Language of document : ECLI:EU:C:2002:326

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

4 de Junho de 2002 (1)

«Incumprimento de Estado - Artigos 52.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 43.° CE) e 73.°-B do Tratado CE (actual artigo 56.° CE) - Regime de autorização administrativa relativo a empresas privatizadas»

No processo C-367/98,

Comissão das Comunidades Europeias, representada inicialmente por A. Caeiro e, em seguida, por F. Benyon e F. de Sousa Fialho, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

contra

República Portuguesa, representada inicialmente por L. Fernandes e L. Bigotte Chorão e, em seguida, por L. Fernandes e J. Vasconcelos, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandada,

que tem por objecto obter a declaração de que, ao aprovar e manter em vigor a Lei n.° 11/90, de 5 de Abril de 1990, Lei Quadro das Privatizações (Diário da República, I série-A, n.° 80, de 5 de Abril de 1990, p. 1664), designadamente o seu artigo 13.°, n.° 3, os decretos-leis de privatização de empresas posteriormente aprovados em sua aplicação, bem como os Decretos-Leis n.° 380/93, de 15 de Novembro de 1993 (Diário da República, I série- A, n.° 267, de 15 de Novembro de 1993, p. 6362) e n.° 65/94, de 28 de Fevereiro de 1994 (Diário da República, I série-A, n.° 49, de 28 de Fevereiro de 1994, p. 933), a República Portuguesa não cumpriu as obrigações decorrentes do Tratado CE, designadamente dos seus artigos 52.° (que passou, após alteração, a artigo 43.° CE), 56.° (que passou, após alteração, a artigo 46.° CE), 58.° (actual artigo 48.° CE), 73.°-B (actual artigo 56.° CE) e dos artigos seguintes, bem como do seu artigo 221.° (que passou, após alteração, a artigo 294.° CE) e dos artigos 221.° a 231.° do Acto relativo às condições de adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa e às adaptações dos Tratados (JO 1985, L 302, p. 23),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, P. Jann (relator), N. Colneric e S. von Bahr, presidentes de secção, C. Gulmann, D. A. O. Edward, A. La Pergola, J.-P. Puissochet, R. Schintgen, V. Skouris e J. N. Cunha Rodrigues, juízes,

advogado-geral: D. Ruiz-Jarabo Colomer,


secretário: D. Rühl, administrador principal,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações das partes na audiência de 2 de Maio de 2001, na qual a Comissão foi representada por F. de Sousa Fialho e por M. Patakia, na qualidade de agente, e a República Portuguesa, por L. Fernandes e C. Botelho Moniz, na qualidade de agente,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 3 de Julho de 2001,

profere o presente

Acórdão

1.
    Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 14 de Outubro de 1998, a Comissão das Comunidades Europeias propôs, nos termos do artigo 169.° do Tratado CE (actual artigo 226.° CE), uma acção com vista a obter a declaração de que, ao aprovar e manter em vigor a Lei n.° 11/90, de 5 de Abril de 1990, Lei Quadro das Privatizações (Diário da República, I série-A, n.° 80, de 5 de Abril de 1990, p. 1664, a seguir «Lei n.° 11/90»), designadamente o seu artigo 13.°, n.° 3, os decretos-leis de privatização de empresas posteriormente aprovados em sua aplicação, bem como os Decretos-Leis n.° 380/93, de 15 de Novembro de 1993 (Diário da República, I série-A, n.° 267, de 15 de Novembro de 1993, p. 6362, a seguir «Decreto-Lei n.° 380/93»), e n.° 65/94, de 28 de Fevereiro de 1994 (Diário da República, I série-A, n.° 49, de 28 de Fevereiro de 1994, p. 933, a seguir «Decreto-Lei n.° 65/94»), a República Portuguesa não cumpriu as obrigações decorrentes do Tratado CE, designadamente dos seus artigos 52.° (que passou, após alteração, a artigo 43.° CE), 56.° (que passou, após alteração, a artigo 46.° CE), 58.° (actual artigo 48.° CE), 73.°-B (actual artigo 56.° CE) e dos artigos seguintes, bem como do seu artigo 221.° (que passou, após alteração, a artigo 294.° CE) e dos artigos 221.° a 231.° do Acto relativo às condições de adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa e às adaptações dos Tratados (JO 1985, L 302, p. 23, a seguir «acto de adesão»).

Enquadramento jurídico

2.
    O artigo 73.°-B, n.° 1, do Tratado tem a seguinte redacção:

«No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.»

3.
    Nos termos do artigo 73.°-D, n.° 1, alínea b), do Tratado [actual artigo 58.°, n.° 1, alínea b), CE]:

«O disposto no artigo 73.°-B não prejudica o direito de os Estados-Membros:

[...]

b)    Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infracções às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.»

4.
    O anexo I da Directiva 88/361/CEE do Conselho, de 24 de Junho de 1988, para a execução do artigo 67.° do Tratado (JO L 178, p. 5), contém uma nomenclatura dos movimentos de capitais a que se refere o artigo 1.° dessa directiva. Aquela enuncia, nomeadamente, os movimentos seguintes:

«I. Investimentos directos [...]

1)    Criação e extensão de sucursais ou de empresas novas pertencentes exclusivamente ao investidor e aquisição integral de empresas existentes.

2)    Participação em empresas novas ou existentes com vista a criar ou manter laços económicos duradouros.

[...]»

5.
    Nos termos das notas explicativas que constam do final do anexo I da Directiva 88/361, por «investimentos directos» entende-se:

«Os investimentos de qualquer natureza efectuados por pessoas singulares, empresas comerciais, industriais ou financeiras e que servem para criar ou manter relações duradouras e directas entre o investidor e o empresário ou a empresa a que se destinam esses fundos com vista ao exercício de uma actividade económica. Esta noção deve pois ser considerada na sua acepção mais lata.

[...]

No que se refere às empresas mencionadas no ponto I 2 da nomenclatura e que têm o estatuto de sociedades por acções, existe participação com carácter de investimentos directos, quando o lote de acções que se encontra na posse de uma pessoa singular, de uma outra empresa ou de qualquer outro detentor, dá a esses accionistas, quer por força do disposto na legislação nacional sobre as sociedades por acções, quer por qualquer outro modo, a possibilidade de participarem efectivamente na gestão dessa sociedade ou no seu controlo.

[...]»

6.
    A nomenclatura constante do anexo I da Directiva 88/361 refere também os seguintes movimentos:

«III.    Operações sobre títulos normalmente transaccionados no mercado de capitais [...]

    [...]

A.    Transacções sobre títulos do mercado de capitais

    1)    Aquisição, por não-residentes, de títulos nacionais negociados na bolsa [...]

    [...]

    3)    Aquisição, por não-residentes, de títulos nacionais não negociados na bolsa [...]

    [...]»

7.
    O artigo 222.° do Tratado CE (actual artigo 295.° CE) dispõe:

«O presente Tratado em nada prejudica o regime da propriedade nos Estados-Membros.»

8.
    Nos termos do artigo 222.° do acto de adesão:

«1.    Até 31 de Dezembro de 1989, a República Portuguesa pode manter um regime de autorização prévia para os investimentos directos, na acepção da Primeira Directiva do Conselho de 11 de Maio de 1960 para a execução do artigo 67.° do Tratado CEE alterada e completada pela Segunda Directiva 63/21/CEE do Conselho, de 18 de Dezembro de 1962, e pelo acto de adesão de 1972, efectuados em Portugal por nacionais dos outros Estados-Membros e relacionados com o exercício do direito de estabelecimento e da livre prestação de serviços, e cujo valor global ultrapasse respectivamente os seguintes montantes:

[...]

2.    O número anterior não se aplica aos investimentos directos relativos ao sector dos estabelecimentos de crédito.

3.    Para todos os projectos de investimento submetidos a autorização prévia por força do n.° 1, as autoridades portuguesas devem pronunciar-se o mais tardar dois meses após a apresentação do pedido. Se tal se não tiver verificado no prazo indicado, o investimento projectado considera-se autorizado.

4.    Os investidores referidos no n.° 1 não podem ser discriminados entre si nem receber um tratamento menos favorável do que o concedido aos nacionais de países terceiros.»

9.
    O artigo 231.° do acto de adesão está redigido da seguinte forma:

«A República Portuguesa efectuará, se as circunstâncias o permitirem, a liberalização dos movimentos de capitais e das transacções de invisíveis prevista nos artigos 224.° a 230.° antes do termo dos prazos fixados nesses artigos.»

Direito nacional

10.
    A Lei n.° 11/90 dispõe no seu artigo 3.°:

«As reprivatizações obedecem aos seguintes objectivos essenciais:

a)    Modernizar as unidades económicas e aumentar a sua competitividade e contribuir para as estratégias de reestruturação sectorial ou empresarial;

b)    Reforçar a capacidade empresarial nacional;

c)    Promover a redução do peso do Estado na economia;

d)    Contribuir para o desenvolvimento do mercado de capitais;

e)    Possibilitar uma ampla participação dos cidadãos portugueses na titularidade do capital das empresas, através de uma adequada dispersão do capital, dando particular atenção aos trabalhadores das próprias empresas e aos pequenos subscritores;

f)    Preservar os interesses patrimoniais do Estado e valorizar os outros interesses nacionais;

g)    Promover a redução do peso da dívida pública na economia.»

11.
    O artigo 13.°, n.° 3, da Lei n.° 11/90 dispõe:

«O diploma que operar a transformação poderá ainda limitar o montante das acções a adquirir ou a subscrever pelo conjunto de entidades estrangeiras ou cujo capital seja detido maioritariamente por entidades estrangeiras, bem como fixar o valor máximo da respectiva participação no capital social e correspondente modo de controlo, sob pena de venda coerciva das acções que excedam tais limites, ou perda do direito de voto conferido por essas acções, ou ainda de nulidade de tais aquisições ou subscrições, nos termos que forem determinados.»

12.
    A possibilidade dada pelo artigo 13.°, n.° 3, da Lei n.° 11/90 parece ter sido utilizada num grande número de decretos-leis que regulamentam a privatização de determinadas empresas e especificam, em cada caso, a participação estrangeira máxima autorizada. Na petição, a Comissão refere quinze decretos-leis que prevêem participações estrangeiras máximas que variam entre os 5% e os 40%, no que respeita a empresas a operar nos sectores bancário, dos seguros, da energia e dos transportes.

13.
    O artigo único do Decreto-Lei n.° 65/94 dispõe:

«Para efeitos do disposto no n.° 3 do artigo 13.° da Lei n.° 11/1990, de 5 de Abril, o limite quantitativo à participação de entidades estrangeiras no capital das sociedades cujo processo de reprivatização se encontre concluído passará a ser de 25%, salvo se, em diploma que haja regulamentado aquele processo, o limite fixado já for superior.»

14.
    O Decreto-Lei n.° 380/93 dispõe no artigo 1.°:

«1.    A aquisição, entre vivos, a título oneroso ou gratuito, por uma só entidade, singular ou colectiva, de acções representativas de mais de 10% do capital com direito a voto ou a aquisição de acções que, adicionadas às já detidas, ultrapassem aquele limite, em sociedades que venham a ser objecto de reprivatização, ficam sujeitas a autorização prévia do Ministro das Finanças.

2.    Sem prejuízo do que venha a ser estabelecido para cada operação de privatização, o disposto no número anterior só se aplica aos actos de aquisição subsequentes às operações de privatização.»

O processo pré-contencioso

15.
    Depois de contactos em 1992, 1993 e 1994, que se revelaram infrutíferos, a Comissão endereçou ao Governo português, em 4 de Julho de 1994, uma notificação para cumprimento, em que se referia que a Lei n.° 11/90 bem como os Decretos-Leis n.os 390/93 e 65/94 constituíam uma infracção dos artigos 52.°, 56.°, 58.°, 73.°-B e seguintes bem como do artigo 221.° do Tratado e dos artigos 221.° a 231.° do acto de adesão.

16.
    O Governo português respondeu a essa notificação para cumprimento por carta de 28 de Setembro de 1994, na qual alegava que a situação especial de Portugal desde 1975 justificava as restrições em causa. Simultaneamente, este Governo comprometia-se, quanto às privatizações futuras, a deixar de impor restrições à aquisição de acções com base na nacionalidade dos investidores.

17.
    Não tendo ficado convencida pelos argumentos apresentados pelo Governo português, a Comissão, em 29 de Maio de 1995, dirigiu à República Portuguesa um parecer fundamentado.

18.
    O Governo português respondeu ao parecer fundamentado por carta de 7 de Setembro de 1995. Nessa carta, comprometia-se de novo a não utilizar, em próximas privatizações, a faculdade de limitar a participação dos investidores comunitários ao abrigo da Lei n.° 11/90. Além disso, afirmava que o regime estabelecido pelo Decreto-Lei n.° 380/93 era aplicável sem qualquer discriminação em razão da nacionalidade dos investidores e tinha em vista permitir a realização dos objectivos prosseguidos pelas operações de reprivatização nos termos do artigo 3.° da Lei n.° 11/90.

19.
    Não satisfeita com estas respostas, a Comissão decidiu intentar no Tribunal de Justiça a presente acção.

Fundamentos e argumentos das partes

20.
    A Comissão expõe, a título preliminar, que a dimensão considerável dos investimentos intracomunitários levou certos Estados-Membros a adoptar medidas com a preocupação de controlar esta situação. Havia o risco de essas medidas, adoptadas em grande parte no âmbito das privatizações, serem incompatíveis, em certas condições, com o direito comunitário. Foi por isso que adoptou, em 19 de Julho de 1997, a comunicação relativa a certos aspectos jurídicos dos investimentos intracomunitários (JO C 220, p. 15, a seguir «comunicação de 1997»).

21.
    Nessa comunicação, a Comissão interpretou, nessa matéria, as disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais e à liberdade de estabelecimento, nomeadamente no âmbito dos processos de autorização geral ou do direito de veto das autoridades públicas.

22.
    O ponto 9 da comunicação de 1997 está redigido da seguinte forma:

«Conclui-se desta análise das medidas que revestem um carácter restritivo para os investimentos intracomunitários, que as medidas discriminatórias (isto é, as que se aplicam exclusivamente aos investidores nacionais de um outro Estado-Membro da União Europeia) serão consideradas incompatíveis com os artigos 73.°-B e 52.° do Tratado relativos à livre circulação de capitais e ao direito de estabelecimento, salvo se forem abrangidas por uma das derrogações previstas pelo Tratado. No que se refere às medidas não discriminatórias (isto é, as que se aplicam indistintamente aos nacionais desse Estado e aos nacionais de um outro Estado-Membro da União Europeia) são aceites na medida em que se baseiem numa série de critérios objectivos, estáveis e públicos e se justifiquem por razões imperativas de interesse geral. De qualquer modo, o princípio da proporcionalidade deverá ser sempre respeitado.»

23.
    Segundo a Comissão, a regulamentação em causa não respeita as condições enunciadas na comunicação de 1997.

24.
    Em primeiro lugar, a proibição de os investidores nacionais de outro Estado-Membro adquirirem mais do que um número definido de acções em determinadas empresas portuguesas, nos termos do Decreto-Lei n.° 65/94 conjugado com a Lei n.° 11/90, estabelece uma discriminação entre as entidades portuguesas e as entidades dos outros Estados-Membros, incompatível com os artigos 52.° e 73.°-B do Tratado. Tais restrições discriminatórias só podem ser aceites se forem justificadas por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública, o que não é, porém, o caso no presente processo.

25.
    Em segundo lugar, a obrigação, resultante do Decreto-Lei n.° 380/93, de se obter uma autorização prévia para se adquirir uma participação que ultrapasse um determinado nível numa empresa portuguesa, também não está em conformidade com os artigos 52.° e 73.°-B do Tratado.

26.
    Com efeito, estas disposições nacionais, embora indistintamente aplicáveis, criam obstáculos ao direito de estabelecimento dos cidadãos de outros Estados-Membros bem como à livre circulação de capitais na Comunidade, na medida em que são susceptíveis de perturbar ou de tornar menos atractivo o exercício dessas liberdades.

27.
    Segundo a Comissão, os processos de autorização ou de oposição só podem ser considerados compatíveis com as referidas liberdades se estiverem abrangidos pelas excepções referidas nos artigos 55.° do Tratado CE (actual artigo 45.° CE), bem como pelos artigos 56.° e 73.°-D do Tratado, ou se se justificarem por razões imperativas de interesse geral e forem acompanhados de critérios objectivos, estáveis e públicos, de forma a limitar ao mínimo o poder discricionário das autoridades nacionais.

28.
    Ora, as disposições em causa não respondem a nenhum destes critérios e as condições das referidas excepções não estão preenchidas. Além disso, o artigo 222.° do Tratado não pode ser invocado com pertinência no caso presente. Esta disposição apenas significa que cada Estado-Membro pode organizar como entender o regime de propriedade das empresas, respeitando, porém, as liberdades fundamentais consagradas no Tratado.

29.
    O Governo português contesta o incumprimento alegado. No que respeita, em primeiro lugar, à proibição de os investidores nacionais de outro Estado-Membro adquirirem mais do que um número definido de acções em determinadas empresas portuguesas, nos termos do Decreto-Lei n.° 65/94, conjugado com a Lei n.° 11/90, o Governo português, embora admitindo a alegada violação no plano dos princípios, alega, não obstante, que se comprometeu politicamente, desde 1994, a não fazer uso dos poderes que lhe são conferidos por essas disposições. Por outro lado, por força do efeito directo e do primado do direito comunitário, essas disposições devem, de qualquer forma, ser interpretadas no sentido de se referirem unicamente aos investidores que não forem nacionais da Comunidade.

30.
    Em segundo lugar, no que respeita à obrigação, resultante do Decreto-Lei n.° 380/93, de se obter uma autorização prévia para se adquirir uma participação que ultrapasse um determinado nível numa empresa portuguesa, trata-se de um regime de aplicação genérica a quaisquer investidores potenciais - nacionais, comunitários ou estrangeiros -, que não cria qualquer restrição ou discriminação com base na nacionalidade.

31.
    De qualquer forma, há razões imperativas de interesse geral que justificam a existência deste regime. O Decreto-Lei n.° 380/93 tem em vista permitir à República Portuguesa, quando reprivatiza uma empresa por etapas, garantir, em nome da defesa do interesse geral, que os objectivos de política económica prosseguidos pela reprivatização não sejam postos em causa no decurso da operação. Esses objectivos podem ser, consoante as operações, quer a escolha de um parceiro estratégico, atenta a internacionalização da empresa, quer o reforço da estrutura concorrencial do mercado em causa, quer a modernização e o reforço da eficácia dos meios de produção.

32.
    Por outro lado, o Governo português considera que seria inadmissível que um Estado-Membro não pudesse conduzir um processo de reprivatização intervindo, através de meios adequados, com respeito das disposições gerais do Tratado, para salvaguarda do seu interesse financeiro. Tal interesse constitui uma razão imperativa de interesse geral.

33.
    Considera que o critério da proporcionalidade também está preenchido. Com efeito, a apreciação das operações que alteram a estrutura accionista constitui um meio apropriado para se atingir o objectivo prosseguido.

34.
    Quanto ao carácter necessário do referido regime, o Governo português alega que o mesmo só se aplica enquanto a operação de reprivatização estiver em curso e apenas se refere a participações importantes, isto é, as que conferem mais de 10% dos direitos de voto.

35.
    Além disso, as decisões tomadas pelo Ministro das Finanças nos termos do Decreto-Lei n.° 380/93 podem ser sujeitas a fiscalização por meio de recurso contencioso e, sendo caso disso, ser declaradas inválidas.

Apreciação do Tribunal

Quanto ao artigo 73.°-B do Tratado

36.
    A título preliminar, há que lembrar que o artigo 73.°-B, n.° 1, do Tratado institui a livre circulação de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros. Para o efeito, determina, no âmbito das disposições do capítulo do Tratado intitulado «Os capitais e os pagamentos», que são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.

37.
    Embora o Tratado não defina os conceitos de movimentos de capitais e de pagamentos, está assente que a Directiva 88/361, conjuntamente com a nomenclatura que lhe está anexa, tem um valor indicativo para a definição do conceito de movimentos de capitais (v. acórdão de 16 de Março de 1999, Trummer e Mayer, C-222/97, Colect., p. I-1661, n.os 20 e 21).

38.
    Com efeito, os pontos I e III da nomenclatura que consta do anexo I da Directiva 88/361, bem como as notas explicativas que aí se encontram, indicam que o investimento directo sob a forma de participação numa empresa pela detenção de acções bem como a aquisição de títulos no mercado de capitais constituem movimentos de capitais na acepção do artigo 73.°-B do Tratado. De acordo com estas notas explicativas, o investimento directo, em particular, caracteriza-se pela possibilidade de participar efectivamente na gestão de uma sociedade e no seu controlo.

39.
    À luz destas considerações, há que analisar se a regulamentação em causa, que, por um lado, proíbe os investidores nacionais de outro Estado-Membro de adquirirem mais do que um número definido de acções em determinadas empresas portuguesas e, por outro, sujeita à autorização prévia da República Portuguesa a aquisição de uma participação que ultrapasse um dado nível em determinadas empresas portuguesas, constitui uma restrição aos movimentos de capitais entre os Estados-Membros.

40.
    No que respeita à proibição de os investidores nacionais de outro Estado-Membro adquirirem mais do que um número definido de acções em determinadas empresas portuguesas, está assente, o que aliás o Governo português não contesta, que se trata de um tratamento desigual de nacionais de outros Estados-Membros, que restringe a livre circulação de capitais. O Governo português não invoca justificações a esse respeito. Contudo, alega que se comprometeu politicamente a não fazer uso dos poderes que lhe são conferidos pelas disposições controvertidas e que, de qualquer forma, o efeito directo e o primado do direito comunitário têm como consequência que essas disposições devem ser interpretadas no sentido de se referirem apenas aos investidores que não sejam nacionais da Comunidade.

41.
    Este argumento do Governo português não pode ser aceite. Com efeito, constitui jurisprudência assente que a incompatibilidade de disposições nacionais com disposições do Tratado, ainda que directamente aplicáveis, só pode ser definitivamente eliminada através de normas internas de carácter obrigatório com o mesmo valor jurídico que as que devem ser alteradas. Simples práticas administrativas, por natureza modificáveis à vontade da administração e desprovidas de publicidade adequada, não podem ser consideradas cumprimento válido das obrigações impostas pelo Tratado, uma vez que mantêm, relativamente aos sujeitos de direito em causa, um estado de incerteza quanto à amplitude dos seus direitos tal como garantidos pelo Tratado (v., nomeadamente, acórdãos de 26 de Outubro de 1995, Comissão/Luxemburgo, C-151/94, Colect., p. I-3685, n.° 18, e de 9 de Março de 2000, Comissão/Itália, C-358/98, Colect., p. I-1255, n.° 17).

42.
    Por conseguinte, no que respeita à proibição de os investidores nacionais de outro Estado-Membro adquirirem mais do que um número definido de acções em determinadas empresas portuguesas, está demonstrado o incumprimento do artigo 73.°-B do Tratado.

43.
    No que respeita à obrigação de se obter uma autorização prévia da República Portuguesa para se adquirir uma participação que ultrapasse um dado nível em determinadas empresas portuguesas, o Governo português, embora admitindo, em princípio que as restrições resultantes da regulamentação em causa caem no âmbito de aplicação da livre circulação de capitais, alega que essa regulamentação se aplica sem distinção aos accionistas nacionais e aos accionistas cidadãos de outros Estados-Membros. Considera, assim, que não está em causa um tratamento discriminatório ou particularmente restritivo no que respeita aos cidadãos de outros Estados-Membros.

44.
    Este argumento não colhe. Com efeito, o artigo 73.°-B do Tratado proíbe de forma geral as restrições aos movimentos de capitais entre os Estados-Membros. Esta proibição vai além da eliminação de um tratamento desigual dos operadores nos mercados financeiros em razão da nacionalidade.

45.
    A regulamentação em causa, mesmo que não crie uma desigualdade de tratamento, pode impedir a aquisição de acções nas empresas em causa e dissuadir os investidores de outros Estados-Membros de procederem às suas aplicações no capital dessas empresas. É, por esse facto, susceptível de tornar ilusória a livre circulação de capitais (v., a este respeito, acórdãos de 14 de Dezembro de 1995, Sanz de Lera e o., C-163/94, C-165/94 e C-250/94, Colect., p. I-4821, n.° 25, e de 1 de Junho de 1999, Konle, C-302/97, Colect., p. I-3099, n.° 44).

46.
    Nestas condições, deve considerar-se que a regulamentação em causa constitui uma restrição aos movimentos de capitais na acepção do artigo 73.°-B do Tratado. Assim, há que analisar, se e em que condições, se pode admitir uma justificação dessa restrição.

47.
    Tal como resulta também da comunicação de 1997, não se podem negar as preocupações que podem, consoante as circunstâncias, justificar que os Estados-Membros conservem uma determinada influência nas empresas inicialmente públicas e posteriormente privatizadas, quando essas empresas actuam nos domínios dos serviços de interesse geral ou estratégicos (v. acórdãos desta mesma data, Comissão/França, C-483/99, ainda não publicado na Colectânea, n.° 43, e Comissão/Bélgica, C-503/99, ainda não publicado na Colectânea, n.° 43).

48.
    Estas preocupações não podem, porém, permitir aos Estados-Membros invocar os seus regimes de propriedade, tal como referidos no artigo 222.° do Tratado, para justificar entraves às liberdades previstas no Tratado, resultantes de um regime de autorização administrativa relativo a empresas privatizadas. Com efeito, tal como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça (acórdão Konle, já referido, n.° 38), o referido artigo não tem por efeito eximir os regimes de propriedade existentes nos Estados-Membros às regras fundamentais do Tratado.

49.
    A livre circulação de capitais, enquanto princípio fundamental do Tratado, só pode ser limitada por uma regulamentação nacional se esta se justificar pelas razões referidas no artigo 73.°-D, n.° 1, do Tratado ou por razões imperiosas de interesse geral e que se apliquem a qualquer pessoa ou empresa que exerça uma actividade no território do Estado-Membro de acolhimento. Além disso, para ser desse modo justificada, a regulamentação nacional deve ser adequada a garantir a realização do objectivo que prossegue e não ultrapassar o necessário para o atingir, a fim de respeitar o critério da proporcionalidade (v., neste sentido, acórdãos Sanz de Lera e o., já referido, n.° 23, e de 14 de Março de 2000, Église de scientologie, C-54/99, Colect., p. I-1335, n.° 18).

50.
    Quanto a um regime de autorização administrativa prévia como o do caso presente, o Tribunal de Justiça já declarou que o mesmo deve ser proporcionado ao objectivo prosseguido, de modo tal que o mesmo objectivo não poderia ser alcançado por medidas menos restritivas, nomeadamente por um sistema de declarações a posteriori (v., neste sentido, acórdãos Sanz de Lera e o., já referido, n.os 23 a 28; Konle, já referido, n.° 44; e de 20 de Fevereiro de 2001, Analir e o., C-205/99, Colect., p. I-1271, n.° 35). Tal regime deve ser fundamentado em critérios objectivos, não discriminatórios e conhecidos antecipadamente pelas empresas em causa, e qualquer pessoa lesada por uma medida restritiva desse género deve poder dispor de uma via de recurso (acórdão Analir e o., já referido, n.° 38).

51.
    Tendo em conta estas considerações, há que analisar as justificações invocadas pelo Governo português.

52.
    Quanto à protecção do interesse financeiro da República Portuguesa, há que lembrar que, para além das razões enumeradas no artigo 73.°-D, n.° 1, do Tratado, relativas, nomeadamente, ao direito fiscal, não é aceite uma justificação assente num interesse financeiro geral do Estado-Membro. Com efeito, é jurisprudência assente que motivos de natureza económica não podem servir de justificação a entraves proibidos pelo Tratado (v., quanto à livre circulação de mercadorias, acórdão de 9 de Dezembro de 1997, Comissão/França, C-265/95, Colect., p. I-6959, n.° 62; e, quanto à livre prestação de serviços, acórdão de 5 de Junho de 1997, SETTG, C-398/95, Colect., p. I-3091, n.° 23). Este entendimento aplica-se igualmente aos objectivos de política económica que se reflectem no artigo 3.° da Lei n.° 11/90, bem como aos objectivos invocados pelo Governo português no âmbito do presente processo, isto é, a escolha de um parceiro estratégico, o reforço da estrutura concorrencial do mercado em causa, bem como a modernização e o reforço da eficácia dos meios de produção. Tais interesses não podem constituir uma justificação válida das restrições à liberdade fundamental em causa.

53.
    Por conseguinte, no que respeita à obrigação de se obter uma autorização prévia da República Portuguesa para se adquirir uma participação que ultrapasse um dado nível em determinadas empresas portuguesas, está demonstrado o incumprimento do artigo 73.°-B do Tratado.

54.
    Em face das considerações expostas, há que declarar que, ao aprovar e manter em vigor as disposições controvertidas, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 73.°-B do Tratado.

Quanto aos artigos 52.°, 56.°, 58.° e 221.° do Tratado

55.
    A Comissão pede ainda a declaração de um incumprimento dos artigos 52.°, 56.°, 58.° e 221.° do Tratado, isto é, das suas regras relativas à liberdade de estabelecimento, na medida em que se referem às empresas.

56.
    A esse respeito, há que dizer que, na medida em que a regulamentação em causa contenha restrições à liberdade de estabelecimento, essas restrições são consequência directa dos obstáculos à livre circulação de capitais, acima analisados, dos quais são indissociáveis. Assim, sendo declarada uma violação do artigo 73.°-B do Tratado, não é necessário analisar separadamente as medidas em causa à luz das regras do Tratado relativas à liberdade de estabelecimento.

Quanto aos artigos 221.° a 231.° do acto de adesão

57.
    A Comissão pede ainda ao Tribunal de Justiça que declare que a aprovação e a manutenção em vigor da regulamentação em causa constituem um incumprimento dos artigos 221.° a 231.° do acto de adesão. Contudo, não indica, nos fundamentos da acção, em que consiste tal incumprimento.

58.
    Há que reconhecer que essas disposições do acto de adesão instituem, quanto aos investimentos directos, um regime transitório que atingiu o seu fim em 31 de Dezembro de 1989. Na medida em que a regulamentação nacional em causa foi inteiramente adoptada depois dessa data, não pode violar um regime transitório que esgotou os seus efeitos.

59.
    Há que julgar, pois, improcedente o pedido da Comissão de declaração de um incumprimento dos artigos 221.° a 231.° do acto de adesão.

Quanto às despesas

60.
    Nos termos do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da República Portuguesa nas despesas e tendo esta sido vencida no essencial, há que condená-la nas despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA

decide:

1)    Ao aprovar e manter em vigor a Lei n.° 11/90, de 5 de Abril de 1990, Lei Quadro das Privatizações, designadamente o seu artigo 13.°, n.° 3, os decretos-Leis de privatização de empresas posteriormente aprovados em sua aplicação, bem como os Decretos-Leis n.° 380/93, de 15 de Novembro de 1993, e n.° 65/94, de 28 de Fevereiro de 1994, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 73.°-B do Tratado CE (actual artigo 56.° CE).

2)    A acção é julgada improcedente quanto ao restante.

3)    A República Portuguesa é condenada nas despesas.

Rodríguez Iglesias
Jann
Colneric

von Bahr

Gulmann
Edward

La Pergola

Puissochet
Schintgen

Skouris

Cunha Rodrigues

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 4 de Junho de 2002.

O secretário

O presidente

R. Grass

G. C. Rodríguez Iglesias


1: Língua do processo: português.