que viola o princípio da precisão da lei aplicável. Se assim for, o juiz nacional não está obrigado a não aplicar as disposições do Código Penal em causa.

60      Por outro lado, as exigências mencionadas no n.o 58 do presente acórdão obstam a que, em processos relativos a pessoas acusadas de terem cometido infrações em matéria de IVA antes da prolação do acórdão Taricco, o juiz nacional não aplique as disposições do Código Penal em causa. Com efeito, no n.o 53 do referido acórdão, o Tribunal de Justiça já sublinhou que, em razão da não aplicação destas disposições, poderiam ser aplicadas a essas pessoas sanções às quais escapariam, com toda a probabilidade, se essas disposições de direito nacional tivessem sido aplicadas. Assim, as referidas pessoas poderiam ser sujeitas retroativamente a condições de incriminação mais severas do que as vigentes no momento em que a infração foi cometida.

61      Se o juiz nacional considerar que a obrigação de não aplicar as disposições do Código Penal em causa colide com o princípio da legalidade dos crimes e das penas, não seria obrigado a conformar‑se com essa obrigação, ainda que o respeito da mesma permitisse corrigir uma situação nacional incompatível com o direito da União (v., por analogia, acórdão de 10 de julho de 2014, Impresa Pizzarotti, C‑213/13, EU:C:2014:2067, n.os 58 e 59). Incumbe, portanto, ao legislador nacional tomar as medidas necessárias, conforme foi constatado nos n.o 41 e 42 do presente acórdão.

62      Tendo em conta as considerações que precedem, há que responder à primeira e segunda questões que o artigo 325.o, n.os 1 e 2, TFUE deve ser interpretado no sentido de que, no âmbito de um processo penal por infrações relativas ao IVA, impõe ao juiz nacional que se abstenha de aplicar disposições internas do direito substantivo nacional em matéria de prescrição que obstem à aplicação de sanções penais efetivas e dissuasoras num número considerável de casos de fraude grave lesiva dos interesses financeiros da União ou que prevejam prazos de prescrição mais curtos para os casos de fraude grave lesiva dos referidos interesses do que para os casos de fraude lesiva dos interesses financeiros do Estado‑Membro em causa, a menos que essa não aplicação implique uma violação do princípio da legalidade dos crimes e das penas, em razão da falta de precisão da lei aplicável ou devido à aplicação retroativa de uma legislação que impõe condições de incriminação mais severas do que as vigentes no momento em que a infração foi cometida.

 Quanto à terceira questão

63      Tendo em conta a resposta dada à primeira e segunda questões, não há que responder à terceira questão.

 Quanto às despesas

64      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

O artigo 325.o, n.os 1 e 2, TFUE deve ser interpretado no sentido de que, no âmbito de um processo penal por infrações relativas ao imposto sobre o valor acrescentado, impõe ao juiz nacional que se abstenha de aplicar disposições internas do direito substantivo nacional em matéria de prescrição que obstem à aplicação de sanções penais efetivas e dissuasoras num número considerável de casos de fraude grave lesiva dos interesses financeiros da União Europeia ou que prevejam prazos de prescrição mais curtos para os casos de fraude grave lesiva dos referidos interesses do que para os casos de fraude lesiva dos interesses financeiros do EstadoMembro em causa, a menos que essa não aplicação implique uma violação do princípio da legalidade dos crimes e das penas, em razão da falta de precisão da lei aplicável ou devido à aplicação retroativa de uma legislação que impõe condições de incriminação mais severas do que as vigentes no momento em que a infração foi cometida.

Assinaturas


*      Língua do processo: italiano.