Language of document : ECLI:EU:C:2015:618

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção)

17 de setembro de 2015 (*)

«Reenvio prejudicial — Transportes aéreos — Direitos dos passageiros em caso de atraso ou de cancelamento de um voo — Regulamento (CE) n.° 261/2004 — Artigo 5.°, n.° 3 — Recusa de embarque e cancelamento de um voo — Atraso considerável de um voo — Indemnização e assistência aos passageiros — Circunstâncias extraordinárias»

No processo C‑257/14,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Rechtbank Amsterdam (Países Baixos), por decisão de 29 de abril de 2014, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 28 de maio de 2014, no processo

Corina van der Lans

contra

Koninklijke Luchtvaart Maatschappij NV,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção),

composto por: K. Jürimäe, presidente de secção, J. Malenovský (relator) e M. Safjan, juízes,

advogado‑geral: E. Sharpston,

secretário: L. Carrasco Marco, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 7 de maio de 2015,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Koninklijke Luchtvaart Maatschappij NV, por P. Eijsvoogel, P. Huizing, R. Pessers e M. Lustenhouwer, advocaten,

–        em representação do Governo neerlandês, por M. Bulterman e M. Noort, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo alemão, por T. Henze e J. Kemper, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo francês, por G. de Bergues, D. Colas, R. Coesme e M. Hours, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por C. Colelli, avvocato dello Stato,

–        em representação do Governo do Reino Unido, por L. Christie, na qualidade de agente, assistido por J. Holmes, barrister,

–        em representação da Comissão Europeia, por F. Wilman e N. Yerrell, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvida a advogada‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do Regulamento (CE) n.° 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.° 295/91 (JO L 46, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe C. van der Lans à companhia aérea Koninklijke Luchtvaart Maatschappij NV (a seguir «KLM») a propósito da recusa desta última em indemnizar a demandante no processo principal, cujo voo sofreu um atraso.

 Quadro jurídico

3        O Regulamento n.° 261/2004 contém, nomeadamente, os seguintes considerandos:

«(1)      A ação da Comunidade no domínio do transporte aéreo deve ter, entre outros, o objetivo de garantir um elevado nível de proteção dos passageiros. Além disso, devem ser tidas plenamente em conta as exigências de proteção dos consumidores em geral.

(2)      As recusas de embarque e o cancelamento ou atraso considerável dos voos causam sérios transtornos e inconvenientes aos passageiros.

[...]

(14)      Tal como ao abrigo da Convenção de Montreal, as obrigações a que estão sujeitas as transportadoras aéreas operadoras deverão ser limitadas ou eliminadas nos casos em que a ocorrência tenha sido causada por circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis. Essas circunstâncias podem sobrevir, em especial, em caso de instabilidade política, condições meteorológicas incompatíveis com a realização do voo em causa, riscos de segurança, falhas inesperadas para a segurança do voo e greves que afetem o funcionamento da transportadora aérea.

(15)      Considerar‑se‑á que existem circunstâncias extraordinárias sempre que o impacto de uma decisão de gestão do tráfego aéreo, relativa a uma determinada aeronave num determinado dia provoque um atraso considerável, um atraso de uma noite ou o cancelamento de um ou mais voos dessa aeronave, não obstante a transportadora aérea em questão ter efetuado todos os esforços razoáveis para evitar atrasos ou cancelamentos.»

4        O artigo 3.° deste regulamento, sob a epígrafe «Âmbito», dispõe, no seu n.° 1, alínea b):

«1.      O presente regulamento aplica‑se:

[...]

b)      Aos passageiros que partem de um aeroporto localizado num país terceiro com destino a um aeroporto situado no território de um Estado‑Membro a que o Tratado se aplica, a menos que tenham recebido benefícios ou uma indemnização e que lhes tenha sido prestada assistência nesse país terceiro, se a transportadora aérea operadora do voo em questão for uma transportadora comunitária.»

5        O artigo 5.° do referido regulamento enuncia:

«1.      Em caso de cancelamento de um voo, os passageiros em causa têm direito a:  

[...]

c)      Receber da transportadora aérea operadora indemnização nos termos do artigo 7.° […]

[...]

3.      A transportadora aérea operadora não é obrigada a pagar uma indemnização nos termos do artigo 7.°, se puder provar que o cancelamento se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis.  

[...]»

6        O artigo 7.° do mesmo regulamento, sob a epígrafe «Direito a indemnização», prevê:

«1.      Em caso de remissão para o presente artigo, os passageiros devem receber uma indemnização no valor de:  

a)      250 euros para todos os voos até 1 500 quilómetros;

b)      400 euros para todos os voos intracomunitários com mais de 1 500 quilómetros e para todos os outros voos entre 1 500 e 3 500 quilómetros;

c)      600 euros para todos os voos não abrangidos pelas alíneas a) ou b).

Na determinação da distância a considerar, deve tomar‑se como base o último destino a que o passageiro chegará com atraso em relação à hora programada devido à recusa de embarque ou ao cancelamento.

2.       Quando for oferecido aos passageiros reencaminhamento para o seu destino final num voo alternativo nos termos do artigo 8.°, cuja hora de chegada não exceda a hora programada de chegada do voo originalmente reservado:

a)      Em duas horas, no caso de quaisquer voos até 1 500 quilómetros; ou

b)      Em três horas, no caso de quaisquer voos intracomunitários com mais de 1 500 quilómetros e no de quaisquer outros voos entre 1 500 e 3 500 quilómetros; ou

c)      Em quatro horas, no caso de quaisquer voos não abrangidos pelas alíneas a) ou b),

a transportadora aérea operadora pode reduzir a indemnização fixada no n.° 1 em 50%.

3.       A indemnização referida no n.° 1 deve ser paga em numerário, através de transferência bancária eletrónica, de ordens de pagamento bancário, de cheques bancários ou, com o acordo escrito do passageiro, através de vales de viagem e/ou outros serviços.

4.       As distâncias referidas nos n.os 1 e 2 devem ser medidas pelo método da rota ortodrómica.»

7        O artigo 13.° do Regulamento n.° 261/2004 prevê:

«Se a transportadora aérea operadora tiver pago uma indemnização ou tiver cumprido outras obrigações que por força do presente regulamento lhe incumbam, nenhuma disposição do presente regulamento pode ser interpretada como limitando o seu direito de exigir indemnização, incluindo a terceiros, nos termos do direito aplicável. Em especial, o presente regulamento em nada limita o direito de uma transportadora aérea operante de pedir o seu ressarcimento a um operador turístico, ou qualquer outra pessoa, com quem tenha contrato. Do mesmo modo, nenhuma disposição do presente regulamento pode ser interpretada como limitando o direito de um operador turístico ou de um terceiro, que não seja um passageiro, com quem uma transportadora aérea operadora tenha um contrato, de pedir o seu ressarcimento ou uma indemnização à transportadora aérea operadora nos termos do direito relevante aplicável.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

8        C. van der Lans tinha uma reserva de um bilhete de avião num voo operado pela KLM. Esse voo, com destino a Amesterdão (Países Baixos), devia partir de Quito (Equador) no dia 13 de agosto de 2009, às 9 h 15 m, hora local. Todavia, a partida só teve lugar no dia seguinte às 19 h 30 m, hora local. A aeronave utilizada para o referido voo chegou a Amesterdão com um atraso de 29 horas.

9        Segundo a KLM, esse atraso deveu‑se ao facto de, no aeroporto de Guayaquil (Equador), do qual a aeronave devia ter partido para Amesterdão via Quito e Bonaire (Antilhas Neerlandesas), se ter verificado, durante o procedimento de «push back», que consiste em empurrar a aeronave em terra para trás utilizando um veículo, que um dos motores da referida aeronave não arrancava, por falta de alimentação de combustível.

10      Segundo a KLM, resulta do «aircraft technical log» que ocorreu uma conjugação de falhas. Duas peças estavam defeituosas, a saber, a bomba de combustível e a unidade hidromecânica. Estas peças, que não estavam disponíveis em Guaiaquil, tiveram de ser enviadas por avião de Amesterdão, para serem, em seguida, montadas na aeronave em causa, que descolou de Quito com o atraso mencionado no n.° 8 do presente acórdão.

11      As referidas peças não foram objeto de um exame mais aprofundado para determinar a causa do incidente, dado que tal exame só pode ser feito pelo respetivo fabricante.

12      C. van der Lans intentou uma ação no Rechtbank Amsterdam (Tribunal de Amesterdão) destinada a obter uma indemnização de 600 euros em razão desse atraso.

13      A KLM contesta esse pedido e invoca a exceção prevista no artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004, no caso de «circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis».

14      Segundo a KLM, as peças defeituosas não tinham excedido o seu tempo médio de vida útil. Além disso, o seu fabricante não forneceu nenhuma indicação específica de que poderiam ocorrer falhas quando essas peças atingissem um certo tempo de vida útil. A KLM alega, ainda, que as referidas peças não tinham sido inspecionadas antes da descolagem, no momento do «preflight check» geral, mas que o tinham sido antes do último «check A», efetuado aproximadamente um mês antes do voo em causa no processo principal.

15      Segundo C. van der Lans, a KLM não pode invocar a ocorrência, no caso em apreço, de circunstâncias extraordinárias. Com efeito, o atraso desse voo foi causado por um problema técnico. Ora, o Tribunal de Justiça considerou, no acórdão Wallentin‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771), que a resolução de falhas técnicas é inerente à atividade de transportadora aérea e não pode ser qualificada de circunstâncias extraordinárias.

16      O litígio no processo principal tem por objeto a questão de saber se a exceção prevista no artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004 pode ser invocada pela KLM em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal.

17      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio pretende que seja clarificada a interpretação que deve ser feita dos termos «circunstâncias extraordinárias» e «todas as medidas razoáveis», que figuram nessa disposição, em especial se se deve ter em conta, neste âmbito, o considerando 14 do Regulamento n.° 261/2004 e a jurisprudência pertinente do Tribunal de Justiça, nomeadamente o acórdão Wallentin‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771).

18      Nestas condições, o Rechtbank Amsterdam decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Como deve ser interpretado o conceito de [‘ocorrência’] constante do considerando 14 do [Regulamento n.° 261/2004]?

2)      Atendendo ao n.° 22 do acórdão Wallentin[‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771)], as circunstâncias extraordinárias na aceção do referido considerando 14 não coincidem com as circunstâncias referidas na enumeração exemplificativa constante do segundo período do considerando 14 e que são consideradas [‘eventos’] pelo Tribunal de Justiça no n.° 22 daquele acórdão. É verdade que os eventos, na aceção do referido n.° 22, não correspondem à ocorrência a que se refere o considerando 14?

3)      O que deve entender‑se por circunstâncias extraordinárias que, conforme decorre do n.° 23 do referido acórdão Wallentin[‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771)], estão conexas com ‘falhas inesperadas para a segurança do voo’, na aceção do referido considerando 14, quando, atendendo ao n.° 22 desse acórdão, essas falhas inesperadas para a segurança do voo não constituem em si mesmas circunstâncias extraordinárias, mas apenas são suscetíveis de as produzir?

4)      Conforme decorre do n.° 23 do acórdão Wallentin[‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771)], pode considerar se que um problema técnico constitui uma ‘falha inesperada para a segurança do voo’ e, por conseguinte, é um ‘evento’, na aceção do n.° 22 do acórdão Wallentin[‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771)]; as circunstâncias que rodeiam esse evento só podem ser qualificadas de extraordinárias se estiverem relacionadas com um evento que, segundo o n.° 23 do acórdão Wallentin[‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771)], não é inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa e escapa ao controlo efetivo desta última, devido à sua natureza ou à sua origem; de acordo com o n.° 24 desse acórdão, a resolução de um problema técnico imputável a uma falha na manutenção de um aparelho deve ser considerada inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea; por conseguinte, tais problemas técnicos não podem constituir circunstâncias extraordinárias, de acordo com o n.° 25 do acórdão Wallentin[‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771)]. Parece resultar destas considerações que um problema técnico que constitua uma ‘falha inesperada para a segurança do voo’ é simultaneamente um evento que pode estar conexo com circunstâncias extraordinárias e até constituir, ele próprio, uma circunstância extraordinária. Como devem ser interpretados os n.os 22 a 25 do acórdão Wallentin[‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771)], de modo a acabar com esta contradição aparente?

5)      A expressão ‘inerente ao exercício normal da atividade de uma transportadora aérea’ é, na jurisprudência dos tribunais de primeira instância, frequentemente interpretada no sentido de que está ‘relacionada com o exercício normal da atividade da transportadora aérea’ — interpretação que corresponde ao termo neerlandês [‘inherent’] [inerente, em português] (mas não ao texto autêntico do acórdão) — pelo que, por exemplo, colisões com pássaros ou nuvens de cinza não são considerados eventos, na aceção do n.° 23 do acórdão Wallentin[‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771)]. Outra jurisprudência coloca a ênfase na expressão ‘e que, devido à sua natureza ou à sua origem, escape ao controlo efetivo desta última’, constante igualmente do n.° 23 do acórdão Wallentin[‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771)). Deve a expressão ‘inerente a’ ser interpretada no sentido de que só cabem nesse conceito as ocorrências sobre as quais a transportadora aérea tem efetivo controlo?

6)      Como deve ler‑se o n.° 26 do acórdão Wallentin[‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771)], isto é, como deve o mesmo ser interpretado, à luz das respostas do Tribunal de Justiça [à quarta e quinta questões]?

7)      a)      Se a [sexta questão] for respondida no sentido de que problemas técnicos, imputáveis a falhas inesperadas para a segurança do voo, constituem circunstâncias extraordinárias que podem levar ao deferimento de um pedido baseado no artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004, caso resultem de um evento que não seja inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea e que escape ao controlo efetivo desta última, isso significa que um problema técnico que ocorreu espontaneamente e não se deve a uma falha na manutenção, nem foi detetado durante uma revisão periódica (os ‘checks A a D’ e o ‘[d]aily [co]ntrol’ […]), pode ou, pelo contrário, não pode constituir uma circunstância extraordinária — partindo do pressuposto de que não podia ser detetado durante aquelas revisões de manutenção periódicas — porque, na verdade, então não se pode considerar que se verificou um evento na aceção n.° 26 [do acórdão Wallentin‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771)] e, assim, não se pode determinar se o mesmo é inerente ao exercício da atividade da transportadora aérea e, portanto, não escapa ao controlo desta última?

      b)      Se a [sexta questão] for respondida no sentido de que problemas técnicos, imputáveis a falhas inesperadas para a segurança do voo, constituem eventos na aceção do n.° 22 [do acórdão Wallentin‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771)], e que um problema técnico ocorreu espontaneamente e não se deve a uma falha na manutenção, nem foi detetado durante uma revisão periódica (os referidos ‘checks A a D’ e o ‘[d]aily [co]ntrol’), este problema técnico é inerente, ou não, ao exercício da atividade da transportadora aérea, e não escapa, ou escapa, ao controlo desta última, na aceção do referido n.° 26 [do acórdão Wallentin‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771)]?

      c)      Se a [sexta questão] for respondida no sentido de que problemas técnicos, imputáveis a falhas inesperadas para a segurança do voo, constituem eventos, na aceção do n.° 22 [do acórdão Wallentin‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771)], e que um problema técnico ocorreu espontaneamente e não se deve a uma falha na manutenção nem foi detetado durante uma revisão periódica (os referidos ‘checks A a D’ e o ‘[d]aily [co]ntrol’), quais são as circunstâncias que devem estar conexas com este problema técnico e quando é que essas circunstâncias são consideradas extraordinárias, a ponto de poderem ser invocadas como tal, na aceção do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004?

8)      Uma transportadora aérea operadora apenas pode invocar circunstâncias extraordinárias se puder provar que o cancelamento/atraso se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas, mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis. É correto concluir que essas medidas razoáveis têm por objeto as medidas a tomar para evitar que ocorram circunstâncias extraordinárias, e não as medidas a tomar para tentar limitar a 3 horas o atraso referido no artigo 5.°, n.° 1, alínea c), […] iii), do Regulamento n.° 261/2004, em conjugação com os n.os 57 a 61 do acórdão [Sturgeon e o., C‑402/07 e C‑432/07, EU:C:2009:716])?

9)      Em princípio, há dois tipos de medidas adequadas para limitar a um máximo de 3 horas os atrasos resultantes de problemas técnicos: a saber, por um lado[,] o armazenamento de peças sobressalentes em diversas partes do mundo, logo, não apenas na base da transportadora aérea, e[, por outro,] o reencaminhamento dos passageiros do voo atrasado. Podem as transportadoras aéreas, para determinar o volume do stock que mantêm e os locais onde os mantêm, basear‑se naquilo que é habitual no meio dos transportes aéreos, mesmo no caso das companhias que apenas estão parcialmente abrangidas pelo Regulamento n.° 261/2004?

10)      Deve o juiz, na resposta à questão de saber se foram tomadas todas as medidas razoáveis para limitar o atraso que resulta dos problemas técnicos que influenciam a segurança do voo, ter em consideração circunstâncias que agravam as consequências de um atraso, como a circunstância de, como sucede no caso em apreço, a aeronave com problemas técnicos ter de parar em diversos aeroportos antes de poder regressar à base, o que pode resultar na acumulação de tempo perdido?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à admissibilidade

19      O Governo francês contesta a admissibilidade do pedido de decisão prejudicial pelo facto de, em conformidade com o seu artigo 3.°, n.° 1, alínea b), o Regulamento n.° 261/2004 não ser aplicável ao litígio em causa no processo principal, na medida em que o direito equatoriano já prevê um regime de indemnização e de assistência para os passageiros aéreos vítimas de uma recusa de embarque, de um cancelamento ou de um atraso do voo, de que C. van der Lans pode beneficiar.

20      Por força de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, este só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a disposição de direito da União cuja interpretação é pedida ao Tribunal de Justiça não é aplicável (acórdão Caja de Ahorros y Monte de Piedad de Madrid, C‑484/08, EU:C:2010:309, n.° 19 e jurisprudência aí referida).

21      A este respeito, resulta do artigo 3.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 261/2004 que este último se aplica aos passageiros que partem de um país terceiro para um Estado‑Membro desde que, por um lado, a transportadora aérea operadora do voo seja uma transportadora da União Europeia e, por outro, os passageiros em causa não beneficiem do direito a prestações ou a uma indemnização e a assistência nesse país terceiro.

22      Quanto ao primeiro destes requisitos, é pacífico que a KLM é uma transportadora da União.

23      No que diz respeito ao segundo destes requisitos, há que referir que existe uma divergência entre as diferentes versões linguísticas do artigo 3.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 261/2004. Com efeito, algumas versões, nomeadamente em língua checa, alemã, inglesa, italiana e neerlandesa, empregam, respectivamente, as palavras «obdrželi», «erhalten», «received», «ricevuto» e «ontvangen». Assim, podiam ser lidas no sentido de que só excluem a aplicação desse regulamento nos casos em que os passageiros em causa obtiveram efetivamente prestações ou uma indemnização e assistência no país terceiro em causa.

24      Em contrapartida, outras versões linguísticas, como, nomeadamente, a espanhola («disfruten de»), francesa («bénéficient») e romena («beneficiat de»), sugerem antes que a aplicação do Regulamento n.° 261/2004 é excluída à partida no caso de os passageiros em causa beneficiarem de um direito a prestações ou a uma indemnização e a uma assistência nesse país terceiro, independentemente do facto de as terem ou não efetivamente obtido.

25      Ora, a necessidade de uma interpretação uniforme de uma disposição do direito da União exige, em caso de divergência entre as diferentes versões linguísticas, que a disposição em causa seja interpretada em função do contexto e da finalidade da regulamentação a que pertence (v., neste sentido, acórdãos DR e TV2 Danmark, C‑510/10, EU:C:2012:244, n.° 45, e Bark, C‑89/12, EU:C:2013:276, n.° 40).

26      A este respeito, basta recordar que o Regulamento n.° 261/2004, como resulta claramente dos seus considerandos 1 e 2, visa garantir um nível elevado de proteção dos passageiros (v. acórdãos IATA e ELFAA, C‑344/04, EU:C:2006:10, n.° 69, e Emirates Airlines, C‑173/07, EU:C:2008:400, n.° 35).

27      Ora, embora o artigo 3.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 261/2004, lido à luz desse objetivo, não exija, é certo, que se demonstre que o passageiro em causa obteve efetivamente prestações ou uma indemnização e assistência num país terceiro, a mera possibilidade de beneficiar das mesmas não pode, contudo, por si só, justificar que o referido regulamento não seja aplicável a esse passageiro.

28      Com efeito, não se pode admitir que um passageiro possa ser privado da proteção concedida pelo Regulamento n.° 261/2004, na mera hipótese de poder beneficiar de uma determinada indemnização num país terceiro, sem que se demonstre que esta última responde à finalidade da indemnização garantida por esse regulamento e que as condições a que tal benefício está sujeito, bem como as diferentes modalidades da sua execução, são equivalentes às previstas pelo referido regulamento.

29      Ora, os autos submetidos ao Tribunal de Justiça não permitem determinar se a finalidade das indemnizações previstas pelo direito do país terceiro em causa corresponde à da indemnização garantida pelo Regulamento n.° 261/2004 nem se os requisitos a que o direito a tais indemnizações está sujeito e as diferentes modalidades da sua execução são equivalentes às previstas por esse regulamento. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se é esse o caso.

30      Nestas condições, não está excluído que a disposição cuja interpretação é pedida se aplique no caso em apreço.

31      Por conseguinte, há que considerar que o pedido de decisão prejudicial é admissível.

 Quanto ao mérito

32      A título liminar, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, instituído pelo artigo 267.° TFUE, compete a este dar ao órgão jurisdicional nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, compete ao Tribunal de Justiça, se necessário, reformular as questões que lhe foram apresentadas (v., designadamente, acórdão Le Rayon d’Or, C‑151/13, EU:C:2014:185, n.° 25 e jurisprudência aí referida).

33      Tendo em conta essa jurisprudência, importa entender o conjunto das dez questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio no sentido de que visam, em substância, saber se o artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004 deve ser interpretado no sentido de que um problema técnico, como o que está em causa no processo principal, que ocorreu inesperadamente, que não é imputável a uma manutenção deficiente e que não foi detetado durante o controlo regular, está abrangido pelo conceito de «circunstâncias extraordinárias», na aceção desta disposição, e, em caso afirmativo, quais são as medidas razoáveis que a transportadora aérea deve tomar para lhe fazer face.

34      A este respeito, há que salientar, em primeiro lugar, que, por força do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004, a transportadora aérea operadora não é obrigada a pagar uma indemnização nos termos do artigo 7.° deste regulamento, se puder provar que o cancelamento se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis.

35      Em seguida, importa recordar que o Tribunal de Justiça precisou que, uma vez que constitui uma exceção ao princípio do direito dos passageiros a uma indemnização, este artigo 5.°, n.° 3, deve ser objeto de interpretação estrita (acórdão Wallentin‑Hermann, C‑549/07, EU:C:2008:771, n.° 20).

36      Por último, no que diz respeito, mais especificamente, aos problemas técnicos da aeronave, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que esses problemas podem ser considerados falhas inesperadas para a segurança do voo e que são suscetíveis de configurar circunstâncias desse tipo. No entanto, não deixa de ser verdade que as circunstâncias que rodeiam a ocorrência desses problemas só podem ser qualificadas de «extraordinárias», na aceção do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004, se estiverem relacionadas com um evento que, à semelhança dos enumerados no considerando 14 desse regulamento, não seja inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa e que, devido à sua natureza ou à sua origem, escape ao controlo efetivo desta última (v., neste sentido, acórdão Wallentin‑Hermann, C‑549/07, EU:C:2008:771, n.° 23).

37      Ora, uma vez que o funcionamento das aeronaves provoca inevitavelmente problemas técnicos, as transportadoras aéreas, no âmbito da sua atividade, são habitualmente confrontadas com esses problemas. A este respeito, os problemas técnicos revelados quando da manutenção das aeronaves ou devidos a uma falha nessa manutenção não podem constituir, enquanto tais, «circunstâncias extraordinárias» a que se refere o artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004 (v., neste sentido, acórdão Wallentin‑Hermann, C‑549/07, EU:C:2008:771, n.os 24 e 25).

38      Assim sendo, determinados problemas técnicos podem ser qualificados de circunstâncias extraordinárias. É o que sucede, por exemplo, na situação em que o construtor dos aparelhos da frota da transportadora aérea em causa ou uma autoridade competente revela, quando esses aparelhos já estão ao serviço, que os mesmos têm um defeito de fabrico oculto que afeta a segurança dos voos. O mesmo vale para os danos causados às aeronaves por atos de sabotagem ou de terrorismo (v., neste sentido, acórdão Wallentin‑Hermann, C‑549/07, EU:C:2008:771, n.° 26).

39      No caso em apreço, a KLM precisa, o que cabe, todavia, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, que o problema técnico em causa no processo principal consiste numa avaria no motor do aparelho em causa, devida ao defeito de algumas das suas peças, que não ultrapassaram o seu tempo médio de vida útil e relativamente às quais o fabricante não deu indicações sobre falhas suscetíveis de ocorrer no caso de atingirem um determinado tempo de vida útil.

40      A este respeito, afigura‑se, em primeiro lugar, como resulta do número anterior do presente acórdão, que esse problema técnico afeta apenas uma aeronave específica. Por outro lado, não resulta de forma nenhuma dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que o construtor dos aparelhos que constituem a frota da transportadora aérea em causa ou uma autoridade competente tenham revelado que não só essa aeronave em particular mas também outras aeronaves dessa frota tinham um defeito oculto de fabrico que afetava a segurança dos voos, o que cabe, em todo o caso, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar. Se fosse esse o caso, a hipótese jurisprudencial evocada no n.° 38 do presente acórdão não seria aplicável no presente processo.

41      Em seguida, há que salientar, por um lado, que uma avaria, como a que está em causa no processo principal, provocada pela falha prematura de algumas peças de uma aeronave, constitui, sem dúvida, um evento imprevisível. Por conseguinte, tal avaria permanece intrinsecamente associada ao sistema de funcionamento muito complexo do aparelho, que a transportadora aérea explora em condições, designadamente meteorológicas, muitas vezes difíceis, ou mesmo extremas, entendendo‑se, por outro lado, que nenhuma peça de um aaeronave é inalterável.

42      Por conseguinte, importa considerar que, no âmbito da atividade de uma transportadora aérea, esse evento imprevisível é inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea, sendo essa transportadora confrontada, regularmente, com esse tipo de problemas técnicos imprevistos.

43      Por outro lado, a prevenção dessa avaria ou a reparação ocasionada pela mesma, incluindo a substituição de uma peça prematuramente defeituosa, não escapam ao controlo efetivo da transportadora aérea em causa, uma vez que incumbe a esta última assegurar a manutenção e o bom funcionamento das aeronaves que explora para as suas atividades económicas.

44      Por conseguinte, um problema técnico como o que está em causa no processo principal não se enquadra no conceito de «circunstâncias extraordinárias», na aceção do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004.

45      Por último, importa precisar que, mesmo quando, em função das circunstâncias, uma transportadora aérea considere poder invocar a culpa do fabricante de certas peças defeituosas, o principal objetivo do Regulamento n.° 261/2004, que visa garantir um nível elevado de proteção dos passageiros, e a interpretação estrita de que o artigo 5.º, n.° 3, desse regulamento deve ser objeto se opõem a que a transportadora aérea possa justificar a sua eventual recusa de indemnizar os passageiros que sofreram sérios transtornos invocando, para esse efeito, a existência de uma «circunstância extraordinária».

46      A este respeito, há que recordar que o cumprimento das obrigações exigidas pelo Regulamento n.° 261/2004 não prejudica o direito de a referida transportadora exigir uma indemnização a qualquer pessoa que tenha causado o atraso, incluindo terceiros, conforme está previsto no artigo 13.° desse regulamento. Esta indemnização é, pois, suscetível de atenuar, se não mesmo de eliminar, o encargo financeiro suportado pela mesma transportadora em consequência daquelas obrigações (acórdão Sturgeon e o., C‑402/07 e C‑432/07, EU:C:2009:716, n.° 68 e jurisprudência aí referida).

47      Ora não se pode excluir desde logo que o artigo 13.° do Regulamento n.° 261/2004 possa ser invocado e aplicado relativamente a um fabricante incumpridor, a fim de atenuar, se não mesmo de eliminar, o encargo financeiro suportado por uma transportadora aérea em consequência das obrigações que lhe incumbem por força desse regulamento.

48      Na medida em que um problema técnico, como o que está em causa no processo principal, não está abrangido pelo conceito de «circunstâncias extraordinárias», não há que apreciar as medidas razoáveis que a transportadora aérea deveria ter tomado para o resolver, nos termos do artigo 5.° , n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004.

49      Em face das considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que o artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004 deve ser interpretado no sentido de que um problema técnico, como o que está em causa no processo principal, que ocorreu inesperadamente, que não é imputável a uma manutenção defeituosa e que não foi detetado durante o controlo regular, não está abrangido pelo conceito de «circunstâncias extraordinárias», na aceção desta disposição.

 Quanto às despesas

50      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Nona Secção) declara:

O artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento (CE) n.° 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.° 295/91, deve ser interpretado no sentido de que um problema técnico, como o que está em causa no processo principal, que ocorreu inesperadamente, que não é imputável a uma manutenção defeituosa e que não foi detetado durante um controlo regular, não está abrangido pelo conceito de «circunstâncias extraordinárias», na aceção desta disposição.

Assinaturas


* Língua do processo: neerlandês.