Language of document : ECLI:EU:C:2011:723

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

YVES BOT

apresentadas em 10 de novembro de 2011 (1)

Processo C‑419/10

Wolfgang Hofmann

contra

Freistaat Bayern

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bayerischer Verwaltungsgerichtshof (Alemanha)]

«Diretiva 2006/126/CE ― Reconhecimento mútuo das cartas de condução ― Recusa de um Estado‑Membro reconhecer a uma pessoa cuja carta de condução foi retirada no seu território a validade da carta de condução emitida por outro Estado‑Membro»





1.        Com a presente questão prejudicial, o Tribunal de Justiça é chamado, pela primeira vez, a interpretar as disposições da Diretiva 2006/126/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de dezembro de 2006, relativa à carta de condução (2), que procedeu à reformulação da Diretiva 91/439/CEE do Conselho, de 29 de julho de 1991, relativa à carta de condução (3).

2.        O artigo 2.°, n.° 1, da Diretiva 2006/126 prevê que as cartas de condução emitidas pelos Estados‑Membros são reciprocamente reconhecidas.

3.        No entanto, existe uma atenuação a este princípio. Com efeito, o artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, desta diretiva prevê que um Estado‑Membro (4)recusará reconhecer a validade de qualquer carta de condução emitida por outro Estado‑Membro a uma pessoa cuja carta de condução tenha sido objeto de restrição, suspensão ou retirada no seu território. Esta disposição visa substituir o artigo 8.°, n.° 4, primeiro parágrafo, da Diretiva 91/439 que refere que um Estado‑Membro pode recusar (5) reconhecer uma carta de condução emitida nessas condições.

4.        Tendo em conta a diferença dos termos utilizados nesses dois artigos, o Bayerischer Verwaltungsgerichtshof (Alemanha) interroga‑se sobre a questão de saber se a jurisprudência do Tribunal de Justiça desenvolvida no quadro da Diretiva 91/439 também é aplicável às situações reguladas pela Diretiva 2006/126.

5.        Com efeito, o Tribunal de Justiça decidiu que, por força do artigo 8.°, n.° 4, da Diretiva 91/439, um Estado‑Membro não pode recusar o reconhecimento da validade de uma carta de condução emitida por outro Estado‑Membro, com fundamento no facto de o seu titular ter sido objeto, no território do primeiro Estado‑Membro, de uma medida de retirada ou de anulação de uma carta de condução emitida por este Estado‑Membro, quando o período da proibição temporária de obter neste Estado uma nova carta, que acompanhava essa medida, tiver expirado antes da data da emissão da carta de condução emitida pelo outro Estado‑Membro (6).

6.        Por consequência, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se a alteração de redação passou a exigir a um Estado‑Membro que recuse o reconhecimento da validade de uma carta de condução emitida nestas mesmas condições.

7.        Nas presentes conclusões, apresentarei as razões pelas quais considero que os artigos 2.°, n.° 1, e 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126 devem ser interpretados no sentido de que um Estado‑Membro deve recusar o reconhecimento da validade de uma carta de condução emitida por outro Estado‑Membro, quando tiver sido retirada ao seu titular uma carta de condução, no primeiro Estado‑Membro, por conduzir sob o efeito do álcool e por não se ter procedido, quanto a esse titular, no Estado‑Membro de emissão, às verificações necessárias da sua aptidão para conduzir, previstas no ponto 14.1 do anexo III desta mesma diretiva.

I ―    Quadro jurídico

A ―    Direito da União

1.      Diretiva 91/439

8.        Com o objetivo de facilitar a circulação de pessoas na Comunidade Europeia ou o seu estabelecimento num Estado‑Membro diferente daquele em que essas pessoas obtiveram a sua carta de condução, a Diretiva 91/439 instituiu o princípio do reconhecimento mútuo das cartas de condução (7).

9.        No entanto, existe uma atenuação a este princípio. Com efeito, nos termos do artigo 8.°, n.° 4, primeiro parágrafo, da referida diretiva, um Estado‑Membro pode recusar reconhecer a validade de uma carta de condução emitida por outro Estado‑Membro a uma pessoa que seja objeto, no território deste primeiro Estado‑Membro, de uma medida de restrição, suspensão, retirada ou anulação da carta de condução.

2.      Diretiva 2006/126

10.      No seu artigo 2.°, n.° 1, a Diretiva 2006/126 recorda que as cartas de condução emitidas pelos Estados‑Membros são reciprocamente reconhecidas.

11.      Segundo o artigo 7.°, n.° 1, alínea e), desta diretiva, a carta de condução só será emitida aos candidatos que tenham a sua residência habitual no território do Estado‑Membro emissor da carta de condução.

12.      O artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da referida diretiva prevê que um Estado‑Membro recusará reconhecer a validade de qualquer carta de condução emitida por outro Estado‑Membro a uma pessoa cuja carta de condução seja objeto de restrição, suspensão ou retirada no seu território.

13.      Nos termos do artigo 13.°, n.° 2, da Diretiva 2006/126, qualquer direito de conduzir concedido até 19 de janeiro de 2013 não poderá ser anulado ou de qualquer modo restringido pelas disposições desta diretiva.

14.      O ponto 14.1 do anexo III da referida diretiva refere que a carta de condução não deve ser emitida ou renovada a qualquer candidato ou condutor em situação de dependência do álcool ou que não possa dissociar a condução do consumo de álcool. No termo de um período comprovado de abstinência e sob reserva de um parecer médico abalizado e de um controlo médico regular, a carta de condução pode ser emitida ou renovada a qualquer candidato ou condutor que tenha estado no passado em situação de dependência do álcool.

15.      O artigo 16.°, n.° 1, da Diretiva 2006/126 prevê que os Estados‑Membros adotem e publiquem, o mais tardar até 19 de janeiro de 2011, as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento a esta diretiva. Estas disposições aplicam‑se a partir de 19 de janeiro de 2013 (8) e a Diretiva 91/439 foi revogada com efeitos a partir dessa data (9).

16.      No entanto, determinadas disposições da Diretiva 2006/126 são aplicáveis antes da referida data. Com efeito, segundo o artigo 18.°, segundo parágrafo, desta diretiva, os artigos 2.°, n.° 1, 5.°, 6.°, n.° 2, alínea b), 7.°, n.° 1, alínea a), 9.°, 11.°, n.os 1 e 3 a 6, 12.° e os anexos I a III da referida diretiva são aplicáveis a partir de 19 de janeiro de 2009.

B ―    Direito nacional

17.      O Regulamento relativo ao acesso das pessoas à circulação rodoviária (Verordnung über die Zulassung von Personen zum Straβenverkehr), na versão em vigor em 19 de janeiro de 2009 (a seguir «FeV»), estabelece no § 28, n.° 1, que os titulares de uma carta de condução válida da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu (EEE) que tenham residência habitual, na aceção do § 7, n.° os 1 ou 2, do FeV, na Alemanha, estão autorizados – sem prejuízo da restrição prevista nos n.os 2 a 4 do referido § 28 – a conduzir veículos automóveis neste país, no limite dos direitos que lhe tenham sido conferidos pela emissão da sua carta de condução.

18.      O artigo § 28, n.° 4, primeiro período, ponto 3, do FeV especifica que esta autorização para conduzir não se aplica aos titulares de uma carta de condução da União ou do EEE, quando a sua carta de condução tiver sido objeto, na Alemanha, de uma medida de apreensão provisória ou definitiva tomada por um tribunal, ou de uma medida de apreensão imediatamente executória ou definitiva tomada por uma autoridade administrativa, titulares a quem a carta de condução tenha sido recusada por decisão executória ou aos quais a carta de condução não tenha sido apreendida apenas por a ela terem, entretanto, renunciado.

II ― Matéria de facto e litígio no processo principal

19.      W. Hofmann, de nacionalidade alemã, obteve, em 13 de outubro de 1960, uma carta de condução alemã. Por decisão de 21 de novembro de 1996, o Amtsgericht Memmingen retirou‑lhe essa carta de condução. Esta foi‑lhe restituída em 31 de agosto de 1998.

20.      Tendo sido declarado culpado de conduzir sob o efeito do álcool, W. Hofmann foi condenado pelo Amtsgericht Memmingen a uma multa e a sua carta de condução voltou a ser‑lhe retirada. A sentença do Amtsgericht Memmingen transitou em julgado em 8 de maio de 2007. Por outro lado, a pena imposta foi acompanha da interdição de requerer uma nova carta de condução até 7 de agosto de 2008.

21.      Em 19 de janeiro de 2009, as autoridades checas competentes emitiram uma carta de condução a W. Hofmann. Nessa carta de condução, figura, como local de residência, a cidade de Lazany (República Checa).

22.      Por ocasião de um controlo rodoviário efetuado em 17 de março de 2009, as autoridades alemãs verificaram que W. Hofmann se encontrava na posse de uma carta de condução checa. Num outro controlo rodoviário, efetuado em 25 de março de 2009, esta carta de condução foi apreendida pela polícia alemã, que depois a enviou à autoridade alemã competente em matéria de emissão de cartas de condução.

23.      Por ofício de 20 de abril de 2009, essa autoridade alemã competente em matéria de emissão de cartas de condução comunicou a W. Hofmann que a sua carta de condução checa não o autorizava a conduzir na Alemanha e que cometeria o delito de condução sem carta se conduzisse veículos na Alemanha. Além disso, a referida autoridade notificou W. Hofmann de que seria adotada uma decisão declarativa, caso não estivesse de acordo com o averbamento na sua carta de condução de uma nota relativa à proibição de conduzir na Alemanha.

24.      Como W. Hofmann recusou a inscrição dessa nota na sua carta de condução checa, o Landratsamt (autoridade administrativa) de Unterallgäu declarou, por decisão administrativa de 15 de julho de 2009, que a carta de condução de W. Hofmann, emitida pelas autoridades checas competentes, não o autorizava a conduzir veículos na Alemanha.

25.      Em 13 de agosto de 2009, W. Hofmann recorreu para o Verwaltungsgericht Augsburg, pedindo a anulação desta decisão. Por acórdão de 11 de dezembro de 2009, este órgão jurisdicional negou provimento ao recurso, com fundamento em que os requisitos enunciados no § 28, n.° 4, primeiro período, pontos 2 e 3, do FeV, estavam preenchidos, uma vez que a carta de condução alemã de W. Hofmann tinha sido apreendida. Assim sendo, este não poderia utilizar, na Alemanha, uma carta de condução emitida por outro Estado‑Membro.

26.      W. Hofmann recorreu desta decisão para o órgão jurisdicional de reenvio, pedindo, no essencial, a anulação da referida decisão e da decisão proferida, em 15 de julho de 2009, pelo Landratsamt de Unterallgäu.

III ― Questão prejudicial

27.      Tendo dúvidas quanto à interpretação das disposições da Diretiva 2006/126, o Bayerischer Verwaltungsgerichtshof decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«As disposições do artigo 2.°, n.° 1, e do artigo 11.°, n.° 4, segundo [parágrafo], da Diretiva 2006/126/CE devem ser interpretadas no sentido de que um Estado‑Membro deve recusar o reconhecimento da validade de uma carta de condução, emitida por outro Estado‑Membro a uma pessoa, fora do período em que esta estava proibida de requerer uma nova carta, se a sua carta de condução lhe tiver sido retirada no território do primeiro Estado‑Membro referido e essa pessoa, na data em que a carta de condução foi emitida, tinha a sua residência habitual no território do Estado‑Membro emissor da carta de condução?»

IV ― Análise

A ―    Observações preliminares

28.      Como a questão da aplicação dos artigos 2.°, n.° 1, e 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126, foi suscitada pelo órgão jurisdicional de reenvio no seu pedido de decisão prejudicial e pelas partes nas suas observações escritas, importa explicar, a título preliminar, as razões pelas quais considero que estas disposições são efetivamente aplicáveis ao presente processo.

29.      Por força do artigo 17.° da Diretiva 2006/126, a Diretiva 91/439 foi revogada com efeitos a partir de 19 de janeiro de 2013. Os Estados‑Membros aplicam as disposições da Diretiva 2006/126 a partir dessa mesma data (10). Viu‑se, porém, que, nos termos do artigo 18.°, segundo parágrafo, desta diretiva, determinados artigos são aplicáveis a partir de 19 de janeiro de 2009. Tal é o caso, designadamente, dos artigos 2.°, n.° 1, e 11.°, n.° 4, da referida diretiva.

30.      Ora, W. Hofmann obteve a sua carta de condução checa em 19 de janeiro de 2009. Consequentemente, na minha opinião, não há dúvida de que as disposições pertinentes para o caso em apreço são as da nova diretiva relativa à carta de condução, ou seja, os artigos 2.°, n.° 1, e 11.°, n.° 4, da Diretiva 2006/126, aplicáveis a partir dessa mesma data.

31.      Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 13.°, n.° 2, desta diretiva não impede a aplicação do artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da referida diretiva. Com efeito, importa ter presente que, nos termos dessa primeira disposição, qualquer direito de conduzir concedido até 19 de janeiro de 2013 não poderá ser anulado ou de qualquer modo restringido pelas disposições da Diretiva 2006/126.

32.      Por conseguinte, W. Hofmann considera que o artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, desta diretiva só é aplicável a partir de 19 de janeiro de 2013 e que as cartas de condução emitidas antes dessa data não podem ser objeto de restrição, de suspensão ou de retirada.

33.      Deve recordar‑se que, por força do artigo 16.°, n.os 1 e 2, da referida diretiva, as suas disposições, e, designadamente, o artigo 13.°, só são aplicáveis a partir de 19 de janeiro de 2013.

34.      De todo o modo, como observa o Governo alemão, o local em que o artigo 13.° se encontra inserido na Diretiva 2006/126 revela que este apenas se reporta aos direitos adquiridos para a condução de categorias de veículos particulares e não às medidas de restrição, suspensão ou de retirada de uma carta de condução.

35.      Com efeito, esta diretiva institui um modelo de carta de condução comunitária único que visa substituir as diferentes cartas de condução existentes nos Estados‑Membros (11). A este respeito, fixa e define as diferentes categorias de cartas de condução (12). Como os Estados‑Membros definiram, antes da entrada em vigor das disposições comunitárias, as suas próprias categorias de cartas de condução, deverão agora estabelecer as equivalências entre essas categorias e as definidas pelo legislador da União.

36.      O artigo 13.° da Diretiva 2006/126, sob a epígrafe «Equivalências de cartas de condução de modelo não comunitário», visa unicamente regular esta questão das equivalências das diferentes categorias de cartas de condução.

37.      É, de resto, o que resulta dos trabalhos preparatórios. Com efeito, foi por iniciativa do Parlamento Europeu que foi aditado o artigo 13.°, n.° 2, desta diretiva (13). O Parlamento justificou este aditamento, esclarecendo que a troca das antigas cartas de condução não devia de forma alguma saldar‑se por uma perda ou por uma restrição dos direitos adquiridos no que diz respeito à autorização para conduzir diversas categorias de veículos (14).

38.      Uma análise semelhante à proposta por W. Hofmann implicaria, de resto, que um Estado‑Membro não pudesse aplicar as suas disposições nacionais em matéria de restrição, suspensão, apreensão ou inibição do direito de conduzir aos condutores que tivessem obtido a sua carta de condução antes de 19 de janeiro de 2013. Isso iria claramente contra o objetivo de melhorar a segurança da circulação rodoviária visado pela Diretiva 2006/126.

39.      Por todas estas razões, entendo que o artigo 13.°, n.° 2, da Diretiva 2006/126 não se opõe à aplicação do artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da referida diretiva.

B ―    Quanto à questão prejudicial

40.      Através da sua questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se os artigos 2.°, n.° 1, e 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126 devem ser interpretados no sentido de que um Estado‑Membro deve recusar o reconhecimento da validade de uma carta de condução emitida por outro Estado‑Membro, quando o seu titular tenha sido objeto, no território do primeiro Estado‑Membro, de uma apreensão da carta de condução anterior, mesmo que esta medida de apreensão tenha esgotado todos os seus efeitos e que esteja preenchido o requisito da residência.

41.      Na realidade, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se a jurisprudência desenvolvida pelo Tribunal de Justiça, até agora, no quadro da Diretiva 91/439 (15), é igualmente aplicável a situações, como a de W. Hofmann, reguladas pela Diretiva 2006/126.

42.      Não creio que assim seja, pelas razões que a seguir exponho.

43.      Resulta dos trabalhos preparatórios da Diretiva 2006/126 que o legislador da União pretendeu reforçar o combate ao turismo da carta de condução e, com isso, o combate à insegurança da circulação rodoviária.

44.      Com efeito, a alteração da redação do artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, desta diretiva é da responsabilidade do Parlamento. Na reformulação da Diretiva 91/439, este último propôs a instituição do reconhecimento mútuo das sanções aplicadas aos condutores perigosos. Para o efeito, observou que, para assegurar que a apreensão das cartas de condução num Estado‑Membro fosse válida em todos os Estados‑Membros, seria necessário obrigá‑los, a partir desse momento, a reconhecer qualquer medida de restrição, suspensão, apreensão ou anulação, aplicada por outro Estado‑Membro, e a recusar o reconhecimento da validade de cartas de condução que tivessem sido objeto de uma medida desse tipo (16).

45.      O Parlamento pretendia, tanto quanto possível, pôr termo ao turismo da carta de condução (17). De acordo com a Comissão Parlamentar dos Transportes e Turismo, o turismo da carta de condução pode definir‑se como o facto de um cidadão, a quem tenha sido apreendida a sua carta de condução no seu Estado‑Membro na sequência de uma infração grave, obter uma nova carta de condução noutro Estado‑Membro (18).

46.      Por outro lado, o Parlamento fez referência ao facto de as pessoas a quem foi retirada a sua carta de condução num Estado‑Membro, designadamente por conduzirem em estado de embriaguez ou sob o efeito de drogas, poderem conseguir facilmente uma residência falsa num Estado‑Membro, e aí obter uma carta de condução, de modo a eximirem‑se aos requisitos relativos à obtenção de uma nova carta de condução (19).

47.      Consequentemente, parece‑me claro que a alteração de redação do artigo 11.°, n.° 4, da Diretiva 2006/126 configura a manifestação desta vontade de reforçar o combate à insegurança rodoviária, ultrapassando aquilo que estava, até agora, previsto na Diretiva 91/439. Assim, o artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126 já não deixa margem de apreciação aos Estados‑Membros e impõe, agora, a recusa do reconhecimento da validade de qualquer carta de condução emitida por outro Estado‑Membro, sempre que o seu titular tenha sido alvo de uma medida de restrição, suspensão, ou retirada de uma carta de condução anterior no território do primeiro Estado‑Membro.

48.      Em meu entender, daqui decorre que, numa situação como a de W. Hofmann, a autoridade alemã competente pode não reconhecer a carta de condução emitida pelas autoridades checas competentes.

49.      Com efeito, da medida de apreensão de uma carta de condução anterior tomada pela autoridade alemã competente resulta que a emissão de uma nova carta de condução, uma vez decorrido o período de proibição de requerer essa carta de condução, dependia da apresentação de um relatório pericial médico‑psicológico relativo à aptidão de W. Hofmann para conduzir.

50.      Não tenho dúvidas de que, para certas infrações estatisticamente na origem de um elevado número de acidentes graves de circulação rodoviária, como a condução em estado de embriaguez (20), o facto de se subordinar a renovação do direito de conduzir a uma medida pericial desse tipo constitui um meio eficaz de prevenção para reforço da segurança da circulação rodoviária. Nesta perspetiva, a medida nacional parece estar em consonância com um dos objetivos da Diretiva 2006/126 que é o de melhorar a segurança da circulação rodoviária. (21).

51.      A este respeito, a Comissão recordou até que ponto era importante educar, formar, controlar e, se fosse caso disso, punir o utilizador da estrada por este último ser o primeiro elo da cadeia da circulação rodoviária. (22).

52.      Consequentemente, considerar que as autoridades alemãs competentes tinham o direito de recusar o reconhecimento da validade da carta de condução emitida pelas autoridades checas competentes afigura‑se conforme não apenas ao espírito da referida diretiva, mas também à letra da mesma, no que diz respeito às disposições aplicáveis em 19 de janeiro de 2009.

53.      Com efeito, em meu entender, há que ter em consideração o facto de o artigo 18.°, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126 prever, designadamente, que o seu anexo III também é aplicável a partir de 19 de janeiro de 2009. Ora, o ponto 14 deste anexo precisa que o consumo de álcool constitui um perigo importante para a segurança da circulação rodoviária e que, tendo em conta a gravidade do problema, se impõe uma grande vigilância no plano médico. Assim, o ponto 14.1 do referido anexo prevê que não pode ser emitida uma carta de condução a uma pessoa que se encontre em situação de dependência do álcool e que só pode ser concedida uma nova carta a uma pessoa que tenha estado em situação de dependência do álcool mediante a observância de certos requisitos, como um parecer médico.

54.      Em meu entender, o fundamento da decisão de 15 de julho de 2009, que visou W. Hofmann, é suscetível de justificar a aplicação das medidas de controlo do ponto 14.1 do anexo III da Diretiva 2006/126. Se estas medidas de controlo tivessem sido aplicadas e se tivessem sido realizados todos os testes que permitiriam assegurar que W. Hofmann estava de novo apto a conduzir, então a carta de condução checa deveria ser reconhecida como válida pelas autoridades alemãs competentes, porque satisfazia as prescrições que respondem, ao nível da União, a uma preocupação comum de segurança.

55.      Penso que o facto de as autoridades checas competentes terem ignorado a decisão de apreensão proferida pelo Amtsgericht Memmingen não influencia a solução que proponho. Com efeito, essa circunstância decorre do facto de W. Hofmann ter escondido a existência desta condenação ou de as autoridades checas competentes não terem consultado as autoridades alemãs competentes. No primeiro caso, resulta claro que a dissimulação efetuada por W. Hofmann não lhe podia aproveitar. No segundo caso, o eventual erro de uma administração também não podia ser gerador de direito, designadamente, à face da lei de outro Estado‑Membro e, mais ainda, quando uma diretiva impõe a este Estado que aplique a sua lei nacional no quadro de uma exceção reconhecida por esta diretiva como parte do equilíbrio geral que a mesma institui.

56.      Na audiência, a Comissão reconheceu que, no caso do presente processo, o mecanismo que consistisse, para o Estado‑Membro emissor, em consultar as autoridades alemãs competentes e, depois, tomando conhecimento dos problemas de álcool de W. Hofmann, em aplicar as medidas previstas no ponto 14.1 do anexo III da Diretiva 2006/126, poderia ser considerado conforme ao espírito desta diretiva e, portanto, teria o efeito de tornar a carta de condução emitida pela República Checa oponível à República Federal da Alemanha.

57.      Em minha opinião, um mecanismo como este pode permitir, na ótica da prevenção que é a sua, combinar as disposições novas do artigo 11.°, n.° 4, da Diretiva 2006/126 com o princípio de reconhecimento recíproco baseado numa confiança mútua incontestável, desde que sejam observadas as medidas previstas no ponto 14.1 do anexo III desta mesma diretiva, aplicáveis nos 27 Estados‑Membros.

58.      É certo que a Comissão declarou, igualmente, que um sistema como este, que necessitava pois de uma consulta entre as autoridades competentes dos diferentes Estados‑Membros, se lhe afigurava complexo e não estava expressamente previsto. Recorde‑se, todavia, que, não só o artigo 12.°, n.° 3, da Diretiva 91/439 já previa que os Estados‑Membros se assistissem mutuamente na aplicação desta diretiva e trocassem, se fosse o caso, as informações necessárias sobre as cartas de condução que tivessem registadas, mas que, além disso, o artigo 15.° da Diretiva 2006/126 reafirma esta necessidade de assistência mútua na ótica de uma ulterior colocação em rede das cartas de condução. A cooperação e a assistência mútua entre os Estados‑Membros parecem‑me ser precisamente a chave que permite, ao reforçar a confiança mútua, atingir os objetivos que a União se fixou em matéria de segurança da circulação rodoviária. De resto, a colocação em rede das cartas de condução não me parece mais complicada do que a colocação em rede dos registos criminais já realizada entre certos Estados‑Membros.

59.      Por conseguinte, a solução que proponho afigura‑se‑me ser a mais adequada para responder à vontade do legislador da União, que é a de reforçar o combate à insegurança rodoviária, e de conferir, assim, um efeito útil ao artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126 cuja redação foi expressamente alterada por esta razão.

60.      A este respeito, o comportamento de W. Hofmann é prova disso. Com efeito, parece que este não superou a sua dependência do álcool, porquanto, em 16 de abril de 2009, ou seja, quase três meses após a emissão da sua carta de condução checa, foi mandado parar e foi controlado pela polícia alemã, tendo revelado uma taxa de alcoolémia muito elevada. A consequência deste comportamento perigoso para todos os utilizadores da estrada foi a apreensão, por uma decisão que se tornou definitiva em 5 de abril de 2011, da sua carta de condução checa durante 18 meses. Penso que, se as autoridades checas competentes tivessem tido conhecimento da sua dependência do álcool, não teriam garantidamente emitido uma carta de condução a W. Hofmann.

61.      O artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126 funciona pois, como referiu o Governo alemão, como válvula de segurança, que permite impedir os indivíduos perigosos de circular no território dos Estados‑Membros.

62.      Pode contrapor‑se o argumento de que esse raciocínio não pode ser aplicado ao artigo 11.°, n.° 4, último parágrafo, de referida diretiva, ou seja, quando a medida toma a forma de anulação da carta de condução. Com efeito, de acordo com esta disposição, um Estado‑Membro pode recusar (23) a emissão de uma carta de condução a um candidato cuja carta de condução tenha sido objeto de anulação noutro Estado‑Membro. No entanto, penso, como o Governo alemão e a Comissão, que a cassação, que se distingue das medidas de suspensão, de restrição e de apreensão, não diz respeito à aptidão para conduzir do titular da carta de condução, mas aos elementos de forma relativos à sua emissão.

63.      O objetivo da Diretiva 2006/126 não é disponibilizar aos cidadãos da União um «forum shopping» da carta de condução, consoante os requisitos de emissão sejam menos severos num Estado‑Membro fronteiriço (24), mas, por um lado, permitir a uma pessoa que possui uma carta de condução estabelecer‑se no território de um Estado‑Membro diferente do da emissão dessa carta de condução, sem ter de voltar a sujeitar‑se a outro exame de condução ou sem ter de trocar a referida carta de condução, e, por outro, assegurar que os utilizadores da estrada estão em segurança no território da União (25).

64.      Consequentemente, atendendo a todas as considerações que antecedem, penso que os artigos 2.°, n.° 1, e 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126 devem ser interpretados no sentido de que um Estado‑Membro deve recusar o reconhecimento da validade da carta de condução emitida por outro Estado‑Membro, quando tiver sido apreendida a carta de condução a uma pessoa, no primeiro Estado‑Membro, por conduzir sob o efeito do álcool e por não se ter procedido, quanto a essa pessoa, no Estado‑Membro de emissão, às necessárias verificações da sua aptidão para conduzir, previstas no ponto 14.1 do anexo III desta mesma diretiva.

V ―    Conclusão

65.      Face ao exposto, proponho que se responda à questão submetida pelo Bayerischer Verwaltungsgerichtshof da seguinte forma:

«Os artigos 2.°, n.° 1, e 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de dezembro de 2006, relativa à carta de condução, devem ser interpretados no sentido de que um Estado‑Membro deve recusar o reconhecimento da validade de uma carta de condução emitida por outro Estado‑Membro, quando for apreendida a uma pessoa a carta de condução no primeiro Estado‑Membro, por conduzir sob o efeito do álcool e por não se ter procedido, quanto a essa pessoa, no Estado‑Membro de emissão, às necessárias verificações da sua aptidão para conduzir, tal como previstas no ponto 14.1 do anexo III da Diretiva 2006/126.»


1 ―      Língua original: francês.


2 ―      JO L 403, p. 18.


3 ―      JO L 237, p. 1.


4 ―      Itálico meu.


5 ―      Idem.


6 ―      V. acórdão de 29 de abril de 2004, Kapper (C‑476/01, Colet., p. I‑5205, n.° 78), e despachos de 6 de abril de 2006, Halbritter (C‑227/05), e de 28 de setembro de 2006, Kremer (C‑340/05).


7 ―      V. artigo 1.°, n.° 2, desta diretiva.


8 ―      Artigo 16.°, n.° 2, da referida diretiva.


9 ―      Artigo 17.°, primeiro parágrafo da Diretiva 2006/126.


10 ―      Artigo 16.°, n.° 2, desta diretiva.


11 ―      V. artigo 1.°, n.° 1, da referida diretiva.


12 ―      V. artigo 4.° da Diretiva 2006/126.


13 ―      V. alteração 13 do relatório de 3 de fevereiro de 2005 sobre a Proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à carta de condução (reformulação) (A6‑0016/2005, a seguir «relatório»).


14 ―      Idem.


15 ―      V. n.° 5 destas conclusões.


16 ―      V. alteração 57 do relatório e exposição de motivos p. 59.


17 ―      V. justificação a esta alteração.


18 ―      V. projeto de recomendação para a segunda leitura de 21 de setembro de 2006 relativa à posição comum adotada pelo Conselho tendo em vista a aprovação da diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à carta de condução [2003/0252(COD), n.° 2.1].


19 ―      V. justificação à alteração 57 do relatório.


20 ―      Em 2009, mais de 35 000 pessoas encontraram a morte nas estradas da União europeia, ou seja, o equivalente à população de uma cidade de dimensão média, e não menos de 1 500 000 ficaram feridas (comunicação da Comissão de 20 de julho de 2010 ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões – «Vers un espace européen de la sécurité routière: orientations politiques pour la sécurité routière de 2011 à 2020» [COM(2010) 389 final, p. 2]. Considera‑se que um em três acidentes está diretamente relacionado com o álcool.


21 ―      V. o segundo considerando desta diretiva.


22 ―      V. p. 5 da comunicação da Comissão já referida na nota de pé de página 20.


23 ―      Itálico meu.


24 ―      É certo que, na carta de condução checa de W. Hofmann, consta uma residência na República Checa. No entanto, é notório que certas escolas de condução pouco escrupulosas se especializaram em fornecer residência aos nacionais alemães, tendo por único objetivo satisfazer um dos requisitos de emissão da carta de condução (v., a este respeito, n.° 46 destas conclusões.).


25 ―      V. segundo considerando desta diretiva.