Language of document : ECLI:EU:C:2012:396

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

28 de junho de 2012 (*)

«Medicamentos para uso humano — Diretiva 2001/83/CE — Artigo 77.° — Distribuição por grosso de medicamentos — Autorização especial obrigatória para os farmacêuticos — Requisitos de concessão»

No processo C‑7/11,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Tribunale di Palermo (Itália), por decisão de 1 de dezembro de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 5 de janeiro de 2011, no processo penal instaurado contra

Fabio Caronna,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: J. N. Cunha Rodrigues, presidente de secção, U. Lõhmus (relator), A. Rosas, A. Ó Caoimh e A. Arabadjiev, juízes,

advogado‑geral: P. Cruz Villalón,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação de F. Caronna, por M. Tuzzolino, avvocato,

¾        em representação do Governo estónio, por M. Linntam, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo grego, por F. Dedousi e I. Pouli, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo espanhol, por J. M. Rodríguez Cárcamo, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo húngaro, por M. Z. Fehér e K. Szíjjártó, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo polaco, por M. Szpunar, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, na qualidade de agente,

¾        em representação da Comissão Europeia, por M. Šimerdová e C. Zadra, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 76.° a 84.° da Diretiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano (JO L 311, p. 67), conforme alterada pela Diretiva 2009/120/CE da Comissão, de 14 de setembro de 2009 (JO L 242, p. 3, a seguir «diretiva»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado contra F. Caronna, farmacêutico, por ter exercido a atividade de venda por grosso de medicamentos sem dispor da autorização prevista pela legislação italiana.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Os considerandos 2 a 5, 35 e 36 da diretiva enunciam:

«(2)      Toda a regulamentação em matéria de produção, de distribuição ou de utilização de medicamentos deve ter por objetivo essencial garantir a proteção da saúde pública.

(3)      Todavia, este objetivo deve ser atingido por meios que não possam travar o desenvolvimento da indústria farmacêutica e o comércio de medicamentos na [União].

(4)      As disparidades entre certas disposições nacionais, e nomeadamente as disposições relativas aos medicamentos, […] têm por efeito entravar o comércio de medicamentos na [União] e têm, devido a este facto, uma incidência direta sobre o funcionamento do mercado interno.

(5)      Importa, por conseguinte, eliminar estes entraves. Para atingir este objetivo, é necessária uma aproximação das disposições em causa.

[...]

(35)      É necessário exercer um controlo de toda a cadeia de distribuição dos medicamentos, desde o fabrico ou importação na [União] até ao fornecimento ao público, por forma a garantir que estes sejam conservados, transportados e manipulados em condições adequadas. As disposições que importa adotar para este efeito vão facilitar consideravelmente a retirada de produtos defeituosos do mercado e permitir combater mais eficazmente as contrafações.

(36)      Qualquer pessoa que intervenha na distribuição por grosso dos medicamentos deve ser titular de uma autorização específica. Importa, contudo, dispensar desta autorização os farmacêuticos e as pessoas autorizadas a fornecer medicamentos ao público e que se dediquem apenas a esta atividade. No entanto, a fim de garantir o controlo de toda a cadeia de distribuição de medicamentos, é necessário que os farmacêuticos e as pessoas habilitadas a fornecer medicamentos ao público mantenham registos das transações de entrada.»

4        O conceito de «distribuição por grosso de medicamentos» é definido no artigo 1.°, n.° 17, da diretiva como «[q]ualquer atividade que consista no abastecimento, posse, fornecimento ou exportação de medicamentos, excluindo o fornecimento de medicamentos ao público; tais atividades são efetuadas com fabricantes ou com os seus depositários, importadores, outros grossistas ou com os farmacêuticos ou pessoas autorizadas ou habilitadas para fornecer medicamentos ao público no Estado‑Membro em causa».

5        O título IV da diretiva, sob a epígrafe «Fabrico e importação», inclui o artigo 40.°, n.os 1 e 2, que dispõe:

«1.      Os Estados‑Membros tomarão todas as medidas necessárias para que o fabrico dos medicamentos no seu território esteja dependente da titularidade de uma autorização. Exige‑se igualmente a autorização de fabrico quando os medicamentos sejam fabricados para a exportação.

2.      A autorização referida no n.° 1 é exigida tanto para o fabrico total ou parcial como para as operações de divisão, acondicionamento ou apresentação.

Todavia, a autorização não é exigida para as preparações, divisões, alterações de acondicionamento ou apresentação, quando tais operações forem executadas, unicamente tendo em vista a distribuição a retalho, por farmacêuticos numa farmácia ou por outras pessoas legalmente habilitadas nos Estados‑Membros a efetuar as ditas operações.»

6        As regras relativas à distribuição por grosso de medicamentos figuram no título VII da diretiva, que compreende os artigos 76.° a 85.°

7        Segundo o artigo 76.°, todos os medicamentos distribuídos por grosso devem estar cobertos por uma autorização de introdução no mercado.

8        Nos termos do artigo 77.°, n.os 1 a 3, da diretiva:

«1.      Os Estados‑Membros devem adotar todas as disposições necessárias para garantir que a distribuição por grosso de medicamentos esteja condicionada à posse de uma autorização de exercício da atividade de distribuição por grosso de medicamentos, que especifique as instalações no respetivo território para as quais é válida.

2.      Sempre que as pessoas autorizadas ou habilitadas a fornecer medicamentos ao público possam igualmente, por força da legislação interna, exercer uma atividade de grossista, ficam sujeitas à autorização referida no n.° 1.

3.      A posse da autorização de fabrico sobrepõe‑se à da distribuição por grosso dos medicamentos em causa nessa autorização. A posse de uma autorização para o exercício da atividade de grossista de medicamentos não dispensa da obrigação de possuir a autorização de fabrico e de preencher as condições estatuídas para o efeito, mesmo que a atividade de fabrico ou importação seja exercida acessoriamente.»

9        O artigo 78.° da diretiva prevê um prazo de 90 dias para exame do pedido de autorização de distribuição pela autoridade competente do Estado‑Membro em causa.

10      O artigo 79.° da diretiva dispõe:

«Para obter a autorização de distribuição, o requerente deve satisfazer, no mínimo, as seguintes condições:

a)      Dispor de locais, instalações e equipamentos adaptados e suficientes, por forma a assegurar uma boa conservação e distribuição dos medicamentos;

b)      Dispor de pessoal, nomeadamente de uma pessoa responsável, como tal designada e qualificada, que preencha as condições previstas na legislação do Estado‑Membro em causa;

c)      Comprometer‑se a cumprir as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 80.°»

11      Nos termos do artigo 80.°, alíneas b) e c), da diretiva:

«O titular da autorização de distribuição deve satisfazer, no mínimo, as seguintes condições:

[...]

b)      Aprovisionar‑se de medicamentos apenas junto de pessoas que possuam a autorização de distribuição ou estejam dispensadas dessa autorização por força do n.° 3 do artigo 77.°;

c)      Apenas fornecer medicamentos a pessoas que possuam a autorização de distribuição ou estejam habilitadas a fornecer medicamentos ao público no Estado‑Membro em causa».

12      O artigo 81.°, primeiro parágrafo, da diretiva dispõe:

«No que respeita ao abastecimento de medicamentos aos farmacêuticos e às pessoas autorizadas ou habilitadas a dispensar medicamentos ao público, os Estados‑Membros não impõem ao titular da autorização de distribuição, concedida por outro Estado‑Membro, qualquer obrigação, nomeadamente de serviço público, mais estrita que as que impõem às pessoas a que eles próprios permitem exercer uma atividade equivalente.»

13      O artigo 82.°, primeiro parágrafo, da diretiva enumera os dados que devem figurar na documentação junta a qualquer abastecimento de medicamentos que o grossista autorizado faça a uma pessoa autorizada ou habilitada a fornecer medicamentos ao público. O segundo parágrafo deste artigo tem a seguinte redação:

«Os Estados‑Membros tomarão todas as medidas adequadas para garantir que as pessoas habilitadas a fornecer medicamentos ao público possam prestar as informações que permitam retraçar as vias de distribuição de cada medicamento.»

14      O artigo 83.° da diretiva autoriza os Estados‑Membros a adotar disposições mais estritas para a distribuição por grosso de substâncias narcóticas ou psicotrópicas e de certos tipos de medicamentos.

15      Em conformidade com o artigo 84.° da diretiva, a Comissão Europeia deve publicar diretrizes relativas às boas práticas de distribuição.

 Direito italiano

16      A diretiva foi transposta para o direito italiano pelo Decreto Legislativo n.° 219, de 24 de abril de 2006 (GURI n.° 142, de 21 de junho de 2006, a seguir «Decreto 219/2006»).

17      Segundo o Tribunale di Palermo, a versão inicial do artigo 100.°, n.° 2, do Decreto 219/2006 não permitia que os farmacêuticos exercessem uma atividade de distribuição por grosso de medicamentos, declarando que esta era incompatível com a venda ao público de medicamentos em farmácia.

18      O Decreto‑Lei n.° 223, de 4 de julho de 2006 [(GURI n.° 153, de 4 de julho de 2006), convertido em lei pela Lei n.° 248, de 4 de agosto de 2006 (GURI n.° 186, de 11 de agosto de 2006), dito «decreto Bersani»], revogou o artigo 100.°, n.° 2, do Decreto 219/2006.

19      Na sequência de alterações introduzidas pelos Decretos Legislativos n.° 274, de 29 de dezembro de 2007 (GURI n.° 38, de 14 de fevereiro de 2008), e n.° 135, de 25 de setembro de 2009 (GURI n.° 223, de 25 de setembro de 2009), convertido em lei pela Lei n.° 166, de 20 de novembro de 2009 (GURI n.° 274, de 24 de novembro de 2009), o artigo 100.° do Decreto 219/2006 passou a ter a seguinte redação:

«1.      A distribuição por grosso dos medicamentos está condicionada à titularidade de uma autorização emitida pela região ou pela província autónoma ou pelas outras autoridades competentes, designadas pela legislação das regiões ou províncias autónomas.

1 bis.            Os farmacêuticos e as sociedades de farmacêuticos, titulares de uma farmácia na aceção do artigo 7.° da Lei n.° 362, de 8 de novembro de 1991, bem como as sociedades que gerem farmácias municipais, podem exercer atividades de distribuição por grosso de medicamentos, no respeito das disposições do presente título. Do mesmo modo, as sociedades que exercem atividades de distribuição por grosso de medicamentos podem exercer atividades de venda ao público de medicamentos através da gestão de farmácias municipais.

1 ter.            O produtor e o distribuidor por grosso não podem impor aos retalhistas, sem justificação, condições diferentes das indicadas previamente nas condições gerais do contrato.

[...]»

20      O artigo 101.° do Decreto 219/2006 enuncia os requisitos exigidos para obtenção da autorização de distribuição por grosso de medicamentos.

21      O artigo 147.° do referido decreto, sob a epígrafe «Sanções penais», prevê, no seu n.° 4, o seguinte:

«O titular ou o representante legal da empresa que inicia a atividade de distribuição por grosso de medicamentos sem dispor da autorização prevista no artigo 100.°, ou que a continue a exercer apesar de a autorização ter sido retirada ou suspensa, será punido com pena de prisão de seis meses a um ano e uma coima de 10 000 a 100 000 euros. Estas penas aplicam‑se igualmente a qualquer pessoa que exerça a atividade autorizada sem dispor da pessoa responsável a que se refere o artigo 101.°»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

22      Na sequência das investigações realizadas pelos «carabinieri», alguns farmacêuticos, entre os quais F. Caronna, foram participados à autoridade judiciária por terem exercido a atividade de distribuição por grosso de medicamentos sem serem titulares da autorização prevista pela lei italiana.

23      O Ministério Público do Tribunale di Palermo instaurou processos penais contra cada um dos farmacêuticos participados. Alguns destes processos foram arquivados a pedido do Ministério Público, com o fundamento de que um farmacêutico já autorizado a vender medicamentos a retalho estava dispensado da obrigação de obter a autorização prevista pela regulamentação nacional e da União aplicáveis na matéria.

24      No âmbito do processo penal instaurado contra F. Caronna, o Ministério Público pediu igualmente o seu arquivamento. Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu ordenar uma investigação suplementar a fim de conhecer a posição da autoridade administrativa competente. Esta respondeu que um farmacêutico já autorizado a vender medicamentos a retalho deveria obter uma autorização especial para poder também vender medicamentos por grosso. Não obstante, o Ministério Público reiterou o seu pedido de arquivamento, com o fundamento de que a regulamentação da União não exige essa autorização especial.

25      O órgão jurisdicional de reenvio considera que, na medida em que a responsabilidade penal do demandado depende da obrigação de possuir uma autorização que não solicitou, é necessário conhecer a interpretação correta do artigo 77.° da diretiva que é reproduzido pela legislação nacional. Esse órgão jurisdicional também se questiona sobre até que ponto se justifica sujeitar um farmacêutico aos requisitos formais e materiais relativos à autorização em causa, quando, no essencial, estes requisitos já estão previstos pela legislação nacional sobre a venda de medicamentos a retalho.

26      Nestas condições, o Tribunale di Palermo decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      [O n.° 2 do artigo 77.° da diretiva] deve ser interpretado no sentido de que também os farmacêuticos devem [possuir] autorização para a distribuição por grosso de medicamentos[…] ou antes no sentido de que a intenção do legislador [da União] era, de qualquer modo, a de dispensar os farmacêuticos de requerer essa autorização, como parece resultar da leitura do considerando 36 [desta diretiva]?

2)      Mais genericamente, […] qual é a interpretação correta da regulamentação da autorização para a distribuição de medicamentos, prevista nos artigos 76.° a 84.° da diretiva, designadamente no que se refere aos requisitos estabelecidos para que o farmacêutico (entendido como pessoa singular e não como sociedade), nessa qualidade já autorizado a vender medicamentos a retalho pelo ordenamento nacional, possa efetuar também a distribuição [por grosso de] medicamentos [?]»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

27      Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 77.°, n.° 2, da diretiva, lido à luz do seu considerando 36, deve ser interpretado no sentido de que a obrigação de dispor de uma autorização de distribuição por grosso de medicamentos se aplica a um farmacêutico que, como pessoa singular, está autorizado, nos termos da legislação nacional, a exercer igualmente a atividade de grossista de medicamentos.

28      O artigo 77.°, n.° 1, da diretiva impõe aos Estados‑Membros a obrigação geral de sujeitar a distribuição por grosso de medicamentos à posse de uma autorização específica. A mesma obrigação está enunciada no primeiro período do considerando 36 da diretiva, nos termos do qual «qualquer pessoa que intervenha na distribuição por grosso dos medicamentos deve ser titular de uma autorização específica».

29      O artigo 77.°, n.° 2, da diretiva precisa que esta obrigação se impõe igualmente às pessoas autorizadas ou habilitadas a fornecer medicamentos ao público quando também podem exercer a atividade de grossista.

30      F. Caronna considera que a diretiva distingue entre, por um lado, os farmacêuticos e, por outro, as pessoas autorizadas a fornecer medicamentos ao público. Em seu entender, o artigo 77.°, n.° 2, da diretiva prevê que estão obrigadas a dispor de uma autorização as pessoas autorizadas ou habilitadas a fornecer medicamentos ao público. Daqui resulta que os farmacêuticos não têm esta obrigação uma vez que não são expressamente mencionados nesta disposição e não estão abrangidos pela categoria mais ampla de «pessoas autorizadas ou habilitadas a fornecer medicamentos ao público» na aceção da referida disposição.

31      Esta argumentação não pode ser acolhida.

32      Com efeito, como alegam com razão os Governos húngaro e português, bem como a Comissão, a diretiva não utiliza de modo sistemático os conceitos de «farmacêuticos» e de «pessoas autorizadas ou habilitadas a fornecer medicamentos ao público». Na verdade, enquanto os artigos 1.°, n.° 17, e 81.°, primeiro parágrafo, da diretiva mencionam estes dois conceitos, os artigos 77.°, n.° 2, 80.°, alínea c), e 82.° da diretiva referem‑se unicamente ao segundo.

33      Ora, caso os farmacêuticos fossem excluídos da categoria de pessoas autorizadas ou habilitadas a fornecer medicamentos ao público, os distribuidores por grosso de medicamentos não poderiam, em aplicação do artigo 80.°, alínea c), da diretiva, fornecer‑lhes medicamentos, uma vez que os farmacêuticos não são mencionados nesta disposição. Consequentemente, os artigos 1.°, n.° 17, e 81.° da diretiva referem‑se expressamente aos farmacêuticos e às pessoas autorizadas ou habilitadas a fornecer medicamentos ao público como os destinatários da distribuição por grosso de medicamentos.

34      A única dispensa da obrigação de dispor da referida autorização está prevista no artigo 77.°, n.° 3, da diretiva, a favor das pessoas titulares de uma autorização de fabrico. A este respeito, importa recordar que as regras relativas ao fabrico de medicamentos foram objeto de harmonização no título IV da diretiva.

35      Em particular, apesar de, nos termos do artigo 40.°, n.° 1, da diretiva, o fabrico dos medicamentos estar, em geral, dependente da obrigação de ser titular de uma autorização, o n.° 2, segundo parágrafo, deste mesmo artigo prevê que a autorização de fabrico não é exigida para as preparações, divisões, alterações de acondicionamento ou apresentação, «quando tais operações forem executadas, unicamente tendo em vista a distribuição a retalho, por farmacêuticos numa farmácia ou por outras pessoas legalmente habilitadas nos Estados‑Membros a efetuar as ditas operações». Daqui resulta que, quando estas operações de fabrico não sejam efetuadas com vista à distribuição dos medicamentos a retalho, os farmacêuticos não estão dispensados da obrigação de possuir a autorização de fabrico, que abrange igualmente a autorização de distribuição por grosso de medicamentos.

36      Além disso, permitir aos farmacêuticos o exercício da atividade de distribuição por grosso de medicamentos sem autorização especial dar‑lhes‑ia uma vantagem concorrencial injustificada em relação às outras pessoas autorizadas ou habilitadas a fornecer medicamentos ao público que, nos termos do artigo 77.°, n.° 2, da diretiva, devem requerer tal autorização.

37      Por conseguinte, há que observar que os farmacêuticos estão incluídos na categoria mais ampla de pessoas autorizadas ou habilitadas a fornecer medicamentos ao público, na aceção do artigo 77.°, n.° 2, da diretiva, e, se o direito nacional lhes permitir exercer a atividade de distribuição por grosso de medicamentos, devem possuir a autorização prevista no n.° 1 deste mesmo artigo.

38      Esta interpretação não pode ser posta em causa pelo considerando 36 da diretiva que, no seu segundo período, enuncia que «[i]mporta, contudo, dispensar desta autorização os farmacêuticos e as pessoas autorizadas a fornecer medicamentos ao público e que se dediquem apenas a esta atividade».

39      Com efeito, resulta da referida redação que apenas estão dispensados da obrigação de possuir uma autorização específica os farmacêuticos e as pessoas habilitadas a fornecer medicamentos ao público e «que se dediquem apenas a esta atividade», ou seja, que não exerçam a atividade de distribuição por grosso de medicamentos. Por conseguinte, não há contradição entre o referido considerando 36 e o artigo 77.°, n.° 2, da diretiva, como alega o órgão jurisdicional de reenvio.

40      De qualquer forma, o preâmbulo de um ato da União não tem valor jurídico vinculativo e não pode ser invocado para derrogar as próprias disposições do ato em causa nem para interpretar estas disposições num sentido manifestamente contrário à sua redação (acórdãos de 25 de novembro de 1998, Manfredi, C‑308/97, Colet., p. I‑7685, n.° 30; de 24 de novembro de 2005, Deutsches Milch‑Kontor, C‑136/04, Colet., p. I‑10095, n.° 32; e de 2 de abril de 2009, Tyson Parketthandel, C‑134/08, Colet., p. I‑2875, n.° 16).

41      Atendendo ao exposto, há que responder à primeira questão que o artigo 77.°, n.° 2, da diretiva deve ser interpretado no sentido de que a obrigação de dispor de uma autorização de distribuição por grosso de medicamentos se aplica a um farmacêutico que, enquanto pessoa singular, está autorizado, nos termos da legislação nacional, a exercer igualmente a atividade de grossista de medicamentos.

 Quanto à segunda questão

42      Com a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se um farmacêutico que, nos termos da legislação nacional, está autorizado a exercer igualmente a atividade de grossista de medicamentos deve satisfazer todas as exigências impostas aos requerentes e aos titulares da autorização de distribuição por grosso de medicamentos por força dos artigos 76.° a 84.° da diretiva ou se basta que preencha os requisitos previstos pela regulamentação nacional para a venda dos medicamentos a retalho.

43      A título preliminar, importa recordar que as condições para o fornecimento de medicamentos ao público não estão harmonizadas, no estado atual, ao nível da União. Por conseguinte, os Estados‑Membros podem impor condições para o fornecimento de medicamentos ao público dentro dos limites do Tratado FUE [v. considerando 21 da Diretiva 2011/62/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2011, que altera a Diretiva 2001/83 que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano, para impedir a introdução na cadeia de abastecimento legal, de medicamentos falsificados (JO L 174, p. 74)]. Consequentemente, o regime aplicável às pessoas encarregadas da distribuição a retalho dos medicamentos varia de um Estado‑Membro para outro (acórdão de 19 de maio de 2009, Comissão/Itália, C‑531/06, Colet., p. I‑4103, n.° 38).

44      Em contrapartida, as exigências mínimas que devem ser cumpridas pelos requerentes e pelos titulares da autorização de distribuição por grosso de medicamentos estão harmonizadas pela diretiva, nomeadamente nos seus artigos 79.° a 82.° Por conseguinte, a segunda questão deve ser examinada à luz das referidas disposições.

45      Deste modo, o artigo 79.° da diretiva prevê que a concessão da autorização de grossista de medicamentos depende da existência de locais, instalações e equipamentos adaptados e de pessoal qualificado, por forma a assegurar uma boa conservação e distribuição dos medicamentos.

46      O cumprimento dos requisitos exigidos para a concessão desta autorização está sujeito a controlo durante o período em que a mesma é detida. Além disso, há outras exigências, especificadas nos artigos 80.° a 82.° da diretiva, que o titular da autorização deve respeitar, nomeadamente as que se referem à documentação das transações, ao fornecimento de medicamentos e ao respeito dos princípios e diretrizes relativos às boas práticas de distribuição.

47      Uma vez que a venda de medicamentos a retalho tem características diferentes da distribuição por grosso dos mesmos, o simples facto de os farmacêuticos satisfazerem as condições a que está subordinada a venda a retalho nos seus respetivos Estados‑Membros não permite presumir que cumprem igualmente as condições previstas pelas regras harmonizadas ao nível da União no que respeita à distribuição por grosso.

48      Consequentemente, a fim de garantir a realização dos objetivos da diretiva, nomeadamente os de proteção da saúde pública, de eliminação dos entraves ao comércio de medicamentos na União e do exercício do controlo de toda a cadeia de distribuição de medicamentos, enunciados nos considerandos 2 a 5 e 35 da diretiva, as exigências mínimas para a distribuição por grosso de medicamentos devem ser preenchidas de forma efetiva e uniforme por todas as pessoas que exercem esta atividade em todos os Estados‑Membros.

49      Esta conclusão não prejudica a possibilidade de uma autoridade nacional competente ter em conta, quando concede aos farmacêuticos autorizações para a distribuição por grosso de medicamentos, a eventual equivalência aos requisitos relativos à autorização para venda de medicamentos a retalho, em aplicação da regulamentação nacional.

50      Por conseguinte, há que responder à segunda questão que um farmacêutico que, nos termos da legislação nacional, está autorizado a exercer igualmente a atividade de grossista de medicamentos deve satisfazer todas as exigências impostas aos requerentes e aos titulares da autorização de distribuição por grosso de medicamentos por força dos artigos 79.° a 82.° da diretiva.

 Quanto à obrigação de interpretação conforme em matéria penal

51      Importa recordar, como acertadamente fez a Comissão, que, mesmo que os órgãos jurisdicionais nacionais estejam obrigados a interpretar o direito interno, tanto quanto lhes for possível, à luz do teor e da finalidade de uma diretiva para atingirem o resultado visado por esta e, deste modo, respeitarem o artigo 288.°, terceiro parágrafo, TFUE, esta obrigação de interpretação conforme depara com determinados limites em matéria penal.

52      Com efeito, como decidiu o Tribunal de Justiça, o princípio da interpretação conforme está limitado pelos princípios gerais de direito, que fazem parte integrante do direito da União, designadamente pelos princípios da segurança jurídica e da não retroatividade. Uma diretiva não pode, por si só e independentemente de uma lei interna adotada por um Estado‑Membro para a sua aplicação, criar ou agravar a responsabilidade penal de quem viole as suas disposições (v., designadamente, acórdão de 7 de janeiro de 2004, X, C‑60/02, Colet., p. I‑651, n.° 61 e jurisprudência referida).

53      No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que o fundamento da responsabilidade penal de F. Caronna é a infração descrita e regulamentada no artigo 147.°, n.° 4, do Decreto 219/2006, lido em conjugação com o artigo 100.°, n.os 1 e 1 bis, do referido decreto, embora esta disposição não refira expressamente os farmacêuticos apesar da supressão da proibição de estes últimos exercerem a atividade de distribuição por grosso de medicamentos.

54      Todavia, compete exclusivamente ao órgão jurisdicional nacional, e não ao Tribunal de Justiça, pronunciar‑se sobre a interpretação do direito nacional.

55      Caso o órgão jurisdicional de reenvio conclua que o direito nacional, na sua redação aplicável aos factos do processo principal, não impõe aos farmacêuticos a obrigação de possuírem a autorização específica para a distribuição por grosso de medicamentos e não prevê expressamente a responsabilidade penal dos farmacêuticos, o princípio da legalidade das penas, conforme consagrado no artigo 49.°, n.° 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proíbe a aplicação de sanções penais a tal comportamento, mesmo no caso de a regra nacional ser contrária ao direito da União (v., por analogia, acórdão X, já referido, n.° 63).

56      Por conseguinte, a interpretação da diretiva, conforme resulta dos n.os 41 e 50 do presente acórdão, não pode, por si só e independentemente de uma lei adotada por um Estado‑Membro, criar ou agravar a responsabilidade penal de um farmacêutico que exerceu a atividade de distribuição por grosso sem dispor da respetiva autorização.

 Quanto às despesas

57      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

1)      O artigo 77.°, n.° 2, da Diretiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano, conforme alterada pela Diretiva 2009/120/CE da Comissão, de 14 de setembro de 2009, deve ser interpretado no sentido de que a obrigação de dispor de uma autorização de distribuição por grosso de medicamentos se aplica a um farmacêutico que, enquanto pessoa singular, está autorizado, nos termos da legislação nacional, a exercer igualmente a atividade de grossista de medicamentos.

2)      Um farmacêutico que, nos termos da legislação nacional, está autorizado a exercer igualmente a atividade de grossista de medicamentos deve satisfazer todas as exigências impostas aos requerentes e aos titulares da autorização de distribuição por grosso de medicamentos por força dos artigos 79.° a 82.° da Diretiva 2001/83, conforme alterada pela Diretiva 2009/120.

3)      Esta interpretação não pode, por si só e independentemente de uma lei adotada por um Estado‑Membro, criar ou agravar a responsabilidade penal de um farmacêutico que exerceu a atividade de distribuição por grosso sem dispor da respetiva autorização.

Assinaturas


* Língua do processo: italiano.