Language of document : ECLI:EU:C:2000:361

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

4 de Julho de 2000 (1)

«Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância - Responsabilidade extracontratual da Comunidade - Adopção da Directiva 95/34/CE»

No processo C-352/98 P,

Laboratoires pharmaceutiques Bergaderm SA, em liquidação judicial, com sede em Rungis (França),

e

Jean-Jacques Goupil, residente em Chevreuse (França),

representados por J.-P. Spitzer e Y.-M. Moray, advogados no foro de Paris, com domicílio escolhido no Luxemburgo no escritório do advogado A. May, 398, route d'Esch,

recorrentes,

que tem por objecto um recurso de anulação do acórdão proferido pelo Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias (Terceira Secção) em 16 de Julho de 1998, Bergaderm e Goupil/Comissão (T-199/96, Colect., p. II-2805),

sendo a outra parte no processo a

Comissão das Comunidades Europeias, representada por P. Van Nuffel, membro do Serviço Jurídico, na qualidade de agente, assistido por A. Barav, advogado no foro de Paris e barrister, com domicílio escolhido no Luxemburgo no gabinete de C. Gómez de la Cruz, membro do Serviço Jurídico, Centre Wagner, Kirchberg,

apoiada pela

República Francesa, representada por K. Rispal-Bellanger, sub-directora na Direcção dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e R. Loosli-Surrans, encarregada de missão na mesma direcção, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo na Embaixada de França, 8 B, boulevard Joseph II,

interveniente,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, J. C. Moitinho de Almeida, L. Sevón (relator) e R. Schintgen, presidentes de secção, P. J. G. Kapteyn, J.-P. Puissochet, P. Jann, H. Ragnemalm, M. Wathelet, V. Skouris e F. Macken, juízes,

advogado-geral: N. Fennelly,


secretário: D. Louterman-Hubeau, administradora principal,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações das partes na audiência de 30 de Novembro de 1999,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 27 de Janeiro de 2000,

profere o presente

Acórdão

1.
    Por petição que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 24 de Setembro de 1998, a sociedade Laboratoires pharmaceutiques Bergaderm SA (a seguir «Bergaderm»), em liquidação judicial, e J.-J. Goupil, o seu presidente director-geral,interpuseram, ao abrigo do artigo 49.° do Estatuto CE do Tribunal de Justiça, recurso do acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 16 de Julho de 1998, Bergaderm e Goupil/Comissão (T-199/96, Colect., p. II-2805, a seguir «acórdão impugnado»), pelo qual o Tribunal de Primeira Instância indeferiu o pedido, por eles formulado, de reparação do prejuízo que alegadamente sofreram por causa da preparação e da adopção da Décima Oitava Directiva 95/34/CE da Comissão, de 10 de Julho de 1995, que adapta pela décima oitava vez ao progresso técnico os anexos II, III, VI e VII da Directiva 76/768/CEE do Conselho relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos produtos cosméticos (JO L 167, p. 19, a seguir «directiva de adaptação»).

2.
    Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 12 de Fevereiro de 1999, a República Francesa foi admitida a intervir em apoio das pretensões da Comissão.

Quadro regulamentar

3.
    Nos n.os 1 a 5 do acórdão impugnado, o Tribunal de Primeira Instância descreve o quadro regulamentar nestes termos:

«1    O artigo 4.° da Directiva 76/768/CEE do Conselho, de 27 de Julho de 1976, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos produtos cosméticos (JO L 262, p. 169; EE 15 F1 p. 206, a seguir 'directiva cosméticos‘), alterada nomeadamente pela Directiva 93/35/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993 (JO L 151, p. 32), dispõe que os Estados-Membros devem proibir a colocação no mercado dos produtos cosméticos que contenham substâncias mencionadas na 'lista das substâncias que não podem entrar na composição dos produtos cosméticos‘ (Anexo II da directiva), bem como dos que contenham substâncias mencionadas na 'lista das substâncias que os produtos não podem conter para além das restrições e fora das condições previstas‘ (Anexo III, primeira parte), além dos limites e fora das condições indicadas.

2    O artigo 9.° da directiva cosméticos institui um comité para a adaptação ao progresso técnico das directivas que visam a eliminação dos entraves técnicos às trocas comerciais no sector dos produtos cosméticos (a seguir 'comité de adaptação‘). A mesma disposição especifica que o comité de adaptação é constituído por representantes dos Estados-Membros e presidido por um representante da Comissão.

3    Com a Decisão 78/45/CEE da Comissão, de 19 de Dezembro de 1977, relativa à instituição de um comité científico de cosmetologia (JO 1978 L 13, p. 24, a seguir 'Decisão 78/45‘), foi instituído um comité científico de cosmetologia (a seguir 'comité científico‘) junto da Comissão. Segundo o artigo 2.° desta decisão, a tarefa deste comité científico consiste em dar um parecer à Comissão sobre qualquer problema de carácter científico e técnico no domínio dosprodutos cosméticos, e nomeadamente sobre as substâncias utilizadas na preparação dos produtos cosméticos e as condições de utilização destes. A mesma decisão dispõe que os membros do comité são nomeados pela Comissão 'de entre personalidades científicas altamente qualificadas com competência nos domínios [dos produtos cosméticos]‘ (artigo 4.°), que os representantes dos serviços da Comissão interessados tomam parte nas reuniões do comité, que a Comissão pode convidar 'personalidades com competência especial relativamente ao assunto em estudo‘ para participarem igualmente nas reuniões do comité (artigo 8.°, n.os 2 e 3), e que o comité científico pode também criar no seu seio grupos de trabalho, que se reunirão sob convocação da Comissão (artigos 7.° e 8.°).

4    O n.° 2 do artigo 8.° da directiva cosméticos dispõe que as alterações necessárias para adaptar ao progresso técnico o Anexo II serão adoptadas de acordo com o procedimento previsto no artigo 10.°

5    Este é constituído pelas seguintes etapas:

    -    o comité é convocado pelo seu presidente;

    -    o representante da Comissão submete um projecto de medidas a tomar;

    -    o comité de adaptação emite, por maioria qualificada, parecer sobre o projecto, não tomando o presidente parte no voto;

    -    se o parecer do comité de adaptação for favorável às medidas projectadas pela Comissão, esta toma-las-á;

    -    se o parecer do comité não for favorável às medidas projectadas pela Comissão, ou na ausência de parecer do comité, a Comissão deve submeter, de imediato, uma proposta ao Conselho, que decidirá por maioria qualificada; se, no entanto, expirado um prazo de três meses a contar da proposta ao Conselho, este não tiver decidido, as medidas propostas serão tomadas pela Comissão.»

A matéria de facto e o acórdão impugnado

4.
    A Bergaderm operava no mercado dos produtos parafarmacêuticos e cosméticos. Produzia nomeadamente o Bergasol, um óleo solar que continha, além de óleo vegetal e filtros, essência de bergamota. De entre as moléculas que compõem a essência de bergamota figuram os psoralenos, também designados «furocumarinas». Um deles é o «bergaptène», também conhecido no mundo científico sob o nome de «Metoxi-5 Psoraleno» (a seguir «MOP-5»).

5.
    Suspeita-se que o MOP-5 quimicamente puro é potencialmente cancerígeno. Pôs-se a questão de saber se esta molécula também era potencialmente cancerígena quandocomponente da essência de bergamota utilizada em associação com filtros num produto bronzeador.

6.
    Esta questão foi objecto de uma controversa científica. Em Março de 1987, o Governo alemão solicitou à Comissão que submetesse ao comité de adaptação uma proposta de limitação a 1 mg/kg da concentração máxima de psoralenos de origem natural nos óleos solares.

7.
    A Comissão pediu parecer ao comité científico. Na sua reunião de 2 de Outubro de 1990, este recomendou que se limitasse a 1 mg/kg a concentração máxima de MOP-5 nos óleos solares. Após a audição de numerosos peritos, o comité científico confirmou o seu parecer inicial em 4 de Novembro de 1991, 2 de Junho de 1992 e 24 de Junho de 1994.

8.
    O comité de adaptação reuniu-se pela primeira vez em 17 de Dezembro de 1991 mas não chegou, nesta data, a qualquer conclusão. Na sua reunião de 1 de Junho de 1992, dividiu-se sobre a questão. Finalmente, em 28 de Abril de 1995, recomendou a limitação a 1 mg/kg, tendo todas as delegações votado a favor deste parecer com exclusão da delegação francesa, bem como da delegação finlandesa, que não estava presente.

9.
    Em 10 de Julho de 1995, a Comissão adoptou a directiva de adaptação. Através do ponto 1), alínea a), do seu anexo, esta directiva substituiu o número de ordem 358 do anexo II da directiva «cosméticos», cujo texto original era

«Furocumarinas, entre as quais trioxissaleno e metoxi-8 psoraleno, com excepção dos teores normais nas essências naturais utilizadas»,

pelo texto seguinte:

«Furocumarinas, entre as quais trioxissaleno, metoxi-8-psoraleno e metoxi-5-psoraleno, com excepção dos teores normais nas essências naturais utilizadas.

Nos protectores solares e nos bronzeadores, as furocumarinas devem ser inferiores a 1 mg/kg.»

10.
    Por sentença do tribunal de commerce de Créteil de 6 de Julho de 1995, foi instaurado um processo judicial de recuperação contra a Bergaderm. Em 10 de Outubro de 1995, foi declarada a sua liquidação judicial.

11.
    Por petição que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 4 de Dezembro de 1996, a Bergaderm e J.-J. Goupil intentaram contra a Comissão uma acção ao abrigo dos artigos 178.° e 215.°, segundo parágrafo, do Tratado CE (actuais artigos 235.° CE e 288.°, segundo parágrafo, CE), sustentando que, na preparação e na adopção da directiva de adaptação, a Comissão tivera comportamentos culposos quelhes causaram um prejuízo financeiro importante e que levaram a Bergaderm à falência.

12.
    Segundo os demandantes, a directiva de adaptação devia ser considerada um acto administrativo, na medida em que dizia exclusivamente respeito ao produto Bergasol. Os comportamentos culposos atribuídos à Comissão consistiram em vícios processuais (violação do processo de adopção da directiva de adaptação e violação dos direitos da defesa dos demandantes), erro manifesto de apreciação e violação do princípio da proporcionalidade e, finalmente, desvio de poder.

13.
    No acórdão impugnado, o Tribunal de Primeira Instância recordou que, em matéria de responsabilidade por actos de natureza normativa, o comportamento de que a Comunidade é acusada deve constituir violação de uma norma superior de direito que protege os particulares (n.° 48). Considerou que a directiva era um acto de alcance geral (n.° 50) e concluiu que devia verificar se a Comissão não respeitara uma norma superior de direito que protege os particulares (n.° 51).

14.
    Sem considerar necessário determinar se as disposições que regulamentavam o processo de adopção da directiva de adaptação continham normas superiores de direito que protegem os particulares, concluiu que a Comissão não as violara (n.° 56). Declarou que tais disposições não previam a protecção de determinados direitos da defesa (n.° 59) e que, de qualquer modo, os demandantes tinham tido ocasião de expor o seu ponto de vista antes da adopção da directiva de adaptação (n.° 60).

15.
    No que se refere à acusação assente num erro manifesto de apreciação e na violação do princípio da proporcionalidade, o Tribunal considerou que, face aos elementos dos autos, a actuação da Comissão e a medida por ela tomada não podiam ser consideradas viciadas de erro manifesto de apreciação ou desproporcionadas (n.° 67).

16.
    Finalmente, no que se refere à acusação assente em desvio de poder, o Tribunal considerou que os demandantes não tinham demonstrado a existência de indícios de que a directiva de adaptação tivesse sido adoptada com a finalidade exclusiva, ou pelo menos determinante, de atingir fins diversos dos invocados (n.os 69 e 70).

17.
    Em consequência, julgou a acção improcedente.

O presente recurso

18.
    No seu recurso, os recorrentes solicitam que o Tribunal de Justiça se digne:

-    anular o acórdão impugnado e, pronunciando-se de novo,

-    condenar a Comissão a pagar à Bergaderm a quantia de 152 867 090 FRF e à pessoa de J.-J. Goupil a quantia de 161 309 995,33 FRF, a título de perdas e danos, e

-    condenar a Comissão nas despesas.

19.
    A Comissão, apoiada pela República Francesa, pede ao Tribunal de Justiça que declare o recurso inadmissível ou, subsidiariamente, lhe negue provimento e que condene os recorrentes nas despesas.

20.
    O recurso assenta em três fundamentos. O primeiro consiste em erro de direito, na medida em que o Tribunal de Primeira Instância declarou que a directiva de adaptação era um acto normativo. O segundo consiste em erro manifesto de apreciação do Tribunal de Primeira Instância no que respeita ao exercício, pela Comissão, dos seus poderes. O terceiro, subsidiário, consiste na violação de regras superiores de direito.

21.
    Os primeiro e segundo fundamentos devem ser examinados em conjunto.

Quanto aos dois primeiros fundamentos, consistentes, o primeiro, em erro de direito quanto à natureza jurídica da directiva de adaptação e, o segundo, em erro manifesto de apreciação no que respeita ao exercício, pela Comissão, dos seus poderes

22.
    Pelo seu primeiro fundamento, os recorrentes alegam que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito ao considerar que a directiva de adaptação era um acto de carácter normativo. Criticam, a este respeito, o n.° 50 do acórdão impugnado e sustentam que o Tribunal cometeu um erro ao satisfazer-se com a denominação oficial do acto, quando deveria tê-lo qualificado tendo em conta o seu objectivo e o seu conteúdo e, portanto, deveria ter considerado que se tratava de uma decisão individual.

23.
    Pelo seu segundo fundamento, acusam o Tribunal de Primeira Instância de, no n.° 62 do acórdão impugnado, ter deduzido dos termos da directiva de adaptação, nomeadamente do seu primeiro considerando, que a Comissão apreciara correctamente a questão científica. Segundo os recorrentes, contrariamente ao texto deste considerando, segundo qual «os estudos e os dados científicos, técnicos e epidemiológicos disponíveis não permitiram ao comité científico de cosmetologia concluir que a associação entre os filtros protectores e as furocumarinas garantem a inocuidade dos protectores solares e dos bronzeadores que contêm furocumarinas para além de uma concentração mínima», todos os estudos científicos disponíveis sobre o produto Bergasol permitiam perfeitamente concluir pela sua inocuidade e eficácia.

24.
    Consideram ainda que não é pertinente a jurisprudência invocada pelo Tribunal de Primeira Instância no n.° 66 do acórdão impugnado relativa à possibilidade de as instituições tomarem medidas de protecção sem ter de esperar que a realidade e a gravidade de tais riscos estejam plenamente demonstrados (acórdão do Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 1998, National Farmer's Union e o., C-157/96, Colect., p. I-2211, n.° 63).

25.
    Concluem que o Tribunal de Primeira Instância efectuou uma má apreciação tanto dos factos como do direito e que a disposição em litígio da directiva de adaptação éseguramente uma decisão que só pôde ser adoptada em violação, pela Comissão, dos direitos e interesses da Bergaderm e de J.-J. Goupil, não podendo ser justificada pelas exigências ligadas à protecção da saúde pública.

26.
    A Comissão sustenta que os recorrentes se limitam a reproduzir os argumentos que já apresentaram no Tribunal de Primeira Instância e que, a este título, tais argumentos são manifestamente inadmissíveis.

27.
    A título subsidiário, a Comissão alega, no que se refere ao primeiro fundamento, que a directiva de adaptação tem um alcance normativo geral, dizendo respeito aos recorrentes enquanto produtores de creme solar, isto é, em razão de uma actividade comercial que pode ser exercida em qualquer momento por qualquer sujeito.

28.
    No que se refere ao segundo fundamento, ela realça que, na medida em que os recorrentes contestam a apreciação dos factos efectuada pelo Tribunal de Primeira Instância, o seu argumento é manifestamente inadmissível no quadro do presente recurso.

29.
    Para o caso, no entanto, de o Tribunal de Justiça tomar em conta este argumento, sublinha que os recorrentes não comprovaram que o MOP-5 contido nos cremes solares e nos produtos bronzeadores não apresenta qualquer risco para a saúde pública e não refutaram os pareceres do comité científico e do comité de adaptação segundo os quais a associação do MOP-5 com filtros solares não permite afastar qualquer risco para a saúde humana quando utilizados nos produtos solares espalhados sobre a pele exposta aos raios ultra-violetas.

30.
    A Comissão considera que foi justamente que o Tribunal de Primeira Instância considerou, no n.° 65 do acórdão impugnado, que «não pode censurar-se à Comissão ter consultado, no caso em apreço, o comité científico e seguido o seu parecer, formulado com base numa multitude de reuniões, de visitas e de estudos de peritos», após ter realçado, no n.° 64, que «o comité científico tem exactamente por função auxiliar as autoridades comunitárias nas questões científicas e técnicas para lhes permitir determinar, com todo o conhecimento de causa, as medidas de adaptação necessárias».

31.
    O Governo francês, que apresenta uma argumentação única na resposta aos segundo e terceiro fundamentos, considera também que, na medida em que se limitam a retomar a argumentação desenvolvida perante o Tribunal de Primeira Instância, tais fundamentos devem ser declarados manifestamente inadmissíveis.

32.
    Realça ainda que existem dúvidas sobre o efeito protector para a saúde pública da associação filtros-furocumarinas e sobre a inocuidade, em geral, para a saúde humana, dos produtos solares contendo MOP-5. Face ao risco grave para a saúde humana, consistente em cancro da pele, sustenta que foi justamente que o Tribunal se referiu ao princípio da precaução, tal como afirmado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça.

33.
    Entende, portanto, que foi justamente que o Tribunal considerou, no n.° 67 do acórdão impugnado, que «a actuação da Comissão e a medida tomada por ela não podem ser consideradas viciadas de erro manifesto de apreciação ou desproporcionadas».

Apreciação do Tribunal de Justiça

34.
    No que se refere à condição prévia de inadmissibilidade suscitada pela Comissão e pelo Governo francês, resulta dos artigos 168.°-A do Tratado CE (actual artigo 225.° CE), 51.°, primeiro parágrafo, do Estatuto CE do Tribunal de Justiça e 112.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, que um recurso de uma decisão de primeira instância deve indicar de modo preciso os elementos contestados do acórdão cuja anulação é pedida, bem como os argumentos jurídicos em que se apoia especificamente esse pedido (despacho de 16 de Dezembro de 1999, Clauni e o., C-170/99 P, não publicado na Colectânea, n.° 15).

35.
    Não respeita esta exigência o recurso de decisão de primeira instância que, sem sequer comportar uma argumentação especificamente destinada a identificar o erro de direito de que alegadamente padece o acórdão impugnado, se limita a reproduzir os fundamentos e argumentos já alegados no Tribunal de Primeira Instância. Com efeito, tal recurso constitui, na realidade, um pedido de simples reanálise da petição apresentada na primeira instância, o que escapa à competência do Tribunal de Justiça.

36.
    No presente caso, no entanto, o primeiro fundamento dos recorrentes contesta precisamente o n.° 50 do acórdão impugnado e comporta uma argumentação destinada a demonstrar que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito ao considerar que a directiva de adaptação era um acto de natureza normativa. O segundo fundamento indica também de modo preciso os elementos do acórdão impugnado que critica e comporta uma argumentação jurídica destinada a demonstrar que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro na apreciação do modo como a Comissão exerceu os seus poderes.

37.
    Há, portanto, que rejeitar a questão prévia de inadmissibilidade consistente na repetição, pelos recorrentes, de argumentos já apresentados no Tribunal de Primeira Instância.

38.
    Pelos dois primeiros fundamentos, os recorrentes sustentam, em substância, que, face à natureza do acto adoptado pela Comissão, o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito ao concluir, no n.° 67 do acórdão impugnado, que a actuação da Comissão e a medida por ela tomada de limitar a 1 mg/kg a concentração de psoralenos nos produtos solares não podiam ser consideradas viciadas de erro manifesto de apreciação ou desproporcionadas.

39.
    A este respeito, há que recordar que o artigo 215.°, segundo parágrafo, do Tratado determina que, em matéria de responsabilidade extracontratual, a Comunidade deve indemnizar, de acordo com os princípios gerais comuns aos direitos dosEstados-Membros, os danos causados pelas suas instituições ou pelos seus agentes no exercício das suas funções.

40.
    O regime construído pelo Tribunal de Justiça ao abrigo desta disposição, tem designadamente em consideração a complexidade das situações a regular, as dificuldades de aplicação ou de interpretação dos textos e, de uma forma mais especial, a margem de apreciação de que dispõe o autor do acto impugnado (acórdão de 5 de Março de 1996, Brasserie du pêcheur e Factortame, C-46/93 e C-48/93, Colect., p. I-1029, n.° 43).

41.
    O Tribunal de Justiça sublinhou que as condições de efectivação da responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude da violação do direito comunitário não devem, caso não existam razões específicas, diferir das que regulam a responsabilidade da Comunidade em circunstâncias equiparáveis. Com efeito, a protecção dos direitos que os particulares retiram do direito comunitário não pode variar em função da natureza nacional ou comunitária da autoridade que está na origem do prejuízo (acórdão Brasserie du pêcheur e Factortame, já referido, n.° 42).

42.
    Ora, pronunciando-se em matéria de responsabilidade dos Estados-Membros por danos causados aos particulares, o Tribunal de Justiça declarou que o direito comunitário reconhece um direito à reparação desde que se encontrem satisfeitas três condições, ou seja, que a regra de direito violada tenha por objecto conferir direitos aos particulares, que a violação seja suficientemente caracterizada e, por último, que exista um nexo de causalidade directo entre a violação da obrigação que incumbe ao Estado e o prejuízo sofrido pelas pessoas lesadas (acórdão Brasserie du pêcheur e Factortame, já referido, n.° 51).

43.
    Quanto à segunda condição, tanto no que respeita à responsabilidade da Comunidade, nos termos do artigo 215.° do Tratado, como no que se refere à responsabilidade dos Estados-Membros, por violações do direito comunitário, o critério decisivo para considerar que existe uma violação do direito comunitário suficientemente caracterizada é o da violação manifesta e grave, tanto por um Estado-Membro como por uma instituição comunitária, dos limites que se impõem ao seu poder de apreciação (acórdãos Brasserie du pêcheur e Factortame, já referido, n.° 55, e de 8 de Outubro de 1996, Dillenkofer e o., C-178/94, C-179/94, e C-188/94 a C-190/94, Colect., p. I-4845, n.° 25).

44.
    Na hipótese de o Estado-Membro ou a instituição em causa disporem de uma margem de apreciação consideravelmente reduzida, ou mesmo inexistente, a simples infracção ao direito comunitário pode bastar para provar a existência de uma violação suficientemente caracterizada (v., neste sentido, o acórdão de 23 de Maio de 1996, Hedley Lomas, C-5/94, Colect., p. I-2553, n.° 28).

45.
    Há pois que examinar se, no caso vertente, o Tribunal de Primeira Instância cometeu, como os recorrentes afirmam, um erro de direito aquando do exame do modo como a Comissão exerceu o seu poder de apreciação ao adoptar a directiva de adaptação.

46.
    A este respeito, há que declarar que a natureza geral ou individual de um acto de uma instituição não é um critério determinante para identificar os limites do poder de apreciação de que dispõe a instituição em causa.

47.
    Daqui resulta que o primeiro fundamento, que é exclusivamente baseado na qualificação da directiva de adaptação como acto individual, é em qualquer caso inoperante, devendo ser rejeitado.

48.
    Na primeira parte do segundo fundamento, os recorrentes contestam a afirmação, feita pelo Tribunal de Primeira Instância, da existência de estudos e dados científicos controversos no que respeita ao risco para a saúde humana causado pela utilização de furocumarinas presentes em essências naturais, mesmo associadas a filtros solares.

49.
    A esse respeito, há que recordar que resulta dos artigos 168.°-A do Tratado CE e 51.° do Estatuto (CE) do Tribunal de Justiça que o recurso das decisões do Tribunal de Primeira Instância está limitado às questões de direito e que, portanto, só este Tribunal tem competência, por um lado, para apurar a matéria de facto, excepto em casos nos quais a inexactidão material das suas conclusões resulte dos documentos dos autos que lhe foram apresentados, e, por outro, para a apreciação dessa matéria de facto (acórdão de 28 de Maio de 1998, Deere/Comissão, C-7/95 P, Colect., p. I-3111, n.os 18 e 21).

50.
    No Tribunal de Justiça, os recorrentes não demonstraram, quer pela sua argumentação quer pelos documentos que juntaram aos autos, que o Tribunal de Primeira Instância tenha desnaturado os elementos que lhe foram submetidos ao afirmar, no n.° 63 do acórdão impugnado, que «nenhum elemento do processo permite concluir que a Comissão não se deu conta da questão científica em causa».

51.
    Assim, na medida em que visa um apuramento de facto, sem demonstrar ter havido desnaturação dos factos, a primeira parte do segundo fundamento deve ser declarada inadmissível.

52.
    Na segunda parte do mesmo fundamento, os recorrentes contestam a referência ao princípio de precaução, feita no n.° 66 do acórdão impugnado.

53.
    Deve, no entanto, salientar-se que o n.° 66 do acórdão impugnado, iniciado pelos termos «A propósito», constitui uma fundamentação superabundante, uma vez que o Tribunal de Primeira Instância já tinha concluído o seu raciocínio no n.° 65, ao afirmar que não podia censurar-se à Comissão ter consultado, no caso em apreço, o comité científico e ter seguido o seu parecer, formulado com base em numerosas reuniões, de visitas e de estudos de peritos.

54.
    Daqui resulta que este aspecto do fundamento é inoperante e deve ser rejeitado.

Quanto ao terceiro fundamento, assente na violação de regras superiores de direito

55.
    Os recorrentes consideram que o Tribunal de Primeira Instância fez uma má interpretação dos textos ao considerar que a Comissão não violara uma regra superior de direito que protege os particulares.

56.
    Segundo os recorrentes e em primeiro lugar, o Tribunal de Primeira Instância violou essa regra ao não censurar os vícios de procedimento e ao considerar, no n.° 52 do acórdão impugnado, que o comité de adaptação, na sua reunião de 1 de Junho de 1992, não emitira parecer negativo sobre a proposta de limitar a concentração máxima de psoralenos nos produtos solares, o que é incorrecto uma vez que as duas propostas foram examinadas e rejeitadas.

57.
    Realçam, em segundo lugar, que, mesmo que o Tribunal de Justiça siga a interpretação do Tribunal de Primeira Instância, deve declarar que as disposições do artigo 10.°, n.° 3, da directiva «cosméticos» eram aplicáveis e que, portanto, na ausência de parecer, a Comissão deveria ter submetido uma proposta ao Conselho.

58.
    Em terceiro lugar, o Tribunal de Primeira Instância não extraiu, segundo os recorrentes, as necessárias consequências jurídicas de uma flagrante violação do princípio do contraditório.

59.
    Por último, consideram que a Comissão violou o princípio da proporcionalidade ao excluir o produto Bergasol do mercado comunitário quando esta medida se não justificava por razões de saúde pública, uma vez que, pelo contrário, o produto Bergasol garante uma real protecção da pele face aos raios ultravioletas do sol, e que tal violação é em si mesma constitutiva de uma violação do princípio da confiança legítima. Ora, há violação suficientemente caracterizada de uma regra superior de direito quando as instituições comunitárias violam de modo manifesto e grave os limites do seu poder de apreciação, sem demonstrarem a existência de um interesse público superior.

60.
    A Comissão sustenta que os recorrentes se limitam a reproduzir os argumentos que já apresentaram no Tribunal de Primeira Instância contra o procedimento seguido pela Comissão na adopção da directiva de adaptação e que, a este título, tais argumentos são manifestamente inadmissíveis.

61.
    A título subsidiário, a Comissão argumenta que não houve vício de procedimento e que os recorrentes tiveram ocasião de apresentar as suas observações, nomeadamente ao comité científico. Daqui conclui que foi justamente que o Tribunal de Primeira Instância afastou os argumentos dos recorrentes a este respeito e considerou que, face ao risco para a saúde humana, não podia entender-se que a actuação da Comissão e a medida por ela tomada estivessem viciadas por um erro manifesto de apreciação ou fossem desproporcionadas.

Apreciação do Tribunal de Justiça

62.
    Face às condições necessárias para que a responsabilidade da Comunidade seja reconhecida, recordadas nos n.os 41 e 42 do presente acórdão, o terceiro fundamento deve ser interpretado no sentido de criticar o Tribunal de Primeira Instância por ter feito uma má interpretação dos textos ao considerar que a Comissão não violou uma regra de direito que tem por objectivo conferir direitos aos particulares.

63.
    No que se refere à crítica, feita pelos recorrentes, ao n.° 52 do acórdão impugnado, há que realçar que esta primeira parte do fundamento é inadmissível, uma vez que visa uma verificação e uma apreciação dos factos, as quais não estão sujeitas ao controlo do Tribunal de Justiça.

64.
    Com efeito, no n.° 52 o Tribunal de Primeira Instância faz uma análise da acta de uma reunião do comité de adaptação, a fim de determinar se este comité emitiu ou não parecer na dita reunião.

65.
    No que respeita ao segundo aspecto do fundamento e à alegada obrigação de a Comissão submeter uma proposta ao Conselho no caso de ausência de parecer, deve recordar-se que, pronunciando-se sobre um procedimento normativo análogo ao previsto pela directiva «cosméticos», o Tribunal de Justiça declarou que, quando as medidas propostas pela Comissão não são conformes com o parecer do comité regulador, ou na ausência de parecer, a Comissão não está obrigada a submeter as mesmas medidas, sem alteração, ao Conselho (acórdão de 18 de Novembro de 1999, Pharos/Comissão, C-151/98 P, Colect., p. I-0000, n.° 23).

66.
    Daqui resulta que foi justamente que o Tribunal de Primeira Instância considerou, nos n.os 54 e 55 do acórdão impugnado, que a Comissão devia dispor, nos processos delicados e controversos, de uma margem de apreciação e do prazo necessários, e que tinha, portanto, o direito de retirar, na própria reunião do comité de adaptação, a sua proposta de medidas a tomar.

67.
    Em consequência, a segunda parte do fundamento não procede.

68.
    No que se refere à terceira parte do fundamento, segundo o qual o Tribunal de Primeira Instância não tirou as devidas consequências jurídicas de uma violação flagrante do princípio do contraditório, há que realçar que se baseia no pressuposto da existência de uma tal violação.

69.
    Ora, no n.° 61 do acórdão impugnado, o Tribunal de Primeira Instância considerou que a crítica assente na violação do princípio do contraditório devia ser desatendida, após ter reconhecido, no n.° 60, que «resulta dos factos que os demandantes expuseram amplamente o seu ponto de vista aos membros do comité científico e à Comissão e que tiveram oportunidade de o apresentar oralmente ao grupo ad hoc de peritos».

70.
    Uma vez que está em causa uma apreciação de facto não sujeita ao controlo do Tribunal de Justiça, a terceira parte do fundamento deve ser julgada inadmissível namedida em que critica esta apreciação e manifestamente infundada na medida em que critica as consequências jurídicas extraídas pelo Tribunal de Primeira Instância.

71.
    Quanto à quarta parte do fundamento, assente na violação, pela Comissão, do princípio da proporcionalidade, deve declarar-se que se não trata de uma crítica ao acórdão impugnado mas de uma repetição de um fundamento apresentado ao Tribunal de Primeira Instância e que, a este título, tal parte do fundamento é inadmissível.

72.
    Resulta de tudo o que precede que o recurso é em parte inadmissível e em parte infundado, e que lhe deve ser negado provimento.

Quanto às despesas

73.
    Nos termos do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, aplicável ao processo de recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância por força do artigo 118.°, a parte vencida é condenada nas despesas se assim tiver sido requerido. Tendo os recorrentes sido vencidos, há que condená-los nas despesas. De acordo com o artigo 69.°, n.° 4, do mesmo regulamento, a República Francesa, parte interveniente, suportará as suas próprias despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

decide:

1)    É negado provimento ao recurso.

2)    Os Laboratoires pharmaceutiques Bergaderm SA, em liquidação, e Jean-Jacques Goupil são condenados nas despesas.

3)    A República Francesa suportará as suas próprias despesas.

Rodríguez Iglesias
Moitinho de Almeida
Sevón

Schintgen

Kapteyn
Puissochet

Jann

Ragnemalm
Wathelet

Skouris

Macken

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 4 de Julho de 2000.

O secretário

O presidente

R. Grass

G. C. Rodríguez Iglesias


1: Língua do processo: francês.