Language of document : ECLI:EU:C:2013:366

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

6 de junho de 2013 (*)

«Concorrência ― Acesso aos autos ― Processo judicial relativo a coimas que punem uma violação do artigo 101.° TFUE ― Empresas terceiras que pretendem propor uma ação de indemnização por danos ― Regulamentação nacional que faz depender o acesso aos autos do consentimento de todas as partes no processo ― Princípio da efetividade»

No processo C‑536/11,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Oberlandesgericht Wien (Áustria), por decisão de 12 de outubro de 2011, entrado no Tribunal de Justiça em 20 de outubro de 2011, no processo

Bundeswettbewerbsbehörde

contra

Donau Chemie AG,

Donauchem GmbH,

DC Druck‑Chemie Süd GmbH & Co KG,

Brenntag Austria Holding GmbH,

Brenntag CEE GmbH,

ASK Chemicals GmbH, anteriormente Ashland‑Südchemie‑Kernfest GmbH,

ASK Chemicals Austria GmbH, anteriormente Ashland Südchemie Hantos GmbH,

estando presentes:

Bundeskartellanwalt,

Verband Druck & Medientechnik,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Tizzano (relator), presidente de secção, M. Ilešič, E. Levits, M. Safjan e M. Berger, juízes,

advogado‑geral: N. Jääskinen,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 4 de outubro de 2012,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação da Bundeswettbewerbsbehörde, por T. Thanner e N. Harsdorf Enderndorf, na qualidade de agentes,

¾        em representação da Donau Chemie AG e da Donauchem GmbH, por S. Polster e C. Mayer, Rechtsanwälte,

¾        em representação da DC Druck‑Chemie Süd GmbH & Co KG, por C. Hummer, Rechtsanwältin,

¾        em representação da Brenntag CEE GmbH, por A. Reidlinger, Rechtsanwalt,

¾        em representação da ASK Chemicals GmbH, anteriormente Ashland‑Südchemie‑Kernfest GmbH, e da ASK Chemicals AustriaGmbH, anteriormente Ashland Südchemie Hantos GmbH, por F. Urlesberger, Rechtsanwalt,

¾        em representação da Verband Druck & Medientechnik, por T. Richter, Rechtsanwalt,

¾        em representação do Governo austríaco, por A. Posch, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo belga, por T. Materne e J.‑C. Halleux, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo alemão, por A. Wiedmann e T. Henze, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo espanhol, por S. Centeno Huerta, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo francês, por J. Gstalter, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por M. Santoro, avvocato dello Stato,

¾        em representação da Comissão Europeia, por A. Antoniadis e P. Van Nuffel, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Órgão de Fiscalização da EFTA, por M. Schneider e X. Lewis, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 7 de fevereiro de 2013,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos princípios da efetividade e da equivalência tendo em conta as normas aplicáveis na ordem jurídica austríaca às ações de indemnização por violação do direito da União relativo à concorrência.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo intentado no Oberlandesgericht Wien, na sua qualidade de Kartellgericht (tribunal da concorrência), e tendo por objeto um pedido apresentado pela Verband Druck & Medientechnik (a seguir «VDMT»), uma união de empresas, a fim de aceder aos autos relativos ao processo judicial intentado pela Bundeswettbewerbsbehörde (autoridade federal da concorrência, a seguir «BWB») contra a Donau Chemie AG, a Donauchem GmbH, a DC Druck‑Chemie Süd GmbH & Co KG, a Brenntag Austria Holding GmbH, a Brenntag CEE GmbH, a ASK Chemicals GmbH, anteriormente Ashland‑Südchemie‑Kernfest GmbH, e a ASK Chemicals Austria GmbH, anteriormente Ashland Südchemie Hantos GmbH (a seguir, conjuntamente, «Donau Chemie e o.»), e que culminou numa decisão definitiva do Oberlandesgericht Wien que condenou estas últimas ao pagamento de uma coima por terem participado num cartel contrário ao artigo 101.° TFUE.

 Direito austríaco

3        O § 39, n.° 2, da Lei de 2005 relativa aos cartéis (Kartellgesetz 2005, a seguir «KartG») enuncia:

«As pessoas que não sejam partes no processo só podem obter acesso aos autos do processo no tribunal da concorrência com o consentimento das partes».

4        O § 219, n.° 2, do Código de Processo Civil (Zivilprozessordnung, a seguir «ZPO») dispõe:

«1.      As partes podem consultar e obter, a expensas suas, cópias e extratos dos autos relativos aos respetivos processos e que se encontrem no tribunal (autos do processo), com exceção dos projetos de acórdãos e de despachos, das atas de discussão e votos do tribunal e dos documentos escritos que contenham disposições disciplinares.

2.      Mediante o consentimento de ambas as partes, terceiros podem igualmente ter acesso aos autos e obter cópias e extratos dos mesmos, desde que essa medida não seja contrária ao interesse legítimo superior de outra pessoa ou a interesses públicos superiores na aceção do § 26, n.° 2, primeiro período, da Lei da proteção de dados de 2000 [Datenschutzgesetz 2000]. Na falta desse consentimento, o terceiro só poderá ter acesso e obter cópias dos autos se demonstrar a existência de um interesse jurídico.

[...]»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

5        Por decisão de 26 de março de 2010, o Oberlandesgericht Wien aplicou à Donau Chemie e o. coimas no montante total de 1,5 milhões de euros por violação, designadamente, do artigo 101.° TFUE, no mercado grossista dos produtos químicos para impressão gráfica. Por decisão de 4 de outubro de 2010, o Oberster Gerichtshof confirmou, em sede de recurso, esta decisão do Oberlandesgericht Wien, que, deste modo, adquiriu força de caso julgado.

6        A VDMT foi criada com vista a defender os interesses dos seus membros, entre os quais figuram, designadamente, empresas do setor da impressão gráfica. Em 3 de julho de 2011, pediu ao Oberlandesgericht Wien, em conformidade com o § 219, n.° 2, do ZPO, acesso aos autos referentes ao processo judicial que opôs a BWB à Donau Chemie e o. Este pedido tinha por finalidade recolher elementos que permitissem examinar, em especial, a natureza e o montante do prejuízo eventualmente sofrido pelos membros da VDMT em razão das infrações cometidas pela Donau Chemie e o., e apreciar a oportunidade da propositura de uma ação de indemnização contra estas empresas.

7        Baseando‑se no § 39, n.° 2, da KartG, todas as partes no processo judicial que opôs a BWB à Donau Chemie e o. recusaram, no essencial, consentir que a VDMT fosse autorizada a aceder aos referidos autos.

8        A este respeito, o Oberlandesgericht Wien salienta que, contrariamente ao previsto no § 219, n.° 2, do ZPO, o § 39, n.° 2, da KartG exclui qualquer faculdade de o juiz autorizar, na falta do acordo das partes, o acesso aos autos relativos aos processos judiciais em matéria de concorrência, e isso mesmo quando o autor do pedido de acesso pode invocar validamente um interesse jurídico. Por outras palavras, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, no sistema austríaco, foi o próprio legislador que ponderou, por um lado, o interesse geral da autoridade federal da concorrência na obtenção de informações e na atualização de infrações ao direito da concorrência e, por outro, o interesse dos terceiros em beneficiarem de um acesso aos autos com o objetivo de facilitar o exercício de ações de indemnização. Deste modo, nessa ponderação, foi atribuída preferência absoluta ao primeiro destes interesses, em detrimento do segundo. Daqui decorre que, mesmo que apenas uma das partes no processo não tenha dado o seu consentimento, segundo esse órgão jurisdicional, o juiz, que não está autorizado a ponderar os interesses em presença, tem de recusar, de uma maneira geral, a consulta dos autos por terceiros.

9        Ora, o referido órgão jurisdicional recorda que, segundo o acórdão de 14 de junho de 2011, Pfleiderer (C‑360/09, Colet., p. I‑5161), as disposições do direito da União em matéria de cartéis não se opõem a que uma pessoa obtenha o acesso aos documentos relativos a um processo de clemência respeitante ao autor de uma infração ao direito da concorrência da União. Com efeito, na falta de regulamentação vinculativa do direito da União na matéria, cabe aos Estados‑Membros fixar e aplicar as regras nacionais que regulam o acesso das pessoas lesadas por um cartel aos documentos relativos a processos de clemência.

10      No entanto, o Oberlandesgericht Wien sublinha que, nos n.os 30 e 31 do acórdão Pfleiderer, já referido, o Tribunal de Justiça precisou igualmente que, no respeito do princípio da efetividade, é necessário zelar por que as regras nacionais aplicáveis não sejam formuladas de modo a tornar na prática impossível ou excessivamente difícil a obtenção dessa reparação e ponderar os interesses que justificam, por um lado, a comunicação das informações fornecidas voluntariamente pelo requerente de clemência e, por outro, a proteção destas. Tal ponderação só pode ser realizada pelos órgãos jurisdicionais nacionais numa base casuística, no quadro do direito nacional, e tomando em conta todos os elementos pertinentes do processo.

11      O Oberlandesgericht Wien tem dúvidas quanto à compatibilidade do § 39, n.° 2, da KartG com esta interpretação do direito da União aplicável, na medida em que esta disposição exclui qualquer ponderação, pelo juiz, dos interesses em presença.

12      Além disso, recordando a referência feita no n.° 30 do acórdão Pfleiderer, já referido, ao princípio da equivalência, o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se igualmente sobre se, embora o § 39, n.° 2, da KartG seja aplicável da mesma maneira a qualquer processo em matéria de cartéis, quer este assente no direito nacional ou no direito da União, esta disposição não é contrária ao referido princípio na medida em que não se aplica às ações de indemnização por danos sofridos em razão de uma infração cometida noutros domínios do direito civil ou do direito penal, uma vez que estas ações são reguladas mais favoravelmente, no que diz respeito ao acesso aos autos, pelo § 219, n.° 2, do ZPO.

13      Nestas condições, o Oberlandesgericht Wien decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      [A]tendendo especialmente ao acórdão [Pfleiderer, já referido], o direito da União opõe‑se a uma disposição nacional em matéria de cartéis que condiciona, sem exceções, a concessão do acesso aos autos do [tribunal da concorrência] a terceiros que não são partes no processo, com a finalidade de preparar[em] ações de indemnização contra membros de um cartel (também) em processos em que foram aplicados o artigo 101.° [TFUE] ou o artigo 102.° […] TFUE, em conjugação com o Regulamento (CE) n.° 1/2003 [do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.° e 82.° do Tratado (JO 2003, L 1, p. 1)], à autorização de todas as partes [no processo], e que não permite ao órgão jurisdicional uma ponderação casuística dos interesses protegidos pelo direito da União para determinar as condições em que o acesso aos autos deve ser concedido ou recusado?

No caso de resposta negativa à [primeira questão]:

2)      O direito [da União] opõe‑se a uma disposição nacional dessa natureza que seja […] aplicável [da mesma maneira] a um processo em matéria de cartéis exclusivamente de âmbito nacional e que […] não preveja nenhum regime específico para documentos disponibilizados por requerentes de clemência quando […] disposições nacionais comparáveis [permitem], noutros tipos de processos, em especial […] processos civis de jurisdição contenciosa e de jurisdição voluntária e no processo penal, […] o acesso aos autos mesmo sem a autorização das partes, desde que o terceiro que não é parte no processo demonstre um interesse jurídico no acesso aos autos e que, no caso concreto, interesses [superiores] de [outra pessoa] ou interesses públicos [superiores] não se oponham ao acesso aos autos?»

 Quanto à admissibilidade

14      A Comissão Europeia tem dúvidas quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial por entender que o mesmo apresenta caráter hipotético. Com efeito, nada na decisão de reenvio permite concluir que as condições previstas no § 219, n.° 2, segundo período, do ZPO estão preenchidas no caso vertente, designadamente no diz respeito à existência de um interesse legítimo por parte da VDMT em beneficiar de um acesso aos autos em causa não obstante a recusa de consentimento oposta pelas partes em questão. Consequentemente, mesmo que o juiz de reenvio concluísse pela incompatibilidade do § 39, n.° 2, da KartG com o direito da União e afastasse esta disposição, não ficaria, de qualquer modo, demonstrado que a VDMT beneficiaria do direito de aceder aos autos em causa, com base nesta disposição do ZPO.

15      A este respeito, há que recordar que, no âmbito de um processo nos termos do artigo 267.° TFUE, baseado numa nítida separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, cabe exclusivamente ao juiz nacional que conhece do litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (v., designadamente, acórdão de 21 de fevereiro de 2013, Fédération Cynologique Internationale, C‑561/11, n.° 26 e jurisprudência referida).

16      A recusa de se pronunciar sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional só é, com efeito, possível quando for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for de natureza hipotética ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para responder utilmente às questões que lhe são submetidas (v., designadamente, acórdão Fédération Cynologique Internationale, já referido, n.° 27 e jurisprudência referida).

17      Importa sublinhar que não é o que se verifica no presente caso.

18      Com efeito, resulta dos elementos de que dispõe o Tribunal de Justiça que o § 39, n.° 2, da KartG é uma disposição especial que regula os pedidos de acesso aos autos relativos aos processos em matéria de concorrência e que, a este título, impede que a regra geral que figura no § 219, n.° 2, do ZPO seja aplicada a estes processos. Consequentemente, só na hipótese de a resposta fornecida pelo Tribunal de Justiça conduzir o órgão jurisdicional de reenvio a considerar o § 39, n.° 2, da KartG incompatível com o direito da União, e, consequentemente, a afastar a sua aplicação, é que as condições de aplicação do § 219, n.° 2, segundo período, do ZPO deveriam estar preenchidas neste caso concreto, incluindo a que impõe, em caso de falta de acordo das partes, a demonstração da existência de um interesse jurídico. No entanto, se a resposta permitisse ao órgão jurisdicional de reenvio considerar que o § 39, n.° 2, da KartG é compatível com o direito da União, o pedido da VDMT de acesso aos autos em causa poderia ser decidido unicamente com base nesta disposição, que tornaria inaplicável, no caso vertente, o § 219, n.° 2, do ZPO.

19      Nestas condições, a resposta às questões submetidas é manifestamente pertinente para efeitos da resolução do litígio no processo principal e, por conseguinte, o pedido de decisão prejudicial é admissível.

 Quanto às questões prejudiciais

 Observações preliminares

20      A fim de responder às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, importa desde já recordar que, do mesmo modo que cria encargos para os particulares, o direito da União se destina igualmente a criar direitos que entram no seu património jurídico; esses direitos nascem não só quando atribuídos explicitamente pelos Tratados mas também em razão de obrigações que estes impõem de maneira bem definida tanto aos particulares como aos Estados‑Membros e às instituições da União (v., neste sentido, acórdãos de 19 de novembro de 1991, Francovich e o., C‑6/90 e C‑9/90, Colet., p. I‑5357, n.° 31, e de 20 de setembro de 2001, Courage e Crehan, C‑453/99, Colet., p. I‑6297, n.° 19 e jurisprudência referida).

21      Neste contexto, o Tribunal de Justiça já precisou que, uma vez que o artigo 101.°, n.° 1, TFUE produz efeitos diretos nas relações entre os particulares e cria direitos para os litigantes (acórdão de 13 de julho de 2006, Manfredi e o., C‑295/04 a C‑298/04, Colet., p. I‑6619, n.° 39 e jurisprudência referida), o efeito útil da proibição enunciada nesta disposição seria posto em causa se não fosse possível a qualquer pessoa reclamar a reparação do prejuízo que lhe houvesse sido causado por um contrato ou um comportamento suscetível de restringir ou falsear o jogo da concorrência (acórdão Courage e Crehan, já referido, n.° 26).

22      Ora, como resulta de jurisprudência assente, cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais encarregados de aplicar, no quadro das suas competências, as disposições do direito da União garantir a plena eficácia destas normas e proteger os direitos que as mesmas conferem aos particulares (v., neste sentido, acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal, 106/77, Colet., p. 243, n.° 16; de 19 de junho de 1990, Factortame e o., C ‑213/89, Colet., p. I‑2433, n.° 19; Courage e Crehan, já referido, n.° 25; e Manfredi e o., já referido, n.° 89).

23      Assim, por um lado, o direito de qualquer pessoa de reclamar a reparação do prejuízo que lhe tenha sido causado por um contrato ou um comportamento suscetível de restringir ou falsear o jogo da concorrência, em violação, designadamente, do artigo 101.°, n.° 1, TFUE, reforça o caráter operacional das regras da União relativas à concorrência, na medida em que é suscetível de desencorajar acordos ou práticas, frequentemente dissimulados, suscetíveis de restringir ou falsear o jogo da concorrência, contribuindo assim para a manutenção de uma concorrência efetiva na União Europeia (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Courage e Crehan, n.os 26 e 27; Manfredi e o., n.° 91; e Pfleiderer, n.° 28).

24      Por outro lado, este direito constitui uma proteção eficaz contra as consequências prejudiciais que qualquer violação do referido artigo 101.°, n.° 1, pode produzir aos particulares, na medida em que permite às pessoas que tiverem sofrido um prejuízo em razão da referida violação pedir uma compensação integral que inclua não só o dano real (damnum emergens) mas também os lucros cessantes (lucrum cessans), bem como o pagamento de juros (v., neste sentido, acórdão Manfredi e o., já referido, n.° 95).

25      Na falta de regulamentação da União na matéria, cabe à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro regular as modalidades processuais das ações judiciais destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos conferidos aos litigantes pelo efeito direto do direito da União.

26      No que diz respeito, mais especialmente, às modalidades processuais das ações de indemnização por violação das regras de concorrência, incumbe aos Estados‑Membros estabelecer e aplicar as regras nacionais quanto ao direito de acesso das pessoas lesadas por um cartel aos documentos relativos aos processos nacionais respeitantes a esse cartel (v., neste sentido, acórdão Pfleiderer, já referido, n.° 23).

27      No entanto, embora a determinação e a aplicação destas regras ainda sejam da competência dos Estados‑Membros, estes devem exercer essa competência no respeito do direito da União. Em particular, as regras aplicáveis às ações destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos que resultam para os litigantes do efeito direto do direito da União não devem ser menos favoráveis do que as que dizem respeito a ações semelhantes de natureza interna (princípio da equivalência) e não devem tornar na prática impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade) (v. acórdãos Courage e Crehan, já referido, n.° 29; Manfredi e o., já referido, n.° 62; e de 30 de maio de 2013, Jörös, C‑397/11, n.° 29). A este propósito, e especificamente no domínio do direito da concorrência, estas regras não devem prejudicar a aplicação efetiva dos artigos 101.° TFUE e 102.° TFUE (v. acórdão Pfleiderer, já referido, n.° 24, e de 7 de dezembro de 2010, VEBIC, C‑439/08, Colet., p. I‑12471, n.° 57).

28      É à luz destas considerações que se deve responder às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

 Quanto à primeira questão

29      Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o direito da União, em especial o princípio da efetividade, se opõe a uma disposição do direito nacional por força da qual o acesso aos documentos que figuram nos autos respeitantes a um processo nacional relativo à aplicação do artigo 101.° TFUE, incluindo aos documentos comunicados no quadro de um programa de clemência, de terceiros que não são partes nesse processo e que pretendem propor ações de indemnização contra participantes num cartel está subordinado apenas ao consentimento de todas as partes no referido processo, sem que nenhuma possibilidade de ponderar os interesses em presença seja deixada aos órgãos jurisdicionais nacionais.

30      A fim responder a esta questão, importa sublinhar que, no âmbito do exercício da sua competência para aplicar as regras nacionais relativas ao direito das pessoas que se consideram lesadas por um cartel de terem acesso aos documentos relativos aos processos nacionais respeitantes a esse cartel, é necessário que os órgãos jurisdicionais nacionais ponderem os interesses que justificam a comunicação das informações e a proteção destas (v., neste sentido, acórdão Pfleiderer, já referido, n.° 30).

31      A necessidade dessa ponderação reside no facto de que, especialmente em matéria de concorrência, qualquer regra rígida, tanto no sentido de uma recusa absoluta de acesso aos documentos em causa como no de um acesso generalizado a esses documentos, é suscetível de lesar a aplicação efetiva, designadamente, do artigo 101.° TFUE e dos direitos que esta disposição confere aos particulares.

32      Com efeito, no que diz respeito, por um lado, a uma regra segundo a qual deveria ser recusado o acesso a qualquer documento do âmbito de um processo em matéria de concorrência, há que concluir que essa regra seria suscetível de tornar impossível ou, pelo menos, excessivamente difícil a proteção do direito a reparação de que beneficiam as pessoas lesadas por uma violação do artigo 101.° TFUE. É nomeadamente o que acontece quando apenas o acesso aos documentos que figuram nos autos referentes ao processo pendente na autoridade nacional competente em matéria de concorrência permite a essas pessoas dispor dos elementos de prova necessários para fundamentar o seu pedido de reparação. Com efeito, quando as referidas pessoas não dispõem de nenhuma outra possibilidade de obter esses elementos de prova, a recusa de acesso aos autos que lhes é oposta priva de qualquer efeito útil o direito à reparação que lhes é conferido diretamente pelo direito da União.

33      No que diz respeito, por outro lado, a uma regra segundo a qual qualquer documento de um processo em matéria de concorrência deveria ser comunicado a um requerente pela simples razão de este pretender intentar uma ação de indemnização, importa salientar, antes de mais, que essa regra de acesso generalizado não seria necessária para assegurar uma proteção efetiva do direito à reparação que assiste ao referido requerente, na medida em que é pouco provável que a ação de indemnização tenha de assentar em todos os elementos que figuram nos autos relativos a esse processo. Em seguida, essa regra poderia conduzir à violação de outros direitos conferidos pelo direito da União, designadamente, às empresas em causa, como o direito à proteção do sigilo profissional ou do segredo de negócios, ou aos particulares em causa, como o direito à proteção dos dados pessoais. Por último, esse acesso generalizado também poderia prejudicar interesses públicos, como a eficácia da política de repressão das violações do direito da concorrência, na medida em que poderia dissuadir as pessoas envolvidas numa violação dos artigos 101.° TFUE e 102.° TFUE de cooperarem com as autoridades da concorrência (v., neste sentido, acórdão Pfleiderer, já referido, n.° 27).

34      Daqui resulta que, conforme o Tribunal de Justiça já teve ocasião de precisar, a ponderação dos interesses que justifica a comunicação das informações e a proteção destas só pode ser realizada pelos órgãos jurisdicionais nacionais numa base casuística, no quadro do direito nacional e tomando em conta todos os elementos pertinentes do processo (acórdão Pfleiderer, já referido, n.° 31).

35      Embora seja verdade, como sublinha o Governo austríaco, que essa ponderação deve ser feita no quadro do direito nacional, este direito não deve ser concebido de modo a excluir qualquer possibilidade de os órgãos jurisdicionais nacionais procederem a essa ponderação caso a caso.

36      Ora, resulta da decisão de reenvio e das observações apresentadas ao Tribunal de Justiça que, na aceção do § 39, n.° 2, da KartG, o acesso aos autos pendentes no tribunal da concorrência é autorizado unicamente na condição de nenhuma das partes no processo a tal não se opor.

37      Nessa situação, os órgãos jurisdicionais nacionais que devem pronunciar‑se sobre um pedido de acesso a esses autos não dispõem de nenhuma possibilidade de ponderar os interesses protegidos pelo direito da União. Em especial, esses órgãos jurisdicionais, que apenas estão habilitados a constatar a existência do cartel ou a recusa manifestada pelas partes no processo da divulgação dos elementos que figuram nos referidos autos, não podem intervir, com vista à proteção de interesses públicos superiores ou de interesses legítimos superiores de outras pessoas, designadamente para permitir a comunicação dos documentos pedidos, em caso de recusa oposta por apenas uma dessas partes.

38      Por outro lado, resulta igualmente da decisão de reenvio que as partes no processo pendente no tribunal da concorrência podem recusar o acesso aos autos sem ter de fornecer nenhuma justificação. Esta possibilidade deixa subsistir, na prática, um risco de recusa sistemática de qualquer pedido de acesso, sempre que, designadamente, esse pedido diga respeito a documentos cuja divulgação é contrária aos interesses das partes no processo, incluindo aos que possam conter elementos de prova nos quais um pedido de reparação se pudesse basear e aos quais o requerente não pode aceder por outras vias.

39      Daqui decorre que, na medida em que a regra do direito nacional em causa no processo principal deixa às partes no processo que violaram o artigo 101.° TFUE a possibilidade de impedir as pessoas supostamente lesadas pela violação desta disposição de terem acesso aos documentos em causa, sem tomar em conta a circunstância de que tal acesso poderia representar a única possibilidade oferecida a essas pessoas de obterem os elementos de prova necessários a fim de fundamentar os respetivos pedidos de reparação, esta regra pode tornar excessivamente difícil o exercício do direito à reparação conferido às referidas pessoas pelo direito da União.

40      Esta interpretação não pode ser posta em causa pelo argumento do Governo austríaco segundo o qual essa regra é necessária, designadamente quanto aos documentos carreados pelas partes para os autos relativos ao processo em aplicação de um programa de clemência, a fim de assegurar a eficácia desse programa e, ao mesmo tempo, a da aplicação do artigo 101.° TFUE.

41      Na verdade, conforme salientado no n.° 33 do presente acórdão, os Estados‑Membros não podem organizar o acesso aos autos de modo a lesar interesses públicos como, designadamente, a eficácia da política de repressão das violações do direito da concorrência.

42      A este propósito, o Tribunal de Justiça reconheceu que os programas de clemência constituem instrumentos úteis no combate eficaz para detetar e pôr cobro às violações das regras de concorrência e servem, assim, o objetivo da aplicação efetiva dos artigos 101.° TFUE e 102.° TFUE, e que a eficácia destes programas poderia ser afetada pela comunicação dos documentos relativos a um procedimento de clemência às pessoas que pretendem propor uma ação de indemnização por danos. Com efeito, é razoável considerar que, face à eventualidade de tal comunicação, uma pessoa implicada numa violação do direito da concorrência seria dissuadida de utilizar a possibilidade oferecida por esses programas de clemência (acórdão Pfleiderer, já referido, n.os 25 a 27).

43      Observe‑se, no entanto, que estas considerações, embora possam justificar que o acesso a certos documentos que figuram nos autos de um processo nacional em matéria de concorrência possa ser recusado, não implicam que tal acesso possa ser sistematicamente recusado, uma vez que qualquer pedido de acesso aos documentos em causa deve ser objeto de apreciação caso a caso que tome em conta todos os elementos do processo (v., neste sentido, acórdão Pfleiderer, já referido, n.° 31).

44      No âmbito dessa apreciação, cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais avaliar, por um lado, o interesse do requerente em obter o acesso a esses documentos a fim de preparar a sua ação de indemnização, tendo em conta, em especial, as outras possibilidades eventualmente ao seu dispor.

45      Por outro lado, esses órgãos jurisdicionais devem ter em consideração as consequências realmente prejudiciais às quais tal acesso pode dar lugar, tendo em conta interesses públicos ou interesses legítimos de outras pessoas.

46      Em especial, no que diz respeito ao interesse público ligado à eficácia dos programas de clemência ao qual se refere o Governo austríaco no caso vertente, há que sublinhar que, tendo em conta a importância das ações de indemnização por danos intentadas nos órgãos jurisdicionais nacionais com vista à manutenção de uma concorrência efetiva na União (v. acórdão Courage e Crehan, já referido, n.° 27), a simples invocação de um risco de que o acesso aos elementos de prova, que figuram nos autos de um processo em matéria de concorrência e necessários para fundamentar essas ações, afete a eficácia de um programa de clemência, no âmbito do qual esses documentos foram comunicados à autoridade competente da concorrência, não pode justificar a recusa de acesso a esses elementos.

47      Em contrapartida, a circunstância de que essa recusa possa impedir o exercício das referidas ações, fornecendo por outro lado às empresas em causa, que podem já ter beneficiado de uma imunidade, pelo menos parcial, em matéria de sanções pecuniárias, a possibilidade de se subtraírem igualmente à sua obrigação de reparar os danos resultantes da violação do artigo 101.° TFUE, e isso em detrimento das pessoas lesadas, exige que essa recusa assente em razões imperativas ligadas à proteção do interesse invocado e aplicáveis a cada documento cujo acesso é recusado.

48      Com efeito, apenas a existência de um risco de que um determinado documento lese concretamente um interesse público ligado à eficácia de um programa nacional de clemência pode justificar que esse documento não seja divulgado.

49      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o direito da União, em especial o princípio da efetividade, se opõe a uma disposição do direito nacional por força da qual o acesso aos documentos que figuram nos autos respeitantes a um processo nacional relativo à aplicação do artigo 101.° TFUE, incluindo aos documentos comunicados no quadro de um programa de clemência, de terceiros que não são partes nesse processo e que pretendem propor ações de indemnização contra participantes num cartel está subordinado apenas ao consentimento de todas as partes no referido processo, sem que nenhuma possibilidade de ponderar os interesses em presença seja deixada aos órgãos jurisdicionais nacionais.

 Quanto à segunda questão prejudicial

50      Tendo em conta a resposta dada à primeira questão, não há que responder à segunda questão.

 Quanto às despesas

51      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

O direito da União, em especial o princípio da efetividade, opõe‑se a uma disposição do direito nacional por força da qual o acesso aos documentos que figuram nos autos respeitantes a um processo nacional relativo à aplicação do artigo 101.° TFUE, incluindo aos documentos comunicados no quadro de um programa de clemência, de terceiros que não são partes nesse processo e que pretendem propor ações de indemnização contra participantes num cartel está subordinado apenas ao consentimento de todas as partes no referido processo, sem que nenhuma possibilidade de ponderar os interesses em presença seja deixada aos órgãos jurisdicionais nacionais.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.