Language of document : ECLI:EU:C:2013:448

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção)

4 de julho de 2013 (*)

«Contratos públicos — Diretiva 89/665/CEE — Recurso em matéria de contratos públicos — Recurso de uma decisão de adjudicação de um contrato interposto por um proponente cuja proposta não foi selecionada — Recurso baseado no fundamento de que a proposta selecionada não é conforme com as especificações técnicas do concurso — Recurso subordinado interposto pelo adjudicatário baseado na inobservância de certas especificações técnicas do concurso relativamente à proposta apresentada pelo proponente que interpôs o recurso principal — Propostas que não são ambas conformes com as especificações técnicas do concurso — Jurisprudência nacional que impõe que seja feito um exame prévio do recurso subordinado e, em caso de procedência do mesmo, que seja declarada a inadmissibilidade do recurso principal, sem exame do mérito — Compatibilidade com o direito da União»

No processo C‑100/12,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Tribunale amministrativo regionale per il Piemonte (Itália), por decisão de 25 de janeiro de 2012, entrado no Tribunal de Justiça em 24 de fevereiro de 2012, no processo

Fastweb SpA

contra

Azienda Sanitaria Locale di Alessandria,

estando presentes:

Telecom Italia SpA,

Path‑Net SpA,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção),

composto por: A. Rosas, presidente de secção, E. Juhász e D. Šváby (relator), juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: A. Impellizzeri, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 6 de dezembro de 2012,

vistas as observações apresentadas:

―        em representação da Telecom Italia SpA e da Path‑Net SpA, por A. Lirosi, M. Martinelli e L. Mastromatteo, avvocati,

―        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por S. Varone, avvocato dello Stato,

―        em representação da Comissão Europeia, por A. Tokár e D. Recchia, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvida a advogada‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação da Diretiva 89/665/CEE do Conselho, de 21 de dezembro de 1989, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos processos de recurso em matéria de adjudicação dos contratos de direito público de fornecimentos e de obras (JO L 395, p. 33), conforme alterada pela Diretiva 2007/66/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2007 (JO L 335, p. 31, a seguir «Diretiva 89/665»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Fastweb SpA (a seguir «Fastweb») à Azienda Sanitaria Locale di Alessandria (Agência Sanitária Local de Alessandria), bem como à Telecom Italia SpA (a seguir «Telecom Italia») e a uma filial desta, a Path‑Net SpA (a seguir «Path‑Net), a respeito da adjudicação de um contrato público a esta filial.

 Quadro jurídico

3        Os considerandos 2 e 3 da Diretiva 89/665 têm a seguinte redação:

«Considerando que os mecanismos atualmente existentes, tanto a nível nacional como a nível comunitário, para assegurar [a] aplicação [efetiva das diretivas em matéria de contratos de direito público], nem sempre permitem garantir o respeito das disposições comunitárias, sobretudo numa fase em que as violações podem ainda ser corrigidas;

Considerando que a abertura dos contratos de direito público à concorrência comunitária requer um aumento substancial das garantias de transparência e de não discriminação e que convém, para que dessa abertura resultem efeitos concretos, que existam meios de recurso eficazes e rápidos em caso de violação do direito comunitário em matéria de contratos de direito público ou das normas nacionais que transpõem esse direito».

4        O considerando 3 da Diretiva 2007/66 enuncia:

«[A]s garantias de transparência e de não discriminação que [designadamente a Diretiva 89/665] consagr[a] deverão ser reforçadas, a fim de assegurar que a Comunidade no seu conjunto beneficie plenamente dos efeitos positivos da modernização e da simplificação das regras relativas à adjudicação de contratos públicos alcançados [designadamente] pel[a] Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO L 134, p. 114)]. […]»

5        Nos termos do artigo 1.° da Diretiva 89/665, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação e acesso ao recurso»:

«1.      A presente diretiva é aplicável aos contratos a que se refere a [Diretiva 2004/18], salvo [a]os contratos excluídos nos termos dos artigos 10.° a 18.°

Os contratos, na aceção da presente diretiva, incluem os contratos públicos, os acordos‑quadro, as concessões de obras públicas e os sistemas de aquisição dinâmicos.

Os Estados‑Membros devem tomar as medidas necessárias para assegurar que, no que se refere aos contratos abrangidos pelo âmbito de aplicação da [Diretiva 2004/18], as decisões das entidades adjudicantes possam ser objeto de recursos eficazes e, sobretudo, tão céleres quanto possível, nos termos dos artigos 2.° a 2.°‑F da presente diretiva, com fundamento na violação, por tais decisões, do direito comunitário em matéria de contratos públicos ou das normas nacionais de transposição desse direito.

[...]

3.      Os Estados‑Membros devem garantir o acesso ao recurso, de acordo com regras detalhadas que os Estados‑Membros podem estabelecer, a qualquer pessoa que tenha ou tenha tido interesse em obter um determinado contrato e que tenha sido, ou possa vir a ser, lesada por uma eventual violação.

[...]»

6        O artigo 2.°, n.° 1, desta diretiva dispõe:

«Os Estados‑Membros asseguram que as medidas tomadas relativamente aos recursos a que se refere o artigo 1.° prevejam poderes para:

[...]

b)      Anular ou fazer anular as decisões ilegais […]

[...]»

7        O considerando 2 da Diretiva 2004/18 tem a seguinte redação:

«A adjudicação de contratos celebrados nos Estados‑Membros por conta do Estado, das autarquias locais e regionais e de outros organismos de direito público deve respeitar os princípios do Tratado [FUE], nomeadamente os princípios da livre circulação de mercadorias, da liberdade de estabelecimento e da livre prestação de serviços, assim como os princípios deles resultantes, tais como os princípios da igualdade de tratamento, da não discriminação, do reconhecimento mútuo, da proporcionalidade e da transparência. Todavia, no que se refere aos contratos públicos que ultrapassem um determinado valor, é aconselhável estabelecer disposições que instituam uma coordenação comunitária dos procedimentos nacionais para a adjudicação dos contratos públicos que se baseiem nesses princípios por forma a garantir os seus efeitos e a abertura à concorrência dos contratos públicos. Por conseguinte, tais disposições de coordenação devem ser interpretadas em conformidade com as regras e princípios atrás referidos, bem como com as restantes regras do Tratado.»

8        Nos termos do artigo 2.° desta diretiva:

«As entidades adjudicantes tratam os operadores económicos de acordo com os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação e agem de forma transparente.»

9        O artigo 32.° da referida diretiva dispõe:

«[...]

2.      Para efeitos de celebração de um acordo‑quadro, as entidades adjudicantes seguirão as normas processuais referidas na presente diretiva em todas as fases até à adjudicação dos contratos baseados nesse acordo‑quadro. [...]

Os contratos baseados num acordo‑quadro serão adjudicados segundo os procedimentos previstos nos n.os 3 e 4. [...]

[...]

4.      [...]

A atribuição dos contratos baseados em acordos‑quadro celebrados com vários operadores económicos pode ser feita:

[...]

―        quer, quando nem todos os termos se encontrem estipulados no acordo‑quadro, após reabertura de concurso entre as partes com base nos mesmos termos, se necessário precisando‑os, e, se for caso disso, noutros termos indicados no caderno de encargos do acordo‑quadro, recorrendo ao seguinte procedimento:

a)      Para cada contrato a adjudicar, as entidades adjudicantes consultarão por escrito os operadores económicos suscetíveis de executar o objeto do contrato;

[…]

d)      As entidades adjudicantes atribuirão cada contrato ao proponente que tiver apresentado a melhor proposta com base nos critérios de adjudicação previstos no caderno de encargos do acordo‑quadro.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

10      Em conformidade com o Decreto Legislativo n.° 82, de 7 de março de 2005, que aprovou o Código da Administração Digital (decreto legislativo 7 marzo 2005, n.° 82 codice dell’amministrazione digitale, suplemento ordinário do GURI, n.° 112, de 16 de maio de 2005), o Centro Nazionale per l’Informatica nella Pubblica Amministrazione (a seguir «CNIPA») (Centro Nacional para a Informática na Administração Pública) pode celebrar acordos‑quadro com operadores económicos por si selecionados. As administrações não estatais podem adjudicar contratos baseados nesses acordos‑quadro e devem ter em conta os requisitos que lhes são inerentes.

11      O CNIPA celebrou um destes acordos‑quadro, designadamente, com a Fastweb e com a Telecom Italia. Em 18 de junho de 2010, a Azienda Sanitaria Locale di Alessandria enviou um pedido de propostas a essas sociedades relativo a «linhas de transmissão de dados e telefone», com base num caderno de encargos. Por decisão de 15 de setembro de 2010, escolheu a proposta apresentada pela Telecom Italia, tendo celebrado um contrato com uma filial da mesma, a Path‑Net, em 27 do mesmo mês.

12      A Fastweb interpôs recurso da decisão de adjudicação deste contrato no Tribunale amministrativo regionale per il Piemonte (Tribunal Administrativo Regional do Piemonte), tendo a Telecom Italia e a Path‑Net sido intervenientes nesse processo, as quais, por sua vez, interpuseram um recurso subordinado. A regularidade da proposta de cada um destes operadores é posta em causa pelo seu único concorrente devido à inobservância de certas especificações técnicas constantes do caderno de encargos.

13      Da verificação da adequação das propostas apresentadas por estas duas sociedades a respeito do caderno de encargos, ordenada pelo órgão jurisdicional de reenvio, resultou a constatação de que nenhuma destas propostas era conforme com todas as especificações técnicas impostas pelo caderno de encargos. Segundo esse órgão jurisdicional, esta constatação devia, logicamente, conduzir a que fosse dado provimento aos dois recursos e, consequentemente, a que fosse anulado o procedimento de concurso público em causa no processo principal, na medida em que nenhum proponente apresentou uma proposta suscetível de dar lugar a uma adjudicação. Esta solução interessa à recorrente no processo principal, uma vez que a reabertura do procedimento de adjudicação lhe concederia uma nova oportunidade de vencer o concurso.

14      Esse órgão jurisdicional salienta todavia que, por decisão de 7 de abril de 2011 proferida em sessão plenária, o Consiglio di Stato enunciou um princípio jurídico, respeitante aos recursos em matéria de concursos públicos, segundo o qual o exame de um recurso subordinado por meio do qual se contesta a legitimidade do recorrente principal, por a participação deste ter sido irregularmente aceite no processo de adjudicação controvertido, deve preceder o exame do recurso principal, mesmo no caso de essa parte ter um interesse material na reabertura do procedimento de adjudicação na sua totalidade e independentemente do número de concorrentes que tenham participado no mesmo, do tipo de acusação invocada em apoio do recurso subordinado e das exigências da administração em causa.

15      Com efeito, o Consiglio di Stato considera que apenas a pessoa que participou legitimamente no procedimento de adjudicação tem legitimidade para recorrer da decisão de adjudicação do contrato público em causa. Segundo esse órgão jurisdicional, a constatação da irregularidade da admissão, nesse procedimento, da parte que veio a interpor um recurso desta decisão produz efeitos retroativos e a exclusão definitiva desta parte do procedimento de concurso público implicaria que a referida parte se encontraria numa situação que não lhe permitiria impugnar o resultado desse procedimento.

16      Em conformidade com esta jurisprudência do Consiglio di Stato, o interesse prático na reabertura do procedimento de adjudicação invocado pela parte que interpôs um recurso da decisão de adjudicação de um contrato público não confere a essa parte uma posição jurídica que justifique a sua legitimidade. Com efeito, um interesse desta natureza não se distingue do de qualquer outro operador económico do setor que aspire a participar num novo procedimento de adjudicação. Assim, o recurso subordinado por meio do qual se contesta a legitimidade da parte que interpôs o recurso principal deve sempre ser examinado em primeiro lugar, ainda que só tenha havido dois proponentes, ou seja, o proponente cuja proposta não foi selecionada, recorrente no recurso principal, e o adjudicatário, recorrente no recurso subordinado.

17      O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a conformidade da referida jurisprudência, em particular, na medida em que afirma incondicionalmente a preeminência do recurso subordinado sobre o recurso principal, com os princípios da igualdade, da não discriminação, da livre concorrência e da proteção jurisdicional efetiva, conforme estes se encontram consignados nos artigos 1.°, n.° 1, e 2.°, n.° 1, alínea b), da Diretiva 89/665. Com efeito, segundo esse órgão jurisdicional, o exame prévio — e possivelmente exclusivo — do recurso subordinado é suscetível de conferir ao adjudicatário uma vantagem injustificada relativamente a todos os outros operadores económicos que tenham participado no procedimento de adjudicação quando se verifique que o contrato lhe foi irregularmente adjudicado.

18      Neste contexto, o Tribunale amministrativo regionale per il Piemonte decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Os princípios da igualdade das partes, da não discriminação e da proteção da concorrência nos contratos públicos, na Diretiva [89/665], obstam ao direito instituído pela decisão n.° 4, de 2011, da Secção Plenária do Consiglio di Stato[…] segundo o qual o exame do recurso subordinado em que se contesta a legitimidade do recorrente principal impugnando a sua admissão ao concurso[…] deve necessariamente preceder a apreciação do recurso principal e tem um alcance prejudicial relativamente ao exame deste, mesmo quando o recorrente principal tenha um interesse instrumental na repetição da totalidade do procedimento de seleção e independentemente do número de concorrentes que nele tenham participado, especialmente na hipótese de os concorrentes que continuam em concurso serem apenas dois (e coincidirem com o recorrente principal e com o adjudicatário recorrente [no recurso subordinado], cada um deles pretendendo excluir o outro por inobservância, nas respetivas propostas, dos requisitos mínimos de idoneidade da proposta?»

 Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

19      A Telecom Italia e a Path‑Net, bem como o Governo italiano, contestam a admissibilidade do pedido de decisão prejudicial por diversos motivos. Todavia, as quatro exceções de inadmissibilidade assim suscitadas não podem ser acolhidas.

20      Com efeito, em primeiro lugar, o presente reenvio prejudicial ocorre numa situação que se enquadra perfeitamente na previsão do artigo 267.° TFUE. Em conformidade com o primeiro e segundo parágrafos deste artigo, um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro pode pedir ao Tribunal de Justiça que se pronuncie sobre qualquer questão relativa à interpretação dos Tratados e dos atos jurídicos derivados quando considere que é necessária uma decisão sobre essa questão para o julgamento da causa. Ora, no caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que o Tribunale amministrativo regionale per il Piemonte se interroga sobre as implicações da Diretiva 89/665 no contexto processual e factual que carateriza o litígio no processo principal, vislumbrando duas respostas possíveis que levariam a dar soluções diferentes a este litígio.

21      Em segundo lugar, a decisão de reenvio contém uma exposição suficiente do quadro jurídico nacional, uma vez que descreve e explicita a jurisprudência do Consiglio di Stato, que se baseia na interpretação dada por este ao conjunto das regras e dos princípios processuais pertinentes do direito nacional numa situação como a que está em causa no processo principal e das consequências que daí decorrem, segundo esse órgão jurisdicional, no que respeita à admissibilidade do recurso principal do proponente cuja proposta não foi selecionada.

22      Em terceiro lugar, ainda que o órgão jurisdicional de reenvio não indique qual a disposição particular do direito da União cuja interpretação deseja obter, refere‑se explicitamente, na sua própria questão, à Diretiva 89/665 e a decisão de reenvio contém um conjunto suficientemente completo de informações que permitem ao Tribunal de Justiça determinar os elementos deste direito que carecem de interpretação tendo em conta o objeto do litígio no processo principal (v., por analogia, acórdão de 9 de novembro de 2006, Chateignier, C‑346/05, Colet., p. I‑10951, n.° 19 e jurisprudência referida).

23      Por último, em quarto lugar, não se afigura que este litígio diga respeito a um contrato público correspondente a uma exceção referida no artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 89/665. Por conseguinte, na medida em que o montante desse contrato excede a base de aplicação da Diretiva 2004/18, conforme estabelecida no artigo 7.° desta, facto que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, não havendo contudo motivo para dúvidas nesta fase, as duas diretivas acima mencionadas são aplicáveis a um contrato como o que está em causa no processo principal. Há que recordar, a este respeito, que o facto de um procedimento de adjudicação de um contrato público envolver apenas empresas nacionais não é relevante para a aplicação da Diretiva 2004/18 (v., neste sentido, acórdão de 16 de dezembro de 2008, Michaniki, C‑213/07, Colet., p. I‑9999, n.° 29 e jurisprudência referida).

 Quanto à questão prejudicial

24      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se as disposições da Diretiva 89/665, nomeadamente os seus artigos 1.° e 2.°, devem ser interpretadas no sentido de que, no âmbito de um processo de recurso, caso o adjudicatário suscite uma exceção de inadmissibilidade baseada na falta de legitimidade do proponente que interpôs o recurso com o fundamento de que a proposta que este apresentou devia ter sido excluída pela entidade adjudicante por não ser conforme com as especificações técnicas definidas no caderno de encargos, o referido artigo 1.°, n.° 3, se opõe a que esse recurso seja julgado inadmissível na sequência do exame prévio dessa exceção de inadmissibilidade quando o próprio recorrente contesta a regularidade da proposta do adjudicatário com um fundamento de natureza idêntica e quando apenas estes dois operadores apresentaram uma proposta.

25      Há que salientar que resulta do artigo 1.° da Diretiva 89/665 que esta visa permitir a interposição de recursos eficazes de decisões das entidades adjudicantes que sejam incompatíveis com o direito da União. De acordo com o n.° 3 do referido artigo, os Estados‑Membros devem garantir o acesso ao recurso, de acordo com as regras detalhadas que os Estados‑Membros podem estabelecer, a qualquer pessoa que tenha ou tenha tido interesse em obter um determinado contrato e que tenha sido, ou possa vir a ser, lesada por uma eventual violação.

26      A este respeito, uma decisão por meio da qual a entidade adjudicante exclui a proposta de um proponente, antes mesmo de proceder à seleção, constitui uma decisão da qual deve ser possível recorrer, nos termos do artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 89/665, uma vez que esta disposição é aplicável a todas as decisões tomadas pelas entidades adjudicantes que estão sujeitas às regras do direito da União em matéria de concursos públicos e não prevê restrições em relação à natureza e ao conteúdo das referidas decisões (v., designadamente, acórdão de 19 de junho de 2003, Hackermüller, C‑249/01, Colet., p. I‑6319, n.° 24 e jurisprudência referida).

27      Assim, no n.° 26 do acórdão Hackermüller, já referido, o Tribunal de Justiça declarou que o facto de uma instância responsável pelos processos de recurso recusar o acesso aos referidos processos, em razão de falta legitimidade, a um proponente cuja proposta foi excluída, ainda antes que se proceda a uma seleção, teria por efeito privar esse proponente não apenas do seu direito de recurso da decisão cuja ilegalidade invoca mas também do direito de impugnar a procedência do fundamento de exclusão apresentado pela referida instância para lhe negar a qualidade de pessoa que tenha sido ou possa vir a ser lesada devido à alegada ilegalidade.

28      Na verdade, quando, para remediar esta situação, se reconhece ao proponente o direito de contestar a procedência do referido fundamento de exclusão, no âmbito do recurso por ele interposto para impugnar a legalidade da decisão por meio da qual a entidade adjudicante não considerou que a sua proposta era a mais vantajosa, não se pode excluir que, no termo desse processo, a instância à qual o recurso foi submetido poderá chegar à conclusão de que a referida proposta devia efetivamente ter sido previamente excluída e que o recurso do proponente deve ser julgado improcedente com o fundamento de que, face a essa circunstância, o mesmo não foi ou não pode vir a ser lesado pela violação que invoca (v. acórdão Hackermüller, já referido, n.° 27).

29      Em tal situação, o proponente que interpôs recurso da decisão de adjudicação de um contrato público deve dispor do direito de contestar perante a referida instância, no âmbito desse processo, a procedência do fundamento através do qual a sua proposta devia ter sido excluída (v., neste sentido, acórdão Hackermüller, já referido, n.os 28 e 29).

30      Este ensinamento também se aplica, em princípio, quando a exceção de inadmissibilidade não seja suscitada oficiosamente pela instância que julga esse recurso, mas seja suscitada no âmbito de um recurso subordinado interposto por uma parte no âmbito do recurso principal, tal como o adjudicatário que se constitui como parte interveniente nesse processo.

31      No processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio, após verificar a adequação das propostas entregues pelas duas sociedades em causa, constatou que a proposta apresentada pela Fastweb não era conforme com todas as especificações técnicas impostas pelo caderno de encargos. No entanto, chegou à mesma conclusão relativamente à proposta apresentada pelo outro proponente, a Telecom Italia.

32      Esta situação distingue‑se da que estava em causa no processo que deu origem ao acórdão Hackermüller, já referido, designadamente porque foi constatado que a proposta selecionada não foi, erradamente, excluída na fase da verificação das propostas, não obstante não ser conforme com as especificações técnicas do caderno de encargos.

33      Ora, perante tal constatação, o recurso subordinado interposto pelo adjudicatário não pode conduzir a que se afaste o recurso de um proponente no caso de a regularidade da proposta de cada um dos operadores ser posta em causa no âmbito do mesmo processo e com base em fundamentos de natureza idêntica. Com efeito, em tal situação, cada um dos concorrentes pode alegar um interesse legítimo equivalente na exclusão da proposta dos outros, podendo levar a que se constate a impossibilidade da entidade adjudicante de proceder à seleção de uma proposta regular.

34      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 1.°, n.° 3, da Diretiva 89/665 deve ser interpretado no sentido de que, no âmbito de um processo de recurso, caso o adjudicatário, ao qual o contrato foi adjudicado e que interpôs o recurso subordinado, suscite uma exceção de inadmissibilidade baseada na falta de legitimidade do proponente que interpôs o recurso com o fundamento de que a proposta que este apresentou devia ter sido excluída pela entidade adjudicante por não ser conforme com as especificações técnicas definidas no caderno de encargos, esta disposição se opõe a que o referido recurso seja julgado inadmissível na sequência do exame prévio dessa exceção de inadmissibilidade sem que se tenha pronunciado sobre a conformidade com as referidas especificações técnicas tanto da proposta do adjudicatário, ao qual o contrato foi adjudicado, como da proposta do proponente que interpôs o recurso principal.

 Quanto às despesas

35      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Décima Secção) declara:

O artigo 1.°, n.° 3, da Diretiva 89/665/CEE do Conselho, de 21 de dezembro de 1989, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos processos de recurso em matéria de adjudicação dos contratos de direito público de obras e de fornecimentos, conforme alterada pela Diretiva 2007/66/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2007, deve ser interpretado no sentido de que, no âmbito de um processo de recurso, caso o adjudicatário, ao qual o contrato foi adjudicado e que interpôs um recurso subordinado, suscite uma exceção de inadmissibilidade baseada na falta de legitimidade do proponente que interpôs o recurso com o fundamento de que a proposta que este apresentou devia ter sido excluída pela entidade adjudicante por não ser conforme com as especificações técnicas definidas no caderno de encargos, esta disposição se opõe a que o referido recurso seja julgado inadmissível na sequência do exame prévio dessa exceção de inadmissibilidade sem que se tenha pronunciado sobre a conformidade com as referidas especificações técnicas tanto da proposta do adjudicatário, ao qual o contrato foi adjudicado, como da proposta do proponente que interpôs o recurso principal.

Assinaturas


* Língua do processo: italiano.